sábado, 31 de outubro de 2015

Conjugar verdade e misericórdia

Afirmava, há dias, cá para os meus botões que, se a verdade liberta, a misericórdia salva. Escrevia-o a propósito do pregão lançado por Francisco na Missa de encerramento do Sínodo de 2015: “A tarefa da Igreja é proclamar a misericórdia de Deus, chamar à conversão e levar todas as pessoas à salvação”.
Com efeito, o apóstolo e evangelista São João retém como palavra de Jesus aos judeus o segmento seguinte: “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,32). Mas, por outro lado, segundo a Palavra de Cristo, a felicidade resulta da misericórdia, como da pobreza em espírito, da mansidão, da consolação sobre as lágrimas, da fome e sede de justiça, da pureza de coração e da luta pela paz, mesmo à custa da perseguição por causa da justiça. Na verdade, “felizes os misericordiosos porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,7) é uma das proclamas do Sermão da Montanha (vd Mt 5,1-12). E esta misericórdia concretiza-se no perdão e na piedade, que se recebe de Deus e se deve replicar nos irmãos: “Não devias também tu ter piedade do teu companheiro como Eu tive de ti?” (Mt 18,33). E o apóstolo São Tiago ensina que a misericórdia é uma das caraterísticas da Sabedoria que vem do Alto:
“Existe alguém entre vós que seja sábio e entendido? Mostre, então, pelo seu bom procedimento, que as suas obras estão repassadas da mansidão própria da sabedoria. Mas, se tendes no vosso coração uma inveja amarga e um espírito dado a contendas, não vos vanglorieis nem falseeis a verdade. Essa não é a sabedoria que vem do Alto, mas é a terrena, a da natureza corrompida, a diabólica. Pois, onde há inveja e espírito faccioso também há perturbação e todo o género de obras más. Mas a sabedoria que vem do Alto é, em primeiro lugar, pura; depois, é pacífica, indulgente, dócil, cheia de misericórdia e de bons frutos, imparcial, sem hipocrisia; e é com a paz que uma colheita de justiça é semeada pelos obreiros da paz.”.
Aliás o cúmulo da misericórdia é o Bom Pastor dar a vida pelas ovelhas (cf Jo 10,11.13), pelos homens para que tenham a vida e a tenham em abundância (cf Jo 10,10) e, à hora da morte, exclamar “Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34). E esta misericórdia assumida exponencialmente fica espelhada nas parábolas da misericórdia, convenientemente explanadas no capítulo 15 de São Lucas. O Bom Pastor, que tenha 100 ovelhas, vai à procura da ovelha perdida até a encontrar, mesmo que tenha de deixar as outras 99 no deserto; e, quando a encontra, põe-na alegremente aos ombros e, ao aproximar-se da vizinhança, convida à alegria (cf Lc 15,3-7). Atitude semelhante toma a mulher que tem 10 dracmas e, tendo perdido uma, não descansa até a encontrar e, encontrada, convida as vizinhas à alegria (cf Lc 15,8-10). E já vimos, noutras ocasiões, como foi a paciência do Pai que tinha dois filhos: respeitou a liberdade de cada um, mas fez festa quando o pródigo voltou e instou junto do filho mais velho para que alinhasse na festa (cf Lc 15,11-32). Com efeito, haverá mais alegria no Céu, entre os anjos de Deus, por um só pecador que se converte do que por noventa e nove justos que não necessitam de conversão (cf Lc 15,7.10)
***
Também o Padre Gentili, Diretor do Departamento para a família da CEI (Conferência Episcopal Italiana), comentando o resultado dos Sínodo dos Bispos de 2015, no passado dia 28 de outubro, sintetizou o resultado dos trabalhos sinodais na frase lapidar: “O convite é conjugar verdade e misericórdia”.
Depois, explicou como acolher as ideias levantadas no Sínodo.
Evocando a lembrança de Francisco de que a tarefa da Igreja é “proclamar a misericórdia de Deus, chamar à conversão e levar todas as pessoas à salvação”, Paolo Gentili disse que a tarefa de aplicação do Sínodo deve ser entendida à luz do Relatório Final do Sínodo (Relatio Synodi) e deve ser feita com grande cuidado e sensibilidade pastoral com relação às famílias que vivem situações de sofrimento e de conflito.
Na entrevista que deu ao Zenit – o mundo visto de Roma – Gentili explicou como a Igreja que vive em Itália recolherá alguns dos itens abordados no Sínodo: dos cursos de preparação para o matrimónio ao acompanhamento de famílias que sofreram perda, passando pela objeção de consciência dos educadores perante ideias e medidas que vão contra a moral cristã. Não faltam alguns considerandos sobre o tema que tem suscitado o maior interesse dos meios de comunicação: a comunhão aos divorciados recasados civilmente.
Questionado sobre o balanço global que faz deste Sínodo, chamou-lhe “uma obra-prima do Espírito”. E, recordando que foi uma jornada de dois anos, que teve o primeiro ponto alto na assembleia extraordinária de 2014, acentua que o Sínodo proporcionou “uma dupla consulta ao povo, para depois voltar às salas sinodais para a assembleia geral ordinária que terminou recentemente”. E utiliza uma interessante metáfora para explicar o dinamismo sinodal:
“Inicialmente, parecia ouvir uma orquestra numa espécie de sala de ensaio, onde cada um afinava o próprio instrumento. Depois, porém, apareceu uma maravilhosa sinfonia e as posições diferentes revelaram-se uma riqueza, descortinando a catolicidade e a universalidade da Igreja.”.
A seguir, sublinhou os “três ingredientes especiais” inoculados neste itinerário pelo Papa já na vigília com que assinalou a abertura da assembleia no ano passado: escuta mútua, confronto fraterno, olhar em Cristo”. E, como suporte do enunciado de que permanecer “prisioneiro de esquemas do passado” acarreta “o risco de não comunicar mais a vitalidade, a beleza e a perene novidade do evangelho”, declarou:
“É muito bom fazer parte de uma Igreja viva, onde os pais se sentam à mesa com os filhos, antes de tomarem decisões importantes. Diria que as famílias iluminaram realmente o sínodo e indiretamente também indicaram o método de trabalho aos Padres sinodais. Um pai e uma mãe que têm quatro filhos, embora tendo critérios educativos claros, nunca poderão educar o quarto como o primeiro; não só porque eles mesmos mudaram e porque aquele filho é único, mas, especialmente, por encarnar o melhor possível os valores de sempre naquele determinado contexto histórico.”.
