domingo, 31 de dezembro de 2023

Viver na gratidão e na esperança cristã

 

Horas antes do início do ano novo de 2024, em Roma, o Papa Francisco encorajou as pessoas a viverem esta última noite do ano “de forma diferente de uma mentalidade mundana”, com a gratidão e a esperança cristãs que nascem da relação “com Deus e com os irmãos”.

Ao celebrar as I Vésperas da solenidade de Santa Maria Mãe de Deus e o Te Deum de ação de graças de fim de ano, na basílica de São Pedro, no Vaticano, o Santo Padre realçou que “a fé nos permite viver esta hora de forma diferente de uma mentalidade mundana”.

“A fé em Jesus Cristo, Deus encarnado, nascido da Virgem Maria, dá um novo modo de perceber o tempo e a vida. Eu resumi-lo-ia em duas palavras: gratidão e esperança”, declarou o Papa.

“Alguém poderia dizer: ‘Mas não é o que todos fazem nesta última noite do ano? Todos agradecem, todos esperam, crentes ou não crentes’. Talvez possa parecer que seja assim, e quem sabe o seja! Mas, na realidade, a gratidão mundana, a esperança mundana são aparentes; falta-lhes a dimensão essencial que é a da relação com o Outro e com os outros, com Deus e com os irmãos”, disse, fiel à preconização da fraternidade universal, que alguns movimentos cívicos celebram a 1 de janeiro.

Porém, a fraternidade de que o Papa Francisco se faz arauto e de que um falecido Bispo da Beira (Moçambique), D. Sebastião Soares de Resende, se fez paladino, querendo que o Concilio Vaticano II definisse como dogma “Todo o homem é meu irmão”, é uma fraternidade extensiva a todos (não só aos seres humanos do sexo masculino) e radica no cerne do Evangelho. Pressupõe que todos temos um mesmo Pai, Deus, que tem um rosto maternal de misericórdia.

Essa gratidão e esperança mundanas, disse o Papa, “estão focadas no eu, nos seus interesses e, assim, têm o fôlego curto, não vão além da satisfação e do otimismo”.

“Pelo contrário, nesta Liturgia, que culmina com o grande hino Te Deum laudamus, respira-se uma atmosfera completamente diferente: a do louvor, da admiração, da gratidão. E isto acontece, não pela grandiosidade da Basílica, não pelas luzes e cantos – estas coisas são, antes, a consequência –, mas pelo Mistério que a antífona do primeiro salmo assim expressou: ‘Oh admirável intercâmbio! O Criador do género humano, assumindo corpo e alma, quis nascer de uma virgem; e, feito homem, tornou-nos participantes da sua própria divindade’.”.

O Santo Padre disse que “a Liturgia nos faz entrar nos sentimentos da Igreja; e a Igreja, por assim dizer, aprende-os com a Virgem Mãe”.

“Pensemos em qual teria sido a gratidão no coração de Maria, enquanto olhava para Jesus recém-nascido. É uma experiência que somente uma mãe pode fazer, e que, todavia, Nela, na Mãe de Deus, tem uma profundidade única, incomparável”, considerou.

“Maria sabe, Ela sozinha junto com José, de onde vem aquele Menino. Mas está ali, respira, chora, tem necessidade de comer, de ser coberto, de que se Lhe prestem cuidados. O Mistério dá espaço à gratidão, que aflora na contemplação do dom, na gratuidade, enquanto sufoca na ansiedade de ter e de aparecer”. Esta é a grande Epifania de Deus, em que se tornam indissociáveis: o Natal, o anúncio do anjo aos pastores das cercanias de Belém, os cantares angélicos, a adoração dos magos e, mais tarde, o batismo no Jordão.   

O papa Francisco disse que “a Igreja aprende a gratidão da Virgem Mãe. E aprende também a esperança”.

O sentimento natalício de Maria e da Igreja não é otimismo, é outra coisa: é fé no Deus fiel às suas promessas; e esta fé assume a forma da esperança na dimensão do tempo, poderíamos dizer ‘em caminho’. O cristão, como Maria, é um peregrino de esperança. E, precisamente, este será o tema do Jubileu de 2025: Peregrinos de Esperança”, explicou o Bispo de Roma.

Referindo-se, em particular, ao Jubileu de 2025, que terá início com a abertura da Porta Santa da Basílica de São Pedro, em dezembro de 2024, o Papa encorajou as pessoas a trabalharem “cada qual no próprio âmbito”, para fazer de Roma “um sinal de esperança para quem nela vive e para quem a visita”. Com efeito, “uma cidade mais habitável para os seus cidadãos é também mais acolhedora para todos”, garantiu.

O Papa Francisco disse que “uma peregrinação, especialmente se for empenhativa, exige uma boa preparação”. “É por isso que o próximo ano, que antecede o Jubileu, será dedicado à oração. E que melhor mestra poderíamos ter do que a nossa Santa Mãe?”

“Aprendamos dela a viver cada dia, cada momento, cada ocupação com o olhar interior voltado para Jesus”, exortou.

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Também no último dia de 2023, o papa Francisco lembrou o seu antecessor, Bento XVI, que morreu há um ano.

Na mensagem depois da oração do Angelus, Francisco disse que, “há um ano, o Papa Bento XVI concluía o seu caminho terreno, depois de ter servido a Igreja com amor e sabedoria”.

“Temos por ele tanto afeto, tanta gratidão, tanta admiração. Do céu nos abençoe e nos acompanhe. E um aplauso para Bento XVI”, rogou.

Nascido a 16 de abril de 1927, na cidade alemã de Marktl, Joseph Aloisius Ratzinger foi eleito papa em abril de 2005, sucedendo são João Paulo II, ao lado do qual serviu durante muitos anos como prefeito da então Congregação (hoje Dicastério) para a Doutrina da Fé.

Durante o seu pontificado, publicou três encíclicas: Deus Caritas EstSpe Salvi e Caritas in Veritate.

Em 11 de fevereiro de 2013, aos 85 anos, Bento XVI tornou-se o primeiro papa a renunciar em 600 anos. Depois da sua renúncia, o Papa que é considerado um dos maiores teólogos da História da Igreja Católica, passou a morar no mosteiro Mater Ecclesiae, um pequeno convento situado no interior do Vaticano, dedicando a sua vida à oração e ao estudo.

Bento XVI morreu aos 95 anos de idade. A sua morte foi confirmada, a 31 de dezembro de 2022, pelo diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, Matteo Bruni: “É com tristeza que vos informo que o papa emérito Bento XVI morreu hoje, às 9h34, no Mosteiro Mater Ecclesiae, no Vaticano.”

Como foi revelado mais tarde, as suas últimas palavras foram em Italiano: “Signore, ti amo” (Senhor, eu te amo).

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Também neste dia se poderia celebrar São Silvestre, se não fosse domingo.

São Silvestre nasceu em Roma, foi eleito papa em 314, a um ano do edito de Milão, por meio do qual o imperador Constantino concedeu liberdade de culto aos cristãos.

No seu pontificado, viu aflorar-se uma perigosa agitação doutrinária, com origem na pregação de Ario, sacerdote alexandrino que negava a divindade da segunda Pessoa e, consequentemente, o mistério da Santíssima Trindade.

Diante disso, Constantino convocou bispos para abordar a questão. O Papa enviou os seus representantes Ósio, bispo de Córdova, e dois presbíteros.

