sexta-feira, 30 de junho de 2017

Obviamente é a escola que declara a transição ou a aprovação do aluno

No blogue “Com Regras”, aparece um texto com a seguinte questão: “Quem deve chumbar o aluno? A escola ou o conselho de turma?”. Advertindo que “provavelmente não cairá bem na maioria dos professores” o que escreve, o autor pede que se veja o seu raciocínio até ao fim.
A meu ver, a questão está mal colocada, porquanto não se trata de chumbar alunos, mas de proceder à sua avaliação sumativa, de que resulta um juízo valorativo e, por conseguinte, a decisão de considerar que o aluno transitou para o ano imediato ou que fica retido no mesmo ano (não transitou), sendo que, em avaliação sumativa de fim de ciclo, o aluno é declarado aprovado ou não aprovado, conforme tenha ou não concluído com êxito o repetido ciclo.
***
Entre parêntesis, diga-se ao articulista que o verbo transitar não é verbo transitivo direto, pelo que, não postulando complemento direto, não é legítimo dizer, por exemplo, “procurava-se todo e qualquer motivo para transitar o aluno”. Deveria dizer-se “procurava-se todo e qualquer motivo o aluno para transitar” ou “para que o aluno transitasse”. A este respeito, é de mencionar o que nos dizem Helena Ventura e Carla Diana, do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa:
“Com o sentido de ‘passar ou mudar de um lugar para outro’, devemos utilizar a preposição para. Assim, ‘... transita para...’ Se for com o sentido de ‘andar, percorrer’, emprega-se a preposição em. Ex.: ‘Hoje não se pode transitar em Lisboa’.”.
E, segundo os dicionários gerais de língua, o verbo transitar é usado com os significados e nos contextos que se seguem (pesquisa de Carla Viana):
a) «Andar, percorrer, viajar ou passar através de um determinado espaço, percorrendo-o». Ex.: Transitar na rotunda.
b) «Passar ou mudar de um lugar para outro». Ex.: A sede da empresa transitou de Lisboa para Coimbra.
c) «Estar de passagem por determinado lugar». Ex.: Eles transitaram pelo território ocupado. No voo de Istambul para Lisboa transitámos em Madrid.
d) «Passar ou mudar de uma situação de um estado ou condição para outro». Ex.: Ele  transitou de tesoureiro para chefe de secção.
e) «Ser dado por concluído um processo judicial». Ex.: O processo já transitou em julgado.
f) «Passar um aluno para o ano seguinte, transitar de ano letivo». Ex.: Todos transitaram para o ano seguinte. O João transitou do quinto para o sexto ano de escolaridade.
No contexto em referência, ou seja, «transitar de ano letivo», o verbo transitar rege a preposição para, conforme os exemplos da alínea f), que é uma extensão semântica da alínea b).
***
Entretanto, o articulista em referência tem tido pouca sorte, a ser verdade o que diz:
“Há 15 anos que participo em reuniões de avaliação, onde em determinado momento se analisa a retenção ou transição do aluno. Se existem casos onde as negativas são tantas como os dedos das mãos, outros fazem-nos ponderar se devemos transitar ou não o aluno”.
E tem razão quando diz que “a dúvida é legítima e é de difícil resolução” tendo ele próprio já mudado “de opinião muitas vezes nestes 15 anos” e também já se tendo arrependido “de algumas decisões”. Porém, é ilegítimo generalizar dizendo:
“A realidade é que os conselhos de turma decidem normalmente o futuro da criança/jovem, baseando-se nas suas crenças pessoais ou, se preferirem, níveis de compaixão ou de intolerância para com os alunos”.
Confesso que, apesar das fortes críticas que tenho lançado sobre o sistema, não me revejo no mundo do subscritor do texto, quando diz:
“Não me lembro de debates centrados nas dificuldades concretas do aluno, nas estratégias necessárias para mudar o que está mal, questionando métodos de ensino, métodos de avaliação, ou mesmo lembrando os porquês da atitude do aluno perante a escola. A atitude é uma mera manifestação de uma série de fatores que até podem advir da própria sala de aula, onde até mesmo a empatia que existe entre professor e aluno pode decidir o sucesso ou insucesso. Muitos outros fatores existem e seguramente que o fator casa é um dos principais, se não mesmo o principal fator que enraíza o insucesso e o distanciamento.”.
A minha experiência reza o contrário: em situação dúbia, atentamos nas dificuldades e progressos concretos do aluno, no contexto familiar e, quanto a estratégias de mudança de métodos de ensino e de avaliação, têm-se feito muitas sugestões e recorrentes apelos ao real e eficaz envolvimento do encarregado de educação no processo de ensino/aprendizagem. Se os professores, às vezes, desanimam perante as condições de trabalho, também é certo que dão o seu melhor pelo sucesso dos alunos. Não querem é ser objeto de pressão excessiva ou ilegítima de diretores, inspetores ou dos encarregados de educação. E a empatia entre aluno e professor é um bom fautor do sucesso escolar. E, quando ela não acontece, exige.se respeito mútuo.
É injusto considerar os professores enquadrados no “painel de jurados” que “é responsável por tocar a harpa celestial ou o som estridente do chicote”. Lamento que lhe tenha acontecido “entrar em conselhos de turma, onde a ‘arena’ estava montada e era escusado dizer um mas”; ou que, noutros se procurasse “todo e qualquer motivo para transitar (sic) o aluno, mesmo que o absentismo, o insucesso e a indisciplina fossem o dia sim, dia sim…”. Só me pergunto: onde estava o poder da palavra e de denúncia que assiste a todo e a qualquer professor?
Diz o rico que “falta muitas vezes critério aos conselhos de turma e a sorte está traçada muitas vezes no início do ano, quando são distribuídos os professores pelas turmas”. É óbvio que é ao diretor (como dantes ao conselho executivo ou ao conselho diretivo) que incumbe a distribuição do serviço docente, mas ao professor continua a assistir o direito e a obrigação de cidadania de fazer sugestões a que de direito ou a denúncia de situações graves. Obviamente que a escola tem projeto educativo e se pauta por uma sólida política educativa. Não está mesmo à mercê das “vontades/caraterísticas” dos conselhos de turma nem sujeita “a vontades, impulsos, pequenos atos de vingança ou paternidade exacerbada”. E quaisquer casos em contrário, a existirem, devem ser oportunamente denunciados e combatidos. E, a talho de foice, considero que o palavrão não será em si motivo de suspensão, mas a escola deve educar para valores de ética e cidadania, que passam pela razoabilidade das linguagens. Mas tem razão quando assegura:
“A escola não é apenas ‘matéria’, a escola é sentimento, sentimento esse que orienta as nossas decisões. O fator humano nunca poderá desaparecer de uma escola, mas este não deve fazer esquecer o rumo, o projeto, o objetivo da escola.”.