Sobre a alegação de que a comunhão aos divorciados que assumiram uma outra relação afetiva, tendo sido um tema que catalisou o interesse da Comunicação Social, não tem referência visível na Relatio Synodi, chamou a atenção para a existência de alguns verbos-chave que indiciam a atitude a tomar relativamente a quem experimentou o fracasso do casamento e encetou uma nova união: acompanhar, discernir e incluir. Depois, explica:
“O acompanhamento é a tarefa fundamental da Igreja, que é mestra e mãe, e, portanto, chamada a curar os feridos com misericórdia. O discernimento é a tarefa principal dos pastores e de seus colaboradores. Trata-se de deixar de ser “lentos de coração” (Lc 24,25) como os dois discípulos de Emaús, não reconhecendo naquela pessoa ferida Jesus que passa ao nosso lado, ou amalgamando com atitudes confusas e erróneas situações completamente diferentes. A inclusão é a atitude das parábolas da misericórdia; em particular, da mulher que se deixa iluminar pela lâmpada e, reencontrando a moeda perdida, devolve todo o valor (cf Lc 15,8-10).”.
E é na síntese desta explicação que se encontra como corolário o enunciado em epígrafe, pois Paolo Gentili confessa:
“Em última análise, o que realmente mudou é a procura de um novo olhar sobre a comunidade dos crentes, para que abandone uma atitude de julgamento sobre as famílias feridas, conjugando eficazmente verdade e misericórdia. Só quem está em conversão pode guiar o outro na mudança do coração, senão, transforma-se em “cego e guia de cegos” (Mt 15,14). Com este olhar cheio de ternura poderão também indicar caminhos penitenciais que, em certas circunstâncias, abram a possibilidade de receber a comunhão eucarística, mas, antes de tudo, há uma comunhão de abraços a ser feita.”.
Em relação às famílias “despedaçadas” pelo falecimento de um dos seus membros, o Padre Gentili aponta “uma pastoral de acompanhamento para aqueles que experimentaram um luto na própria família”, “à luz do mistério pascal”, não deixando essas famílias sozinhas. Fixando-se no facto de Deus se ter feito carne em Jesus de Nazaré no contexto de uma família com muitas vicissitudes, salienta como “já no nascimento foi excluído pelos que moravam nos albergues, para depois emigrar para o Egito fugindo de Herodes”, e como foi, depois, conduzido à morte de cruz, “arrancado de sua mãe e dos seus entes queridos”. Porém, o encontro com Maria Madalena na gruta da ressurreição ilumina, segundo Gentili, “um caminho de esperança”, que, “passando pelo vale de lágrimas, transforma-o em uma fonte” (Sl 84/83,7).
No Sínodo como na Sagrada Escritura – reconhece – se evidenciam as lágrimas das mães que perderam o filho, da mulher que perdeu o cônjuge. E, no olhar da fé, a dor excruciante pode transfigurar-se e a ferida tornar-se foco de luz.
Porém, nestas situações, adverte o especialista, são necessários samaritanos especialmente humildes, delicados e prudentes – que ousem enveredar pela “força revolucionária da ternura”, como quer Francisco – porque, às vezes, a pessoa ferida pode nem sequer aceitar ser abraçada, correndo-se o risco de lhe fazer um dano maior por inabilidade de acompanhamento.  
A propósito da pobreza de conteúdo dos cursos de preparação para o matrimónio, o Padre Gentili destaca o facto de a Relatio Synodi descrever a família como fábrica de esperança e de exortar “as comunidades para uma nova proclamação do Evangelho do matrimónio”. Depois, refere que muitas dioceses italianas renovaram as vias de preparação para o casamento em consonância com as orientações da CEI sobre a preparação para o matrimónio e sobre a família. E aproveita o ensejo para anunciar que, motivada pelas recentes catequeses do Papa sobre o amor em família, em breve, a CEI lançará um curso mensal online para animadores dos itinerários de preparação ao matrimónio, havendo já milhares de inscritos de toda a Itália e também do exterior. E – reconhecimento que a efetiva presença numerosa de pessoas, na Itália, já conviventes que se preparam para as núpcias pede uma nova sensibilidade pastoral, capaz de mostrar o rosto duma Igreja acolhedora e alegre, que não via a hora de reencontrar os seus filhos – explica, um pouco ao jeito do Pontífice, o que se pretende:
“Trata-se de formar pequenas equipas onde sacerdotes e cônjuges acompanham na aventura do amor. O segredo é mostrar o matrimónio não tanto como um jogo de obrigações ou proibições, mas como uma verdadeira Graça e iluminar a família como uma chamada à plenitude de vida e à felicidade: Cristo cura o coração humano e torna possível amar-se para sempre. Nos corredores, mais que ensinar a vencer, é necessário mostrar que é possível levantar-se das quedas dizendo todos os dias com licença, obrigado e desculpa ao próprio cônjuge e também ao próprio filho e também à sogra.”.
Quanto ao apelo à “liberdade da Igreja de ensinar a própria doutrina” e ao “direito à objeção de consciência dos educadores”, Gentili não deixa de expor a situação que se vive na Itália. Os problemas têm de ser ultrapassados com sabedoria, respeito e paciência.
Com efeito, o contexto cultural, que mudou profundamente, mostra claramente a dificuldade de hoje educar na vida do Evangelho. Não obstante é este justamente o desafio: na esteira da encíclica Ecclesiam Suam, de Paulo VI, guardar uma profunda simpatia pelo humano e dialogar com o mundo em que vivemos.
Neste sentido, será realizado, de 9 a 13 de novembro, o Congresso da Igreja Italiana em torno do tema “Em Jesus Cristo o novo humanismo”. Aí, as famílias crentes, como nos primórdios da cristandade, são chamadas a humanizar os ambientes, às vezes, com escolhas em contracorrente, mas, sobretudo construindo pontes, em vez de levantar muros – na convicção certa de que, às vezes, “assim como na família, na sociedade, o testemunho humilde e silencioso tem uma eficácia surpreendente e é Evangelho puro”.
***
Oxalá que o Sínodo da Verdade e da Misericórdia não seja encerrado na gaveta do fixismo, inércia e da comodidade, mas gere a oportunidade de o Espírito renovar a face da Terra.

