O trecho do Evangelho selecionado para o 4.º domingo do Tempo
Comum no Ano B (Mc 1,
21-28) relata-nos o
episódio em que Jesus, a um sábado, movido pelo sentido de pertença ao povo de
Israel, entra na sinagoga de Cafarnaum para a liturgia sinagogal e, impelido
pela paixão messiânica de pregar o dinamismo do Reino, começa a ensinar e todos
se maravilham com a sua doutrina, uma doutrina nova, e porque os ensinava com
autoridade e não como os escribas.
Estamos na primeira parte do Evangelho de Marcos (cf Mc 1,14-8,30) cujo objetivo é levar-nos à
descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. E Marcos fá-lo
através dum percurso catequético em que nos convida a acompanhar a revelação de
Jesus, escutando as suas palavras e o seu anúncio, fazendo-nos discípulos da sua
proposta de salvação/libertação – um percurso de descoberta a culminar em Mc
8,29-30 com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe “Tu és o Messias” (“sy
eî ho Khristós”),
que é a confissão que se espera de cada crente, depois de ter pari passu acompanhado o percurso de
Jesus.
O trecho desta dominga aparece quase no início desta
caminhada de encontro com o Messias e o seu anúncio de salvação. Rodeado pelos
primeiros discípulos, Jesus começa a revelar-Se como o libertador, que está no
meio dos homens para lhes apresentar a salvação. É Cafarnaum (em hebraico, “Kfar Nahum”, ou seja, a “aldeia de Naum”), cidade na costa noroeste do Lago
Kineret (Mar da Galileia), onde Jesus se vai instalar durante
o tempo do seu ministério na Galileia, pois ali viviam vários dos discípulos –
Simão e seu irmão André, Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João.
A comunidade está reunida na sinagoga de Cafarnaum em dia de
sábado. Jesus, recém-chegado, entra como bom judeu para participar na liturgia
sabática. A celebração comunitária começava com a “profissão de fé” (cf Dt 6,4-9), a que se seguiam orações, cânticos
e duas leituras (uma da
Torah e outra dos Profetas), o comentário às leituras e as bênçãos. É provável que Jesus tivesse
sido convidado para fazer a leitura dos Profetas e tecer o comentário às
leituras feitas. Fê-lo de forma original, diferente dos comentários que as
pessoas estavam habituadas a ouvir aos estudiosos das Escrituras. E as pessoas
ficaram maravilhadas com as palavras de Jesus, “porque os ensinava como tendo
autoridade (“hôs exousían ékhôn”) e não como os escribas” (Mc 1,22).
A referência à autoridade (em grego, “exousía”;
em latim, “potestas” ou “auctoritas”) das suas palavras sugere que Jesus
vem de Deus e a sua doutrina tem a marca de Deus. “Auctoritas” é nome cognato do verbo “augeo”, que significa aumentar, fazer crescer, valorizar, garantir;
e “potestas” é nome cognato do verbo
“posssum”, que significa poder,
tornar possível, influenciar mudar, mas sem ter de utilizar o “imperium”, o poder absoluto e ilimitado,
o poderio militar que tudo varre. A “autoridade” que se revela nas palavras de
Jesus manifesta-se em ações concretas, que secundam a autoridade das palavras
servindo-lhes de aval, caução ou garantia.
Dom António Couto, Bispo de Lamego, parte da
declaração apocalíptica de Deus “Eis que
faço novas todas as coisas” (Ap 21,5) para comentar
este passo do Evangelho. E frisa que são de tal modo novas as coisas que Deus
faz que “ninguém pode dizer: ‘Já o sabia’.”
(Is 48,7). Assim, na sinagoga deles (dos habitantes de Cafarnaum e de
alguns dos discípulos),
Jesus “ensinava e ordenava tudo de forma nova”, a ponto de inutilizar “todas as
comparações e catalogações”.
Com efeito, como verifica o prelado especialista em
Sagrada Escritura, Jesus “não era membro de nenhuma confraria, academia,
partido, ordem profissional ou instituição, que à partida lhe conferisse algum
crédito, alguma autoridade” e “nenhum crédito, nenhum currículo, nenhum
diploma, o precedia”. Na verdade, o seu poder e autoridade estavam no ato de
dizer e/ou fazer. E os cafaurnitas, tomados de espanto, verificaram ali que
saía dos seus lábios e das suas mãos um mundo novo, ordenado segundo a bitola
da Criação.
Diz o venerando prelado que “um vendaval manso de graça
e de bondade encheu Cafarnaum e transvazava como perfume novo de amor e louvor
por toda a região da Galileia e da missão” (Mc 1,28), tornando-se evidente que a cidade “não podia conter ou reter tamanha
vaga de perfume e lume novo”: “a fama de Jesus divulgou-se por toda a parte em toda a
região da Galileia”.