Foi o primeiro Concílio Ecuménico (universal) – aliás, o segundo, porque o primeiro foi o de Jerusalém, no tempo apostólico – que reuniu em Niceia, no ano 325, mais de 300 bispos, com o próprio Imperador a presidir em lugar de honra.

Os padres conciliares (é a designação dos bispos em concílio) não tiveram dificuldade em fazer prevalecer a doutrina recebida dos Apóstolos sobre a divindade de Jesus Cristo, proposta, energicamente, pelo bispo de Alexandria, Santo Atanásio. A heresia de Ario foi condenada sem hesitação e a ortodoxia trinitária ficou outorgada no chamado Símbolo Niceno ou Credo, ratificado por São Silvestre.

Constantino também doou ao Papa Silvestre o palácio imperial de Latrão, que foi a residência papal até Leão XI. Junto a esse palácio, mais tarde, foi construída a Basílica de São João de Latrão.

Foi também no seu pontificado que se ergueu a antiga Basílica de São Pedro.

São Silvestre I morreu em 31 de dezembro de 335 e foi sepultado no cemitério de Priscila. Foi o primeiro papa que não morreu mártir, depois de 32 papas. Os seus restos mortais foram transladados por Paulo I (757-767) para a igreja erguida em sua memória.

Neste último dia do ano, agradeça-se a Deus pelo ano que passou e peça-se pelo que se inicia, por intercessão de são Silvestre, com esta oração:

“Deus, nosso Pai, hoje é o último dia do ano. Nós vos agradecemos todas as graças que nos concedestes através dos vossos santos. E, hoje, pedimos a São Silvestre que interceda a vós por nós! Perdoai as nossas faltas, o nosso pecado e dai-nos a graça da contínua conversão.

"Renovai as nossas esperanças, fortalecei a nossa fé, abri a nossa mente e os nossos corações, não nos deixeis acomodar em nossas posições conquistadas, mas, como povo peregrino, caminhemos sem cessar rumo aos Novos Céus e à Nova Terra a nós prometidos. Senhor, Deus nosso Pai, que o Vosso Espírito Santo, o Dom de Jesus Ressuscitado, nos mova e nos faça clamar, hoje e sempre: “Abba! Pai!” Venha a nós o vosso Reino de paz e de justiça. Renovai a face da Terra, criai no homem um coração novo! Amém."

2023.12.31 – Louro de Carvalho

Crescia, robustecia-se, enchia-se de sabedoria e a graça estava com Ele

 

O Deus que assumiu o corpo de menino frágil e se expôs aos homens no presépio encontrou abrigo numa família humana, a família de José e de Maria, dois jovens esposos de Nazaré, aldeia situada nas colinas da Galileia. Ainda em contexto de celebração do Natal do Senhor, a liturgia insta a que olhemos para a Sagrada Família e a vejamos como modelo das nossas famílias.

Evangelho (Lc 2,22-40) coloca-nos no Templo de Jerusalém ante a Sagrada Família, com Jesus a ser apresentado a Deus, em consonância com a Lei judaica. O quadro mostra uma família fiel e crente, que escuta a Palavra, procura concretizá-la na vida e consagra a Deus os seus membros. É uma cena fortemente interpeladora Temos aqui uma catequese amadurecida e refletida, a ensinar quem é Jesus e qual a sua missão no Mundo.

O evangelista vinca a fidelidade desta família à Lei do Senhor, deixando claro que Jesus, desde o início da sua peregrinação terrena, viveu na fidelidade ao desígnio do Pai e aos mandamentos. A sua missão passa pelo cumprimento pleno da vontade do Pai.

Após a apresentação de Jesus ao ritual estabelecido pela Lei, acolhem-No duas personalidades proféticas: Simeão e Ana. Representam o Israel fiel que espera, em ânsia, a sua libertação e a restauração do reinado de Deus sobre o seu Povo.

Simeão (nome que significa “escutador”) era um homem “justo e piedoso, que esperava a consolação de Israel”. São muito sugestivos os seus gestos e palavras. Toma Jesus nos braços e apresenta-O ao Mundo, definindo-O como “a salvação” que Deus oferece “a todos os povos”, “luz para se revelar às nações e glória de Israel”. Jesus é, assim, reconhecido pelo Israel fiel como o Messias libertador e salvador, que Deus enviou a todos os povos da terra. Eis a proclamação da “universalidade da salvação de Deus”! Deus não tem já um Povo eleito, mas a salvação é para todos os povos, independentemente da etnia, da cultura, das fronteiras, dos esquemas religiosos. As palavras dirigidas a Maria (“este menino foi estabelecido para que muitos caiam ou se levantem em Israel e para ser sinal de contradição; e uma espada trespassará a tua alma”) aludem à divisão que a doutrina de Jesus provocará e ao resultado dessa divisão, o drama da cruz.

Ana (nome que significa “graça”) é também figura do Israel pobre e sofredor (“viúva”), que se manteve fiel a Javé (não voltou a casar), que espera a salvação de Deus. Reconhecendo no menino a salvação anunciada por Deus, falava dele “a todos os que esperavam a redenção de Jerusalém”. A palavra utilizada por Lucas para falar de libertação é a palavra grega “lýtrôsis” (“resgate”), utilizada no Êxodo para falar da libertação da escravidão do Egito. Jesus é, pois, apresentado por Lucas como o Messias libertador, que guiará o seu Povo do reino da escravidão para o reino da liberdade. A apresentação do primogénito no Templo celebrava a libertação do Egipto e a passagem da escravidão para a liberdade (cf Ex 13,11-16).

O texto termina com a referência ao resto da infância de Jesus e ao crescimento do menino em “sabedoria” e “graça” – atributos que lhe vêm do Pai e que atestam a sua divindade.

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primeira leitura (Sir 3,3-7.14-17a [versão grega: 3,2-6.12-14]) apresenta, em termos práticos, algumas atitudes que os filhos devem ter para com os pais. É uma forma de concretizar o amor de que fala a segunda leitura. O vocábulo que enquadra este conjunto de conselhos do sábio Ben Sirá é “honrar” (repete-se cinco vezes, nestes versículos).

A expressão “honrar os pais” remete para o Decálogo do Sinai (“honra teu pai e tua mãe” – Ex 20,12). O verbo aí utilizado é “kabad”, traduzível por “dar glória”, “dar peso”, “dar importância”. Assim, honrar os pais é dar-lhes o devido valor e reconhecer a sua relevância, como instrumentos de Deus, fonte de vida. Esta condição estatutária dos pais deve criar, nos filhos, a gratidão. A gratidão, mais do que declaração de intenções, é sentimento que implica atitudes práticas. E Jesus Ben Sirá aponta algumas: ampará-los na velhice e não os desprezar, nem abandonar; assisti-los materialmente – sem inventar desculpas –, quando já não podem trabalhar; não fazer nada que os desgoste; escutá-los, ter em conta as suas orientações e conselhos; ser indulgente para com as limitações da idade ou da doença.

No contexto da época em que Ben Sirá escreve, por trás destas indicações aos filhos, estará a preocupação em manter vivos os valores tradicionais, que os antigos preservam cuidadosamente, mas que os mais jovens, com alguma ligeireza, negligenciam.

Como recompensa desta atitude de honrar os pais, Ben Sirá promete o perdão dos pecados, a alegria, a vida longa e a atenção de Deus. Num tempo que a noção de vida eterna ainda não entrara na catequese de Israel, a recompensa em causa é vista como a forma de Deus gratificar o comportamento do homem justo, enquanto filho que cumpre os deveres para com os pais.