É de apreciar o estudo que o Agrupamento de Escolas de Mangualde fez sobre o impacto que o a retenção ou não aprovação de alunos teve no sucesso educativo dos seus alunos. Constatou que “no 1.º ciclo, a retenção no 2.º e 3.º ano escolar até pode ser benéfica”, justificável até “pela fraca maturidade dos alunos”. Porém, no 2.º e 3.º ciclo, verificou que “o chumbo nos anos intermédios pouco ou nada melhorava o rendimento escolar em anos futuros”.
O Agrupamento de Escolas de Mangualde estudou a sua população escolar e adaptou a sua estratégia às caraterísticas dos seus alunos. Com efeito, não é justo sentido tratar por igual o que é claramente diferente, nem ignorar os factos por crenças ou ideologias pessoais.
***
A avaliação dos alunos e, por consequência, a declaração de transição/aprovação é competência da escola. Porém, a escola não funciona em abstrato, mas através dos seus órgãos. Quem representa, no topo, a escola é o diretor ou quem fizer as suas vezes. Porém, não é a este órgão que incumbe a declaração escrita individualmente considerada da não transição ou não aprovação de cada aluno, bem como a transição ou aprovação. Não é o conselho geral, a quem incumbe a direção estratégica e não a tomada de decisões individualizadas. O conselho de departamento curricular ou de grupo disciplinar não abrange a totalidade dos saberes que são confiados ao aluno ou que ele deve adquirir e desenvolver. Obviamente que, em nome da escola, o conselho de turma ou o conselho de docentes, responsável pelo plano de atividades da turma e pela avaliação das aprendizagens toma as decisões que levam à transição e aprovação dos alunos.
O subscritor do aludido texto diz que os conselhos de turma não têm critérios. A contrario, recordo que os normativos da avaliação e a certificação das aprendizagens estabelecem:
“Até ao início do ano letivo, o conselho pedagógico da escola, enquanto órgão regulador do processo de avaliação das aprendizagens, define, sob proposta dos departamentos curriculares, os critérios de avaliação, de acordo com as orientações constantes dos documentos curriculares e outras orientações gerais do Ministério da Educação. Nos critérios de avaliação deve ser enunciada a descrição de um perfil de aprendizagens específicas para cada ano e ou ciclo de escolaridade.
Os critérios de avaliação constituem referenciais comuns na escola, sendo operacionalizados pelo ou pelos professores da turma. O diretor deve garantir a divulgação dos critérios de avaliação junto dos diversos intervenientes.” (cf despacho normativo n.º 1-F/2016, de 5 de abril, art.º 7.º).
É certo que, às vezes, os critérios definidos são um tanto enviesados, ao limitarem-se a definir o peso percentual de cada modalidade de avaliação, o que deve passar por respeitar mais a índole de cada disciplina ou área curricular, limitando-se o conselho pedagógico a coordenar a definição dos critérios gerais e específicos de avaliação. Também se perde muito tempo, no conselho de turma, a justificar classificações negativas, que falam por si, quando se devia gastar mais tempo em ponderar a não transição ou não aprovação. E o conselho devia ter mais em conta o juízo de cada professor e não uma atitude às vezes bem inquisitorial. Mas daí a falar em estados de alma ou atitudes de vingança ou de paternalismo exacerbado vai enorme distância.
***
Naturalmente, não quero que volte a escola em que o aluno que tivesse 4 (na escala de 0 a 20) era expulso, não podendo voltar nesse ano. Também não é linear o que se fazia quando nos conselhos de turma os professores “inequivocamente atribuíam as classificações e à 3.ª negativa, se não fosse Português ou Matemática, o aluno chumbava. Tem de haver sempre a devida ponderação considerando a situação global do aluno.
Como dantes, a sociedade é dura e fortemente competitiva. Mas a escola fraca, que diz preparar os alunos para a democracia sem cuidar da dificuldade, é espelho da fraca autoridade do Estado. Por outro lado, a escola pretende responder a tudo e isso é humanamente impossível. E os encarregados de educação, em vez de informarem os professores/diretores de turma do que é importante para a relação aluno/professor e de acompanharem assiduamente o processo de ensino/aprendizagem, querem ter os alunos guardados fora de casa o mais tempo possível e contestam a autoridade do professor. E vemos professores amedrontados, cheios de problemas de consciência, cheios de meninos com n problemas do foro psicológico e com a ideia de que o sentimento salva e limpa o espírito. Depois, avoluma-se a ideia de que os problemas dramáticos dos pais são mais importantes que a exigência, a aplicação e obrigação do aluno em responder às dificuldades diárias e aos desafios lançados pelos professores, programas e regulamentos. É este complexo de fatores que transporta para a escola o sentimentalismo oco, inútil e antipedagógico, que, qual peste em pandemia, vai corroendo o ensino e o papel da escola.
A escola de hoje é a escola de todos, mas deve deixar de ser o espaço onde muitos mal sabem ler escrever ou contar; e deve contribuir para que os problemas sociais sejam resolvidos, e não sucessivamente adiados, para facilitar o sucesso escolar e educativo. Não podem jamais em tempo algum operacionalizar-se tratamentos de cosmética infrutíferos levando a escola a fazer um serviço tipo padaria com farinha de 3.ª categoria, onde cada fornada é o espelho do padeiro que, por melhor que seja, dificilmente apresentará pão de boa qualidade. Há que criar condições sociais para a promoção de melhores aprendizagens e consequentes resultados. Pactuar com a degradação da escola é impróprio da profissão docente. Para produzir bom pão tem de haver bom solo. Estado que insista na produção de cereal em terreno pedregoso, jamais boa colheita e boa fornada. Depois, é preciso enaltecer as pessoas que aprendem que na vida é necessário batalhar para alcançar objetivos, convencidas de que se alcança tudo com esforço. Não podemos resignar-nos a criar um país de ignorantes diplomados, mais fáceis de governar/dominar por falta de espírito crítico, de opinião.
Vamos ao sempre tão eloquente exemplo da Finlândia e já sabemos como se faz lá. Mas, para isso, é preciso dinheiro para mais professores que façam o acompanhamento dos alunos, dispensar os docentes do excesso de tarefas administrativas e flexibilizar currículo e organização. Sem o que resta o facilitismo, a falsa compaixão e o demagógico discurso do pedagogismo.
***
Alguém deu conta dum alerta para a situação de existência de alunos de cursos vocacionais que, apesar de terem mais de 70% dos módulos concluídos, não atingem os 100%. E 100% é o patamar percentual necessário para que os alunos possam matricular-se no ensino secundário profissional, para os restantes, a saída era um ensino secundário vocacional, que foi extinto.
O ano passado, quem estava no último ano do curso vocacional do ensino básico, podia integrar a turma que vinha a seguir, o que agora é impossível, pois não foram abertas novas turmas. Surge assim o vazio. Se os alunos não obtiverem 100% de sucesso não podem transitar para o ensino secundário, apesar de terem o número de módulos suficientes para o efeito e que lhes foi prometido pela tutela.
O alerta aponta o dedo ao ME e diretores, que pressionam os professores a darem 100% de sucesso aos alunos, já que a alternativa não existe. Estes alunos ficariam na terra de ninguém, pois para o ensino regular têm de fazer exames de acesso, o que, em geral, não conseguem; e, como já têm o 9.º ano, não podem frequentar mais o 3.º ciclo.