As pessoas de Cafarnaum sabiam bem o que e
como diziam os escribas. Repetiam até à exaustão as velhas doutrinas como se
fossem peças museológicas e valorizavam os inúmeros preceitos que os doutores
vinham impondo ao povo, sem que eles lhes tocassem com um dedo sequer.
Recitando no vazio, compraziam-se nas suas próprias palavras e nada acontecia.
Porém, tendo Jesus começado a falar, as pessoas sentiram “um estremecimento
novo” (cf Is 66,2.5). Foi como se acabassem de escutar a
palavra há tanto tempo esperada e desejada.
Estranhamente, como anota Dom António Couto, nada nos
diz aqui o narrador acerca do conteúdo do ensinamento de Jesus em Cafarnaum, o
que sugere que, mais do que as suas palavras, o que interessa verdadeiramente é
a pessoa de Jesus.
Na sequência das palavras de Jesus e que transmitem
aos ouvintes um sinal incontornável da presença de Deus, surge “um homem com um
espírito impuro”. Os judeus estavam convencidos que todas as doenças eram
provocadas por espíritos maus que se apropriavam dos homens e os tornavam
prisioneiros. As pessoas afetadas por tais males deixavam de cumprir a Lei e,
ficando em situação de impureza, estavam afastadas de Deus e da comunidade. Na
ótica judaica, os espíritos maus que afastavam os homens da órbita de Deus
tinham um poder absoluto que os homens não podiam ultrapassar. Cria-se que só
Deus, com o seu poder e autoridade, era capaz de vencer os espíritos maus e
devolver aos homens a vida, a dignidade e a liberdade perdidas.
Por conseguinte, as pessoas de Cafarnaum sabiam
bem o que eram e como se faziam os exorcismos, muito em voga ao
tempo: longos, esquisitos, complexos, cheios de ritos e fórmulas mágicas. Jesus,
porém, profere uma palavra criadora: “Cala-te
e sai desse homem” (“phimôthêti kaì éxelthe ex autoû”), e tudo ficou resolvido (cf Mc 1,25-26).
Na verdade, Marcos, com singular poder evocador, põe
em cena o espírito mau, que domina um homem ali presente, a interpelar Jesus.
Sugere que, ante da libertação que Jesus veio trazer, os espíritos maus,
responsáveis pelas cadeias e grilhões que oprimem os homens, ficam inquietos
por sentirem que o seu poder sobre a humanidade chegou ao fim.
E a ação desta cura constitui a prova inequívoca de
que Jesus traz a libertação que vem de Deus, ou seja, pela ação de Jesus, Deus
vem ao encontro do homem para o salvar de tudo o que o impede de ter vida em
plenitude.
Para Marcos, este episódio é uma apresentação do programa de
ação de Jesus: vem ao encontro dos homens para os libertar de tudo o que os aprisiona
e lhes rouba a vida; já está em marcha a libertação que Deus oferece à
humanidade; o Reino de Deus instalou-se no mundo: Jesus, cumprindo o desígnio de
Deus, pela palavra e pela ação, renova e transforma em homens livres todos
aqueles que vivem prisioneiros do egoísmo, do pecado e da morte.
E, face àquele prodígio nunca visto da cura dum homem
possesso, as pessoas perguntam “ O que é isto?” (“tì estin toûto;” – Mc 1,27). Nova doutrina, nova autoridade!
Trata-se apenas do início da jornada do anúncio do Evangelho
de Deus (Mc 1,14). Logo a abrir o Evangelho, Marcos
ensina que a jornada iniciada naquele sábado em Cafarnaum extravasa os cânones
habituais: indo de madrugada a madrugada, faz aflorar a subjacência da
madrugada da Ressurreição. Com efeito Jesus começa de manhã na sinagoga;
caminha 30 metros para sul, e entra, pelo meio-dia, na casa de Pedro e levanta
da febre a sogra de Pedro; à tardinha, posto o sol, no primeiro dia da semana,
toda a cidade de Cafarnaum está reunida diante da porta daquela casa, para
ouvir Jesus e ver curados por Ele os seus doentes; de madrugada, Jesus sai
sozinho para rezar; e os discípulos correm a procurá-Lo para O trazerem de
volta a Cafarnaum, pois todas as pessoas O querem ver e ter – ninguém O quer
perder.
Porém, o anúncio do Evangelho tem de prosseguir noutros
lugares. Com o “vamos a outros lugares” (Mc 1,38), Jesus desinstala e agrega si os discípulos
para o trabalho de anúncio da Boa Nova por toda a parte e a todos, com estas marcas:
ensinar, libertar, acolher, curar, recriar.
