sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Está à venda a casa que inspirou a “A Ilustre Casa de Ramires”


A Casa da Torre da Lagariça, construída no século XII, que, juntamente com jardins e paisagem, serviu de inspiração para o romance de Eça de Queirós A Ilustre Casa de Ramiresestá à venda.  
Como aduzem os técnicos do Marketing, nem Eça de Queirós resistiu ao fascínio da Casa da Torre da Lagariça, em São Cipriano, freguesia do concelho de Resende. A torre causou tal impressão, que o romancista apostou em escrever um livro em torno dela: “A Ilustre Casa de Ramires”. Passados 119 anos da publicação do romance, a quinta – que foi um dos primeiros berços da nobreza portuguesa – está à venda na Remax por 990 mil euros.
Classificada como Imóvel de Interesse Público desde 19 de setembro de 1977, tem 934 metros quadrados e 20 assoalhadas. Entre elas, 8 a 12 podem ser revertidas em quartos. No entanto, está em mau estado – são 907 anos de vida – e a precisar de reconstrução.
Além da casa, os investidores dispõem de “belos campos de cultivo e árvores de fruto”, vários jardins “de inspiração romântica”, uma “mata com bancos de pedra” e uma “réplica da torre que serviu de pombal”. E ainda é possível admirar a paisagem na Eira Velha – o ponto mais alto da quinta, onde se diz que Eça escreveu parte do predito romance cuja ação se passou no local.
O negócio está a cargo do consultor imobiliário António Trindade e o investimento financeiro tem potencial para obtenção do visto Gold, que autoriza a entrada e a residência em Portugal de quem investir no País um valor igual ou superior a 500 mil euros.
A este respeito, disse à à NiT António Trindade, da Remax:
Tudo na vida é negociável, mas nem sempre é o preço. Estamos a promover um artigo exclusivo. Um imóvel com quase mil anos de história, famoso pelo livro de Eça de Queirós. Isto cria um valor intangível, que vai além do preço do terreno ou da condição do imóvel.”.
Efetivamente, aquando do nascimento de Portugal como nação e como reino, o local que serviu de inspiração ao autor já existia, pois a Torre da Lagariça foi construída entre 1112 e 1128, durante a regência de Dona Teresa. Dentro daqueles muros viveu toda uma linhagem nobre de Portugal. “A torre é um sólido torreão militar de linhas de planta quadrada, que serviu de ponto de vigia e prisão, sendo mais tarde construído o casario em volta da torre e tornada casa de habitação dos fidalgos” – diz-se.
Na altura da reconquista cristã, tinha a função militar de defender a linha do Douro, mas perdeu esta funcionalidade com o estabelecimento das fronteiras mais a norte. Contudo, em 1538, a Casa recebeu o foral de Capitania-Mor de Aregos das mãos do Rei Dom João III. E, nesse mesmo século XVI, passou para as mãos da família Pinto, senhores da Torre da Chã e do Paço de Covelas. Em 1610, a torre medieval foi vendida à família Cochofel, que pôs agora a histórica propriedade à venda.
Em 48 horas de anúncio, investidores do mercado hoteleiro, particulares e também muitos curiosos já entraram em contacto para saber mais informações sobre o imóvel, mas nenhum negócio foi ainda fechado.
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Em relação ao romance, é de referir o contraste que estabelece entre o presente (o tempo da escrita) e o passado de Portugal, bem como se torna premonitório para o futuro (o nosso hoje).
José Maria Eça de Queirós foi o mais fecundo autor do século XIX em Portugal, nenhum outro conseguiu suplantá-lo em sua capacidade analítica da sociedade do seu tempo.
O romance realista “A Ilustre Casa de Ramires”, de Eça de Queirós, publicado em 1900, é uma obra tida por muitos como escrita durante o apogeu e amadurecimento literário do autor, no que é chamada a sua terceira fase de produção literária.
Com efeito, Eça faz no livro uma analogia com o que estava a acontecer em Portugal política e culturalmente falando e com o passado histórico do país. Através da personagem, principal tenta evidenciar os valores do passado em confronto com os valores da atualidade entrados em falência. E, no âmbito da metaliteratura, o escritor professa que escrever é uma arte.
A narrativa é processo e produto dum narrador heterodiegético (a história é narrada na terceira pessoa), e omnisciente (não se limita a uma observação cinematográfica nem ao conhecimento apenas através da ação através do olhar de uma ou duas personagens).
A diegese decorre em dois grandes momentos: o primeiro flui no século XIX, em Portugal, um país cheio de modernidades; e o segundo compagina, por analepse, a novela histórica da Torre de Ramires, que acontece no mesmo local, mas no século XII, a mostrar um povo heroico na Idade Média.
