A Casa da
Torre da Lagariça, construída no século XII, que, juntamente com jardins e paisagem,
serviu de inspiração para o romance de Eça de Queirós “A Ilustre Casa de Ramires” está
à venda.
Como aduzem
os técnicos do Marketing, nem Eça de Queirós resistiu ao fascínio da Casa da
Torre da Lagariça, em São Cipriano, freguesia do concelho de Resende. A torre
causou tal impressão, que o romancista apostou em escrever um livro em torno
dela: “A Ilustre Casa de Ramires”. Passados
119 anos da publicação do romance, a quinta – que foi um dos primeiros berços
da nobreza portuguesa – está à venda na Remax por 990 mil euros.
Classificada
como Imóvel de Interesse Público desde 19 de setembro de 1977, tem 934 metros
quadrados e 20 assoalhadas. Entre elas, 8 a 12 podem ser revertidas em quartos.
No entanto, está em mau estado – são 907 anos de vida – e a precisar de
reconstrução.
Além da casa,
os investidores dispõem de “belos campos de cultivo e
árvores de fruto”, vários jardins “de inspiração romântica”, uma “mata com
bancos de pedra” e
uma “réplica da torre que serviu de pombal”. E ainda é possível admirar a paisagem na Eira Velha – o ponto mais alto
da quinta, onde se diz que Eça escreveu parte do predito romance cuja ação se
passou no local.
O negócio
está a cargo do consultor imobiliário António Trindade e o investimento
financeiro tem potencial para obtenção do visto Gold, que autoriza a entrada e a residência em Portugal de quem
investir no País um valor igual ou superior a 500 mil euros.
A este
respeito, disse à à NiT António Trindade, da Remax:
“Tudo na vida é negociável, mas nem sempre é
o preço. Estamos a promover um artigo exclusivo. Um imóvel com quase mil anos
de história, famoso pelo livro de Eça de Queirós. Isto cria um valor intangível,
que vai além do preço do terreno ou da condição do imóvel.”.
Efetivamente,
aquando do nascimento de Portugal como nação e como reino, o local que serviu
de inspiração ao autor já existia, pois a Torre da Lagariça foi construída
entre 1112 e 1128, durante a regência de Dona Teresa. Dentro daqueles
muros viveu toda uma linhagem nobre de Portugal. “A torre é um sólido torreão
militar de linhas de planta quadrada, que serviu de ponto de vigia e prisão,
sendo mais tarde construído o casario em volta da torre e tornada casa de
habitação dos fidalgos” – diz-se.
Na altura da
reconquista cristã, tinha a função militar de defender a linha do Douro, mas
perdeu esta funcionalidade com o estabelecimento das fronteiras mais a norte.
Contudo, em 1538, a Casa recebeu o foral de Capitania-Mor de Aregos das mãos do
Rei Dom João III. E, nesse mesmo século XVI, passou para as mãos da
família Pinto, senhores da Torre da Chã e do Paço de Covelas. Em 1610, a
torre medieval foi vendida à família Cochofel, que pôs agora a histórica propriedade
à venda.
Em 48 horas
de anúncio, investidores do mercado hoteleiro, particulares e também muitos
curiosos já entraram em contacto para saber mais informações sobre o imóvel,
mas nenhum negócio foi ainda fechado.
(cf https://eco.sapo.pt/2019/01/11/ilustre-casa-de-ramires-a-venda-por-990-mil-euros/; https://nit.pt/out-of-town/back-in-town/a-ilustre-casa-de-ramires-de-eca-de-queiroz-esta-a-venda; https://sol.sapo.pt/artigo/641599/-ilustre-casa-de-ramires-a-venda-na-remax-por-menos-de-um-milhao-de-euros).
***
Em relação ao
romance, é de referir o contraste que estabelece entre o presente (o tempo da escrita) e o passado de Portugal, bem como
se torna premonitório para o futuro (o nosso hoje).
José Maria Eça de Queirós foi o mais
fecundo autor do século XIX em Portugal, nenhum outro conseguiu suplantá-lo em
sua capacidade analítica da sociedade do seu tempo.
O romance
realista “A Ilustre Casa de Ramires”,
de Eça de Queirós, publicado em 1900, é uma obra tida por
muitos como escrita durante o apogeu e amadurecimento literário do autor, no
que é chamada a sua terceira fase de produção literária.
Com efeito,
Eça faz no livro uma analogia com o que estava a acontecer em Portugal política
e culturalmente falando e com o passado histórico do país. Através da
personagem, principal tenta evidenciar os valores do passado em confronto com
os valores da atualidade entrados em falência. E, no âmbito da metaliteratura,
o escritor professa que escrever é uma arte.
A narrativa é
processo e produto dum narrador heterodiegético (a história é narrada na terceira pessoa), e omnisciente (não se limita a uma observação
cinematográfica nem ao conhecimento apenas através da ação através do olhar de
uma ou duas personagens).