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segunda leitura (Cl 3,12-21) marca a dimensão do amor que deve brotar dos gestos dos que vivem em Cristo e aceitaram o convite para serem o Homem Novo. Esse amor deve atingir todos os que partilham o espaço familiar e traduzir-se em atitudes de compreensão, de bondade, de respeito, de partilha, de serviço.

A Igreja de Colossos, destinatária desta carta, foi fundada por Epafras, amigo de Paulo, pelos anos 56/57. Paulo nunca terá visitado aquela comunidade. Nem todos estão certos de que Paulo tenha escrito a Carta aos Colossenses. O vocabulário utilizado e o estilo de autor estão longe das cartas indiscutivelmente paulinas; e a teologia apresenta elementos não usados nas outras cartas atribuídas a Paulo. Assim, é difícil definir o ambiente em que o texto surgiu.

Porém, os defensores da autoria paulina sustentam que a carta foi escrita quando Paulo estava prisioneiro em Roma (anos 61/63). Epafras teria visitado o apóstolo na prisão, dando alarmantes notícias: os Colossenses corriam o risco de afastamento do Evangelho, mercê de doutrinas ensinadas por doutores de Colossos, que misturavam práticas legalistas (há tendências judaizantes) com especulações acerca do culto dos anjos e do seu papel na salvação; exigiam um ascetismo rígido e o cumprimento de certos ritos de iniciação, destinados a comunicar aos crentes conhecimento mais adequado dos mistérios ocultos e levá-los, por vários graus de iniciação, à vivência de uma vida religiosa mais autêntica.

Sem refutar diretamente tais doutrinas, a carta afirma a absoluta suficiência de Cristo e assinala o seu lugar proeminente na criação e na redenção. O trecho em apreço pertence à segunda parte da carta. Verificada a supremacia de Cristo na criação e na redenção, o emitente adverte que a união com Cristo traz consequências a nível de vivência prática, implicando renunciar ao “homem velho” do egoísmo e do pecado e “revestir-se do Homem Novo”. 

Os filhos e filhas amados de Deus devem imitar o ser de Deus, que lhes foi revelado em Cristo. Cristo, o Filho de Deus que veio ao encontro dos homens, é a referência fundamental à volta da qual se desenrola e se constrói a vida dos discípulos. Quem adere a Cristo e se dispõe a segui-Lo, deve vestir a “roupa” que Cristo vestia, isto é, deve apresentar-se como Ele, dispor-se a viver ao jeito d’Ele, realizar as obras que Ele realizava.

O estilo de vida do seguidor de Cristo deve, pois, estar marcado por atitudes de misericórdia, de bondade, de humildade, de mansidão, de paciência; deve privilegiar, na relação com os irmãos, o perdão, a compreensão, a indulgência. Quem está unido a Cristo, que vive em Cristo, deve ser capaz de amar sempre, sem medida, a fundo perdido, até ao dom total de si, como Cristo fez.

Havia catálogos de exigências similares nos discursos éticos dos gregos. Aqui, a novidade está na fundamentação: tais exigências resultam da íntima relação do cristão com Cristo; viver em Cristo implica viver, como Ele, no amor total, no serviço, na disponibilidade, no dom da vida.

Apresentado o ideal da vida cristã em linhas gerais, a carta aplica-o ao âmbito da família. Às mulheres, recomenda o respeito para com os maridos (a referência à submissão deve ser vista no contexto da época); aos maridos, insta a amar as esposas, excluindo qualquer atitude de domínio; aos filhos, recomenda a obediência aos pais; aos pais, com intuição pedagógica, pede que não sejam demasiado severos para com os filhos, pois isso pode impedir o desenvolvimento das suas capacidades e da sua autonomia. É a caridade (“agapê”) – como amor de doação, de entrega, a exemplo de Jesus, que amou até ao dom da vida – que deve presidir às relações na família. Nela se deve manifestar o Homem Novo, o transformado por Cristo e que vive segundo Cristo.

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Por fim, transcrevo, do Papa São Paulo VI, a alocução pronunciada em Nazaré, a 5 de janeiro de 1964, sob o título “As lições de Nazaré”, que são objeto da segunda leitura do Ofício de Leitura da Festa da Sagrada Família:

“Nazaré é a escola onde se começa a compreender a vida de Jesus: a escola do Evangelho. Aqui se aprende a olhar, a escutar, a meditar e a penetrar o significado, tão profundo e tão misterioso, dessa manifestação tão simples, tão humilde e tão bela, do Filho de Deus. Talvez se aprenda até, insensivelmente, a imitá-Lo. Aqui se aprende o método que nos permitirá compreender quem é o Cristo. Aqui se descobre a necessidade de observar o quadro da sua permanência entre nós: lugares, tempos, costumes, linguagem, práticas religiosas, tudo aquilo de que Jesus Se serviu para Se revelar ao Mundo. Aqui tudo fala, tudo tem um sentido. Aqui, nesta escola, compreende-se a necessidade de uma disciplina espiritual para quem quer seguir o ensinamento do Evangelho e ser discípulo do Cristo.

“Oh, como gostaríamos de voltar à infância e seguir essa humilde e sublime escola de Nazaré! Como gostaríamos, junto a Maria, de recomeçar a adquirir a verdadeira ciência e a elevada sabedoria das verdades divinas.

“Mas estamos apenas de passagem. Temos de abandonar este desejo de continuar, aqui, o estudo, nunca terminado, do conhecimento do Evangelho. Não partiremos, porém, antes de colher, às pressas e quase furtivamente, algumas breves lições de Nazaré.

“Primeiro, uma lição de silêncio. Que renasça, em nós, a estima pelo silêncio, essa admirável e indispensável condição do espírito; em nós, assediados por tantos clamores, ruídos e gritos na vida moderna barulhenta e hipersensibilizada. O silêncio de Nazaré ensina-nos o recolhimento, a interioridade, a disposição para escutar as boas inspirações e as palavras dos verdadeiros mestres. Ensina-nos a necessidade e o valor das preparações, do estudo, da meditação, da vida pessoal e interior, da oração que só Deus vê no segredo.

“Uma lição de vida familiar. Que Nazaré nos ensine o que é a família, a sua comunhão de amor, a sua beleza simples e austera, o seu caráter sagrado e inviolável; aprendamos de Nazaré quanto a formação que recebemos é doce e insubstituível: qual é sua função primária no plano social.

“Uma lição de trabalho. Ó Nazaré, ó casa do ‘filho do carpinteiro’! Aqui, gostaríamos de compreender e celebrar a lei, severa e redentora, do trabalho humano; restabelecer a consciência da nobreza do trabalho; lembrar que o trabalho não pode ser um fim em si mesmo, mas que a sua liberdade e nobreza resultam, mais dos que do seu valor económico, dos valores que constituem o seu fim. Finalmente, como gostaríamos de saudar aqui todos os trabalhadores do mundo inteiro e mostrar-lhes o seu grande modelo, o seu divino irmão, o profeta de todas as causas justas, o Cristo nosso Senhor!”

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Com as lições do silêncio, feitos escutadores como Simeão, da vida familiar, feita de serviço e de doação, e do trabalho, não escravizante, mas promotor da realização pessoal e familiar, bem podemos cantar: “Ditosos os que temem o Senhor, ditosos os que seguem os seus caminhos.”

