quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Acabar ou não com o “Ticão”, questão recorrente a dirimir


A discussão de que o TCIC (Tribunal Central de Instrução Criminal), vulgarmente conhecido como “Ticão”, deveria ser extinto, reformulado ou mantido é recorrente e merece debate entre as várias classes da justiça.
Com dois juízes polémicos, é lá que vão parar os casos mais complexos e, por sinal, os mais conhecidos. Caso disso é o megaprocesso “Operação Marquês”, que envolve o ex-Primeiro-Ministro José Sócrates, ou ainda o caso EDP/CMEC, que envolve António Mexia e Manuel Pinho. E outra característica invulgar deste tribunal é o facto de ter apenas dois juízes: Carlos Alexandre (no Ticão há mais de dez anos e onde chegou a ser o único juiz durante vários anos) e Ivo Rosa (a dividi-lo desde 2015), os dois de perfil marcadamente distinto: o primeiro, conhecido por ser favorável às teses do MP (Ministério Público); e o segundo, comummente apelidado de “persona non grata” entre os procuradores do MP, por habitualmente decidir contra as suas posições.
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O Conselheiro Henriques Gaspar, ex-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, em entrevista recente ao Expresso, defendeu a sua extinção, assegurando:
Trata-se de um tribunal cuja existência eu nunca compreendi e que hoje em dia não tem razão de ser. As funções do TCIC deviam ser desempenhadas pelos tribunais de instrução criminal.”.
Também Mário Belo Morgado, vice-presidente do CSM (Conselho Superior de Magistratura), disse à Advocatus Justiça que entende que deveria haver uma fusão do Ticão com o TIC (Tribunal de Instrução Criminal) de Lisboa. Este último tem um quadro de 7 juízes, enquanto o Tribunal Central tem 2. Ora, “com um quadro de, pelo menos, 9 juízes, evitar-se-ia que fossem sempre os mesmos dois juízes que estivessem no centro da atenção mediática”, como aduziu.
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Por seu turno, o advogado João Miguel Barros escreve, no Observador (22.09.2018), que encarar a extinção do TCIC como um sinal errado à opinião pública porque este foi o “tribunal que mandou prender Sócrates” é não compreender a essência do que é um Tribunal de Instrução Criminal. Por isso, na sua entrevista ao Expresso de 15 de setembro de 2018, Henriques Gaspar foi sintético, mas disse tudo: devia ser extinto. Se é certo que, por trás da ideia do TCIC, está o princípio de que ele acompanha a lógica do DCIAP, com juízes especializados a acompanhar o trabalho de procuradores especializados, a circunstância de haver um DCIAP não implica haver um tribunal central de instrução criminal.
E o predito advogado defende o mesmo e escreveu-o no seu livro “Sistema Judiciário Anotado” (2.ª ed. – pgs. 16-17), com uma cambiante em relação à posição de Henriques Gaspar, não podendo aderir ao que escreveu Luís Rosa no Observador, dois dias após a publicação da entrevista.
O TCIC é um tribunal de competência territorial alargada, pelo que tem competência sobre todo o território nacional. Os outros TIC têm a sua competência limitada à área das comarcas onde estão instalados, as quais coincidem, grosso modo, com os distritos administrativos.
Ora, a lei estabelece que, “quando a atividade criminosa ocorrer em comarcas pertencentes a diferentes tribunais da Relação” a competência de instrução cabe ao TCIC. Isto significa que os crimes que a lei inclui na competência do TCIC podem também ser da competência de um dos tribunais de comarca, se forem praticados nas comarcas pertencentes ao mesmo tribunal da Relação. Assim, um crime, embora muito sério e complexo, que tenha ocorrido apenas no distrito de Lisboa, não cabe na competência do TCIC, que também funciona em Lisboa (onde agora estão dois juízes, mas durante muito tempo esteve apenas um), mas é da competência do TIC de Lisboa, onde estão colocados 7 juízes.
