quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

O aproveitamento político, económico e cultural … da JMJ 2022


Obviamente que gostei de saber que a Jornada Mundial da Juventude de 2022 se realizará em Lisboa. Trata-se da capital do país e cabeça duma diocese com história, labor apostólico e enormes periferias existenciais, muito embora outras também tenham essas caraterísticas. Mas Lisboa é uma das arquidioceses (e é um patriarcado) metropolita com mais dioceses sufragâneas (Angra, Funchal, Guarda, Leiria-Fátima, Portalegre-Castelo Branco, Santarém, Setúbal).
Por outro lado, a Igreja em Portugal tem motivos para estar mais do que satisfeita pela escolha papal, mas deve aproveitar o ensejo para, na sua renovação, que urge, construir um cristianismo mais “cafeinado” pela força do Alto, mais abrangente em termos intergeracionais e mais comprometido social e politicamente, definindo-se, sem se autorreferenciar, em dois polos aparentemente distintos, mas coincidentes: Jesus Cristo e os deserdados da sorte.
Também me parece de acomodatícia legitimidade o argumento da proximidade histórica com a África lusófona, sem esquecer a comunidade de Macau, o povo de Timor-Leste e a comunidade indiana em que há resquício da presença portuguesa. Evidentemente que, se nos orgulhamos das relações históricas havidas com esses territórios – com notáveis sucessos e graves erros –, é mister que também hoje lhes saibamos dar as mãos despojadas de qualquer laivo de colonialismo, mas abertas à solidariedade e à cooperação humana e cristã.
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Reparei que da comitiva portuguesa, em que praticamente ficou eclipsado o grupo de cerca de 300 jovens, ressaltou a presença de seis Bispos, à cabeça dos quais se encontrava o Cardeal Patriarca de Lisboa e Presidente da Conferência Episcopal, o Presidente da República, o Presidente da Câmara de Lisboa, o Pároco do Parque das Nações e a discreta figura dum Secretário de Estado a representar o Governo português. Confesso que, à exceção do pouco relevo dado aos jovens portugueses, que somente foram mencionados pelo responsável do departamento eclesial respetivo ou quando gritaram “Portugal! Portugal!”, me pareceram bem tais presenças. Foi o Governo dum Estado aconfessional, mas interessado na cooperação, o autarca de Lisboa e presidente da respetiva área metropolitana, que abrange o território que acolherá o evento, o pároco duma circunscrição territorial e eclesial do acolhimento e o Bispo da diocese. E não me parecia desajustada a presença do Presidente da República, desde que um pouco mais contida, embora sabendo que a contenção não é o seu forte, mas reconhecendo-lhe o direito de estar e até o dever, se a sua consciência política e cristã lho determina.
Porém, souberam-me a desajustados, excessivos e oportunistas dois aspetos: a euforia da vitória; e a hipotética, mas explícita, pré-declaração de recandidatura presidencial.
Num caso destes, não se pode avocar uma vitória de ninguém, muito menos do país qua tali. Não se trata duma vitória bélica, económica, futebolística. Não é um certame. E o Presidente não devia entrar nessas euforias de fã desportivo. Nem é uma vitória da Igreja em Portugal, embora se conheçam tanto as dores de Dom Manuel Clemente como a sua capacidade negocial. Sobre as primeiras, sabe-se como foi criticado por uma frase extraída do seu contexto; e sobre a segunda, é de recordar como conseguiu puxar, em 2010, a visita de Bento XVI para a cidade portucalense quando era o Bispo diocesano do Porto. Mas, além do proveito eclesial que a JMJ acarretará para a Igreja em Portugal, o acolhimento da JMJ tem de ser encarado como serviço desta Igreja particular à Igreja Universal. Em termos da correção e do espírito evangélico, não é um triunfo, uma vanglória. Encha o coração, sim, mas não encha a boca! 
Quanto à predita declaração de recandidatura presidencial, o aconfessionalismo do Estado fica mal servido por esta postura presidencial. Um ato político não se pratica a partir dum evento religioso; e os portugueses não têm que levar com os estados de alma do Chefe de Estado, que o é em Portugal e no estrangeiro.
Todavia, isto não é novo. Já em 1982, Francisco Balsemão, quando os jornalistas o questionaram sobre a visita de São João Paulo II, respondeu que estava satisfeito e que valia a pena ser Primeiro-Ministro ainda que só apenas para receber o Papa.
Agora, Marcelo disse que saía do Panamá com mais vontade de pensar na recandidatura (uma epifania), quanto ainda recentemente dissera que tomaria posição só em 2021. E, questionado se era ponto assente, disse uma coisa plausível, ter que pensar na saúde, e outra mais poderosa, verificar se haveria alguém mais capaz do que ele para assumir o cargo. É de mestre, pois subjetivamente nunca há ninguém mais capaz do que o próprio. Nos últimos temos, apenas Bento XVI se sentiu incapaz do exercício eficaz do cargo que desempenhava.
Apraz-me, a este propósito, concordar com Joaquim A. Moura, que escreve no “espaço do leitor” do JN de hoje sob o título “Vamos ter uma eleição abençoada”: 
Movido pelo anúncio papal (…), Marcelo Rebelo de Sousa (…) resolveu virar o dito e transmitir ao povo lusitano que se recandidataria a novo mandato presidencial. E até dá por adquirida a vitória, tal a sua fé. Ao que parece também, tal decisão fica a dever-se ao desejo e oportunidade de se sentar junto ao Papa, seja o atual ou o próximo, e não pela vontade de continuar a servir o povo de Deus necessitado.”.
Pode não ser bem assim, mas a crítica é merecida e oportuna.            
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Também no mesmo número do JN, na “praça da liberdade”, Cristina Azevedo escreveu um artigo de opinião em torno do título “Vendilhões do templo”.
Escusava de se penitenciar por alegadamente ser uma expressão forte a que serve de título. Ela não serve apenas de tradução a uma “reação pessoal” de “católica, apostólica, romana, à forma como as Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) têm sido tratadas desde que Portugal foi indicado como o seu próximo anfitrião”; a expressão configura a crítica e a postura de Jesus no episódio que vem relatado perto do final dos evangelhos sinóticos (Mc 11,15-19; Mt 21,12-17; e Lc 19,45-48) e perto do início do Evangelho de João (Jo 2,13-22), que censura o desvirtuamento do Templo como Casa de Oração. Ora aqui está em causa o desvirtuamento político, económico e cultural dum evento que se pressupõe e se crê marcado pela fé.