Dirão alguns que a pressão é legítima, que os alunos não têm culpa. Todavia, o princípio de equidade deve ser respeitado. Já não basta o facilitismo inerente a estes cursos, que obrigava todos os alunos a transitarem para o 2.º ano, mesmo que não fizessem um único módulo. Agora o que importa é acabar com isto rapidamente. Este fim de cena dos cursos vocacionais é como o jogo em que uma equipa está a ser goleada, faltando pouco para acabar. É penoso, mas quem atribui notas tem de ser profissional.
Até existe, pelos vistos, um documento, não assinado, que apela de forma camuflada ao sucesso a todo o custo, estribado no princípio de que “a escola tem autonomia e tem de resolver a questão”. Será que os diretores baixarão a cabeça ordenando o desentupimento do sistema?
Assim, a tónica deveria ser colocada no erro da extinção dos Cursos Vocacionais Secundários. Com uma escolaridade obrigatória de 12 anos, é imprescindível a existência de um percurso secundário aligeirado para alunos que rejeitam um currículo predominantemente académico.

Tandem, quo vadis, schola?

Ministério da Educação embarca na ditadura do relativismo de situação

Não se trata dum departamento qualquer do Estado, mas do serviço público de educação que se deve pautar pelo figurino de educação que promove em duas vertentes: a do conhecimento e desenvolvimento de capacidades; e a dos valores, espelhados em atitudes e comportamentos norteados pela ética, por mínima que seja.
***
Começando pela segunda vertente, é certo e sabido, pelas redes sociais e pela comunicação social convencional, que houve uma fuga de informação sobre o conteúdo da prova do exame de Português (639), na 1.ª fase, a que se sujeitou a maior parte dos alunos, sendo poucos os que se submeteram à prova 239 (alunos com deficiência auditiva de grau severo ou profundo) e à prova 94/839 (Prova Final/Prova de Exame Final Nacional de Português Língua Não Materna).
Do meu ponto de vista, porque o universo de alunos que podem ter beneficiado do conhecimento prévio dos conteúdos veiculados será muito difícil de calcular, a prova 639 deveria ser anulada quanto antes, para evitar incómodos maiores. É injusto, sem dúvida, mas situações excecionais merecem postura excecional. Por motivos excecionais, tivemos excecionalmente as fronteiras encerradas; no verão de 2016, a A1 esteve cortada ao trânsito nos dois sentidos horas e horas e as pessoas (jovens e donzelas, velhos e crianças) tiveram de aguentar a espera e o calor. Foi incómodo e injusto, mas teve de ser. Porém, com agrado da CONFAP e de largos setores de opinião, no dia 28, o Ministro da Educação garantiu que o exame de Português do 12.º ano, cuja eventual fuga de informação em investigação, não vai ser anulado. Segundo Tiago Brandão Rodrigues, caso se venha a confirmar que houve fuga de informação, “o Ministério agirá civil, disciplinar e criminalmente contra o seu autor ou autores”. 
O que espanta é que o Ministro fale em eventual fuga de informação, quando os factos não se discutem. A fuga existiu e foi denunciada ao ME (Ministério da Educação). O que tem de ser investigado é a autoria do facto e a extensão dos possíveis beneficiários. Mas o governante declarou aos jornalistas, à margem da sessão de entrega de prémios do concurso “Conta-nos uma história!”, que decorreu na Maia, distrito do Porto, no dia 28:
Se alguém saiu beneficiado por essa fuga de informação, de forma comprovada, obviamente que sofrerá as consequências que estão inscritas nos regulamentos”.
E disse mais:
Não está em cima da mesa, nem esteve e nem foi equacionada, a possível anulação da prova”.
Ora, perante uma fraude todas as hipóteses devem ser equacionadas, bem como num processo de investigação. Todavia, para Brandão Rodrigues, “face a uma denúncia que existiu, fez-se o que devia ser feito, o que tinha que ser feito” e o ME não intervirá na investigação que decorre relativamente a uma alegada fuga de informação sobre os conteúdos da prova, porque “esta é uma questão que não pode nem deve merecer posições facilitistas ou posições precipitadas”. E acrescentou que, neste momento, é importante “transmitir aos alunos que têm de, com serenidade e tranquilidade, continuar a sua época de exames”. E a Procuradoria-Geral da República (PGR) informou, no dia 23, que a eventual fuga de informação do exame nacional de Português “deu origem a um inquérito” e “o mesmo encontra-se em investigação no DIAP (Departamento de Investigação e Ação Penal) de Lisboa”. Com efeito, em resposta à Lusa, a PGR disse que se confirmava “a receção da participação do IAVE [Instituto de Avaliação Educativa], a qual deu origem a um inquérito” e que o mesmo se encontrava em “investigação no DIAP de Lisboa”. 
Entretanto, jornal Expresso teve acesso ao áudio que circulou nas redes sociais alguns dias antes do exame nacional e que revelava o que ia sair na prova. Segundo o dito áudio, a fuga partiu da “presidente de um sindicato de professores”. Na gravação, feita por uma aluna que não se identifica, pode ouvir-se a estudante a dizer:
“Ó malta, falei com uma amiga minha cuja explicadora é presidente do sindicato de professores, uma comuna, e diz que ela precisa mesmo, mesmo, mesmo só de estudar Alberto Caeiro e contos e poesia do século XX. Ela sabe todos os anos o que sai e este ano inclusive”. 
E ainda:
“Pediu para ela treinar também uma composição sobre a importância da memória e outra sobre a importância dos vizinhos no combate à solidão”.
Segundo o Expresso, a situação foi denunciada ao ME por Miguel Bagorro, professor na Escola Secundária Luísa de Gusmão, em Lisboa, que soube da gravação através dum aluno a quem dava explicações de Português. E a divulgação daquele áudio levou o IAVE a anunciar que iria remeter para a IGEC (Inspeção-Geral de Educação) e para o Ministério Público informações sobre as alegadas fugas de informação, que teriam acontecido antes da realização do exame nacional do 12.º ano, que decorreu no dia 19.
Nos termos do regulamento dos exames nacionais, publicado em “Diário da República”, “a suspeita de fraude que venha a verificar-se posteriormente à realização de qualquer prova implica a suspensão da eventual eficácia dos documentos entretanto emitidos”, nomeadamente das classificações que vierem a ser atribuídas. Mais refere o documento que deve ser elaborado “um relatório fundamentado em ordem à possível anulação da prova”.
Porém, o ME não conseguirá furtar-se à polémica. Como é que se vai apurar que o aluno A ou B soube do conteúdo da fuga de informação? E como se prova que beneficiou do conhecimento prévio daqueles conteúdos? Se o ME insiste em embarcar na judicialização de escola e exame, terá imensas dificuldades em singrar por aí. O advogado Vasco Marques Correia explicou ao Expresso que o ME se arrisca a enfrentar milhares de queixas em tribunal por parte de alunos que venham a sentir-se lesados. Por esse lado, o aluno pode alegar que não conheceu que se tratava do poema XXXVI (de O Guardador de Rebanhos) e que a composição sobre a memória não era a única hipótese aventada. Mas, em 3 dias, não era possível ler todos os poemas de Alberto Caeiro e fazer uma composição sobre memória ou sobre solidão? Eram 110 pontos (11 valores).