Os JIC (juízes de instrução criminal) têm basicamente as competências de exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, proceder à instrução criminal e decidir se os arguidos são pronunciados, ou seja, se são levados a julgamento. Assim, durante o inquérito conduzido pelo MP, cabe ao JIC (quer seja do tribunal central, quer seja do tribunal de comarca), no essencial, o seguinte: proceder ao primeiro interrogatório judicial do arguido detido; proceder à aplicação de medida de coação ou de garantia patrimonial; proceder a buscas e apreensões em escritórios de advogados, consultórios médicos ou estabelecimentos bancários; e tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida.
Após acusação por parte do MP e no caso de o arguido requerer a abertura da Instrução (fase facultativa na estrutura do processo criminal), cabe ao JIC (seja do tribunal central, seja do tribunal de comarca), decidir se o MP agiu bem ao deduzir acusação criminal contra o arguido e, nesse caso, enviar o processo para julgamento (no tribunal de julgamento onde deverá ser produzida toda a prova, para que os juízes aí possam decidir sobre a culpabilidade ou inocência do arguido); e, se entender que não há indícios suficientes ou que foram cometidas ilegalidades insuperáveis na investigação, não deve pronunciar o arguido (não o levando a julgamento), mas mandar arquivar o processo.
Muito mal seria pensar-se que nos tribunais de comarca não há juízes competentes e especializados, capazes de exercer essas funções com o mesmo nível técnico das que são supostamente exercidas pelos juízes do tribunal central.
Por isso, extinguir o TCIC não é machadada na especialização. Com efeito, todos os TIC, seja o central, sejam os de comarca, são tribunais especializados.
O titular da ação penal é o MP, cabendo-lhe investigar qualquer notícia da prática de crime. E, terminado o inquérito, se concluir da existência de indícios suficientes de atividade criminosa, deduz acusação contra os suspeitos. Ora, no nosso sistema, o JIC não carimba as decisões investigatórias do MP, dando-lhe “certificação de legalidade”; garante, antes, a legalidade, bem como os direitos dos arguidos. É o juiz das liberdades, não o juiz “que manda prender”. Se houver a perceção pública de que o JIC serve para “mandar prender”, teremos um problema sério no equilíbrio do nosso sistema de direitos, liberdades e garantias.
Assim, embora a lei o não preveja expressamente, fazem sentido as preocupações de alguns dos advogados envolvidos na Operação Marquês: um juiz que ao longo dos tempos, durante o inquérito, validou sistematicamente as posições do MP não pode ter a independência suficiente para exercer a função de juiz das liberdades na fase de instrução. Não é, pois, de crer que haja argumentos novos que surpreendam a sua convicção. Por mais independência que pretenda exibir, olhará para o arguido na fase da instrução com o mesmo olhar que o levou a validar as decisões acusatórias do MP. Assim, deveria estar impedido de presidir à instrução.
E, genericamente falando, é seriamente preocupante a falta de defesas e de proteções que os envolvidos em investigações criminais têm num sistema como o existente.
Um Tribunal com um só juiz, em especial um tribunal com as competências do Ticão, afeta a sanidade do sistema judiciário, sobretudo se o juiz se assumir como justiceiro e inquisidor, não percebendo que o seu papel é defender a legalidade e a liberdade. Além disso, a concentração excessiva de informação relevante numa só pessoa é sério risco para o sistema democrático.
A Lei de Organização do Sistema Judiciário de 2013 aumentou de um para dois o quadro de juízes do TCIC, atenuando o problema, mas sem o resolver. Tanto assim é que a perceção que a comunicação social veicula, a propósito do sorteio no processo referente à “Operação Marquês”, é a da suposta existência de um “juiz bom” e um “juiz mau”.