2015.10.31 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Estranha forma de incluir

No seu discurso da tomada de posse do XX Governo Constitucional, a 30 de outubro de 2015, o Presidente da República fez, entre outras, as seguintes afirmações:
“O Governo que agora toma posse inicia funções num tempo de grande exigência, que requer de todos um elevado sentido de responsabilidade. Ninguém está excluído do dever de atuar de forma responsável, sendo esta uma obrigação que a todos vincula, seja qual for o seu quadrante político ou a sua orientação ideológica.”.

Todos estamos de acordo com este enunciado. Todavia, tendo em conta as delimitações delineadas pelo Chefe de Estado tanto no passado dia 6 de outubro como no dia 22, é legítimo interrogarmo-nos se esta exigência da inclusão de todos no “dever de atuar de forma responsável” independentemente do “seu quadrante político” ou da “sua orientação ideológica” é um pressuposto epistemológico de ciência política e de postura de Estado ou se é uma obrigação circunstancial de apoio ao Governo ora empossado.
A razão de ser desta questão reside no facto de o Presidente haver declarado muito recentemente não se ter arrependido do conteúdo da alocução que proferiu a 22 de outubro, aquando da indigitação do Primeiro-Ministro, a ponto de dizer que não retirava uma linha sequer de quanto foi proferido.
Por outro lado, enquanto efetivamente agiu no cumprimento do estipulado no art.º 187.º da CRP à luz da sua própria leitura – que é legítima, mas não unívoca – reitera a fidelidade à alegada tradição dos 40 anos de democracia em que “a responsabilidade de formar Governo foi sempre atribuída a quem ganhou as eleições” e menciona, em especial, o que sucedeu em 2009.
A este respeito, cita-se a si próprio em relação ao que disse na posse do XVIII Governo Constitucional, também minoritário, tentando aplicar o seu conteúdo à presente conjuntura:
“O Governo que hoje toma posse tem plena legitimidade constitucional para governar. Conquistou essa legitimidade nas urnas”.

Todavia, o Presidente sabe que as circunstâncias de hoje são diferentes das de 2009. Por isso, se entende a desculpa de alegadamente não lhe ter sido “apresentada, por parte das outras forças políticas, uma solução alternativa de Governo estável, coerente e credível”. Resta saber se o candidato a primeiro-ministro, ora nomeado e empossado, lhe apresentou uma real solução estável, coerente e credível, quando é público que a intenção dos líderes partidários que tutelam os deputados que fazem maioria na Assembleia da República é a da apresentação de moção ou moções de rejeição do programa do Governo, o que levará à sua inviabilização.
***
Depois, como o Governo não dispõe de apoio maioritário no Parlamento, o Presidente parece impor-lhe, em nome do “superior interesse nacional” a prossecução do “esforço de diálogo e compromisso com as demais forças partidárias”, o que se afigura difícil. E passa aos deputados a responsabilidade de, ao apreciarem o Programa, decidirem, “em consciência e tendo em conta os superiores interesses de Portugal, sobre a sua entrada em plenitude de funções”.
Por outro lado, entendendo que “o financiamento externo depende da imagem do País no plano internacional, declara que essa imagem depende “do sentido de responsabilidade que os agentes políticos, económicos e sociais demonstrarem no plano interno”. E, em torno do mesmo interesse nacional, o Chefe de Estado parece querer mobilizar a todos quando explicita:
“Para mantermos a linha de rumo que garante melhores condições de vida para todos os Portugueses, é imprescindível que as medidas a tomar pelo Governo sejam objeto de uma estreita articulação com os parceiros sociais e com a sociedade civil. Sindicatos e confederações empresariais, associações e instituições de solidariedade, todos devem ser convocados para esta tarefa comum, um caminho de responsabilidade.”.

Porém, o interesse nacional a ter em conta é o definido unilateralmente pelo Presidente da República, expresso nos itens seguintes:
- Consolidação da trajetória de crescimento económico e criação de emprego e da preservação da credibilidade externa;
- Fidelidade aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado e às grandes opções estratégicas que nos caraterizam como nação livre e soberana, designadamente a União Europeia e o projeto da moeda única.
No entanto, se o Presidente da República se ficasse pela enunciação destes itens, ainda era aceitável o discurso presidencial. Porém, o Presidente perora por detalhes que parecem configurar pontos de um programa de governo, o que extrapola as suas competências. É assim ao exigir do Governo:
- O respeito pelas “regras europeias de disciplina orçamental aplicáveis aos países da Zona Euro e subscritos pelo Estado português, nomeadamente o Pacto de Estabilidade e Crescimento, os pacotes legislativos denominados «Six Pack» e «Two Pack» e o Tratado Orçamental, de modo a que Portugal saia rapidamente do Procedimento por Défice Excessivo, reduza o rácio da dívida pública e alcance o objetivo de médio prazo fixado para o défice estrutural”;
- O respeito pelos “compromissos assumidos pelo Estado português no âmbito da União Bancária” e o exercício de uma efetiva “participação ativa e construtiva na negociação da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento”, com vista à melhoria das “condições de competitividade dos produtos portugueses nos mercados norte-americanos”;
- A fidelidade aos “compromissos que contribuem de forma decisiva para o prestígio de Portugal no mundo”, sobretudo através da “nossa presença no espaço da lusofonia e nas organizações internacionais de defesa e segurança coletiva de que fazemos parte”.
***
Também é certo que o Presidente – e alguns elementos das oposições acusaram o toque – parece desdizer-se de algum modo a si próprio e ao Governo cessante. Se não, vejamos.
Foi-nos dito que o programa de ajustamento económico e financeiro estava concluído e até se foi embora a troika; agora o Presidente da República declara que “o percurso que fizemos na sequência do pedido de auxílio externo em abril de 2011, quando o País esteve à beira da bancarrota, ainda não foi concluído”.
Se, por um lado, diversos indicadores nos dão sinais de esperança e Portugal pôde encerrar, com sucesso, o Programa de Assistência Financeira, o Chefe de Estado, em nome do realismo com que se deve encarar a situação do País, revela:
- No próximo ano, o valor dos reembolsos da dívida pública atinge cerca de 18 mil milhões de euros;
- A dívida pública situa-se em 128% do Produto Interno Bruto;
- O saldo devedor da Posição de Investimento Internacional, ou seja, o endividamento líquido da economia portuguesa em relação ao exterior, corresponde a 116% do Produto.
- A taxa de desemprego caiu 2 pontos percentuais – menos 108 mil Portugueses desempregados nos últimos doze meses - mas ainda se encontra a um nível muito elevado, 11,9% da população ativa.

Por isso, prosseguindo a sua formulação indevida de programa de governo, o professor de economia, Cavaco Silva propõe a concretização de “uma estratégia de combate ao desemprego e de promoção de justiça social”, com particular atenção “aos mais carenciados, aos que mais sofreram os efeitos da crise económica”; uma “aposta forte na competitividade da nossa economia”, acelerando o ritmo de crescimento do emprego (tendo em conta que o investimento subiu 7% nos últimos 12 meses); e a consolidação de “um saudável equilíbrio das contas externas, apoiando a atividade exportadora assente na iniciativa privada e respeitando e estimulando os nossos empresários”. Nada que os partidos da oposição também não advoguem!
E, com a mira nestes objetivos, há que garantir “o acesso, em condições comportáveis, a fontes de financiamento para o Estado, para o sistema bancário e para as empresas”, pois, “sem o acesso a meios de financiamento, o Estado terá dificuldade em satisfazer os seus compromissos, o sistema bancário enfrentará sérias dificuldades na concessão de crédito às empresas e estas, por seu turno, não poderão investir na criação de riqueza e de emprego”.
Mas Cavaco Silva parece não ter despido a veste discursiva do oásis do seu tempo de primeiro-ministro, ao dizer:
“Portugal é hoje um país credível e respeitado, em que muitos desejam investir e os mercados confiam. Não podemos desperdiçar este ativo, que tanto nos custou a conquistar e para o qual a colaboração de várias forças políticas foi fundamental.”.