Neste sentido, a colunista tem razão total em escalpelizar a JMJ como “um encontro do programa Erasmus” para “pôr em contacto diferentes culturas”; comouma Expo 2022” (ou “uma fase dois da Expo 98”), vindo a “requalificar, remodelar, modernizar, o que quer que seja”; como “uma Web Summit a captar jovens talentosos dos quatro cantos do Mundo”; como algo parecido com “o Mundial de Futebol”; e como um evento importante por atrair “a Portugal mais de um milhão de jovens”. Mas já se fazem cálculos a números que insinuam que a JMJ será um evento que ultrapassará o melhor tempo de turismo alguma vez ocorrido em Portugal e fazem-se contas aos milhões a arrecadar, tendo em conta o que se passou em Madrid com JMJ de 2011.
A este respeito, Cristina Azevedo diz – e bem – que “sobrepor” ao desafio espiritual, pastoral, de fé e de celebração das jornadas “a linguagem tecnocrata e fria das receitas, das dormidas, das obras e dos projetos é sinal da pobreza e do endurecimento do nosso coração”. E, suspeitando de que “ainda ninguém percebeu nada”, questiona desde quando uma iniciativa católica “é apresentada, gabada e celebrada por um Estado” dito “republicano e laico”.
Só talvez não me pareça oportuna a crítica ao facto de a escolha do local para a JMJ ter recaído sobe Lisboa e arredores. Digo-o pela razões acima apontadas, embora não apodíticas. Porém, concordo com a crítica política à contradição dos governantes em falarem da descentralização, mas continuarem a engrossar a hegemonia lisboeta, ou com a crítica aos “que mandam e não resistem ao anúncio mediático do ‘evento’, da ‘oportunidade, do ‘Portugal na moda’, do ‘conseguimos’ no mesmo tom em que se celebrou o Euro 2004, a Web Summit ou o Festival da Canção”. E também entendo que, sendo necessário preparar o terreno, dotar o país de estruturas de acolhimento e convívio dos jovens, seu alojamento, alimentação e aspetos culturais – dados logísticos e instrumentais, que envolvem despesas e receitas –, “talvez a hierarquia católica portuguesa se devesse ter explicado melhor durante todo o processo e talvez seja altura de tentar repor a centralidade deste encontro com Jesus Cristo com uma comunicação firme, clara, corajosa e motivadora”.
Na verdade, Cristina Azevedo põe as coisas no seu devido sítio quando escreve:
As Jornadas Mundiais da Juventude existem para falar de Jesus Cristo aos e com os jovens; existem, para os convidar a sentir com a Igreja, fortalecendo os vínculos entre si e com o seu pastor, como não se cansou de repetir Francisco no Panamá. Existem para lhes falar ‘do mistério da encarnação, do abaixamento, da descida de Deus que se faz pequeno, humilde, que se torna homem e vive a condição humana até ao fundo’. A eles, especialmente aos jovens porque, como citou Francisco de um filósofo grego ‘Os jovens são como um moscardo no dorso de um nobre cavalo, para que não se adormente’.”.
Adicionalmente, só devo dizer que o Presidente da Câmara de Lisboa, falando do evento e referindo-se aos aspetos logísticos, esteve bem, com exceção da previsão de que as JMJ iriam ser as melhores JMJ de sempre. Será presunção demasiada, não?! Mas é um presidente de autarquia e não um “eclesiarca”.
Já no passado dia 28, Inês Cardoso, subdiretora do JN, referia que um evento com esta dimensão “justifica o empenho dos diversos responsáveis políticos que se deslocaram ao Panamá”, compreendendo-se o entusiasmo. Porém, não aceita a tentação para lhe associar “leituras políticas”, dizendo que, apesar do “contexto” e do “calor do momento”, o Presidente “deveria ter evitado considerações sobre a recandidatura em solo panamiano”. Por outro lado, apontando as “frequentes intromissões” da Igreja “em seara alheia” ou as “tentativas de influenciar a opinião dos crentes a partir do altar” diz que, “em ano de eleições, vale a pena refletir sobre as fronteiras entre religião e política”.
Nesse sentido, pensa que as duas realidades se tocam, “porque a ação da Igreja tem uma dimensão social” e porque o cidadão é influenciado pelos seus princípios éticos, religiosos e culturais”. Não obstante, chama a atenção para a índole laica do Estado e para a legitimidade e necessidade do pluralismo dos católicos no âmbito social e político”. Sustentando que o envolvimento político é “obrigação de qualquer cristão, que, enquanto cidadão deve ser comprometido com o mundo que o rodeia”, adverte que o altar age numa esfera “bem diversa da política”. Por isso, é errado usar um para tentar interferir na outra e vice-versa. E cita a frase evangélica “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt, 22,21; Mc 12,17; e Lc 20,25), como critério a reter para as próximas campanhas eleitorais.
Totalmente de acordo!
2019.01.31 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

A Igreja precisa agir articuladamente ao serviço do matrimónio cristão


O Papa Francisco inaugurou, no dia 29 de janeiro, o Ano Judiciário recebendo em audiência, na Sala Clementina, no Vaticano, oficiais, advogados e colaboradores do Tribunal Apostólico da Rota Romana, além do Reitor. No discurso aos presentes, o Pontífice abordou as grandes questões conexas com o Sacramento do Matrimónio num tempo em que a sociedade “cada vez mais secularizada” não “favorece o crescimento da fé”.
Neste contexto, os fiéis católicos lutam de forma singular para dar testemunho dum modo de vida segundo o Evangelho também no atinente ao Sacramento do Matrimónio. Para sustentáculo desse modo de viver, a Igreja tem, segundo o Pontífice, de agir, em todas as suas articulações, “em harmonia para fornecer apoio espiritual e pastoral adequado”. 
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Francisco pôs em evidência os dois elementos constitutivos do matrimónio a unidade e a fidelidade, verdadeiros pilares, não só da teologia e do direito matrimonial canónico em si mesmos, “mas também, e mesmo antes, da própria essência da Igreja de Cristo”, pois a união conjugal, enquanto sacramento da união conjugal da Igreja com Cristo, “deve ser a epifania da fé batismal”: tal como Cristo Se entregou e doa à Igreja, também o esposo se entrega e doa a sua esposa. E, no intercâmbio de suas riquezas humanas, morais e espirituais, a modo de vasos comunicantes, marido e mulher tornam-se como que um único ser.  