2023.12.31 – Louro de Carvalho

Precisamos de 2024 com verdade, coerência e responsabilidade

 

No início de um Novo Ano, é de toda a justiça exprimir uma palavra e uma atitude de gratidão à sociedade que integramos, por nos ter proporcionado, no ano findo, a realização e o crescimento pessoais, profissionais e cívicos, bem como fazer o necessário mea culpa, pelos erros com que lesámos a comunidade, o ambiente e os mais próximos.

Além disso, os crentes agradecem a Deus a vida e todos os dons de que foram recebedores para si próprios e para a comunidade de crentes a que pertencem e que servem, assim como para a sociedade que os envolve e de que não lhes é lícito fugir, mas servir. Ao mesmo tempo, fazem a contrição sobre os pecados cometidos contra o seu Deus e sobre os males com que prejudicaram o próximo e denegriram a imagem das suas comunidades religiosas.

O ano anterior foi palco de catástrofes naturais e de mão humana. Terramotos e tsunamis, secas severas e extremas, ciclones e tufões, aluimentos e desabamentos, temperaturas altíssimas, enxurradas e inundações afligiram as populações em vários sítios do orbe. Paralelamente, desenvolveram-se focos de guerra e criaram-se outros; exploraram-se e violentaram-se migrantes que fugiam da guerra ou da fome; fez-se a deflorestação abusiva e intensiva; eclodiram incêndios florestais; procedeu-se a agricultura intensiva e a exploração atrabiliária do subsolo; criaram-se factos políticos; aumentaram-se as crises económicas, financeiras e sociais. Tudo isto molestou populações, desequilibrou ecossistemas, contribuiu para o esgotamento de recursos e fez aumentar a riqueza de poucos e a pobreza de muitos.

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Em alguns países, como a Polónia, o sistema político parece ter-se equilibrado, em ordem à melhoria da convivência democrática, ao passo que, em outros, como a Espanha, o equilíbrio tornou-se precário, por força da ambiguidade dos resultados eleitorais; e, na Argentina, as eleições deram origem a uma governação de direita de pendor anarcopopulista.

Em Portugal, uns criaram factos políticos, outros superlativaram-nos. Tudo o que o governo propunha e anunciava era, do lado dos seus apoiantes, o bom, o belo e o verdadeiro ou, pelo menos, o possível; do lado dos opositores, era o mau, o feio, e o mentiroso ou, pelo menos, o insuficiente. Enfim, todos, em nome da sua verdade, acusavam os outros de mentira.

De uns detentores de cargos políticos descobrem-se os rabos-de-palha (corrupção, favorecimento, recebimento de vantagem, evasão fiscal, branqueamento de capitais, etc.); de outros eclipsam-se.

Com a recente crise política, espoletada pelo Ministério Público (MP) – não se sabe com fundamento em que verdade factual – irrompeu o leilão de promessas eleitorais, sem que se haja verificado a sustentabilidade das contas públicas que suporte essa rima de promessas. E, enquanto uns cantam loas aos sucessos da governação, outros apontam o dedo ao crescimento da pobreza, ao caos na Educação, na Saúde, na Habitação e na Justiça. Pouco se fala no aumento do crime e no novo tipo de crimes, no aumento do volume de candidatos a utentes assíduos dos Serviços de Saúde, na especulação e no longo hiato da construção civil, bem como na debilidade da frequência e do teor dos cursos de formação de professores e na perda da atratividade da carreira docente.

 Chegou-se ao ponto de os antigos próceres da política das contas certas virem a terreiro dizer que as contas certas nunca foram um objetivo orçamental.

Neste contexto, é desejável que 2024 seja um ano de verdade, na empresa, no Estado, na Escola, no Serviço de Saúde, na problemática da Habitação, na Justiça e nas eleições. Para tanto, é necessária uma visão equilibrada das coisas, a justeza da crítica e a honestidade das propostas.

Não vale, por exemplo, prometer demissão em caso de os resultados de eleições serem diferentes do esperados e voltar atrás; ou negar ou propalar uma política de alianças e, depois, dar o dito por Não dito. Não vale criar factos políticos ou superlativá-los, como não vale criar falsas notícias ou pintar de negro as verdadeiras.  

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Outro desejo para 2024 é a coerência.

Há dias, o Presidente da República (PR) disse que o ainda primeiro-ministro (PM) tem o futuro político aberto. É capaz de exercer bem um cargo qualquer, em Portugal ou na Europa. É certo que, à hora da despedida, não se dizem coisas desagradáveis, mas a coerências impõe a questão: “Se é tão bom, como é que o PR o deixou cair passivamente?” O chefe de Estado, prudentemente aconselhado (já não falo no professor de Direito), talvez pudesse segurar o PM até o MP esclarecer a situação do inquérito instaurado contra ele ou, ao menos, constituir um governo emergente da atual maioria parlamentar, mas preferiu a dissolução parlamentar.

Por outro lado, os ocidentais, em que se incluem os Portugueses, fazem questão em apresentar-se como paladinos dos direitos humanos, bons samaritanos em termos humanitários, arautos do direito a viver. Contudo, não têm pejo em enviar armas de fragmentação para a Ucrânia. Estão contra a invasão russa da Ucrânia e contra a anexação de territórios ucranianos, mas não tiveram pejo de estender a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) para lá da Alemanha e, recentemente, mais além. E estão em processo candidaturas de adesão à União Europeia (UE) mais a leste. Falta coerência e compromisso: “Pacta servanda sunt” (os pactos são para cumprir).  

Em Belém, não houve festa de Natal, em 2023, mas houve missa de Natal. Na homilia, o patriarca latino de Jerusalém salientou que “guerra e ocupação têm de acabar”. No “Natal mais triste de sempre”, o celebrante lamentou: “A Europa vem rezar na nossa Igreja e não faz nada contra este genocídio.” De facto, só na noite de Natal, houve mais de 100 mortos na Faixa de Gaza.

O Ocidente falha na coerência, quando condena a invasão russa e reconhece a Israel o irónico direito de se defender. Não pressiona a ajuda humanitária aos desprotegidos e aos vitimados da guerra estúpida entre Israel e o Hamas e assiste, com benevolência, à infinda eliminação de Palestinianos.   

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Há uma norma, no Direito Administrativo, segundo a qual os membros de um órgão colegial que votaram contra uma deliberação, para ficarem isentos da responsabilidade que, eventualmente, resulte da deliberação tomada, devem fazer constar da ata “o seu voto de vencido, enunciando as razões que o justifiquem”. Efetivamente, o artigo 35.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo estabelece: “Aqueles que ficarem vencidos na deliberação tomada e fizerem registo da respetiva declaração de voto na ata ficam isentos da responsabilidade que daquela eventualmente resulte”.

Faço esta citação, para anotar que um voto contra ou a indiferença não nos ilibam da responsabilidade sobre os factos de que temos conhecimento. E Sophia de Mello Breyner Andresen escrevia: “Vemos, ouvimos e lemos / não podemos ignorar…”

 

Os Ocidentais, os Europeus, os Portugueses não podem assobiar para o lado, face aos conflitos internacionais. Têm de estar conta o genocídio, ocorra ele onde ocorrer; têm de estar pelos direitos humanos e pelos desprotegidos, em Portugal, na Rússia, na Ucrânia, na China, no Qatar, em Israel, na Faixa de Gaza, etc. É a luta de cada dia, a luta de todos. E todos somos responsáveis porque todos somos irmãos.  