Ora, que houve atropelo à ética houve e cabe à escola promover atitudes éticas e corrigir pedagogicamente as suas contrafações e desvios, o que não se faz por via judicial, que leva tempo e exige provas iniludíveis, sujeitas a todos os esquemas inerentes às batalhas jurídicas.
Assim, segundo Marques Correia ao Expresso Diário, o ME, ao decidir pela não anulação do exame e pela garantia de que “só os alunos que comprovadamente tenham beneficiado com a alegada fuga de informação” serão penalizados, enfrentará a chamada “prova diabólica” (‘diabolica probatio’), de que se fala em Direito. Com efeito, identificar todos esses estudantes e demonstrar que tiraram vantagem daquela informação é praticamente impossível.
É, de facto, muito difícil sustentar juridicamente a anulação da prova a alguns alunos. Seria preciso provar que o aluno acedeu a uma informação confidencial a que não tinha direito de aceder e que objetivamente beneficiou com isso, colocando-se numa situação de vantagem em relação aos colegas. Ou seja, não bastava mostrar que teve acesso à informação. Era preciso que tivesse agido em conformidade, orientando o estudo para aquelas matérias.
Além disso, como é que pensa o ME chegar aos autores através da pesquisa em redes sociais, a não ser que, colocando todas as hipóteses, se passem a pente fino serviços do IAVE, da editorial do ME e das próprias forças de segurança. Será possível e viável? Tenho dúvidas.
No dia 29, deu-se conta de furto de granadas (Quantas?) e munições de 9mm (Quantas?). Mas o Ministro da Defesa Nacional não veio falar em eventual furto, mas em caso grave e crime muito profissional. Há ministros e ministros… mas era material de guerra e não exames de Português. Como é que eu não percebi logo!
***
Abordando agora a primeira das vertentes acima referenciadas, está em causa já não só a ética dos valores, mas também a do conhecimento. E o IAVE tem sido useiro e vezeiro nisso, como se pôde ver pelos exemplos que já apresentei alhures. E, tratando-se duma entidade tornada independente – pensava eu que da hierarquia do ME, mas pelos vistos também independente da ciência –, Sua Excelência o Ministro não teria que responder pelo IAVE. Porém, veio considerar que houve “uma diferença de opinião” entre o IAVE e a SPM (Sociedade Portuguesa de Matemática) quanto a critérios de classificação do exame de Matemática do 9.º ano, já ultrapassada. Disse Sua Excelência aos jornalistas:
“O Instituto de Avaliação Educativa, que organiza todo o processo de exames e provas a nível nacional, já prestou um esclarecimento sobre o assunto. É mesmo isso, uma diferença de opinião, mas isso está sanado e os esclarecimentos já foram prestados”.
Está em causa o item 14 (no 2.º caderno) da referida prova: Fatoriza o polinómio x2 - 4. Qualquer antigo aluno de Matemática deste nível sabe que se trata da diferença de quadrados cuja fatorização se exprime num monómio constituído pela multiplicação da diferença dos dois elementos (x e 4) pela soma dos mesmos: (x2) (x + 2); ou, atendendo à propriedade comutativa: (x + 2) (x2). Nunca será aceitável uma valorização de peso (75% – 3 pontos em 4) para uma solução falsa, como o é: x2 x x + 2. Quando muito, do meu ponto de vista, mereceria um ponto por o aluno ter identificado o caso notável da diferença de quadrados.
A SPM denunciou a existência dum erro na proposta de correção do exame do 9.º ano à disciplina, realizado por quase 90 mil alunos finalistas do ensino básico, lamentando “verificar que, nos critérios de correção publicados pelo IAVE [Instituto de Avaliação Educativa], no item 14 sejam atribuídos 75% da cotação a uma resposta integralmente errada”. E o IAVE esclareceu que “nada existe de errado” nos critérios de classificação do exame de Matemática, estando em conformidade com o previsto, ao contrário do que afirma a SPM. 
Em seu comunicado, o IAVE esclarece que “o objetivo do item 14 era verificar se os alunos identificavam um dos casos notáveis da multiplicação de polinómios” e justificando ainda:
“A resposta referida pela SPM como ‘integralmente errada’ evidencia essa identificação, embora esteja escrita de modo formalmente incorreto, por omissão dos parêntesis. Como tal, e de acordo com os critérios gerais relativos a respostas restritas, onde se indica que a apresentação de expressões incorretas do ponto de vista formal está sujeita à desvalorização de um ponto, foi este o procedimento seguido.”.
Primeiro, não se trata só do objetivo de encontrar um caso notável. Se o fosse, a questão deveria ser formulada de outro modo. Mas a frase imperativa é “fatoriza”. Na resposta valorizada a 75% não há fatorização, mas fica evidente a existência de polinómio com três membros. Segundo, não se trata de expressão incorreta só do ponto de vista formal, mas sobretudo de uma resposta falsa em termos de conteúdo.
Também a Prova Final de Português (91) do 9.º ano oferece uma joia curiosa.
O GRUPO V tem o seguinte enunciado:
Seleciona uma figura pública feminina, portuguesa ou estrangeira, que, do teu ponto de vista, tenha um papel marcante no desporto, na música, na ciência ou na literatura.
Escreve um texto de opinião bem estruturado em que: apresentes a figura selecionada; fundamentes a tua escolha em, pelo menos, três razões; dês um exemplo de uma iniciativa que pudesse ser criada para homenagear essa figura pública.
Deves escrever entre 160 e 240 palavras.
Não se conhece posição pública do IAVE que desdiga dos critérios de correção e classificação estabelecidos. Porém, como é sabido, a escolha de alguns recaiu em Cristiano Ronaldo, que não corresponde aos termos basilares do estado da questão “uma figura pública feminina”. É fácil a perceção do escopo de quem organizou a prova: situá-la no debate da igualdade de género.
Ora, tanto quanto se sabe, em resposta a dúvidas dos professores classificadores, o IAVE recomenda ou aceita que haja contemporização porque há outros aspetos a considerar, os alunos podem ter apreendido o essencial, etc. etc.
***
Posto isto, interrogo-me: para quê tanto rigor na organização e prestação das provas? Que valores é que o IAVE defende? Que importância dá ao conhecimento? A sua missão mais importante será homologar ou ratificar as imprecisões, as distrações ou as confusões? Não constituirá um mau exemplo a seguir por alunos e professores?
Não me apraz ver o ME ou algum departamento ligado à educação e ensino numa fase pós-científica, sobretudo se ela corporizar o nacional-porreirismo ou o “laissez fiare, laissez passer”. Preferia o culto da democracia do conhecimento e dos valores em vez da sujeição à ditadura de situação a redundar no relativismo científico e ético. Deus lhes perdoe, que é quem tudo pode.