É, do meu ponto de vista, caso para fazer uma aproximação do contrato de casamento à gramática quando da contração de preposição com artigo ou pronome, pois “contração” e “contrato” são palavras da mesma família lexical. Em contrato, os contraentes estabelecem um vínculo entre si, mas mantêm-se autónomos; na contração por sinérese, entre a preposição e o artigo (determinante, pronome ou advérbio), mantêm-se fónica ou graficamente os dois elementos, mas formam uma única palavra. Por exemplo, “a+o”, fazem “ao”, “de +este” fazem “deste” e “de + ali” fazem “dali”. E, mesmo no caso da contração preposição “em” com as palavras acima indicadas permanece o resquício nasalizante “m” da preposição – no, na, nos, nas (naquele…) – sendo que no galaico-português se grafava, em alternativa eno, ena, enos, enas. Também homem e mulher fazem, não uma amálgama, mas um casal, a sua união não é fusão ou confusão, mas unidade na distinção, num dinamismo de comunhão.
Sobre a fidelidade, o Papa situa-a na linha do compromisso requerido pelo casamento, compromisso que, partindo da fé que os dois fazem um no outro se exprime na confiança mútua abrangendo a totalidade da vida e constroem no quotidiano os cônjuges um permanente vitae consortium totius (can.1135, do CIC – código de direito canónico) e constituem-se em consortes, visto que partilham a mesma sorte, compartilham a concretização do mesmo projeto de vida, que não pode ser interrompido pela doença, trabalho, desporto, amuo, etc. Não pode ocorrer – mais uma vez recorrendo à gramática – a diérese ou leitura separada do ditongo formado ou unidade semelhante. Note-se o incómodo de ler a palavra “leio” como se fosse “le-i-o” ou a realização oral da contração “dali” como se fosse “de ali”. Por aqui, embora veladamente, se vê o estrago que a infidelidade pode fazer no casal. Pode ser tanta e tamanha que o pode desfazer fazendo eclipsar ou anular o amor.
Sobre o duplo pilar estruturante do matrimónio, diz o Papa:
Estes dois bens irrenunciáveis e constitutivos do matrimónio requerem ser ilustrados adequadamente não só aos futuros casados, mas solicitam a ação pastoral da Igreja, especialmente dos bispos e dos sacerdotes, para acompanhar a família nas diversas etapas da sua formação e do seu desenvolvimento. […] É necessária uma preparação tripla ao matrimónio: remota, próxima e permanente.”.
Depois, o casal há de ser inspirador da unidade e fidelidade como “valores importantes e necessários nas relações interpessoais e sociais, em que a “fidelidade” se apresenta como “lealdade”. Tanto assim é que “estamos todos conscientes dos problemas” criados, na sociedade civilizada, pelas promessas quebradas e pela falta de fidelidade à palavra e aos compromissos assumidos.
Estes dois bens essenciais e constitutivos do matrimónio precisam de ser adequadamente explicados não somente à noiva e ao noivo, mas postulam o zelo da atividade pastoral da Igreja, especialmente dos bispos e sacerdotes, no acompanhamento da família nos vários estádios da sua formação e do seu desenvolvimento. E esta ação pastoral não pode limitar-se à realização das práticas, embora necessárias, mas tem de ser objeto de cuidado, orientação, estímulo e compreensão misericordiosa.
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No âmbito do cuidado pastoral da Igreja pelo bem da família, o Pontífice destacou a formação permanente, que, na sua ótica, dá azo à perspetiva da compreensão das diferentes etapas da vida conjugal de maneira séria e estrutural, através duma formação cuidadosa que vise aumentar a consciência dos valores e compromissos da vocação nos cônjuges.
Os principais agentes dessa formação matrimonial, em virtude do seu ofício e ministério, são os pastores. Todavia, torna-se mais oportuno, de facto, o envolvimento das comunidades eclesiais em seus diferentes componentes, corresponsáveis ​​por esta pastoral, sob a direção do Bispo diocesano e do pároco. Trata-se, pois duma obrigação solidária, com a responsabilidade primária dos pastores e a participação ativa da comunidade na promoção do casamento e ajuda às famílias com o apoio espiritual e educacional.
Francisco considerou a experiência dos cônjuges Áquila e Priscila, que estavam entre os mais fiéis companheiros da missão de São Paulo, com fé robusta e espírito apostólico – sinergia que foi um dom precioso do Espírito para as primeiras comunidades cristãs, para dizer:
O cuidado pastoral constante e permanente da Igreja para o bem do matrimónio e da família precisa de ser realizado com os vários meios pastorais: a aproximação à Palavra de Deus, especialmente mediante a ‘lectio divina’; os encontros de catequese; o envolvimento na celebração dos Sacramentos, sobretudo a Eucaristia; a conversa e a direção espiritual; e a participação em grupos familiares e de serviços beneficentes para fazer um paralelo com outras famílias e a abertura às necessidades dos mais desfavorecidos”.
Depois, o Papa Francisco citou os casais que, enquanto eloquentes testemunhas de fidelidade, já representam “uma ajuda preciosa pastoral à Igreja” ao viver o matrimónio “na unidade generosa e com amor fiel”. Eles são testemunhas da fecundidade da Igreja e uma oração silenciosa para todos, todos os dias, mesmo que esse “casal que vive por tantos anos juntos não faz notícia – é triste –, enquanto os escândalos, as separações e os divórcios fazem notícia” (cf Homilia na Santa Marta a 18 de maio de 2018). E disse:
Os casados que vivem na unidade e na fidelidade refletem bem a imagem e a semelhança de Deus. Essa é a boa notícia: que a fidelidade é possível porque é um dom, nos casados como nos presbíteros. Essa é a notícia que deveria tornar mais forte e encorajante também o ministério fiel e cheio de amor evangélico de bispos e sacerdotes; como foram de conforto para Paulo e Apolo o amor e a fidelidade conjugal do casal Áquila e Priscila.”.