No entanto, adverte:
“Sem estabilidade política, Portugal tornar-se-á um país ingovernável. E, como é evidente, ninguém confia num país ingovernável. (…) Se Portugal não estivesse integrado no espaço da moeda única, se o País não pertencesse à União Europeia, não poderíamos ter contado com a solidariedade das instituições que nos emprestaram 78 mil milhões de euros quando, em 2011, fomos obrigados a formular um pedido de resgate externo para evitar o colapso da nossa economia.”.

E, como é seu timbre avisar, também agora deixa o aviso, alinhado com a alegada generosidade externa, amarrando os portugueses a inflexíveis pressupostos ditos inquestionáveis e como que não renegociáveis:
“Perante os Portugueses e perante os nossos parceiros da União Europeia, os agentes políticos não devem deixar dúvidas quanto à adesão de Portugal às opções fundamentais constantes do Tratado de Lisboa, do Tratado Orçamental e do Mecanismo Europeu de Estabilidade, aprovados por maioria esmagadora dos deputados à Assembleia da República.”

Por fim, contrariando a conjuntura e as conjeturas, reafirma o que disse em outubro 2009 na tomada de posse do XVIII Governo Constitucional, também minoritário de Sócrates, garantindo ao Primeiro-Ministro a lealdade institucional do Presidente da República:
“A ausência de um apoio maioritário no Parlamento não é, por si só, um elemento perturbador da governabilidade. A ausência de maioria não implica o adiamento das medidas que a situação do País reclama. Para qualquer Governo, o horizonte temporal de ação deve ser sempre a legislatura”.

É óbvio que a ausência de apoio ao Governo minoritário não é, per se, elemento perturbador da estabilidade política e da governabilidade. Todavia, o Presidente da República bem sabe quem criou a governabilidade e a ingovernabilidade do XVIII Governo: o próprio Governo, pelas políticas certas ou erráticas e pela existência ou falta de negociação matéria a matéria; os partidos da oposição, que deixaram passar o pograma, mas porfiaram na valia das suas posições; e o próprio Presidente, tendo a princípio assegurando a lealdade institucional, inverteu a sua postura no seu discurso da vitória eleitoral da sua reeleição e sobretudo no da posse como Presidente reeleito.
***
Mesmo assim, se não fossem os antecedentes discursivos de 6 e 22 de outubro, o discurso presidencial da posse do XX Governo Constitucional poderia ser entendido como verdadeiro discurso de Estado – e deverá, apesar de tudo ser lido como tal, sendo expurgando, como se não tivessem sido proferidos pelo próprio, de alguns dos conteúdos declarativos, por excessivos e pormenorizados. E, embora não se deva partir a ânfora para recolar os cacos, sirva o discurso de apelo à mobilização em torno do superior interesse nacional, lido de forma consensual e não definido unilateralmente.  