Depois, o combate à corrupção e à criminalidade sofisticada depende de um MP forte, autónomo, competente, sério, com meios e capaz de investigar indícios consistentes de crimes e sem medo de afrontar poderes instalados, independentemente de quem os pratique, uma vez que a lei é igual para todos, não distinguindo os títulos e suas ausências ou as posições sociais.
E o predito advogado sugere, em prol do equilíbrio e saúde do sistema, duas medidas: criação de norma legal que declare impedido o JIC que tenha interferido na fase de inquérito (ou seja, acompanhado e sancionado as investigação do MP), de modo que não presida à instrução do mesmo processo (a fase de pré-julgamento destinada a saber se o processo deve, ou não, ir para julgamento); e extinção do TCIC, repartindo as suas competências pelos TIC das Comarcas (como defende Henriques Gaspar) ou atribuindo tais competências ao TIC de Lisboa, que teria de estar mais capacitado e reforçado em termos humanos. – (vd Expresso, 15.09.2018; Observador, 22.09.2018 e 17.09.2018).
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À Advocatus Justiça, segundo o ECO (18.12.2018), advogados de arguidos de processos mediáticos respondem sobre a viabilidade deste tribunal, pois os advogados têm uma palavra a dizer nesta matéria, sobretudo os dos arguidos mais mediáticos, que lidam de perto com este tribunal. À dupla questão que a Advocatus colocou se este tribunal deveria ser extinto e se o facto de ter apenas dois juízes era um ‘senão’, as respostas foram praticamente unânimes: no sentido da extinção e de que a justiça perde com esta “pessoalização” das decisões instrutórias.
Assim, José António Barreiros (advogado de Zeinal Bava, ex-CEO da PT e arguido na “Operação Marquês”) sustenta que um TIC “que seja privativo dum departamento de investigação do MP (departamento para casos relevantes e sensíveis e que a isso soma o poder de avocação de processos que corram pelo país) é apto a gerar “problemas com repercussão pública” (problemas havendo sintonia e havendo divergência). E diz:
A ideia de haver pessoalização nasce, afinal, do que resulta daquela relação de proximidade permanente. O mediatismo decorre da natureza dos casos que por ali correm. O paroxismo do que sucede é o fruto óbvio de tudo isso. O poder político que isto criou não ignorava que tal iria suceder.”.
E, quanto ao facto de só existirem dois juízes no TCIC, o advogado defende que uma lei que obrigue um juiz de instrução a avaliar em fase de instrução os seus próprios atos jurisdicionais em fase de inquérito e sem recurso é “materialmente inconstitucional”, o que sucedeu diversas vezes enquanto havia um só juiz deste tribunal. E conclui:
Havendo um só juiz é o que sucede sem alternativa. Havendo mais juízes é o que sucederá se o que tiver intervindo no inquérito não ficar impedido de atuar na instrução. Não é, pois, a quantidade que resolve. […] Quem criou a lei impôs a juízes aquilo a que juízes não devem estar sujeitos.”.
João Medeiros (advogado do Benfica para o caso e-Toupeira e dum arguido da Operação Marquês), concorda em absoluto com a extinção do TCIC. E vai mais longe:
“Tenho até dúvidas da legalidade da sua existência. Não há nada que justifique o DCIAP ter um tribunal exclusivo quando lhe dá jeito.”.
E, no atinente ao facto de o Ticão ter apenas dois juízes, refere que “nada disso aconteceria se estivesse integrado nos tribunais de instrução criminal”.
Já Paulo Saragoça da Matta (advogado de Ricardo Oliveira, do caso BPP, e do Benfica, no caso e-Toupeira) mostra-se mais cético quanto à extinção, justificando a existência do tribunal com a sua especialização. E acrescenta que, tal como a extinção do DCIAP não faz sentido por razões de especialidade e complexidade dos temas ali investigados (aduzindo que a melhor prova da utilidade é a história dos últimos anos), seria impensável extinguir a ideia dum TCIC pelas mesmas razões.