Já agora, em Portugal, é desejável que todos – políticos (os da situação e os da oposição), empresários, agentes culturais, dirigentes associativos, patrões e trabalhadores – se sintam responsáveis pelos serviços públicos, pela economia, pela cultura, pelo setor social e solidário, enfim, pelos grandes problemas do país.

A ninguém é lícito empurrar a barriga para a frente ou assobiar para o lado.    

É desejável que a crise política, que vai ser resolvida em eleições legislativas, nos dê uma oportunidade de governação equilibrada – com verdade, com coerência e com responsabilidade.

Vamos lutar para que a Agenda do Trabalho Digno se concretize e alargue e a luta para a erradicação da pobreza tenha resultados significativos. Venha daí o empenho, a ação e a crítica justa, certa e útil!

Será bom que as eleições europeias deem à UE um refrescamento democrático, mais assente na cidadania e na preocupação social, uma coesão reforçada entre os Estados-membros. Enfim, pede-se menos burocracia, menos nacionalismo, mais solidariedade e mais subsidiariedade.  

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Por fim, neste espirito de verdade, de coerência e de responsabilidade, apraz-se a seguinte referência da mensagem papal, antes da bênção Urbi et Orbi, no dia de Natal:  

“Na Bíblia, ao Príncipe da paz opõe-se o ‘príncipe deste mundo’ (Jo 12,31), que, semeando a morte, atua contra o Senhor, ‘amante da vida’ (Sb 11,26). Vemo-lo atuar em Belém, quando, após o nascimento do Salvador, se verifica a matança dos inocentes. Quantas matanças de inocentes no mundo! No ventre materno, nas rotas dos desesperados à procura de esperança, nas vidas de muitas crianças cuja infância é devastada pela guerra. […] Deste modo dizer ‘sim’ ao Príncipe da paz significa dizer ‘não’ à guerra. E isto com coragem: dizer ‘não’ à guerra, a toda a guerra, à lógica da guerra, que é viagem sem destino, derrota sem vencedores, loucura indesculpável. Mas, para dizer ‘não’ à guerra, é preciso dizer ‘não’ às armas. Com efeito, se o homem, cujo coração é instável e está ferido, encontrar instrumentos de morte nas mãos, mais cedo ou mais tarde, usá-los-á. E como se pode falar de paz, se cresce a produção, a venda e o comércio das armas? Hoje, como no tempo de Herodes, as conspirações do mal, que se opõem à luz divina, movem-se à sombra da hipocrisia e do escondimento. Quantos massacres armados acontecem num silêncio ensurdecedor, ignorados de tantos! O povo, que não quer armas, mas pão, que tem dificuldade em acudir às despesas quotidianas, ignora quanto dinheiro público é destinado a armamentos. E, contudo, devia sabê-lo! Fale-se disto, escreva-se sobre isto, para que se conheçam os interesses e os lucros que movem os cordelinhos das guerras.

“Isaías, que profetizara o Príncipe da paz, deixou escrito que virá um dia em que ‘uma nação não levantará a espada contra outra’; um dia em que os homens ‘não se adestrarão mais para a guerra’, mas ‘transformarão as suas espadas em relhas de arado, e as suas lanças em foices’ (Is 2,4). Com a ajuda de Deus, esforcemo-nos para que se aproxime esse dia!”

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Próspero, pacífico, verdadeiro, coerente e responsável 2024!

2023.12.31 – Louro de Carvalho

sábado, 30 de dezembro de 2023

Belgas investem 10 milhões na fábrica de armas de Viana do Castelo

 

A Browning Viana, localizada em Morenos, S. Romão de Neiva (concelho de Viana do Castelo), no Alto Minho, detida pelo grupo belga FN Herstal e servida por 620 trabalhadores, está a concluir a ampliação da unidade onde fabrica armas de caça e de desporto, mas já tem aprovado um projeto de investimento de dez milhões de euros para a modernização da fábrica e para o aumento da capacidade de produção para 200 mil armas por ano. 

A fábrica de armas, que comemorou, recentemente, 50 anos em Portugal – foi criada, em 1973, e instalada num pântano –, tem vindo a ganhar importância dentro do grupo e prevê continuar a bater recordes de produção e de faturação.

Nos próximos anos, o objetivo é, segundo Rui Cunha, administrador da Browning Viana Fábrica de Armas e de Artigos de Desporto  S. A., renovar processos de produção mais manuais, como polimentos e pintura.

Esta aposta na maior automatização permitirá à empresa nacional voltar a aumentar a capacidade de produção, já reforçada de 150 para cerca de 180 mil armas por ano, com a ampliação da fábrica que está concluída. “Juntamente com este processo, estamos também a aumentar a nossa capacidade de produção para 200 mil armas, que pode ou não ser utilizada”, detalhou Rui Cunha.

A fábrica do Alto Minho deverá fechar o ano de 2023 com a produção de 174 mil armas, prevendo aumentar este número para 179 mil, em 2024. Com preços unitários a oscilar entre 600 os 7.000 euros, ambiciona disputar a liderança mundial no fabrico de armas de caça e desporto com o grupo italiano Beretta.

Detida, como se disse, pelo grupo belga FN Herstal, a fabrica armas de caça e de desporto, com as marcas Browning e Winchester, vem sendo responsável por cerca de um terço da faturação da divisão civil do grupo (armas de caça e de desporto). 

A Browning é a única empresa do grupo que não fabrica armas de defesa, mas o grupo fatura na casa dos 800 milhões de euros por ano, sendo pouco mais de metade desse valor da divisão defesa.

A fábrica de Viana do Castelo representa cerca de um terço da divisão civil. E, em termos de atividade, prevê continuar a fixar novos recordes, uma tendência que se mantém desde 2019. “A nossa faturação recorde vai ser este ano, de 80 milhões de euros”, adianta o responsável, acrescentando que 2024 deverá ser mais um ano de máximos, apontando para um volume de negócios de 88 milhões de euros.

Para o crescimento do negócio tem sido determinante o aumento da procura nos Estados Unidos, da América (EUA), que tem “continuamente vindo a aumentar”. Das armas produzidas em Portugal, apenas uma percentagem residual fica no país, sendo 99,5% para exportação. Só os EUA captam 70% das vendas.

A aposta do grupo na empresa de Viana do Castelo, com destaque para o último plano de investimentos, tem-lhe permitido aumentar o número de funcionários, atualmente 620. Contudo, o número tende a estabilizar, fruto da aposta em tecnologia de produção mais avançada. “Uma vez que vamos automatizar alguns dos processos que temos, vamos reduzir a contratação de pessoas e aumentar a automação. Fizemos um investimento em tecnologia de ponta”, resume o administrador, que destaca as condições remuneratórias “acima da média”, com um pacote salarial base de 1.075 euros, distribuição de resultados, seguro de saúde e um fundo de pensões.

Questionado sobre se a aposta na modernização vai implicar despedimentos, Rui Cunha afasta a possibilidade. “Não estamos nem perto disso”, garante, adiantando que a empresa vai “aumentar o valor acrescentado da produção, aumentar o valor criado, baixar o valor das compras e substituí-lo internamente”. “É aqui que vamos substituir as pessoas”, completa.

Outra das apostas passa pela internalização, já a partir de 2024, da produção de canos na fábrica, que, até agora, eram importados. Numa fase inicial, serão fabricados in house perto de 80 mil canos – os outros continuam a ser garantidos pela casa-mãe –, vindo a ser “uma referência no grupo” esta nova linha, avaliada em oito milhões de euros.