Na verdade, como diz o Papa Bergoglio, os casais apostólicos oferecem a todos um exemplo de amor verdadeiro e tornam-se testemunhas e cooperadores da fecundidade da própria Igreja. Realmente muitos casais cristãos têm um sermão em silêncio, um “trabalho” de todos os dias, ora na discrição, ora na afirmação explícita da fé em termos da palavra, do exemplo e da ação. Por outro lado, os esposos que vivem na unidade e na fidelidade refletem bem a imagem e semelhança de Deus. E esta é a boa nova: a fidelidade é possível, porque é um dom, nos cônjuges como nos bispos, sacerdotes e consagrados.  
Por isso, há que pedir ao Espírito Santo que dê hoje à Igreja sacerdotes capazes de valorizar e valorizar os carismas dos esposos com uma fé forte e um espírito apostólico à semelhança de Áquila e Priscila. Já há muitos, mas são precisos muitos mais.
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A cada um dos Auditores Prelados, o Papa disse renovar a sua gratidão pelo bem que eles fazem ao povo de Deus servindo à justiça através das suas sentenças, já que estas, além da importância do julgamento em si para as partes interessadas, contribuem para interpretar corretamente o direito matrimonial, um direito que é colocado ao serviço da salus animarum e da fé dos cônjuges. É, pois nestes termos que se entende referência pontual das sentenças rotais aos princípios da doutrina católica no respeitante à ideia natural do matrimónio, com obrigações e direitos relativos e, ainda mais, no atinente à sua realidade sacramental.
Invocou a assistência divina sobre eles e concedeu cordialmente a Bênção Apostólica, pedindo que não se esquecessem de rezar por si.
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Uma boa forma de enquadramento antropológico e teológico do trabalho judicial da Rota como tribunal apostólico!
2019.01.29 – Louro de Carvalho

O poder do Parlamento britânico que se contenha face ao poder de outros


No Reino Unido, a Câmara dos Comuns aprovou, no dia 29, duas das sete emendas ao acordo celebrado com a UE (União Europeia) no âmbito do Brexit: uma dá mandato a Theresa May para renegociar acordo do Brexit com a UE27, sem backstop incluído, procurando “soluções alternativas; outra rejeita, sem força jurídica um cenário de “no deal Brexit” a 29 de março.
Das emendas submetidas e aceites a votação por John Bercow, speaker do Parlamento britânico, as únicas aprovadas foram a de Graham Brady e a de Caroline Spelman. Votaram 317 deputados a favor da emenda de Brady, que preconiza a renegociação do acordo, e votaram contra 301 (diferença de 16 votos) numa sessão que, mais uma vez, ficou marcada pelos gritos de Bercow: ‘Order’, ‘Lock the Doors’, ‘Division’, ‘Clear the Lobby’, ‘The Noes Have it, the noes have it’, ‘Unlock, etc. A outra emenda, a apresentada por Caroline Spelman, deputada conservadora e ex-Ministra do Ambiente, foi aprovada, com o apoio do trabalhista Jack Dromey, para simplesmente impedir um “no deal Brexit”. Votaram a favor 318 deputados e contra 310 (diferença de 8 votos). E o resultado foi lido como derrota da Primeira-Ministra, que sempre disse não poder retirar de cima da mesa o cenário de saída sem acordo.
A emenda Brady contava com o apoio de Theresa May. Entre os deputados que anunciaram antecipadamente o apoio à emenda apresentada pelo deputado conservador, líder do chamado Comité 1922 do Partido Conservador no Parlamento de Westminster, estiveram os rebeldes conservadores eurocéticos. Assim, pouco antes da votação das emendas, Steve Baker, vice-presidente do European Research Group, think tank que representa, pelo menos, meia centena de deputados do Partido Conservador, declarou:
Decidimos de forma coletiva apoiar a emenda Brady com base nas promessas feitas pela Primeira-Ministra, especialmente no que toca ao acordo de retirada e de que o backstop permanece o pior problema. Um voto na emenda Brady é um voto para ver se a Primeira-Ministra consegue um acordo que funcione.”.
Numa primeira reação ao resultado da votação, Theresa May declarou:
Não há apetite para renegociação na UE. A negociação não vai ser fácil. Mas esta câmara deixou claro o que exige para aprovar um acordo de retirada. Este Parlamento disse também que não quer sair sem acordo. Ser contra uma saída sem acordo não é suficiente para impedir uma saída sem acordo.”.
A Chefe do Governo reafirmou o seu convite ao líder do Labour, Jeremy Corbyn, para dialogar e, em conjunto, tentarem chegar a um acordo de saída da UE – ao que o líder trabalhista respondeu, depois de verificar que os deputados rejeitaram a hipótese de um “no deal Brexit”:
Estamos preparados para nos encontrarmos com a senhora e dialogar”.
Por sua vez, Vince Cable, líder dos liberais democratas, reagiu ao resultado da votação, apontando que os deputados votaram em posições que, entre si, são contraditórias. Visivelmente exaltado, Ian Blackford, líder parlamentar do SNP (Partido Nacionalista Escocês), acusou Theresa May de ter agora “rasgado o Acordo de Sexta-Feira Santa”, já que, à luz do mesmo, é necessário o backstop . Nigel Dodds, líder parlamentar do Partido Unionista Democrático da Irlanda do Norte, discordou de que a posição votada no Parlamento e assumida por May vá contra o Acordo de Sexta-Feira Santa e aproveitou para notar a ausência dos deputados do Sinn Féin no Parlamento britânico, que, sendo contra a união da Irlanda do Norte ao Reino Unido, recusam ocupar os lugares em Westminster. Luiz Saville Roberts, do Plaid Cymru, partido galês, anotou que nem May nem Corbyn estão a desemprenhar os seus cargos de forma apropriada.
No debate da tarde do dia 29, Brady disse que, se aprovada, a sua emenda permitiria a May regressar a Bruxelas com maior legitimidade para renegociar com a UE o acordo do Brexit. Mas, segundo o Guardian, em conversa telefónica com a Primeira-Ministra, o Presidente da Comissão Europeia avisou que a UE não mudará de posição de não alterar o acordo.
May, do Partido Conservador, indicou, no início do dia do debate, que iria pedir alterações ao acordo à UE. Porém, isso não significava que o conseguisse. No debate, o líder do Labour defendeu uma extensão ao artigo 50.º durante um prazo máximo de três meses. Outros, como o líder dos rebeldes conservadores eurocéticos, Jacob Rees-Mogg, consideram que o melhor é uma saída sem acordo, o chamado “No Deal Brexit”.