Porém, no concernente aos juízes, a questão é diferente, principalmente no que toca a saber “se este TCIC poderia alguma vez ter existido só com um juiz (durante anos a fio), o que não poderia ter sucedido por razões óbvias. E, mesmo só com dois juízes não se deverá manter, por algumas dessas razões, como a aleatoriedade do juiz a quem é distribuído o processo, a transparência da Justiça, a imagem pública de imparcialidade (o que é diferente de verdadeira imparcialidade que não se deve pôr em causa) e a criação de uma verdadeira jurisprudência – “que só é possível com pluralidade de magistrados a conhecer do mesmo tipo de questões”. Por tudo isso, o TCIC, “quer por razões de gestão processual, quer por razões dogmáticas (constitucionais e processuais penais) nunca deveria ter tido menos do que três juízes em permanência”.
Por sua vez, Rui Patrício (advogado de Hélder Bataglia, arguido da Operação Marquês e do Benfica no caso e-Toupeira) não se pronuncia em concreto sobre o Ticão, por não ser questão que o preocupe especialmente nem que lhe mobilize os pensamentos sobre a Justiça. E diz:
Sinceramente, e digo-o não para ‘fugir’ à questão, mas digo-o antes com marcada intencionalidade: interessa-me o que se passa nos processos, mas onde eles correm, sinceramente, interessa-me bem menos. Ou seja, e passe o plebeísmo: estou preocupado com questões de processo penal essenciais ou bem mais importantes (legais e ‘práticas’, e muitas), já quanto à manutenção ou à extinção de um Tribunal em concreto, francamente, ‘estou-me nas tintas’. E tenho pena de que estejamos, uma vez mais, a discutir (e acaloradamente) o acessório e a ‘deixar andar’ o essencial.”.
E, relativamente aos poucos juízes deste tribunal, o jurista observa:
“Quem pode, e tem que, responder a essa pergunta é o legislador e, com especial intensidade, o Conselho Superior de Magistratura, e é aí que temos que ir buscar, e exigir, a resposta”.
Para Francisco Proença de Carvalho (advogado de Ricardo Salgado, do caso das Secretas e do caso CTT), “é perigoso para o regular e equilibrado funcionamento de um Estado de Direito a existência de superpoderes ou superjuízes que assumam protagonismo excessivo na opinião pública, acentuando um culto da personalidade e potenciando uma ação penal mais justiceira”.
O jurista fala na “perversidade deste modelo”, que ficou ainda mais à vista de todos com a recente mediatização do sorteio da Operação Marquês, “que mais parecia digno do mundo do futebol (inclusive com claques dum lado e doutro) do que dum sistema de justiça democrático de “primeiro mundo”, não fazendo sentido o TCIC existir, pelo que os processos deveriam seguir o modelo geral de distribuição. E, “quanto mais juízes tiver, melhor, não tanto pela complexidade dos processos”, mas para diluir os riscos que a concentração de poder provoca”.
E, segundo Paulo de Sá e Cunha (advogado em processos como a Operação Marquês, Operação Furacão e Operação Labirinto, mais conhecido como “Vistos Gold”), não há “justificação plausível” para que exista um tribunal central, “ao qual seja conferida uma competência superespecializada, seja em razão da matéria, seja em razão da plurilocalização do crime (em territórios de diferentes distritos judiciais). De facto, como defende, a única especialização que importa é em matéria penal e processual penal. E, nesse domínio, os TIC “são já tribunais de competência especializada”.
O advogado insiste nas funções do JIC acima elencadas, sobretudo no âmbito da garantia da legalidade e das liberdades e defende que é preferível ter dois juízes em lugar de um. Mas aponta a concentração, em pessoas determinadas, de processos como os decididos no TCIC, submete os juízes que ali exercem funções a um mediatismo que lhe parece nocivo”.
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Enfim, pelo menos, reformulem o TICÃO, se não o quiserem extinguir. A bem da justiça…
2018.12.19 – Louro de Carvalho

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