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Para garantir que a produção não para, a pausa do almoço é dividida entre os trabalhadores que garantem o primeiro turno da fábrica. O segundo turno começa pelas 15 horas e mantém as máquinas a rodar até às 23. Em conjunto, são produzidas, diariamente, 900 armas de caça e de desporto, que seguem para países como os EUA, a Bélgica ou a Alemanha.

Criada em 1973 onde antes existia “um pântano”, a empresa de armas de Viana é, hoje, uma das maiores fábricas de produção de armas de caça e de desporto, a nível mundial. Mas o percurso teve muitos sobressaltos. A empresa nasceu quase do nada. Um belga que morava ali conhecia algumas pessoas do grupo FN Herstal. A partir daí criou-se um conjunto de condições que não existiam para instalar a empresa.

Depois de um crescimento “muito rápido”, no início, a empresa entrou, nos anos 1990, num período de indefinição. As máquinas usadas para fabricar armas passaram a dedicar-se a outro tipo de “artilharia”, como tacos de golfe, raquetes de ténis e pranchas de windsurf.

Diz o administrador que, a certa altura, se apostou “na área do desporto, além das armas”. E assim foi durante cerca de 15 anos, até o grupo acabar com essa divisão e voltar a focar no negócio core (o núcleo do objeto da empresa). Saíram os artigos de desporto, manteve-se a produção de armas. E a fábrica de Viana cresceu dentro do grupo, em números e importância.

Nos últimos anos, aumentou a competência, a organização interna da fábrica e a produção, o que suscitou o reconhecimento por parte do grupo e a convicção de que havia consistência na fábrica, ao nível da mão-de-obra e ao nível da engenharia. Assim, “a empresa minhota conseguiu mudar a imagem no grupo e “a importância da fábrica disparou nos últimos anos”.

Com uma produção anual de cerca de 174 mil armas e preços unitários que oscilam entre 600 e 7.000 euros – a capacidade de produção vai aumentar para 200 mil, nos próximos anos –, a Browning Viana ambiciona alcançar a liderança mundial no fabrico de armas de caça e de desporto, objetivo que não está muito distante. Como diz Rui Cunha, “o grande adversário é o grupo italiano Beretta, que é líder mundial, na divisão civil, e depois deles seremos nós”.

Para desarmar a rival italiana, a fábrica está a investir em tecnologia de ponta e a terminar um investimento de 21 milhões de euros, ao qual será adicionado outro envelope financeiro de 10 milhões de euros, para os próximos quatro anos.

Do trabalho na madeira, aos polimentos e à montagem, são já visíveis esses sinais de maior modernidade. Num espaço agora ampliado, que está à espera de ser ocupado com novas máquinas, destacam-se, com o seu braço metálico, os dois novos robôs destinados a fazer o polimento. O objetivo é prosseguir esta modernização, automatizando a pintura das armas e o tratamento de superfície, assim como a mecanização de outras peças. É uma aposta na engenharia que vai aliviar os operários destas tarefas mais “físicas e desgastantes” e dar maior estabilidade ao processo.

internalização, já a partir de 2024, da produção de canos na fábrica – antes importados – é outra das apostas. Numa fase inicial serão fabricados in house perto de 80 mil canos (os outros serão garantidos pela casa-mãe). É uma nova linha de produção que resultou de um investimento de oito milhões de euros e que é “uma referência no grupo”.

O administrador da Browning Viana destaca a importância desta modernização também ao nível da retenção de talento. Está prevista uma carreira de tiro, para teste de novas armas, e a continuação do investimento em tecnologia. E este investimento em equipamento de produção pretende combater a dificuldade de atração de pessoal jovem.

Rui Cunha destaca as condições “acima da média”, como um pacote salarial base de 1.075 euros, a distribuição de resultados, o seguro de saúde e um fundo de pensões. Efetivamente, as questões sociais são uma das grandes preocupações da administração, tendo sido, nos últimos dois anos, o aumento salarial global dos 620 trabalhadores da fábrica na casa dos 11%. Na verdade, como refere o administrador, “é cada vez mais difícil encontrar pessoas e retê-las é o desafio”. Ora, com maior automatização de processos, a expectativa é que os funcionários sejam mais especializados, para se responder aos desafios, num mercado global.

Com praticamente toda a produção destinada à exportação, os EUA são responsáveis por cerca de 70% das vendas da empresa de Viana. Num mercado onde a procura “tem continuamente vindo a aumentar”, destacam-se alguns eventos particulares que mexem com o negócio, nomeadamente as eleições. “Quando os democratas estão no governo, a venda de armas dispara”, revela o administrador da Browning Viana.

Uma piada nos EUA diz que o maior agente comercial foi Barack Obama. “Foi um pico enorme quando ele foi eleito”, vinca Rui Cunha. Já no período pré-eleitoral, como o que está prestes a ser iniciado, a tendência é para uma estabilização no negócio.

Porém, há outros acontecimentos que mexem com o negócio das armas. Perante um ambiente dominado pela escalada de conflitos, seja no Leste da Europa, seja no Médio Oriente, Rui Cunha admite que estes eventos são positivos para a divisão de defesa, uma vez que os países tendem a reforçar o orçamento para a compra de armas. Para armas de caça e de desporto, a questão das guerras não impacta positivamente. Não é por isso que se vai mais à caça ou ao tiro aos pratos.

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Este apontamento dá conta de uma unidade de produção que apura organização, tecnologia e comercialização, dando emprego a centenas de pessoas, a quem são dadas condições de trabalho, pelo menos, razoáveis. Isto é, obviamente, sinal de progresso no país e representa só um exemplo do que por aí se faz, o que é de relevar em tempo de tanta maledicência e intriga, de alijamento de responsabilidades – pessoais e coletivas, públicas e privadas – e de tanta mediocridade.

Não obstante, é de acentuar que as armas de caça e de desporto também matam pessoas. E muita gente não tem escrúpulos em utilizá-las para dirimir conflitos ou, simplesmente, para expressar a sua agressividade. Por outro lado, embora a fábrica em referência não produza armas de defesa (a melhor defesa, para muitos, é o ataque), ela integra um grupo empresarial que as produz e vende. E, em países como os EUA, em que um qualquer cidadão pode usar armas de defesa pessoal (Bolsonaro queria instituir esse uso no Brasil), são frequentes os ataques de rua, em escolas, em fábricas, em salas de espetáculos, etc.  

Enfim, “o país dos brandos costumes” não pode, candidamente, afirmar-se inocente perante os conflitos que pululam nos diversos cantos do Mundo. Semear a paz torna-se difícil e parece não dar resultados. Todavia, há que remar contra a maré, fomentar mais o desporto. Haja esperança!

2023.12.30 – Louro de Carvalho

Cinquentenário do 25 de Abril e Centenário de Soares interligam-se

 

O coordenador da celebração do centenário do nascimento do fundador do Partido Socialista (PS) e segundo chefe de Estado eleito na era democrática sustenta que essa efeméride está ligada ao cinquentenário do 25 de Abril.

Mário Alberto Nobre Lopes Soares nasceu a 7 de dezembro de 1924 e morreu a 7 de janeiro de 2017. Entre estas duas referências temporais, “há contestação, resistência, exílio, várias lutas, reação, família, amigos, governação, um partido e um país”.

Para lembrar a vida do fundador do PS, a comissão presidida por José Manel dos Santos está a preparar um ano com exposições, cerimónias, memórias, e contou com amigos, dentro e fora do PS, para recordar uma vida ligada à luta pelo fim da ditadura e pelo que a liberdade e a democracia representam, como a autodeterminação das colónias e a passagem a novos países.