Refira-se que o mecanismo de salvaguarda, conhecido como backstop, pretende evitar o regresso de uma fronteira física entre a República da Irlanda, Estado-membro da União Europeia, e a província britânica da Irlanda do Norte – medida temporária até que seja encontrada uma solução permanente, mas deputados conservadores receiam que seja aplicada por um tempo indeterminado, enquanto o DUP (Partido Democrata Unionista) não aceita que a Irlanda do Norte cumpra regras diferentes das do resto do Reino Unido.
Porem, a Primeira-Ministra reconheceu, após a aprovação da emenda, que “não vai ser fácil” convencer Bruxelas a fazer mudanças no acordo de saída na solução para a Irlanda do Norte.
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À votação na câmara dos Comuns foram ainda mais emendas. Assim, a apresentada pelo líder do Labour, Jeremy Corbyn, que pretendia evitar a possibilidade de Brexit sem acordo e defendia uma espécie de união aduaneira. O resultado da votação foi: 327 votos contra e 296 votos a favor (uma diferença de 31 votos). Corbyn, que falhou em tirar Theresa May do poder com a moção de censura que apresentou – e perdeu – no passado dia 16, contra o Governo conservador, insistiu que, para aceitar qualquer tipo de diálogo com Downing Street sobre um novo acordo do Brexit, primeiro tinha de ser descartado o cenário de “no deal Brexit”. May – e a UE também – lembraram que isso não é simplesmente possível. A emenda apresentada pelo SNP, que pedia a extensão do artigo 50.º do Tratado de Lisboa e exigia que a Escócia não saísse da UE (visto ter votado contra no referendo de 2016), teve 327 votos contra e 39 a favor (uma diferença de 288 votos). E a emenda proposta por Dominique Grieve, de dar 6 dias aos deputados para debater e votar em diferentes alternativas de Brexit, foi rejeitada por 321 votos contra e 301 votos favor (uma diferença de 20 votos).
A seguir, foi considerada a emenda apresentada por Yvette Cooper, deputada do Labour e líder do comité parlamentar para o Brexit, pedia uma extensão do prazo do artigo 50.º até ao final de 2019, em caso de a Chefe do Governo britânico não conseguir garantir um acordo até 26 de fevereiro. Na prática, Yvette Cooper queria evitar uma saída da UE sem acordo a 29 de março. Posta a votação, a proposta foi derrotada por 321 votos contra e 298 a favor (uma diferença de 23 votos), tendo 14 dos votos contra vindo de deputados do próprio Labour.
Depois, chegou a vez da votação de emenda da também trabalhista Rachel Reeves, cuja proposta defendia o adiamento do Brexit se nenhum acordo fosse alcançado até ao final de fevereiro, mas não especificando durante quanto tempo. Foi rejeitada com 322 votos contra e 219 a favor (uma diferença de 103 votos).
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Em termos de reação de titulares de órgãos do poder soberano dos países interessados e das instituições da UE, regista-se o seguinte:
Falando em Nicósia (Chipre), onde decorreu a cimeira dos líderes dos países do Sul da UE, o Presidente de França, Emmanuel Macron, insistiu que o acordo atual (rejeitado pela câmara dos Comuns no dia 15) “é o melhor acordo possível”, não sendo “renegociável”, incluindo o ponto do backstop (mecanismo de salvaguarda destinado a evitar o regresso da fronteira física entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda após a saída do Reino Unido da UE e a respeitar o acordo de paz de Sexta-Feira Santa). Também, em Nicósia, António Costa, Primeiro-Ministro português admitiu, em declarações aos jornalistas, que o “no deal Brexit” é o cenário mais provável, frisando:
Ninguém quer que ele aconteça, mas todos devem preparar-se para que isso aconteça”.
Depois, face à deliberação britânica, Costa, citado pela Lusa, afirmou a partir de Nicósia:
Considero que há uma ilusão que não se deve desenvolver no Reino Unido no sentido de se pretender transferir para a Europa problemas políticos internos. Essa não é uma boa solução. […] Se há quem no Reino Unido pretenda organizar um segundo referendo, então que organize o referendo; se há quem queria fazer eleições, então que se façam eleições. Mas não coloquem sob a União Europeia um ónus que não pode ser o seu. Fizemos um acordo e a senhora May festejou esse acordo.”.
E, para reafirmar que o no deal Brexit seria o pior dos cenários, António Costa, declarou:
Há que evitar uma saída descontrolada do Reino Unido e foi feito um acordo que já tem duas declarações interpretativas para que ninguém tenha dúvidas. Mas não se pode reabrir um processo com base numa suspeição de que se pretende montar uma armadilha, ou atravessar o Reino Unido. Espero que este acordo seja aprovado ou, melhor ainda, que o Reino Unido decida manter-se na União Europeia.”.
Já na semana passada, o negociador chefe da UE para o Brexit, Michel Barnier, tinha deixado um aviso aos deputados britânicos:
Parece haver agora uma maioria nos comuns para travar um no deal [Brexit], mas a oposição a um no deal não impede que um no deal aconteça no [dia 29] de março”.
Antes da votação, a Bloomberg (empresa de tecnologia e dados para o mercado financeiro e agência de notícias operacional em todo o mundo com sede em Nova York) noticiara que a Comissão Europeia preparara um comunicado a reafirmar que o acordo para a saída dos britânicos da UE, prevista para o próximo dia 29 de março, não está aberto a renegociação.
Também, num comunicado oficial, o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, insistiu:
backstop é parte do acordo de retirada e o acordo de retirada não está aberto a renegociação. As conclusões do Conselho Europeu de dezembro são muito claras sobre este ponto.”.
E, verificando “a ambição do Parlamento do Reino Unido em evitar um cenário de no deal”, indicou que se mantêm em curso “as preparações para todos os desfechos, incluindo o de um no deal”, manifestando abertura da UE para avaliar – e aprovar por unanimidade – um eventual pedido de extensão do artigo 50.º por parte do Reino Unido.
Questionado sobre esta declaração, Boris Johnson, ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, respondeu que as duas partes estão em negociação e que não é surpreendente que a UE esteja a resistir a uma renegociação. O também ex-correspondente em Bruxelas durante vários anos propôs, nesta semana, em artigo no Daily Telegraph, a solução “freedom clause” (“cláusula da liberdade”) – em que ficasse estabelecido que o Reino Unido poderia, a qualquer momento, já depois de ter saído da UE, pôr um ponto final ao backstop. Porém, não aponta os critérios para tal decisão.