2017.06.29 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 29 de junho de 2017

Celebrar Pedro e Paulo é professar a fé na apostolicidade da Igreja

Celebra-se, a 29 de junho, a solenidade dos Apóstolos Pedro e Paulo (no calendário romano geral de 1962 era festa de 1.ª classe), considerados como colunas fundacionais da estruturação e expansão da Igreja em virtude da sua relação com Cristo, o fundador, na intrepidez da profissão da fé, no amor afetivo e efetivo e no ardor apostólico – qualidades que os levaram ao martírio em Roma, sede do Império. E as notas basilares do dia são a (Mt 16,16), o amor ao Evangelho e o martírio (Jo 21,15-19). Por isso, a liturgia nos convida a refletir sobre estas duas figuras e a considerar o seu exemplo de fidelidade a Jesus Cristo e de testemunho do projeto libertador de Deus.
É neste dia do ano litúrgico que os recém-apontados arcebispos metropolitas recebem o símbolo primário do seu cargo, o pálio (feito da pele dos cordeiros benzidos no dia de Santa Inês), diretamente do Papa ou de seu legado, caso não possam comparecer em Roma.
Para ortodoxos e católicos orientais, a festa marca o fim do Jejum dos Apóstolos (iniciado na segunda-feira seguinte ao domingo de Todos os Santos, que é o 1.º domingo depois do Pentecostes, ou seja, a 2.ª segunda-feira após o Pentecostes). É considerado dia de comparecimento recomendado e no qual o fiel deve prestar uma “Vigília Completa” (costume oriental que agrega Vésperas, Meridianas e Laudes) ou, ao menos, as Vésperas no dia anterior, e a Divina Liturgia na manhã da festa (não há, porém, “Dias de Obrigação” na Igreja Ortodoxa). Para os que seguem o calendário juliano, a data de 29 de junho cai no dia 12 de julho do calendário gregoriano. Na tradição ortodoxa russa, é geralmente aceite que o Milagre do Alce, de Macário de Unza, ocorreu durante o Jejum dos Apóstolos e a festa dos Santos Pedro e Paulo que se segue a ele. Recentemente, esta festa e a de Santo André, têm sido importantes para o movimento ecuménico como ocasião em que Papa e Patriarca de Constantinopla têm comparecido a eventos especialmente preparados para aproximar as duas Igrejas em direção à comunhão completa. Era especialmente o caso durante o pontificado do Papa São João Paulo II, como ele mesmo declarou na encíclica Ut Unum Sint.
Já desde o distante século III a Igreja une na mesma solenidade Pedro e Paulo, embora o dia não seja o mesmo no Oriente e em Roma. O Martirológio Sírio de finais do século IV (um extrato e um catálogo grego de santos da Ásia Menor) indica as seguintes festas em conexão com o Natal (25 de dezembro): 26 de dezembro, Santo Estêvão; 27 de dezembro, São Tiago e São João; e 28 de dezembro, São Pedro e São Paulo. Mas a festa principal de São Pedro e São Paulo foi mantida em Roma em 29 de junho desde o século III. A lista de festas de mártires no Cronógrafo de Filócalo coloca esta nota na data – “III. Kal. Iul. Petri in Catacumbas et Pauli Ostiense Tusco et Basso Cose". (= o ano 258). O “Martyrologium Hieronyminanum” tem, no Berne MS., a seguinte nota para o dia 29 de junho:
“Romae via Aurelia natale sanctorum Apostolorum Petri et Pauli, Petri in Vaticano, Paulo in via Ostiensi utrumque in catacumbas, passi sub Nerone, Basso et Tusco consulibus" (ed. De Rossi – Duchesne, 84).
A data 258 revela que a partir desse ano se celebrava a memória dos dois Apóstolos em 29 de junho na Via Apia ad Catacumbas (perto de São Sebastião fuori le mura), por ter sido nessa data o traslado dos restos dos Apóstolos para o local descrito acima. Mais tarde, com a construção da Igreja sobre as tumbas no Vaticano e na Via Ostiensi, os restos foram restituídos ao seu anterior repouso: os de Pedro, na Basílica Vaticana; e os de Paulo, na Igreja na Via Ostiensi. No local Ad Catacumbas foi construída, no século IV, uma igreja em honra dos dois Apóstolos. Desde o ano 258 guardou-se a festa principal em 29 de junho, data em que se celebrava, desde tempos antigos, o Serviço Divino solene nas três igrejas acima mencionadas (cf Duchesne, Origenes du culte Chretien, 5.ª ed., Paris, 1909, 271s, 283s, Urbano, Ein Martyrologium der christl. Gemeinde zu Rom an Anfang des 5. Jahrh, Leipzig, 1901, 169s; Kellner, Heortologie, 3.ª ed., Freiburg, 1911, 210s.).
A lenda tentou explicar que os Apóstolos ocupassem temporariamente o sepulcro Ad Catacumbas com a suposição de que, a seguir à morte deles, os Cristãos do Oriente desejaram roubar os seus restos e levá-los para o Leste.
Uma 3.ª festividade dos Apóstolos tem lugar a 1 de agosto: a festa da prisão de São Pedro (São Pedro Ad Vincula), que era originariamente a da dedicação da igreja do Apóstolo, erigida na Colina Esquilina no século IV. Filipo, sacerdote titular desta igreja, foi delegado papal ao Concílio de Éfeso no ano 431. A igreja foi reconstruída por Sixto II (432) a expensas da família imperial Bizantina. A consagração solene pode ter sido a 1 de agosto, ou terá sido este o dia da dedicação da igreja anterior, ou, ainda terá o dia sido escolhido para cristianizar as festas pagãs que se realizavam a 1 de agosto. Nesta igreja, ainda de pé, provavelmente se preservaram desde o século IV as correntes de Pedro que eram muito veneradas, sendo considerados como relíquias apreciadas os pequenos pedaços do seu metal.
A memória de ambos os apóstolos, Pedro e Paulo, foi mais tarde relacionada com os lugares da antiga Roma: a Via Sacra, nas proximidades do Foro, onde se diz que fora atirado ao solo o mago Simão diante da oração de Pedro e o cárcere de Tuliano (ou Cárcere Mamertino), onde se supõe terem sido mantidos os dois Apóstolos até à sua execução. E em ambos lugares foram erigidos santuários em memória dos Apóstolos e o do cárcere Mamertino ainda permanece em quase seu estado original desde aquela longínqua época Romana. Estas comemorações locais estão baseadas em lendas e não há celebrações especiais nas duas igrejas. Entretanto, não é impossível que Pedro e Paulo tenham sido confinados à prisão principal de Roma na fonte do Capitólio, da qual fica como uma relíquia o atual Cárcere Mamertino.