A 7 de dezembro de 2023, foi relançado o livro “Portugal Amordaçado”, agora com a chancela Imprensa Nacional. É “mesmo o mais importante livro que é a memória da história do combate contra a ditadura feito por um combatente”, disse o filho João Soares.

Porém, José Manuel dos Santos adverte que “esse ainda não foi o início da celebração do centenário”. Estamos a um ano da efeméride, o que “não impede que, antes, já comecem a aparecer coisas, nomeadamente o livro, que apareceria mesmo que não houvesse centenário. Há muita gente a querer fazer coisas já. Portanto, vamos também ter alguma coisa de ligação de Mário Soares aos 50 anos do 25 de Abril”, adiantou.

Embora seja possível fazer coisas em colaboração com a Comissão dos 50 Anos do 25 de Abril, na ótica de José Manuel dos Santos, “não tinha sentido estar a sobrepor, com muitas atividades programadas, o centenário com o cinquentenário do 25 de Abril”, pois trata-se de outra comissão, com atividades próprias e objetivos distintos, que se cruzam, o que não está em causa.

As comemorações do centenário propriamente dito começarão a 7 dezembro de 2024, o ano oficial (é quando faz 100 anos do seu nascimento), e estendem-se até 2025. Aí é que haverá os pratos fortes – as comemorações dos órgãos de soberania, exposições, publicações. A rematar esta evocação, em plano familiar e no quadro da democracia, celebra-se, em maio, o centenário de Maria de Jesus Barroso, a mulher de Mário Soares, com marca indelével no combate pela liberdade e na fundação do PS. Para já, sem programação ainda definida, a vida do ministro dos Negócios Estrangeiros em três governos provisórios (ministro sem pasta noutro), primeiro-ministro de governos constitucionais (primeiro, segundo e nono), Presidente da República e eurodeputado é recordada para lá das fronteiras da Fundação Mário Soares e Maria Barroso.

A 22 de fevereiro de 2024, chegará às salas de cinema o filme “Soares é Fixe”, do realizador Sérgio Graciano, que evocou Salgueiro Maia, num outro filme. Esta adaptação cinematográfica da segunda volta da corrida às eleições presidenciais, em 1986, disputada entre Soares e Diogo Freitas do Amaral, recorda o slogan da campanha que levou o antigo Presidente da República a mais uma vitória em democracia. E José Manuel dos Santos, curador da efeméride, revela que a comissão “já está a pensar nas exposições”, apesar de ainda não estarem fechadas com as instituições e com os locais onde vão acontecer, pelo que não pode “adiantar as datas”. Porém, já se fez a ronda aos diversos órgãos de soberania (Presidência da República, Parlamento, Governo e Tribunais), às universidades, internacionais e nacionais, em que Mário Soares é doutor honoris causa, às academias a que pertenceu, a clubes, à Sociedade Portuguesa de Autores, a associações de estudantes, a partidos da Internacional Socialista.

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Por seu turno, Comissão Comemorativa dos 50 Anos do 25 de Abril, com o lema “Celebrar o passado para salvar o futuro”, já tem o programa final dos 50 anos do 25 de Abril praticamente finalizado, faltando apenas a aprovação do Presidente da República, pelo que ainda não há a conveniente divulgação. Porém, tem em vista que as comemorações sirvam para “discutirmos e perspetivarmos o futuro do país e da democracia”, com atenção especial aos jovens, e avança já com algumas ideias programáticas.

Maria Inácia Rezola, comissária executiva, afirma que 2024 será um “ano de viragem” nas comemorações, iniciadas em março de 2022, que se prolongarão até 2026. Depois do período inicial ter sido dedicado aos movimentos sociais e políticos que criaram as condições para o 25 de Abril de 1974, o ano de 2024 será focado no Movimento dos Capitães/Movimento das Forças Armadas (MFA) e na descolonização. Já o de 2025 será o ano para celebrar a democratização do regime – potencialmente ano controverso, por ocorrer o cinquentenário do 25 de novembro de 1975, data cada vez mais fraturante. E, em 2026, as comemorações estarão focadas nas questões do desenvolvimento. Ou seja: os três D do 25 de Abril: descolonizar, democratizar, desenvolver, distribuídos por três anos: 2024, 2025 e 2026.

Maria Inácia Rezola garante: “A nossa expectativa é que o próximo ano [2024] seja um ano de festa, de celebração de 50 anos de democracia, e o ponto de partida para uma reflexão sobre os próximos 50 anos. Acredito que isso acontecerá, quer através das iniciativas pensadas e desenvolvidas pela Comissão Comemorativa dos 50 Anos do 25 de Abril, quer através das levadas a cabo por todas as outras entidades que, de norte a sul do país, estão entusiasticamente envolvidas na preparação das celebrações.”

A ideia é mesmo celebrar o passado para salvar o futuro. E a comissária executiva explica: “O propósito da Comissão é promover um maior conhecimento sobre o passado recente, para que este aumente o nosso domínio e compreensão sobre o presente e nos dote de ferramentas, para, de forma esclarecida, discutirmos e perspetivarmos o futuro do país e da democracia.”

Para tanto, pretende-se, obviamente, “tirar partido destas datas, para promover, junto dos mais jovens, a importância de se valorizar as conquistas de abril e chamá-los para que tomem parte na construção de uma sociedade melhor, mais justa, mais livre, mais participada e mais democrática”.

Em parceria com o Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), estão em organização o concurso “Cinema pela Democracia”, que atribuirá 790 mil euros a projetos de produção cinematográfica e audiovisual de ficção, documentário ou animação; a organização de seminários, conferências, workshops ou atividades similares; ações de formação; a realização de mostras ou ciclos de cinema e audiovisual português, que se enquadrem nas Comemorações dos 50 Anos do 25 de Abril de 1974 e que contribuam para a reflexão sobre a sua relevância na atualidade.

O concurso “O 25 de Abril e a democracia portuguesa” atribuirá 500 mil euros a projetos de investigação no domínio das ciências sociais e humanidades sobre este período histórico do país.

Simultaneamente, em parceria com a Direção-Geral das Artes, foi organizado o concurso “Arte pela democracia” que, com um fundo total de um milhão de euros, financia projetos artísticos relacionados com o 25 de Abril. E a Comissão revela: “A edição de 2023 selecionou um total de 45 projetos, 19 nas áreas artísticas de cruzamento disciplinar; nove de teatro; e seis de música. No domínio artístico da criação, serão apoiadas 27 iniciativas; no da programação, sete; no da circulação nacional, quatro. Foram ainda selecionados seis projetos no domínio da edição e um no domínio das ações estratégicas de mediação.”

Há também uma parceria com a Tinta da China, intitulada “O 25 de Abril Visto de Fora”, para a edição de dez livros relativos à revolução, a maioria de autores estrangeiros, numa coleção dirigida pelo politólogo António Costa Pinto. E uma campanha dirigida às escolas sobre os direitos humanos consagrados na Constituição da República Portuguesa (CRP) contempla a divulgação de cartazes desenvolvidos por 16 reconhecidos ilustradores portugueses.