2015.10.30 – Louro de Carvalho

O que o Todo-poderoso não pode fazer

A noção de Deus que enformava as catequeses até meados do século XX compaginava a ideia de um Deus distante, legislador, preparado para sancionar o comportamento dos crentes sob o enunciado vigilante “Deus vê-te”.
Todavia, se estivéssemos com atenção ao primeiro artigo do símbolo dos apóstolos, verificaríamos que a primeira qualidade atribuída a Deus é a de “Pai”. Parece que isto bastaria. É certo que, se olharmos para o Pai Deus à imagem de muitos pais terrenos, podemos fazer de Deus uma ideia errada, obsoleta e injusta.
Por isso, talvez seja necessário olhar para a paternidade divina com os óculos de fé do Papa Francisco na missa de encerramento do Sínodo dos Bispos, no passado dia 25 de outubro, comentando um texto profético. Enquanto o povo é forçado ao exílio por parte dos inimigos – o que representa o maior desastre nacional – o profeta Jeremias proclama que o Senhor salva o seu povo. Fá-lo porque é Pai, pai providente, que sabe e quer ter o cuidado permanente dos seus filhos, acompanhando-os ao longo da caminhada, amparando de modo especial os mais débeis, como o cego ou o coxo, a grávida ou aquela que deu à luz. E, ao prestar afavelmente este providente cuidado, abre um caminho desimpedido e um espaço de consolação para as lágrimas e amarguras. E, se o povo aceitar este cuidado, este rasgar de caminho, este consolo de Deus e se ousar reverter esta magnânima atitude Deus para benefício dos irmãos, Deus mudará o exílio em liberdade, a solidão em comunhão. Isto, porque Deus é Pai e pai que ama. (cf Francisco, Homilia da Missa de encerramento da XIV Assembleia Ordinária do Sínodo do Bispos de 2015).
Também o Novo Testamento nos apresenta Deus como o Pai – o Pai de Jesus Cristo e o nosso pai, a ponto de todos podermos e devermos clamar “Pai nosso!” (vd Mt 6,9ss). E este Pai é caraterizado pelo cuidado, pela boa dádiva: “Pois se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo àqueles que lho pedem!” (Lc 11,13). É aquele que se compraz em revelar os mistérios do Reino aos pequeninos: Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado.” (Mt 11,26; Lc 10,21).
Este Pai é figurado numa das grandes parábolas da misericórdia, a do pai que tinha dois filhos. Repartiu pelos dois (o que pediu e o que não pediu) os bens. Perante a vida dissoluta do mais novo (que exigiu a parte dos bens que lhe correspondia), aguardou pacientemente o regresso, que acolheu logo que o filho caiu em si e voltou. Não deixou que ele perdesse a qualidade de filho, mas revestiu-o das vestes familiares e recolocou-lhe no dedo o anel de família. Depois, mandou fazer a festa do reencontro. Mas este Pai não deixa de censurar a ira e a inveja do filho mais velho, que se recusava a fazer parte da festa pelo regresso do irmão, que acusou de viver em vida dissoluta e passou a acusar o Pai de ser para si, mais velho, o legislador da casa (quem dá ordens), mas que nunca lhe dera nada – “Há já tantos anos que te sirvo sem nunca transgredir uma ordem tua, e nunca me deste um cabrito para fazer uma festa com os meus amigos; e agora, ao chegar esse teu filho, que gastou os teus bens com meretrizes, mataste-lhe o vitelo gordo”.
O Pai não desistiu também deste filho mais velho e explicou-se pacientemente: “Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas tínhamos de fazer a festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado” (cf Lc 15,11-32).
***
Os juridicistas preferiram chamar a este Deus o legislador e o juiz severo (que premia o bem e castiga o mal), em vez do pai misericordioso que espera, ama e perdoa. E o filho mais velho, da parábola, também esquece a qualidade paterna do dono da casa e queria ser premiado por nunca ter transgredido uma ordem do seu senhor e entendia que o irmão deveria penar pelo que fez.
Os crentes que são herdeiros, não tanto da Fé de Abraão e da Boa Nova de Jesus, mas do sistema de pensamento dos filósofos da teodiceia acentuam em Deus a essência do ser infinitamente perfeito, senhor do Céu e da Terra (releia-se o famoso catecismo de São Pio X) – quando o Símbolo dos Apóstolos lhe chama “criador” e a criação é obra de sonho, enlevo, amor e partilha. E o ser perfeitíssimo é omnisciente, providente e, sobretudo, todo-poderoso. E, como não podia deixar de ser à boa maneira veterotestamentária, é zeloso da sua glória. Mas não podemos esquecer que o mesmo Deus do Antigo Testamento é sobretudo o libertador e o Deus presente no meio do seu povo.
Por outro lado, este Deus, na sua imensa ternura, assume também as funções da mãe: “Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria.” (Is 49,15). 
E, como a paternidade divina se espelha perfeitamente em Cristo – “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9) – Jesus pôde exclamar: Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas aqueles que te são enviados! Quantas vezes Eu quis juntar os teus filhos, como a galinha junta a sua ninhada debaixo das asas, e tu não quiseste!”  (Mt 23,37; Lc 13,34).
Então podemos afirmar claramente que, assim como nos afeiçoamos ao pensamento em Deus como “pai” – figura típica da autoridade, da providência, da disciplina e da proteção segura – também nos devemos acostumar a pensar em Deus como “mãe”, a figura da doação de vida, do alimento partido em pedacinhos e do sustento, do afeto, do amparo carinhoso e do abraço inigualável. Nunca, pois, as filhas e filhos do Pai Celeste são órfãos de mãe, dado que encontram em Deus tanto o rosto paterno como o rosto materno.
***
É óbvio que Deus tem de ser omnipotente para poder “ser”, por si próprio, todo e tudo o que vimos. O ser todo-poderoso decorre de ser infinitamente perfeito e de ser Quem é para nós.
Porém, todos afirmam – e o catecismo de São Pio X o reitera – que há duas coisas que Deus, apesar de omnipotente ou todo-poderoso, não pode: pecar e morrer. Estas contingências, a serem possíveis em Deus, contradiriam a perfeição divina e, como deficiências e impotências que são, diminuiriam a omnipotência de Deus.
Por seu turno, Francisco, qual missionário inveterado da misericórdia divina, resolveu enveredar por outro rumo do não poder de Deus. Hoje, 29 de outubro, na homilia diária em Santa Marta, declarou: “Deus é poderoso e pode fazer tudo, menos uma coisa: parar de nos amar”.
Mas o presidente da celebração matutina foi mais longe ao sublinhar que Deus ama também os piores de nós “com a ternura de um pai” ou “como a galinha com seus pintainhos”.
Com esta imagem de ternura maternal, o Papa Francisco retratou o amor de Deus Pai pelo homem: “Deus não condena: Deus ama. E ama a ponto de que o amor é a sua fraqueza, a ponto de chorar pelos ímpios e pelos que se afastam dele.”
E, tendo citado à letra o lamento de Jesus sobre Jerusalém (Mt 23,37; Lc 13,34), passou a reescrevê-lo: “E quantas vezes eu quis fazer sentir esse carinho, esse amor, como a galinha com seus pintainhos, e tu recusaste!”. Depois, comentou:
“Todo o homem, toda a mulher, pode recusar o presente de Deus e preferir a sua vaidade, o seu orgulho, o seu pecado. Mas o presente está ali, porque Deus não pode ficar longe de nós. Essa é a ‘impotência’ de Deus. Nós dizemos: ‘Deus é poderoso, pode fazer tudo!’. Menos uma coisa: ficar longe de nós”.
É porque Deus não pode deixar de nos amar que São Paulo nos garante:
“Nem morte nem vida, nem anjos, nem principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos deste amor”.
Mais: o Apóstolo dos gentios proclama que os cristãos são vencedores porque, “se Deus é por nós, quem será contra nós?”. Porém, esta “força de vencedor” é um presente, não podendo os cristãos considerá-lo “como uma propriedade” sua. O Papa adverte que o sentido desta “força de vencedor” é o de que “somos vencedores não porque temos este presente em mãos, mas porque nada nem ninguém poderá separar-nos do amor de Deus, que é em Cristo Jesus, nosso Senhor”. (cf Rm 8,31-39).
E tem de ver-se naquele presente Aquele que dá o presente – refere o Papa – e esse presente é o dom de recriação, é o dom do renascimento em Cristo Jesus, o dom do amor de Deus, “um amor que não pode ser explicado”.
Mais: é um amor que leva Jesus às lágrimas, como diz o pontífice:
“Jesus chorou! Chorou sobre Jerusalém e aquele choro é toda a ‘impotência’ de Deus: a sua incapacidade de não amar, de não ficar longe de nós. Deus chora, chora por mim quando me afasto; chora por cada um de nós; chora pelos iníquos, que fazem tantas coisas ruins, tanto mal para a humanidade... Ele espera, não condena. Ele chora. Porquê? Porque ama!”.
E o Papa insiste: “Deus não pode não amar. E esta é a nossa segurança. Eu posso rejeitar esse amor, como o bom ladrão o recusou até ao fim da sua vida”. E, no fim, repreendendo o companheiro de crime, o bom ladrão volta-se para Jesus, a quem reconhece a inocência do Justo, e suplica: “Lembra-te de mim, quando chegares ao teu reino!”. E Jesus acolhe-o: “Em verdade te digo, Hoje mesmo estarás comigo no paraíso!” (cf Lc 23, 39-43).  
Lá estava aquele amor paterno e amoroso esperando pela confissão arrependida das culpas. Reconhece o Papa que “o pior de nós, o maior blasfemador é amado por Deus com uma ternura de pai, de papá”.
É assim necessário e salutar aguardar com jubilosa esperança a misericórdia amorosa de Deus, experienciá-la gostosamente e dela fazer réplica para com os irmãos – fazer a síntese entre a misericórdia e a verdade. Se a verdade liberta, a misericórdia salva.
A tarefa da Igreja é “proclamar a misericórdia de Deus, chamar à conversão e levar todas as pessoas à salvação” – explicitava o Papa na missa de encerramento do Sínodo de 2015.
E poderíamos perceber melhor a omnipotência amorosa e generosa de Deus se atentássemos nas palavras do apóstolo João, que atestam a nossa incontestável filiação divina:
“Vede que amor tão grande o Pai nos concedeu, a ponto de nos podermos chamar filhos de Deus; e realmente o somos! É por isso que o mundo não nos conhece, pois o não conheceu a Ele. Caríssimos, agora já somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. O que sabemos é que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é. Todo o que tem esta esperança em Deus torna-se puro como Ele, que é puro.” (1Jo 3,1-3).