***
Esta solenidade é uma das mais antigas da Igreja, sendo anterior à própria comemoração do Natal. Depois da Mãe de Deus e de João Batista, Pedro e Paulo são os santos que têm mais datas comemorativas no ano litúrgico. Além do tradicional 29 de junho (celebração da fé, pastoreio, missão e martírio), há: 25 de janeiro, celebração da Conversão de Paulo; 22 de fevereiro, celebração da Cátedra de Pedro; e 18 de novembro, dedicação das Basílicas de São Pedro e São Paulo.
Embora não haja certeza quanto ao ano dos martírios dos dois apóstolos, sabe-se que o martírio de ambos deve ter ocorrido em ocasiões diferentes: Pedro (o 1.º Papa, que pontificou 37 anos), crucificado de cabeça para baixo na Colina Vaticana, em 64; e Paulo (um dos principais escritores do Novo Testamento), decapitado na chamada Três Fontes, em 67.
Pedro e Paulo não fundaram Roma (nem esta Igreja), mas são considerados os “pais de Roma” e considerados os pilares que sustentam a Igreja tanto pela sua fé e pregação, como pelo seu ardor e zelo missionários. Pedro é o apóstolo que Jesus Cristo escolheu e investiu da dignidade de ser o primeiro Papa da Igreja. Jesus disse-lhe, depois de acolher o seu ato de fé (Tu é os Messias, o Filho de Deus vivo): “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (cf Mt 16,13-19). Paulo é o maior missionário de sempre, o advogado dos pagãos, o “Apóstolo dos gentios”.
Celebrar a Solenidade dos Apóstolos Pedro e Paulo significa lembrar que a Igreja – de confessores e mártires – é radicalmente cristã, essencialmente una e tradicionalmente apostólica, pelo envio ao mundo e pela sucessão na linha dos apóstolos. Para nós, é uma realidade fácil de aceitar que a Igreja de hoje seja a mesma de há dois mil anos, a fundada por Jesus sobre a fé de Pedro constituída como rocha eficaz de acolhimento, proteção e solidez. Não se trata, pois, de uma plêiade de igrejas, com “i” minúsculo, quais instituições frágeis fundadas pelos homens.
Nós cremos que a Igreja – una, santa, católica e apostólica – embora, feita de seres humanos sujeitos ao pecado, é um mistério instituído pelo próprio Senhor; e cresceu ao longo dos séculos como uma planta, com todas as suas dificuldades e fragilidades, mas tendo sempre a mesma vida divina dentro de si, graças à ação do seu Divino Fundador, que se constituiu como sua cabeça. Por isso, é possível dizer que a Igreja é a continuidade do corpo de Cristo na história.
Para a entender como mistério de comunhão e instituição orgânica – que aparentemente mudou tanto ao longo dos séculos e pode permanecer sendo a mesma Igreja Católica, fundada por Jesus Cristo (cf Mt 16,18-19) – pode-se tomar como exemplo a caminhada das mães. Na sua juventude, as mulheres possuem geralmente uma aparência muito linda, um corpo jovial e uma pele lisa e macia. Com o tempo, porém, a sua beleza física pode ir-se esvaindo, o corpo pode ir decaindo e com a pele a começar a encher-se de manchas, rugas e estrias. Porém, ainda que o seu aspeto exterior mude, a mãe permanece a mesma, conserva a sua identidade e os filhos continuam a amá-la ternamente. Todavia, a Igreja, graças ao Espírito Santo que funciona como sua alma e ao alimento que recebe da Palavra e da Eucaristia, pode renovar-se continuamente. E a missão dos concílios e dos sínodos é exatamente, na atenção e na docilidade ao Espírito, trabalhar a renovação da Igreja e apresentá-la sem ruga, sem mancha e sem estria – presente profeticamente no mundo, modelando-o segundo o coração de Deus.
Quem perceber que, mesmo com a mudança das aparências, as pessoas não deixam de ser o que são, é capaz de compreender o conceito de substância. Com efeito, o termo refere-se a algo que não é captável pelos sentidos, mas apenas pela inteligência. O que a visão e os outros sentidos podem atingir são apenas os acidentes das coisas. A substância, porém, que lhes dá identidade, é invisível. Assim acontece com a Igreja. Hoje, quem vai ao Vaticano entra em vários templos sumptuosos, como a Basílica de São Pedro, e Francisco, mesmo na sua humildade, discrição e despojamento, não ousa dispensar os seguranças de perto de si (pois, sendo o chefe visível da Igreja de Cristo, é muito visado pelos inimigos da fé). Nos primeiros anos da Igreja, porém, quem era Pedro, senão um pescador pobre e analfabeto de Cafarnaum? Não é por acaso que ele foi escolhido como protetor dos pescadores e a Igreja é assumida metaforicamente como a Barca de Pedro.
Face a estas diferenças de aparência na Igreja, os críticos dizem que não se trata da mesma entidade e que a Igreja fundada por Cristo se perverteu no decurso dos séculos. O erro dos detratores está em se deterem apenas nos acidentes e realidades sensíveis da Igreja, ignorando a permanência da sua substância, identidade e essência.
Foi com Friedrich Hegel († 1831) que se começou a perder a noção de continuidade. Para o filósofo alemão, a história seria a “metamorfose ambulante”, com teses, antíteses e sínteses constantes e subsequentes, sem que a realidade se estribe na substância e na identidade.
Condicionadas por esse pensamento, as pessoas começaram a viver sem raiz, sem tradição e sem identidade – a ditadura do efémero – sempre a tentar “reinventar a roda” e a criar novamente o que só precisavam aceitar da “democracia dos mortos” e de seguir em frente, sempre à descoberta de mais e sua incorporação no património recebido.
Sobre a tradição e a democracia dos mortos, Chesterton escreve:
“A tradição pode ser definida como uma extensão dos direitos civis. Tradição significa dar votos à mais obscura de todas as classes, os nossos antepassados. É a democracia dos mortos. A tradição recusa-se a submeter-se à pequena e arrogante oligarquia dos que simplesmente por acaso estão andando por aí.” (Chesterton, Gilbert K. Ortodoxia (trad. Almiro Pisetta). São Paulo: Mundo Cristão, 2008. p. 80).
Esta filosofia na Igreja tem efeitos piores do que nos assuntos meramente humanos. Quando se tenta subverter, além da verdade natural, a verdade revelada por Deus, muito maior será o caos e a confusão que se instalam nas mentes e nas atitudes. Mas quem entende que a mudança dos acidentes não altera a substância das coisas, faz questão em preservar a Igreja, os seus ensinamentos e tudo o mais que constitui a sua essência; e, quando promove alguma reforma, não é para destruí-la, senão para lhe propiciar mais e melhor vida. É, pois, inconcebível que se queira reformar a Igreja pela quebra da sua continuidade substancial. Se no tempo dos Apóstolos não havia concílios ecuménicos, catecismos ou Congregação para a Doutrina da Fé, nem por isso a fé dos primeiros cristãos deixa de ser a matriz da mesma fé que os católicos professam todos em todos os lugares da terra e em todos os tempos (quod semper, quod ubique, quod ab omnibus). O símbolo da fé foi construído com base na pregação apostólica. E, se, no decorrer da história, a Igreja vai tomando maior consciência da sua identidade, da sua doutrina e da sua posição no mundo, nem assim nada muda o que ela foi, é e será.