Na primeira parte do romance, começa a narrativa duma história situada no presente e vertida em terceira pessoa, a decorrer na Aldeia de Santa Irineia, a história do jovem Gonçalo Mendes Ramires, um fidalgo de província que vinha de uma família nobre de tradições, anterior à fundação do reino, e agora via a sua família falida económica e moralmente.
Ramires busca meios fáceis de conseguir dinheiro e deixa de lado toda a ética e moral que um dia a sua família teve e ingressa na política. Ao mesmo tempo, começa a escrever uma novela histórica sobre a família, inspirado na torre de Ramires, tendo por base um fado e um poema épico escrito por um tio. A história é sobre um antepassado chamado Tructesindo Ramires.
Surgem, assim, a par dos episódios narrados, pertinentes reflexões sobre a história de Portugal – simbolizadas na genealogia da família Ramires – e de cariz político por exemplo, quando Gonçalo aparece integrado no partido Regenerador.
Mas o protagonista, um homem incoerente e desleixado, toma atitudes impensadas. Vê a literatura como meio de ascensão política. E consegue-o, de facto, através de concessões várias.
Com a passagem do tempo, Gonçalo começa a ter crises com relação a sua honra e honestidade e com tudo quanto a sua família um dia defendeu e era seu apanágio, pois, entrado na política, havia perdido e desonrado os seus ancestrais.
Porém, quando começa a ser conhecido em Lisboa, abandona os encargos políticos e viaja para África onde vai entregar-se a empreendimentos agrícolas que o enriquecem, mas que depois não sabe desenvolver nas suas próprias terras. Realiza-se, assim, a sua regeneração e, através dela, a do nome da sua família. Gonçalo honra, deste modo, os seus antepassados.
E, depois de alguns anos, regressado a Portugal economicamente estável e um novo homem, instala-se no sossego dos campos e enamora-se de uma rica senhora de nome Rosinha Rio-Manso, que irá, certamente, consolidar para sempre a sua fortuna.
A pari, decorre uma outra história, a história da sua irmã Gracinha Ramires, que se casa com o inocente Barolo. Sobressaem como personagens André Cavaleiro, homem frívolo e indigno, inimigo de Ramires e ex-noivo de Gracinha Ramires, irmã de Gonçalo.
Depois de vê-la casada com o inocente Barolo, o inescrupuloso Cavaleiro tenta seduzir a moça.
Enfim, duas histórias no século XIX em certa medida replicadas nas intrigas correntes do nosso século XXI, em que os valores éticos perdem graça e muitos se embrenham nos meandros da mediocridade, da evasão ao dever, da lassidão e da corrupção.
Na segunda parte, o romance, transportando a narrativa para o passado remoto e tendo como narrador a personagem principal da primeira parte, dá a vez à história da Torre de Ramires, que decorreu no século XII. É uma volta ao passado.
A personagem principal é o velho Tructesindo Mendes Ramires, um homem rígido, íntegro, rígido e audaz. Procura vingar a morte do seu filho Lourenço, que ele próprio viu morrer do alto de sua torre, em uma emboscada armada por Lopo de Baião, antigo noivo da sua filha, inimigo e traidor não somente da família Ramires como do rei Dom Sancho.
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Como se disse, “A Ilustre Casa de Ramires” pertence à terceira fase da produção queirosiana – a fase pós-realista –, juntamente com  A cidade e as serras” e “A relíquia”. Nela o escritor tende a revisitar os exageros de sua vida e críticas pregressas, alça-se no papel de historiador tão típico da sua erudição e refaz-se como nacionalista crítico de Portugal em sua história em romances.
Por curiosidade, refiram-se as fases anteriores: a primeira, de influência nitidamente romântica e de iniciação tímida ao realismo, com várias obras em que sobressai “O mistério da estrada de Sintra”; e a segunda, caráter realista e naturalista, em que desponta o maduro e teórico escritor do naturalismo e sobressai a trilogia: O crime do Padre Amaro – cenas da vida devota”;O primo Basílio – cenas da vida doméstica”; e “ Os Maias – episódios da vida romântica”.
Vazado em estilo apurado, com perfeita técnica narrativa e uma linguagem ora arcaizante, ora próxima da oralidade, o romance retrata dois aspetos da realidade portuguesa: um Portugal do século XIX, de feições modernas, paralelamente a um Portugal do século XII, com a Idade Média lapidando um povo heroico. Porém, ambas as épocas são vividas na aldeia de Santa Irineia e são analisadas a partir da torre dos Ramires, que serve de ligação entre esses dois tempos históricos.
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Se há um património natural e edificado, há também uma obra literária fruir e uma história a projetar no futuro com as lições que dela podem inferir-se.
2019.01.11 – Louro de Carvalho

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