2015.10.29 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Dos ruídos da presidencial comunicação

Vem o arrazoado seguinte, sob o título enunciado em epígrafe, a propósito das declarações do Presidente da República na Itália à margem da sua participação no X Encontro COTEC Europa, em que marcam presença também os Chefes de Estado de Espanha e de Itália, além de algumas dezenas de empresários portugueses.
Referindo-se aos ecos críticos da sua comunicação ao país em que emoldurou a indigitação do primeiro-ministro com o tecimento de numerosas considerações polémicas e justificações políticas, declarou que não está arrependido de nenhuma das linhas daquela comunicação, considera que ela foi muito clara e porfia que nunca se guiou por qualquer interesse pessoal, mas sempre pelo interesse nacional. 
***
Quem está minimamente por dentro da economia da comunicação sabe perfeitamente que o ato de comunicação, para surtir eficácia, além de dever sido despido de quaisquer ruídos de canal ou de contexto, tem de partir do conhecimento recíproco da parte de emissor e de recetor e de o ter em conta.
Ora, se qualquer ato eleitoral cria, por si só, um conjunto de ruídos típicos de uma democracia que funcione, as recentes eleições legislativas possibilitaram a criação em torno de si de vários fatores de ruído, o qual se tornou efetivo. Recordam-se alguns, a título de exemplo. Desde logo, assinala-se a disponibilidade de Cavaco Silva ter em meados de 2013 apelado a um acordo tripartidário (deixando de fora os não aproveitáveis para a governança), a troco duma dissolução do Parlamento daí a um ano, com a consequente marcação de eleições (como se a dissolução fosse negociável e pudesse ser anunciada a prazo… podendo o lançamento da “bomba atómica” ser anunciada ao alvo com um ano de antecedência). Depois, verificou-se, a pretexto da necessidade de cumprir a Constituição e a lei eleitoral, a sua persistência em contrariar a antecipação de eleições para a primavera de 2015, a tempo de se preparar o primeiro orçamento após a saída técnico-política da crise de ajustamento, acabando por a demarcar para o passado dia 4 de outubro.
Por várias vezes, o Chefe de Estado apelou ao compromisso e aconselhava a que, fosse qual fosse o resultado das eleições de outubro, o governo que delas resultasse deveria apoiar-se numa base parlamentar maioritária. Porém, mal foram conhecidos os resultados eleitorais, de que não resultou uma força ganhadora com maioria absoluta de deputados na Assembleia da República, parece que o país se sentiu numa situação ambiental fortemente sísmica. A esta situação, o PCP e o BE, cumprindo a palavra dada ao seu eleitorado, garantiram a apresentação de moção de rejeição do programa de governo minoritário da força dita ganhadora, mas sem maioria; o líder do PS, em nome da índole responsável do partido, garantiu que não alinharia numa coligação negativa para rejeição dum programa de governo sem ter uma alternativa a contrapor.
O Presidente da República, que dizia saber bem o que fazer a seguir às eleições, optou por um dia de reflexão; os corifeus da coligação eleitoral, desfeita por força do art.º 22.º da lei eleitoral, apressaram-se a fazer um acordo de governo, esquecendo-se de evitar que o líder do PS tratasse de construir uma alternativa de governo. E, entretanto, a 6 de outubro, o mesmo Presidente comunicou ao país que encarregara o líder do partido mais votado de desenvolver diligências com vista a avaliar as possibilidades de constituir uma solução governativa que assegure a estabilidade política e a governabilidade do País”.
Já, por este facto, Cavaco Silva foi objeto de duras críticas da parte dalguns setores por alegadamente se ter antecipado à audição dos partidos com assento parlamentar. Porém, o que fez criar o elã da coligação de esquerda foi a condição imposta pelo Presidente da República:
“O Governo a empossar pelo Presidente da República deverá dar aos portugueses garantias firmes de que respeitará os compromissos internacionais historicamente assumidos pelo Estado Português e as grandes opções estratégicas adotadas pelo País desde a instauração do regime democrático e sufragadas, nestas eleições, pela esmagadora maioria dos cidadãos. Em particular, exige-se a observância das obrigações decorrentes da participação nas organizações internacionais de defesa coletiva, como a NATO, e da adesão plena à União Europeia e à Zona Euro, assim como o aprofundamento da relação transatlântica e o desenvolvimento dos laços privilegiados com os Estados de expressão portuguesa, nomeadamente no âmbito da CPLP.”.