Na 1.ª Carta aos Coríntios, o Apóstolo dos gentios, ao transmitir as doutrinas da Eucaristia e da Ressurreição de Cristo, diz: “Eu recebi do Senhor o que também vos transmiti” (11,23); “de facto, eu vos transmiti, antes de tudo, o que eu mesmo tinha recebido” (15,3). Apenas alguns anos após a ascensão de Cristo, já se dá a realidade da “tradição” (do latim tradere, que significa “entregar”, “transmitir): os discípulos transmitem a Palavra, os Sacramentos e a prática (orante e ativa), preocupando-se com a fidelidade ao que eles mesmos receberam. De facto, as expressões de Paulo não são em vão: todos nós, como apóstolos de Cristo, devemos ser fiéis à mensagem que recebemos dos nossos pais na fé – os apóstolos, os padres apostólicos e os doutores da Igreja. Afinal, sabemos – e cremos – que a palavra deles remonta ao próprio Senhor e, por isso, deve ser recebida “não como palavra humana, mas como o que ela de facto é: Palavra de Deus” (1Ts 2,13).
Por isso, ao celebrarmos Pedro e Paulo, as duas colunas da Igreja, exultaremos de alegria por pertencermos à “Igreja una, santa, católica e apostólica”; à única Igreja de Cristo, que, assim como seu Esposo, é a mesma ontem, hoje e sempre (cf Hb 13,8).
Por ela, estaremos sempre dispostos a dar a nossa vida como por uma tão amorosa mãe, que é efetivamente, alimentando-nos com a Palavra de Deus e com o próprio Senhor presente na Eucaristia?

2017.06.29 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 28 de junho de 2017

A falência da regionalização e os incêndios florestais

Acabei de ler um artigo de José Ribeiro e Castro, na edição do Observador de 27 de junho sob o títuloOs mortos de Pedrógão e a regionalização”, a que julgo assistir alguma razão, se raciocinarmos em termos políticos de fundo.
Diz o colunista político que “os concelhos de Leiria mais atingidos (Figueiró dos Vinhos, Pedrógão Grande e Castanheira de Pera) perderam, cada um deles, entre 30% a 40% da sua população desde 1981 até ao último censo de 2011” (em 30 anos) e que “desde 2011 até hoje, a PORDATA estima que cada um desses municípios tenha perdido, ainda, mais 400 pessoas cada um, ou seja, um pouco mais de 10% do que eram em 2011, quanto a dois deles, e um pouco menos de 10%, quanto ao maior (Figueiró dos Vinhos)”.
É certo que o político, que foi Presidente do CDS, não contesta as razões que soem ser indicadas com a causa dos incêndios florestais que todos apontamos – floresta desordenada, excesso de monocultura, predomínio das espécies resinosas em detrimento das folhosas, das alóctones em detrimento das autóctones, falta de aceiros, de clareiras, de cultivo de cereais de sequeiro, de charcas, de pontos de água, de estruturas e pessoal de vigilância (anuladas ou rarefeitas), de falta de meios de combate, privatização de recursos, falência dos sistemas de comunicação e de coordenação, etc. Mas Castro, quando “anda tudo de lupa, lanterna e dedo apontado em busca das culpas da tragédia de Pedrógão Grande”, aponta a Regionalização como “uma das grandes causas da desgraça”: “que não está feita e para que, entretanto, nem um sucedâneo se achou”. E explica:  
“Sobre a catástrofe acontecida, é imperioso examinar de modo exaustivo o desempenho e identificar as falhas na reação e combate ao incêndio e na proteção e socorro das pessoas. […] há que avaliar com objetividade a conjuntura muito negativa: a longa seca acumulada e condições climatéricas de extremo calor e grande perigo, bem como fenómenos meteorológicos adversos e anormais que tenham ocorrido. […] importa verificar se os avisos meteo quotidianos do IPMA não geraram o efeito complacente da habitualidade.”.
Sobre o IPMA critica os tantos alertas vermelho que levam a desvalorizar a gravidade, em moderna versão da história de “Pedro e o lobo”. De facto, o lobo vem sempre, “mas não morde”; ou então “o lobo vem e damos sempre conta dele – até que, um dia, o lobo vem, ataca, feroz, e já não conseguimos dar conta dele”. Ora, segundo Castro, “é preciso examinar tudo isso” e “responsabilizar”. Porém, sem esquecer ou subvalorizar “falhas de desempenho e erros na avaliação e informação da conjuntura”, sustenta o colunista que “é decisivo aprofundar a consciência das causas estruturais, que são da mais diversa ordem”, criticando o estafado monopólio “eucaliptoclasta”. E assegura que “sem cuidar dos fatores estruturais e tratá-los a fundo, jamais nos libertaremos deste flagelo anual”. E faz contas a partir das estatísticas:
“Todos os anos a nossa floresta arde aos milhares de hectares. As estatísticas desde 1980 mostram números demolidores: destruição de 120 mil hectares ou mais, em 1985, 1989, 1990, 1991, 1995, 1998, 2000, 2002, 2003, 2004, 2005, 2010, 2013 e 2016. Em nove destes catorze anos, arderam cerca ou mais de 150 mil hectares.”.
Apontando os anos de 2003 e 2005 como “de devastação catastrófica, com 426 mil e 339 mil hectares de área ardida, respetivamente”, diz que, em 2003, “nem o rio Tejo serviu de corta-fogo”. Nos outros 23 anos da referida série, houve 14 anos com valores menos graves, entre 50 e 110 mil hectares queimados” – e, “neste ano de 2017, já estamos aí, ainda em Junho!”. E “apenas houve 9 anos com área ardida inferior a 50 mil hectares”. Todavia, os números mais baixos de área ardida “em nenhum momento corresponderam a que tivéssemos o problema enquadrado e, muito menos, resolvido”, mas de “não termos seca acumulada e o verão ter sido mais fresco. E, evocando o filme “Paris brûle-t-il?”, de 1944, sobre a libertação de Paris, aplica o título a Portugal, não só na forma interrogativa, mas também como ato ilocutório assertivo: “Portugal está a arder”.
E esta é “a ciência certa que acumulámos nas últimas décadas, uns milhares de hectares a cada ano”. E, “independentemente do exaustivo exame urgente sobre a última aflição”, é verdade que “todos temos o credo na boca com o resto do verão ainda por diante”. E vaticina em voz alta o que todos pensam: “todos sabemos que Portugal vai voltar a arder em 2018, vai voltar a arder em 2019, vai voltar a arder em 2020”, a menos que venha “uma chuvinha” ou a seca acabe e não regrida e o verão seja fresco. Caso contrário, “o fogo vai estar aí outra vez a inundar a paisagem e as televisões, a aterrorizar populações”. E discorre:
“O problema é não confinarmos o perigo, não circunscrevermos os efeitos, não baixarmos as incidências, não diminuirmos o perímetro. O problema é não garantirmos segurança num ambiente que é de risco natural. O problema é a desordem, o desordenamento, a incúria, a pobreza, a desproteção que se arrastam, apesar de todos os relatórios, apesar de todos os planos, apesar de todos os investimentos.”.