A diegese
decorre em dois grandes momentos: o primeiro flui no século XIX, em Portugal, um
país cheio de modernidades; e o segundo compagina, por analepse, a novela
histórica da Torre de Ramires, que acontece no mesmo local, mas no século XII,
a mostrar um povo heroico na Idade Média.
Na primeira
parte do romance, começa a narrativa duma história situada no presente e
vertida em terceira pessoa, a decorrer na Aldeia de Santa Irineia, a história
do jovem Gonçalo Mendes Ramires, um fidalgo de província que
vinha de uma família nobre de tradições, anterior à fundação do reino, e agora
via a sua família falida económica e moralmente.
Ramires busca
meios fáceis de conseguir dinheiro e deixa de lado toda a ética e moral que um
dia a sua família teve e ingressa na política. Ao mesmo tempo, começa a escrever
uma novela histórica sobre a família, inspirado na torre de Ramires, tendo por
base um fado e um poema épico escrito por um tio. A história é sobre um
antepassado chamado Tructesindo Ramires.
Surgem, assim, a par dos episódios
narrados, pertinentes reflexões sobre a história de Portugal – simbolizadas na
genealogia da família Ramires – e de cariz político por exemplo, quando Gonçalo
aparece integrado no partido Regenerador.
Mas o
protagonista, um homem incoerente e desleixado, toma atitudes impensadas. Vê a
literatura como meio de ascensão política. E consegue-o, de facto, através de
concessões várias.
Com a
passagem do tempo, Gonçalo começa a ter crises com relação a sua honra e
honestidade e com tudo quanto a sua família um dia defendeu e era seu apanágio,
pois, entrado na política, havia perdido e desonrado os seus ancestrais.
Porém, quando começa a ser conhecido
em Lisboa, abandona os encargos políticos e viaja para África onde vai
entregar-se a empreendimentos agrícolas que o enriquecem, mas que depois não sabe
desenvolver nas suas próprias terras. Realiza-se, assim, a sua regeneração e,
através dela, a do nome da sua família. Gonçalo honra, deste modo, os seus
antepassados.
E, depois de alguns anos, regressado
a Portugal economicamente estável e um novo homem, instala-se no sossego dos
campos e enamora-se de uma rica senhora de nome Rosinha Rio-Manso, que irá,
certamente, consolidar para sempre a sua fortuna.
A pari, decorre uma outra história, a história da sua irmã Gracinha
Ramires, que se casa com o inocente Barolo. Sobressaem como personagens André
Cavaleiro, homem frívolo e indigno, inimigo de Ramires e ex-noivo de Gracinha
Ramires, irmã de Gonçalo.
Depois de
vê-la casada com o inocente Barolo, o inescrupuloso Cavaleiro tenta seduzir a
moça.
Enfim, duas
histórias no século XIX em certa medida replicadas nas intrigas correntes do nosso
século XXI, em que os valores éticos perdem graça e muitos se embrenham nos meandros
da mediocridade, da evasão ao dever, da lassidão e da corrupção.
Na segunda parte, o romance,
transportando a narrativa para o passado remoto e tendo como narrador a
personagem principal da primeira parte, dá a vez à história da Torre de
Ramires, que decorreu no século XII. É uma volta ao passado.
A personagem principal é o velho Tructesindo
Mendes Ramires, um homem rígido, íntegro, rígido e audaz. Procura vingar a
morte do seu filho Lourenço, que ele próprio viu morrer do alto de sua torre,
em uma emboscada armada por Lopo de Baião, antigo noivo da sua filha, inimigo e
traidor não somente da família Ramires como do rei Dom Sancho.
***
Como se disse, “A Ilustre Casa de Ramires” pertence à terceira fase da produção
queirosiana – a fase pós-realista –, juntamente com A cidade e as
serras” e “A relíquia”. Nela
o escritor tende a revisitar os exageros de sua vida e críticas pregressas,
alça-se no papel de historiador tão típico da sua erudição e refaz-se como
nacionalista crítico de Portugal em sua história em romances.
Por
curiosidade, refiram-se as fases anteriores: a primeira, de influência nitidamente
romântica e de iniciação tímida ao realismo, com várias obras em que sobressai
“O mistério da estrada de Sintra”; e a segunda, caráter realista e naturalista, em que desponta o maduro e
teórico escritor do naturalismo e sobressai a trilogia: “O crime do Padre Amaro – cenas da vida devota”; “O primo Basílio – cenas da
vida doméstica”; e “ Os Maias –
episódios da vida romântica”.
Vazado em estilo apurado, com
perfeita técnica narrativa e uma linguagem ora arcaizante, ora próxima da
oralidade, o romance retrata dois aspetos da realidade portuguesa: um Portugal
do século XIX, de feições modernas, paralelamente a um Portugal do século XII,
com a Idade Média lapidando um povo heroico. Porém, ambas as épocas são vividas
na aldeia de Santa Irineia e são analisadas a partir da torre dos Ramires, que
serve de ligação entre esses dois tempos históricos.
***
Se há um património natural e
edificado, há também uma obra literária fruir e uma história a projetar no
futuro com as lições que dela podem inferir-se.
2019.01.11 – Louro de Carvalho
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