Por isso e na sequência duma certa disponibilidade anteriormente revelada, PCP e BE vieram afirmar claramente que o partido socialista tinha todas as condições de formar governo, a menos que não o quisesse fazer. E multiplicaram-se as negociações políticas e técnicas conducentes a um acordo tripartidário com vista à constituição de um governo alternativo ao que a coligação teimaria em apresentar ao Presidente e ao Parlamento, sendo reiterada a intenção de inviabilizar um governo que persistisse na continuação das políticas praticadas no último quadriénio.
É certo que também houve sessões de pseudonegociação entre a coligação e o PS, mas as mútuas acusações revelavam que o desejo de êxito negocial nem no hiperurânio platónico tinha qualquer existência – o que se compreendia dadas as ambições do novel líder do PS, a mudança pragmaticamente propalada pelos interlocutores do PS e o excesso de zelo do Presidente, presumivelmente acima da Constituição, que se revelou na linha da pretensa tradição.
***
Quando, a 22 de outubro, o Presidente indigitou o primeiro-ministro, como era de esperar, emoldurou o ato de considerações que, na sustância, não passam de reiteração das suas posições anteriores, mas com um enquadramento, uma clareza e uma especificação ao detalhe, de que não restam quaisquer dúvidas sobre as suas intenções, a pôr em prática desde que possível.
Os felizes contemplados com a decisão presidencial, mesmo que atingidos por algum quinhão da crítica presidencial, enalteceram a atitude de Cavaco consubstanciada na indigitação do primeiro-ministro na pessoa do líder da força partidária que ganhara as eleições e na alocução presidencial muito “bem estruturada” e “democrática”. Os autoexcluídos e os governoexcluídos fizeram disparar as setas da crítica ao Presidente.
Sobre estas reações já me pronunciei noutra ocasião.
O que se verifica é que a predita comunicação, que o Presidente subscreve e reitera por inteiramente clara, é tudo menos isso, dado o bloqueio decorrente do conhecimento que se tem do perfil do Presidente e das suas anteriores declarações, desde 1980, e dada a índole dos partidos, que não se contentam com o estatuto político de forças de protesto, mas que espreitam tenazmente a oportunidade de atingir o poder ou de, pelo menos, o condicionar fortemente.
É óbvio que o Presidente da República não disse explicitamente que não empossaria um governo tripartido do PS, PCP e BE (apresentado pelo PS com o apoio do PCP e do BE). Porém, quem o ouviu e/ou leu, percebeu (e bem) que ele não o faria, a não ser que aceitasse contradizer-se, uma vez que o senso canino nos faz inferir que, ao colocar-se uma condição essencial para a prática de um determinado ato, não se vai praticar um ato que contrarie essa condição.
Refere o Presidente que “é significativo que não tenham sido apresentadas, por essas forças políticas (PS, PCP e BE), garantias de uma solução alternativa estável, duradoura e credível”. Resta saber que acordo – estável, duradouro e credível – terá sido apresentado por Passo Coelho e Paulo Portas. Nem o Presidente da República é um notário que tenha de analisar qualquer acordo partidário e dar-lhe pública forma. Deve “ouvir” os partidos, não analisar em pormenor os seus normativos. É ao Parlamento que incumbe a análise do programa de governo.
É também óbvio que o Chefe de Estado não disse que os deputados do Partido Socialista deviam quebrar a disciplina partidária na apreciação do programa do governo a apresentar por Passos Coelho. Porém, notando a emenda textual que fez – “a última palavra cabe à Assembleia da República ou, mais precisamente, aos Deputados à Assembleia da República” – disse tudo, até, porque depois diz sempre Deputados (mais quatro vezes). Não é expectável que sejam deputados do PSD, do CDS, do BE, do PEV, do PCP ou do PAN a abster-se, pois não?!
É, por outro lado, excrescente – diga-se em abono da verdade – que o Presidente venha hoje dizer que assumirá as suas responsabilidades e que a sua única preocupação “é a defesa do superior interesse nacional, depois de estudar muito aprofundadamente todos os problemas”. Ninguém esperava que viesse dizer o contrário. Qual é o político que, em casos como este, não faz exatamente o mesmo tipo de discurso? E não vale a pena também vir porfiar  que nunca teve nem tem qualquer interesse pessoal, desde o primeiro dia do seu mandato, até ao último dia do mesmo: não se esperava que dissesse outra coisa e nenhum político o diria. Porém, todos percebem que o político Cavaco Silva, que se diz não político (que disse não falar em Roma da política portuguesa, mas falou da sua comunicação ao país e referiu explicitamente que em comunicado disse ter visto e aceitado a proposta governativa que lhe foi apresentada e daria posse no próximo dia 30), foi o homem que melhor preparou a sua agenda política. Quem não se lembra da postura assumida de concordância com a generalidade das medidas implementadas por Sócrates, no tempo da sua maioria, da tolerância no tempo da minoria até à reeleição presidencial e da agressividade discursiva após a reeleição? E quem não se lembra de que levou o seu partido a apoiar a candidatura presidencial de Freitas do Amaral e, depois, levou o mesmo partido a apoiar a reeleição de Mário Soares?
***
Enfim, tanto Cavaco Silva conhece o contexto dos seus destinatários como estes conhecem o contexto comunicacional do Presidente. Ora, como uns contextos e outros são controversos, mais de dialética do que de postura cooperativa, surgem inevitavelmente estas interpretações díspares e estas reiterações presidenciais. Mas isto também é democracia!
E vir dizer que não tira uma linha ao que disse a 22 de outubro, para reiterar as suas ideias, as intenções e a postura de que assumirá as suas responsabilidades, quadra bem com a sua personalidade determinada, mas não atesta a não inatacabilidade das suas posições nem o seu estilo de não contradição. Aliás, tanto fica mal ao político enveredar pelo estilo de vir sistematicamente explicar o que disse antes, por ter sido entendido ao invés das suas intenções discursivas, como vir a adotar a postura de estar sempre a reiterar o antes afirmado como se as circunstâncias fossem imutáveis e as críticas fossem sempre desajustadas e destrutivas.
Os políticos – e também Cavaco Silva – deveriam saber que as palavras são de quem as proferiu. Não obstante a paternidade discursiva, após a sua pronúncia perante um interlocutor e, por maioria de razão, se for público, as palavras deixam de pertencer em exclusivo ao emissor, passando a pertencer também ao recetor. A palavra pronunciada é património da Comunidade!