E a caraterística do arauto do Evangelho não assenta
na capacidade deste, mas na sua fidelidade Àquele que lhe confia a mensagem que
deve anunciar, pois é em Seu nome que diz o que diz
e que diz como diz; e no enviado se há de ver
o rosto do enviante, pois no enviado é Deus que visita o seu povo. E, cheio de
Deus, Jesus leva Deus aos seus irmãos. É esta a sua autoridade.
A passagem do Livro do Deuteronómio assumida como 1.ª
leitura desta dominga (Dt
18,15-20) anuncia um
profeta novo, como Moisés, o que nos abre, desde logo, o caminho para Jesus, a
Quem Deus confiará as palavras que há de dizer ao Povo.
Para os teólogos deuteronomistas,
Moisés é o modelo do verdadeiro profeta. Isto significa que Deus está na origem
e no centro da vocação de Moisés. Não foi este que, por sua iniciativa, se
candidatou à missão profética, nem conquistou, pela sua ação ou qualidades, o
direito à profecia. A iniciativa foi de Deus que gratuitamente o escolheu, chamou
e enviou em missão. A consagração do profeta resulta da ação gratuita de Deus
que, segundo critérios muitas vezes ilógicos na ótica humana, escolhe aquela
pessoa em concreto, com as suas qualidades e defeitos, para a enviar aos seus
irmãos.
Depois, a mensagem transmitida não
era a mensagem de Moisés, mas de Deus. O verdadeiro profeta não é o que
transmite uma mensagem pessoal ou diz o que os homens querem ouvir, mas é o
que, frontal e corajosamente, testemunha fielmente o desígnio de Deus para os
homens e para o mundo, pelo que é preciso discernir entre falsa e verdadeira
profecia. Porém, as palavras do profeta devem ser escutadas e acolhidas cuidadosamente,
pois são palavras de Deus. E Deus pedirá contas a quem fechar ouvidos e coração
aos desafios que Deus, pelo profeta, apresenta ao mundo. Ora, Jesus nunca ousará
dizer o que Deus não Lhe mandou, muito
menos falará em nome de outros deuses. Mas ser-nos-ão pedidas contas se não O
escutarmos.
Então Jesus é o profeta como Moisés e o profeta mais
do que Moisés, pois a sua boca vem repleta das palavras de Deus (cf Dt 18,18), que perpassam as mãos e o coração,
muito diferente dos escribas e dos falsos profetas e do povo rebelde, que, no
deserto, dispensam a Palavra de Deus, ávidos de pão e carne. O que recolheu
menos, no deserto, diz-nos o relato do Livro dos Números 11,31-35, recolheu
4500 kg de codorniz (cf Nm
11,32). E, tendo
começado a meter a carne à boca, fizeram-no com tanta avidez que morreram de
náusea e foram encontrados mortos, ainda com a carne entre os dentes, por
mastigar (cf Nm 11,33). Por isso, como acentua António
Couto, urge libertar mãos, boca e coração, pois “vive-se da Palavra” e “morre-se
de náusea”.
Face à urgência de pormos a vida em conformidade com a
profecia, a santidade e o amor de que Jesus é autor e arauto, há que reler
Paulo na passagem (1Cor
7,32-35) que apela à
Primeira e Última Grandeza perante a qual tudo fica relativizado – a única grande
devoção, cheia de amor, a nortear a nossa vida, é a total dedicação a Cristo,
sem oscilação nem distração.
Subjacente às afirmações
que Paulo faz no trecho proposto como 2.ª leitura, está a convicção de que as
realidades terrenas são passageiras e efémeras e nunca devem ser absolutizadas.
Não se trata de propor uma evasão do mundo ou uma espiritualidade descarnada,
insensível, alheia ao amor, à partilha, à ternura, mas de avisar que as
realidades desta terra não podem ser o objetivo final e único da vida do homem.
É uma reflexão que nos leva a repensar as nossas prioridades e a não ancorar a
nossa vida em realidades transitórias.
Por consequência, é bom que nos persuadamos de que não
podemos adormecer ou entorpecer, de modo a ficarmos inativos e indiferentes. O
Salmo 95 (hoje, salmo
responsorial à 1.ª leitura), que é, para os judeus fiéis, a oração de ingresso ou de entrada no
sábado (rezam-no
sexta-feira ao pôr-do-sol), e é, para os cristãos, o invitatório recitado em quase todas as manhãs,
deve ser o despertador que nos põe em alerta permanente para a adoração a Deus
e para a escuta da sua Palavra. “Se hoje ouvirdes a voz do Senhor, não fecheis os vossos corações”, antes “Vinde,
prostremo-nos em terra, adoremos o Senhor que nos criou, pois Ele é o
nosso Deus e nós o seu povo, as ovelhas do seu rebanho”. Aqui subjaz todo o nosso destino último.
2021.01.31 – Louro de Carvalho