E denuncia o quadro comparativo com anos anteriores em mortes: “o mais terrível registo do nosso fracasso enquanto Estado nunca tinham ido acima de 16”, mas agora, numa só vez, galgou para 64 vítimas (e 254 feridos), sendo 63 mortes de civis. Por isso, “estamos pior”.
Quanto a estudos e diagnósticos, reitera que “já está tudo dito”, “já está tudo escrito”, “já está tudo diagnosticado, já está tudo inventariado e proposto. E a pergunta é: “Porque não se faz?”, quando “passam os governos, mudam os ciclos políticos, mudam os governantes e outros responsáveis – e tudo continua”.
Ora, a resposta, para Ribeiro e Castro, é: “por causa da sabotagem da Regionalização”. Não só não foi feita, como nem sequer lhe foi encontrada e agilizada “uma alternativa funcional”.
O que se fez nos últimos 40 anos resultou na “destruição do patamar intermédio da nossa Administração Pública”. E explica:
“Tínhamos os distritos; e, anteriormente, as províncias ou, antes ainda, as comarcas. Hoje, não temos nada. Ora, sem esse patamar, não temos plataforma para definir, afinar e aplicar políticas territoriais.”
E Justifica:
“Os municípios estão demasiado perto, o Estado está demasiado longe. Os municípios não têm escala, o Estado sofre de gigantismo e centralismo. É isso que justifica e explica a necessidade imperiosa destes patamares administrativos intermédios, entre o plano local e o central. É conhecimento acumulado na Ciência da Administração e no Direito Administrativo. Sempre o tivemos, tanto em patamar autárquico descentralizado, como em circunscrição coerente para gestão desconcentrada das unidades periféricas do Estado.”.
E. pondo o dedo em riste, acusa:
“Nos últimos 40 anos, com o impasse da Regionalização, destruímos, por politiquices e incompetência, essa malha administrativa e tornámos mais vulnerável o território. Semeámos o deserto administrativo e fomentámos a desertificação. Procurámos atamancar o disparate com remendos variados e oscilantes, ora de uma maneira, ora de outra, agravando o caos e a descontinuidade. E, hoje, continuamos encravados, sem imaginação, nem vontade política, na paralisia impotente que resultou do referendo de 1998.”.
De facto, além das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, quiseram criar mais seis cujo termo as esfumou e deu as comunidades intermunicipais – ineficazes porque se tornaram emanação dos interesses de autarcas no poder, sem eleição direta. Que diabo! Não se deu forma de governo regional emanando duma assembleia regional eleita por sufrágio direto às cinco comissões de coordenação regional, dotando-as de maiores competências e emagrecendo em pessoal e outros recursos o poder central. Porquê?!
E Castro refere os casos do encerramento de agências da CGD na sequência de outros cortes:
“Estamos a ver a agência da CGD em Almeida a ser extinta, […] os tribunais que fecharam, […] postos de correio encerrados, […] as escolas que acabaram, […] maternidades e serviços de saúde a fechar portas, […] o país a desertificar-se, […] um território cada vez mais frágil, […] a floresta e o campo a arder todos os anos, […] o pavor de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Góis, Pampilhosa, […] os municípios por baixo, o Estado por cima, estamos a ver.”.
E, a propósito da “tristemente famosa EN 236-1”, imagina nostalgicamente
“Como estariam cuidadas as margens dessa estrada com o aparelho distrital da antiga Junta Autónoma das Estradas e como aconteceu agora no quadro da teia complexa e centralizada de concessionárias e subconcessionárias”.
Para Castro a principal razão por que falham “as medidas identificadas e as políticas definidas é porque desmantelámos, nestas décadas, o patamar administrativo que é indispensável para lhes dar coerência, adaptação, sequência, execução, vigilância”. Além de “não implantarmos as Regiões, trancadas há 20 anos por um referendo desastroso”, nada fizemos “em seu lugar, nem sequer estruturar a divisão distrital, como é a recomendação constitucional transitória”.
Com efeito, a CRP estabelece:
“As regiões administrativas são criadas simultaneamente, por lei, a qual define os respetivos poderes, a composição, a competência e o funcionamento dos seus órgãos, podendo estabelecer diferenciações quanto ao regime aplicável a cada uma” (art.º 255.º).
Porém, o art.º 291.º estipula:
“1. Enquanto as regiões administrativas não estiverem concretamente instituídas, subsistirá a divisão distrital no espaço por elas não abrangido. 2. Haverá em cada distrito, em termos a definir por lei, uma assembleia deliberativa, composta por representantes dos municípios. 3. Compete ao governador civil, assistido por um conselho, representar o Governo e exercer os poderes de tutela na área do distrito.”.
Ora, segundo Castro, deu-se uma última machadada no pouco que havia, ao matar os governos civis, que, ao invés, deveriam ter sido organizados e fortalecidos, pois
“Tudo o que é necessário fazer quanto à floresta e aos territórios onde a floresta está, bem como às populações que vivem e trabalham nesses territórios, é expressão de uma política de território”.
E lança a pertinente interrogação:
“Como podemos desenvolver, afinar, aplicar políticas de território ou políticas de forte matriz territorial, quando arrasámos a malha territorial da nossa Administração Pública?”.
Pressupondo que é preciso resolver o problema, “de vez e rapidamente, para não continuarmos a assistir à desertificação e à destruição do território de Portugal e à morte ou abandono das populações”, sustenta que temos de implantar e organizar as “regiões, distritos, outra denominação”, não podendo “continuar com territórios sem dono, problemas e necessidades sem Administração, questões sem responsável, políticas sem agente”. Caso contrário, “compreende-se bem que alguns só fiquem, se não tiverem para onde ir”.
Nos “dias de sofrimento e de desolação nessas terras do Pinhal Interior”, Castro reconhece que se ouviram “muitos desabafos de pessoas a quem morreram familiares, amigos ou conhecidos”, a quem “arderam casas, viaturas ou alfaias, ou que viram a destruição de suas empresas e equipamentos”. E sabe que “tentarão ficar, mas não é fácil”. Por outro lado, diz que “essa sangria tem anos” e aponta como causa da quebra populacional “a gente que morreu e que não foi reposta, dada a crescente quebra geral de natalidade” ou “a gente que emigrou para as cidades ou para o estrangeiro”. E lamenta:
“Porém, os próximos que saírem agora, fustigados pela tremenda tragédia que viveram e marcados pelo trauma que os atingiu, já não serão emigrantes. Serão refugiados. É esse o país que estamos a fazer – ou melhor, o país que estamos a desfazer”.
E, para inverter consolidadamente a tendência, só vislumbra uma via – a da regionalização bem estruturada. E não deixa de ter razão. Mas que não defenda a monocultura eucaliptalizante!

 2017.06.28 – Louro de Carvalho