2015.10.28 – Louro de Carvalho

Das responsabilidades pelo aparecimento do Estado Islâmico

Reconhecer a responsabilidade pela catastrófica situação por que passam algumas regiões do Globo resolverá pouco. No entanto, vir alguém, mesmo tardiamente, confessar o reconhecimento da sua quota-parte de responsabilidade pelo aparecimento do autodenominado Islâmico (EI) servirá de inestimável contributo para a construção da verdade histórica para memória futura.
Na altura em que estão para ser conhecidas as conclusões da Comissão Chilcot, encarregada de conduzir um inquérito aberto em 2009 pelo governo trabalhista de então, presidido por Gordon Brown, para investigar a participação do Reino Unido na guerra do Iraque, o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair veio reconhecer, a 25 de outubro pp, alguma responsabilidade pela irrupção do EI.
Obviamente que a razão oficial para a invasão do Iraque pela força multinacional, iniciada a 19 de março de 2003 e terminada a 1 de maio (1.ª fase do que viria a ser um longo conflito, a Guerra do Iraque), insere-se no quadro da Guerra Global contra o Terrorismo, na sequência do derrube das Torres Gémeas de Nova Iorque e dos estragos sofridos pelo Pentágono, a 11 de setembro de 2001. E as consequências de tal ação têm-se revelado desastrosas, não se conseguindo prever, em vez do alastramento dos malefícios de tais consequências, um desfecho satisfatório no interesse dos povos envolvidos e no superior interesse da humanidade.
Ora, embora o objetivo fosse desarmar o regime iraquiano, encerrar o apoio de Saddam Hussein a organizações terroristas e libertar o povo iraquiano do regime de ditadura instalada, o pretexto foi a propalada existência de armas de destruição maciça, sendo que a ocasião se tornava propícia ao controlo in loco do negócio do petróleo por parte dos mentores das forças invasoras.
Quatro países (Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e Polónia) enviaram tropas na fase de invasão, cabendo aos Estados Unidos o envio da maior força, ficando em segundo lugar a prestação do Reino Unido. Outras 36 nações contribuíram com tropas e observadores depois de a invasão ter sido concluída. O Kuwait e a Arábia Saudita ofereceram os seus territórios para apoiar a força multinacional. E, no norte do Iraque, a milícia curda, conhecida como Peshmerga, também apoiou incondicionalmente a invasão.
Por sua vez, o Governo de Portugal, que foi o anfitrião da Cimeira das Lajes, nos Açores (Durão Barroso, George W. Bush, Jose Maria Aznar), a 17 de março, não podia deixar de intervir, pelo que o Governo enviou uma força de agentes da PSP e guardas da GNR para a força de estabilização de paz no Iraque, uma vez que, pelos vistos, Jorge Sampaio, na sua qualidade de comandante supremo das forças armadas se terá oposto ao envio de elementos das forças armadas qua tali.
Como se pode ver, Blair não é o único responsável pela Guerra do Iraque, que efetivamente levou ao derrube do ditador, que foi abatido brutalmente (de certo que não de forma democrática!), mas a situação, a seguir, tornou-se mil vezes mais insustentável. Quem não se deu conta dos várias novos episódios de “fogo amigo” a eliminar reiteradamente elementos das tropas aliadas, as mortes provocadas pelos suicidários homens-bomba e carros-bomba?
***
Porém, foi Tony Blair que veio declarar que a invasão do Iraque, em 2003, com base em “informações falsas” (afinal, não havia armas de destruição em massa, quer biológicas e químicas, quer nucleares), é a principal causa do surgimento do Estado Islâmico.
Apresentando reiteradamente o pedido de desculpas parciais pela Guerra do Iraque, o antigo primeiro-ministro trabalhista afirmou ao canal de televisão CNN: “Posso pedir desculpas pelo facto de as informações fornecidas pelos serviços secretos serem falsas”.
Todavia, não mostrou arrependimento por ter colaborado na queda de Saddam Hussein, revelando ser difícil sentir necessidade de se desculpar pela queda do ditador: “Mesmo hoje em 2015, julgo que é melhor ele não estar lá”. E é isto mesmo que eu não sei, dado que a indução da implementação de uma democracia por fotocópia fiel das democracias representativas de tipo ocidental não resultou, por não ter em conta as especificidades das culturas daqueles povos e não se configurar a emergência de um líder simultaneamente democrata e capaz de aglutinar em torno de si e do desígnio do respetivo Estado as diversas sinergias humanas possíveis: individuais e grupais.
Por seu turno, Tony Blair reconhece ter havido “alguns erros na planificação e algumas falhas na compreensão do que se passou depois de o regime ter caído”.
Entretanto, é de assinalar que Blair não surgiu por acaso na Cimeira das Lajes, ou seja, não comprometeu o Reino Unido na Guerra do Iraque só em 2003. Pelo contrário, segundo o que indicam documentos obtidos pelo jornal Mail on Sunday, o antigo primeiro-ministro britânico ter-se-á comprometido a juntar-se aos Estados Unidos na Guerra do Iraque um ano antes da invasão de 2003.
As revelações focam-se num documento alegadamente redigido por Colin Powell, antigo secretário de Estado norte-americano, e por si apresentado, a 28 de março de 2002, ao então Presidente dos Estados Unidos George Bush, uma semana antes do encontro do líder norte-americano com Blair no seu rancho em Crawford, no Texas. Segundo o jornal, Powell escrevera: “Sobre o Iraque, Blair vai estar connosco devendo ser necessárias operações militares”, pois, “ele está convencido relativamente a dois pontos: a ameaça é real e o sucesso contra Saddam vai render mais sucesso regional”.
Certamente que o aludido “sucesso regional” não era a paz ou a democracia, mas o interesse geoestratégico que incluía o negócio do petróleo e a vigilância sobre a produção e proliferação das armas de destruição maciça
O Mail on Sunday revela que o mencionado documento e outros, de teor sensível, integravam um conjunto de 'e-mails' secretos mantidos no servidor privado da ora candidata presidencial democrata Hillary Clinton a cuja revelação os tribunais norte-americanos a forçaram.
Segundo algumas fontes, Powell terá assegurado a Bush que o Reino Unido iria seguir a liderança norte-americana no Médio Oriente e, de acordo com outras, Blair estaria na disposição de apresentar “linhas estratégicas” para fortalecer o apoio público à Guerra do Iraque.
As recentes declarações de Tony Blair, que foi primeiro-ministro entre 1997 e 2007, contrariam a reiterada negação de ter corrido para a guerra, sendo que, como já foi referido, sob a sua liderança, a Grã-Bretanha deu o segundo maior contributo, em termos no fornecimento de tropas, para a invasão, tendo as forças britânicas permanecido estacionadas no país até 2011 e tendo esta decisão de apoiar a invasão do Iraque criado um mal-estar popular na Grã-Bretanha que tem perseguido o Partido Trabalhista de Blair desde então.
***
Todavia, não pode Blair nem nenhum de nós esquecer que o aparecimento e o crescimento do Estado Islâmico e, em geral, a radicalização do islamismo resultam em muito boa parte dos movimentos que espoletaram a situação designada como primavera árabe, que consiste basicamente na onda organizada de derrube dos regimes ditatoriais, entre outros países, na Tunísia, na Líbia, no Iraque e na Síria – apoiada pelos países ditos ocidentais, sem que se cuidasse de duas coisas: a idiossincrasia de cada país e seus contextos e do perfil político dos líderes que ascenderiam ao poder. Por exemplo, se a execução de Saddam fora um ato de escandalosa barbárie pública e publicitada, a de Kadafi não o foi menos!
E não se pode esquecer que, além da situação insustentável nos países onde a guerra civil, apoiada pelo exterior (às forças da situação e às forças da oposição), um epifenómeno de proporções assustadoras alastra pela Europa, com repercussões no mundo inteiro: milhares e milhares de famílias sentem-se obrigados a fugir das suas casas e terras e a procurar refúgio noutros lugares, muitas vezes, em condições de extrema precariedade – esbarrando contra muros de várias espécies (físicos – de pedra e betão; e humanos – militares, policiais e de movimentos xenófobos).
Depois – enquanto, nos países de origem, se assiste ao uso de armas de destruição em massa; aos assassinatos indiscriminados, às decapitações, ao rapto e sequestro de seres humanos, ao tráfico de mulheres, ao alistamento militar de crianças (os meninos-soldados), às perseguições por motivos religiosos e étnicos, à devastação de lugares de culto, à destruição do património cultural e a outras inumeráveis atrocidades – em países de trânsito e, até nalguns ditos de acolhimento, verificam-se muitas situações de exploração sobre refugiados e migrantes, frustrando-lhes a esperança, conduzindo-os à desagregação familiar, à invalidez e à morte, bem como o acolhimento em massa, carregado de atos burocráticos, e a postura de pensamento e de ação de “algumas forças políticas, dirigentes governativos e agentes de autoridade em diversos países da União Europeia contra os migrantes e refugiados, incluindo as instituições europeias que andam de cimeira em cimeira enquanto as pessoas sofrem”.
***
Enfim, parece-me pertinente exigir que os diversos países, através dos seus líderes, venham a terreiro reconhecer as suas responsabilidades e concertem uma estratégia diversificada em relação a estas populações em perigo, designadamente prestando urgentemente o acolhimento óbvio, integrando os que voluntariamente o desejem, contribuindo seriamente para a criação das condições de regresso e permanência nos países de proveniência e eliminando as causas da presente situação. Para tanto, importa fazer cessar o fornecimento de armas de parte a parte e elaborar um plano participado de recuperação e desenvolvimento que obvie às situações de destruição e de carência e faça relevantar as condições de dignidade dos cidadão e a convivência pacífica rumo ao progresso e ao bem-estar.

2015.10.27 – Louro de carvalho