O coordenador do Parlamento Europeu para o Brexit insistiu, logo no dia do debate, que a eurocâmara não alterará o acordo de saída do Reino Unido da UE e que permanecerá ao lado da Irlanda. Numa publicação no Twitter, Guy Verhofstadt começou por saudar a decisão do Parlamento britânico de rejeitar uma saída do Reino Unido da UE sem acordo e por se mostrar otimista quanto ao impacto positivo do diálogo entre os partidos para a construção da relação futura, antes de endurecer o tom. Alertou o eurocrata:
Mantemo-nos ao lado da Irlanda e do Acordo de Sexta-feira Santa. Não há uma maioria para reabrir ou diluir o acordo de saída no Parlamento Europeu, incluindo o backstop.”.
Os líderes europeus têm, pois, repetido insistentemente que não vão reabrir as negociações do acordo, que é “o melhor e único possível”, uma posição já reafirmada por um porta-voz do presidente do Conselho Europeu. Assim, lê-se em comunicado do gabinete de Donald Tusk:
O acordo de saída é e continua a ser a melhor forma de assegurar uma saída ordenada do Reino Unido da União Europeia. O backstop integra o acordo de saída e o acordo de saída não é renegociável. As conclusões do Conselho Europeu de novembro são muito claras neste ponto.”.
Ressalta, de forma eminente neste contexto, a posição conjunta dos chefes de Estado e de Governo dos países do sul da UE, que, na cimeira de Nicósia – da esquerda para a direita: o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Espanha, Josep Borrell, que representava o Primeiro-Ministro; o Primeiro-Ministro de Portugal, António Costa; o Primeiro-Ministro de Itália, Giuseppe Conte; o Presidente de Chipre, Nicos Anastasiades; o Presidente de França, Emmanuel Macron; o Primeiro-Ministro da Grécia, Alexis Tsipras, e o Primeiro-Ministro de Malta, Joseph Muscat – subscreveram uma declaração conjunta.
Diga-se parenteticamente que, nesta V Cimeira dos Países do Sul da União Europeia, o Governo espanhol se fez representar pelo Ministro das Relações Exteriores, Josep Borrell Fontelles, dado que Pedro Sánchez, se encontrava na reunião da Internacional Socialista em Santo Domingo, na República Dominicana, para discutir a situação na Venezuela. Numa resolução aprovada no dia 29, a Internacional Socialista declarou a apoiar os esforços do Presidente da Assembleia Nacional venezuelana para conduzir o país num processo de “transição para a democracia”.
Quando a Primeira-Ministra britânica fez saber que tenciona renegociar o acordo de saída da UE, os líderes do sul europeu contrapõem que defendem “firmemente” o compromisso já alcançado entre as instituições europeias e o governo de Londres para o Brexit. Depois de manifestarem o seu “empenho” numa saída ordenada do Reino Unido, os líderes deste grupo afirmam que pretendem “proceder à ratificação do acordo”. E referem, por outro lado, que os Estados membros da UE do sul intensificam “o seu trabalho para fazer face às consequências da saída do Reino Unido, tomando em linha de conta todos os cenários possíveis”.
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Em suma, é um tipo de baralhar e tornar a dar: May, impelida pelo seu Parlamento, quer renegociar o Brexit com Bruxelas e a UE27 para conseguir uma saída com acordo aprovado parlamentarmente; a UE, com a França de Emmanuel Macron à cabeça, é contra qualquer reabertura do acordo para renegociação e apoia a Irlanda contra a remoção do backstop. E tem esse direito: não se brinca com as instituições. Mantém-se o impasse, a incerteza e a frustração!
O Parlamento britânico pôs-se em bicos de pés e afirmou o seu poder dentro do Reino Unido. Não se discute a sua legitimidade, mas, se não consegue um consenso interno, que se interrogue como quer granjear um consenso externo em redor das suas pretensões ou que se contenha na sua expressão de poder inquestionável. Na verdade, não se pode tolerar que, do alto das suas ínsuas ebúrneas, os britânicos queiram impor a sua supremacia ao bloco europeu como nos tempos em que lograram dominar o mundo quase todo através dum imperialismo construído à sombra da falência do imperialismo dos reinos que tiveram a veleidade de dar mundos ao mundo. Agora outro galo canta: as nações não abrem mão da sua soberania e esta é uma condição de paz!
2019.01.29 – Louro de Carvalho

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Francisco está preocupado com a Venezuela, mas não toma partido


Como referiu na conversa com os jornalistas no voo de regresso do Panamá a Roma, o Papa está muito preocupado com o que se passa na Venezuela, mas não toma partido. Na verdade, mesmo estando ao lado de quem sofre, seria pastoralmente imprudente tomar posição. E, solidário com o povo que sofre, justifica-se:
É um povo que está a sofrer, de um lado e do outro, todo o povo sofre. Se eu dissesse ‘ouçam estes países, ouçam antes aqueles outros’, metia-me em assuntos que não conheço, seria uma imprudência pastoral da minha parte e causaria dano.”.
E concluiu:
Sofro com o que se está a passar na Venezuela, neste momento. E, por isso, desejo que se ponham de acordo e encontrem uma solução justa e pacífica. O que me assusta é o derramamento de sangue. Eu tenho de ser pastor de todos. E, se necessitam de ajuda, que a peçam de comum acordo.”.
Já durante a Jornada Mundial da Juventude, no Panamá, o Papa, preocupado com aquele povo, pediu uma solução “justa e pacífica” para ultrapassar a crise política, que respeite os direitos humanos, e desejou o bem de todos os habitantes do país.
Francisco formulou o seu pedido depois da Missa de encerramento da JMJ de 2019, no Panamá, já quando visitava o lar do Bom Samaritano – ocasião que aproveitou para assinalar o Dia Internacional da Memória das Vítimas do Holocausto e lembrar a tragédia provocada pela derrocada da barragem no Brasil, o ataque à Igreja católica nas Filipinas e as mortes dos cadetes dos polícias colombianos. E disse:
Tenho pensado muito no povo venezuelano, ao qual me sinto particularmente unido nestes dias; e, perante a situação grave que o país atravessa, peço ao Senhor que se procure uma solução justa e pacífica para ultrapassar a crise, que se respeite os direitos humanos e desejo o bem de todos os habitantes do país”.
Por fim, apelou aos crentes a que rezem pela “ajuda de Nossa Senhora de Coromoto, patrona da Venezuela”.
Até então, o Vaticano apenas tinha divulgado um comunicado breve sobre a Venezuela, no qual indicava que o Papa acompanhava “de perto” a situação e rezava pelas vítimas e por todos os venezuelanos, assinalando que a Santa Sé apoia “todos os esforços que permitam evitar mais sofrimentos à população”.
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A Venezuela enfrenta uma crise política que levou vários países europeus, incluindo Portugal, a lançar um ultimato ao Presidente Maduro para convocar eleições no prazo de uma semana. Caso Maduro não o faça, Portugal, Espanha, Alemanha, França e Reino Unido reconhecerão Juán Guaidó, presidente do parlamento venezuelano, como chefe de Estado interino, com poder para conduzir o processo eleitoral. Mas o Presidente venezuelano já rejeitou o ultimato declarando que o seu país não está “ligado” à Europa.
A crise política arrasta consigo, há vários anos, a vertentes social e a económica e vem-se agravando até que chegou a este ponto: Nicolás Maduro foi recentemente eleito para um novo mandato de seis anos, com a oposição a rejeitar a legitimidade do escrutínio e a promover manifestações para exigir eleições verdadeiramente livres, tendo-se colocado os bispos venezuelanos ao lado da oposição a Maduro.
E, após eleições em que estiveram ausentes as principais forças da oposição, Maduro foi investido, a 10 de janeiro, para um segundo mandato como chefe de Estado e de Governo, cuja legitimidade não foi reconhecida por grande parte da comunidade internacional. Porém, a 23 de janeiro, Juan Guaidó, Presidente do Parlamento, autoproclamou-se Presidente da Venezuela perante uma multidão de opositores de Nicolas Maduro, prometendo um “governo de transição” e “eleições livres”, pois não aceita ir a votos neste ordenamento jurídico eleitoral.
Entretanto, apoiantes do presidente do Parlamento venezuelano, autoproclamado chefe de Estado interino, distribuíram uma lei, assinada por Juan Guaidó, de amnistia aos soldados, tentando convencê-los a mudar de campo, enquanto o Presidente Maduro assistiu pessoalmente a exercícios militares.
A repressão dos protestos antigovernamentais da última semana na Venezuela já provocou 35 mortos e 850 detidos, de acordo com o mais recente balanço divulgado por diversas ONG.
A esta crise política soma-se a uma grave crise económica e social que levou 2,3 milhões de pessoas a fugirem do país desde 2015, segundo dados da ONU.
E, pelo facto de Trump haver reconhecido Guaidó como Presidente interino e pelas declarações concomitantes e/ou subsequentes a esse reconhecimento, Maduro responsabilizou, no dia 28, o seu homólogo norte-americano por “qualquer violência” que venha a ocorrer no país, devido à tentativa de mudança de regime promovida por Washington. Disse, a este respeito, durante um encontro, no palácio presidencial de Miraflores, com diplomatas que regressaram, por sua ordem, de diferentes sedes consulares e da embaixada venezuelana nos EUA:
Será você, senhor Presidente Donald Trump, responsável por esta política de mudança de regime na Venezuela e o sangue que se possa derramar na Venezuela será sangue que estará nas suas mãos, Presidente Donald Trump”.
Ao mesmo tempo, Maduro denunciou a grande manipulação mundial veiculada pelos meios televisivos dos Estados Unidos e da Europa para “apresentar uma Venezuela virtual”, não mostrando a realidade, ou seja, as manifestações de revolucionários que o apoiam.
Por outro lado, anunciou estar pronto para iniciar um diálogo com a oposição para garantir a paz e a estabilidade do país, declarando:
Estou pronto, uma vez mais, para onde for, iniciar uma ronda de conversações, diálogo, negociações, com toda a oposição venezuelana, com um só objetivo: a paz, o entendimento e o reconhecimento mútuo”.
No âmbito do predito encontro, o Presidente Maduro pediu aos venezuelanos que persistam no rumo do trabalho, da educação, do positivo e da expansão do modelo socialista, para a construção de uma estabilidade política, sólida, verdadeira e positiva. E, nesse sentido, anunciou o lançamento do programa estatal “Misión Venezuela Bella” (Missão Venezuela Linda) para o embelezamento de 62 cidades do país.
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Por seu turno, o autoproclamado Presidente interino anunciou, no dia 28, assumir o controlo dos ativos do país no exterior, de modo a evitar que Maduro “continue a roubar” o dinheiro dos venezuelanos. Assim, um comunicado divulgado por Guaidó na rede social Twitter assegura:
A partir deste momento iniciamos a tomada do controlo progressivo e ordenado dos ativos da nossa República no exterior, para impedir que, no seu percurso de saída e não conformado com o que já roubou à Venezuela, o usurpador e o seu grupo continuem a roubar o dinheiro dos venezuelanos, financiando delitos a nível internacional e usando o dinheiro para torturar o povo, privando-o de alimentos e medicamentos e assassinando quem protesta pelos seus direitos”.
Acrescenta que denunciou “junto da comunidade internacional a corrupção na PDVSA” (empresa estatal Petróleos da Venezuela), frisando que foi convertida numa “rede de financiamento de crimes”.
E diz que vai iniciar um processo para nomear uma nova administração para a PDVSA e para a sua filial CITGO, que opera nos Estados Unidos.
A esta medida de Guaidó e para aumentar a pressão sobre Nicolás Maduro, a administração do Presidente dos EUA, Donald Trump, anunciou que vai impor sanções à companhia petrolífera. E, no alinhamento com Trump, o conselheiro de segurança nacional John Bolton e o Secretário do Tesouro Steven Mnuchin anunciaram as medidas contra a companhia, que impede os norte-americanos de fazerem negócios com a empresa estatal e congela todos os seus bens nos Estados Unidos.
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Na sequência do apelo de Maduro às autoridades judiciais a que façam justiça punindo os perturbadores da ordem pública e da ordem constitucional e transgressores da lei, o procurador-geral da Venezuela, Tarek William Saab, pediu hoje, dia 29, ao Supremo Tribunal de Justiça que congele as contas bancárias de Guaidó, que aliene os seus bens e que impeça o autoproclamado Presidente interino de abandonar o país. Consta do requerimento do procurador-geral:
Requerimos al TSJ la imposición de las siguientes medidas cautelares innominadas de prohibición de salida del país; de enajenar y gravar bienes muebles e inmuebles y el bloqueo de sus cuentas bancarias”.
Estas medidas cautelares propostas por Saab não incluem o pedido de detenção, mas marcam o início dum inquérito preliminar à decisão do presidente da Assembleia Nacional de assumir, a 23 de janeiro, a presidência interina do país, com o apoio dos EUA e de outros países.
Em conferência de imprensa, o procurador-geral aduziu que, na sequência da decisão de Juán Guaidó, “ocorreram atos violentos, pronunciamentos de governos estrangeiros e o congelamento de ativos da República, o que implicará crimes graves que atentam contra a ordem constitucional”.
Guaidó não perdeu tempo a responder que tem imunidade parlamentar, que só pode ser anulada por um tribunal superior do país. No Twitter, o Presidente interino deixou uma mensagem aos juízes do Supremo face ao pedido da procuradoria-geral:
A quem está hoje na sede do Supremo Tribunal de Justiça: o regime está na sua etapa final. Isto é imparável e vocês não precisam de se sacrificar com o usurpador e o seu gangue! Pensem em vocês, na vossa carreira, no futuro dos vossos filhos e netos que também são os nossos. A história vai reconhecê-los.”.
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Ao nível do comentário, ressalta hoje o de Francisco Assis e João Taborda da Gama hoje sobre “Índice de Perceção da Corrupção e a crise na Venezuela”.
João Taborda da Gama considera estarem “criadas as condições internacionais” para que o Presidente da Venezuela saia de cena “e traga aos venezuelanos algum alívio do massacre que têm vivido”. E, sustentando que “não é tarde nem cedo” e que “é preciso mudar”, considera que “a Venezuela atravessa um flagelo humanitário provocado diretamente pelas políticas de Maduro e pela ilusão ideológica e económica em que vive”.
A mesma opinião tem o eurodeputado Francisco Assis ao explicitar que “este regime já é criminoso, porque destruiu completamente a democracia na Venezuela, pôs em causa direitos e liberdades fundamentais, conduziu o país a uma crise impressionante”, em que os “sistemas de saúde e educativo não funcionam”, destruiu “completamente a economia” e pôs “em causa a dignidade do povo venezuelano”.
Por isso e por causa da pressão da comunidade internacional (da União Europeia e dos EUA), o mais provável é que o ainda Presidente da Venezuela deixe o cargo.
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Os dados constantes do site da Rádio Renascença, fornecidos hoje por André Rodrigues, levam a traçar um quadro dramático da situação na Venezuela:
Assim, é referido que, em 2017, três em cada cinco venezuelanos perderam em média 11 quilos por inacessibilidade a alimentos. Com efeito, a Venezuela que, em meados do século passado, era o 4.º país mais rico do mundo, mercê da exploração do petróleo tem hoje um salário mínimo de 18 euros e uma inflação estimada de 10 milhões por cento. Por outro lado, terão sido detidas na Venezuela, nos últimos dias, pelo menos 800 pessoas.
Se esta é uma contabilidade normal, atendendo à dimensão das demonstrações de rua, há uma outra contabilidade que é chocante e que não é de agora.
Nestes termos, os números respeitantes a 2017 mostram que 64% da população venezuelana terá perdido, em média, pelo menos 11 quilos por falta de comida – um dado que, de acordo com a agência EFE, ainda não reflete o efeito da hiperinflação, que começou em outubro de 2018.
A amostra desta pesquisa sobre as condições de vida na Venezuela envolveu mais de seis mil famílias, tendo 61% dos inquiridos declarado ter ido para a cama com fome.
E 78% disseram não ter dinheiro para adquirir o cabaz mínimo essencial porque, das duas, uma: ou os alimentos desapareceram das prateleiras dos supermercados ou estão tão caros que ninguém lhes consegue chegar. Daí que 63% dos inquiridos passaram a reduzir os alimentos disponíveis em casa, diminuíram porções nos pratos e, no limite, suprimiram refeições. Um quinto dos venezuelanos não toma o pequeno-almoço. Todos os dias, os pais com mais que um filho se deparam com uma decisão dramática, um dilema – “Qual das crianças come a cada dia?” – porque simplesmente a comida não chega para duas ou mais crianças.
Tudo isto sucede num país onde o salário mínimo é de 18 mil bolívares soberanos, ou 18 euros e 18 cêntimos, que nada valem quando a inflação é de 10 milhões por cento. Dará para comprar duas bananas e pouco mais.
São, como se disse, são números de 2017, mas, atendendo ao quadro de crise humanitária que a Venezuela enfrenta e ao peso da inflação, acentuado nos últimos tempos, serão ainda muito atuais ou, eventualmente, ter-se-ão agravado.
A razão de ser desta situação, além da luta política em que a oposição se encontra muito condicionada, está na excessiva dependência do petróleo. De acordo com a petrolífera britânica BP, a Venezuela detém 18% das reservas comprovadas de petróleo no mundo, à frente da Arábia Saudita ou do Irão. Porém, desde 2016, mais de metade das 70 jazidas de exploração foram encerradas devido aos elevados custos de extração.
Num cenário destes, não é de estranhar que, desde 2015, pelo menos três milhões de pessoas tenham fugido da Venezuela, o país que, repete-se, na década de 50 do século passado era o quarto mais rico do mundo, com um PIB per capita a rondar os 7,5 milhões de dólares.
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Face a tal panorama, dificilmente não seria implausível ver o Papa a posicionar-se dum lado ou do outro. Fizeram-no os Bispos venezuelanos que ousaram arriscar. Do lado do Vaticano seria difícil tomar posição, porquanto, se o povo sofre e a oposição assume as suas dores, também é certo que o poder executivo, que tem a seu lado o poder judiciário e o poder militar, poderia retaliar sobre toda a população, em especial a católica e as suas instituições. Porém, nada impede, antes pelo contrário, que as vozes críticas dos cidadãos, sobretudo dos cristãos, exijam que os que detêm papel de liderança “tenham conduta conforme à dignidade e autoridade de que estão revestidos e que lhes foi confiada” e “a ousadia de construir uma vida política verdadeiramente humana” (cf Discurso de Francisco no “Encontro com as Autoridades, o Corpo Diplomático, e Representantes da sociedade”, no Panamá). 
2019.01.29 – Louro de Carvalho