Outras entidades se mobilizaram para celebrar o cinquentenário da revolução. O Parlamento terá um programa cujo ponto alto será a sessão solene do 25 de Abril, com todos os chefes de Estado da lusofonia convidados (a eventual presença de Lula promete novamente suscitar controvérsia à direita). E o Presidente da República promulgou, a 28 de dezembro de 2023, o decreto que “determina as condições da criação do “Centro Interpretativo do 25 de Abril”, que será edificado no Parlamento, e de desenvolvimento do projeto da reabilitação da manutenção militar Norte.

O programa parlamentar incluirá a “homenagem aos deputados eleitos em democracia que foram vítimas de prisão política durante a ditadura”, a homenagem à Comissão Nacional de Socorro dos Políticos e debates públicos “O 25 de Abril, hoje”, a organizar pelo Parlamento em todos os círculos eleitorais, com a participação de deputados. E, no Salão Nobre, entre abril e junho, estará patente a exposição “Vieira da Silva e a Liberdade”.

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“Portugal Amordaçado” é o mais importante dos livros de Mário Soares e, indiscutivelmente, um dos mais importantes livros que é a memória da História do combate contra a ditadura feito por um combatente, disse, a 6 de dezembro, João Soares, vincando o caráter autobiográfico desta obra que chegou, pela primeira vez, aos escaparates, em França, em 1972, antes do 25 de Abril. Com um subtítulo que não deixa margem para dúvidas “Depoimento sobre os anos do fascismo”, o livro editado em Portugal, pela primeira vez, em outubro de 1974, já em democracia, acrescentou alguns detalhes às memórias publicadas, em França (onde era relevante a oposição à ditadura), pelo opositor ao Estado Novo, um combatente preso e exilado, que nunca se conformou.

A ideia do livro surge a partir da deportação para São Tomé, onde as condições logísticas e de segurança para escrever eram reduzidas. Quando voltou, em 1969, foi ao Brasil e aos Estados Unidos da América. Aí, começou uma campanha contra ele, por ter denunciado a guerra colonial e o escândalo do Ballet Rose (sórdido esquema de abuso sexual de menores e de sadomasoquismo, com o impune envolvimento de altas figuras do Estado e de grandes empresas), e acabou por ficar em Itália, em casa do amigo Mário Ruivo, técnico internacional da Organização para a Alimentação e Agricultura, das Nações Unidas (FAO), que fora preso com ele, em Portugal, e que lhe cedeu uma casa que tinha nos arredores de Roma. Veio ao funeral do pai, podendo estar dois ou três dias. Depois, chamaram-no e disseram-lhe que ou saía ou o prendiam. Decidiu sair. Queria fundar o PS e queria acabar o “Portugal Amordaçado”, que tem muitas reflexões e histórias que, de certo modo, são atuais, embora as coisas não se repitam.

O que esta edição faz é ir ao encontro da revisão que nunca feita pelo autor. “Pensou reeditá-lo com notas de atualização e dizendo coisas que não podia ter dito naquela altura, mas acabou por ser solicitado por milhares de coisas e nunca fez isso”, revela José Manuel dos Santos.

Questionado sobre se Mário Soares sentiria que a democracia que idealizou estaria concretizada na atualidade, o coordenador da obra diz ter dúvidas. Todavia, pensa que, nos últimos anos, estava desiludido, não com a democracia portuguesa, mas com as democracias, que foram capturadas pelo sistema político-económico neoliberal, o que iria ter consequências dramáticas. Em muitos artigos que escreveu, “chamava a atenção para este sistema que, ao excluir as pessoas, ao ser fundado na desigualdade, provoca coisas terríveis, como o crescimento da extrema-direita”.

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Sendo objetivos do MFA descolonizar, democratizar e desenvolver, era difícil entender a revolução abrilina, sem evocar o preclaro denunciante da guerra colonial, cuja solução tinha de ser política. E foi um dos principais construtores da democracia de tipo ocidental e, como rampa do desenvolvimento económico, ganhou, para o país, apoios externos e estruturou a governação.

Celebraria também, por certo, o 25 de Novembro, pela estabilização da democracia e pela sua aquisição de pendor parlamentar de origem pluralista, mas não como certa direita, que pretendia a aniquilação de algumas forças de esquerda, o que não foi nem pode ser conseguido.    

2023.12.29 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Faleceu o egrégio promotor do Mercado Único Europeu e do Euro

 

A 27 de dezembro de 2023, com 98 anos de idade, na sua residência em Paris, na França, faleceu Jacques Delors, antigo presidente da Comissão Europeia. E o presidente francês lamenta a perda do “estadista” e “arquiteto inesgotável” da Europa.

Jacques Lucien Jean Delors liderou o órgão executivo da União Europeia (UE) num período crucial para o desenvolvimento do projeto europeu (1985-1995), durante o qual foi concretizado o Mercado Único e foram lançadas as bases para a introdução do euro, em substituição das moedas nacionais, nos Estados-membros que aderiram à nova moeda, a pretensa moeda única.

Martine Aubry, filha de Jacques Delors (que, em 2008, foi eleita primeira secretária do Partido Socialista Francês) e presidente da Câmara de Lille, declarou à agência France Presse (AFP) que o pai “morreu esta manhã [27 de dezembro] na sua casa em Paris, enquanto dormia”.

Figura da construção do projeto europeu e considerado o “pai do euro”, Delors foi presidente da Comissão Europeia entre 1985 e 1995 – mais tempo do que qualquer outro titular do cargo (tendo em conta o total de dias de desempenho). Através de nota do gabinete do primeiro-ministro, o governo português informou decretar um dia de luto nacional, sendo a data “fixada oportunamente, por coordenação europeia ou no dia do funeral”.

Nascido em Paris em 1925, licenciou-se em economia, na Sorbonne, e, em 1945, após a II Guerra Mundial, seguiu o pai numa carreira no Banco de França, de 1945 a 1962. Depois, tornou-se membro do Conselho Económico e Social e chefe de serviço dos Assuntos Sociais no Comissariado Geral do Planeamento, até 1969.

Sindicalista católico, aderiu ao Partido Socialista Francês (PSF) nos anos 1970. Foi membro do gabinete do primeiro-ministro Jacques Chaban-Delmas, de 1969 a 1972, como encarregado dos assuntos sociais e culturais e das questões económicas e financeiras. De 1974 a 1979, foi professor associado da Universidade de Paris-Dauphine. Após dois anos no Parlamento Europeu (PE), onde chefiou a Comissão dos Assuntos Económicos, foi ministro das Finanças, da Economia e do Orçamento do presidente François Mitterand, entre 1981 e 1984, tendo sido também presidente da Câmara de Clichy, de 1983 a 1984.

Como presidente da Comissão Europeia, a partir de 1985, estava convicto da necessidade de criar laços económicos e monetários mais profundos entre os Estados-membros da Comunidade Europeia. Estabeleceu os compromissos para a criação, em 1993, do mercado único europeu, uma das realizações mais importantes da UE, como destaca a Reuters.

Supervisionou um período de rápido alargamento, com a Comunidade Europeia de dez membros a aumentar para 12, com a adesão, em 1986, de Espanha e Portugal e, em 1995, da Suécia, da Áustria e da Finlândia.

Foi autor e organizador do relatório, para a UNESCO, da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, intitulado: “Educação, um Tesouro a descobrir” (1996), em que se exploram os Quatro Pilares da Educação (aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser). E, na década de 2000, foi também Presidente do Conselho de Emprego, de Receitas e da Coesão Social (CERC).

Nome incontornável da esquerda francesa, Delors frustrou as expectativas dessa ala partidária, ao recusar apresentar-se às eleições presidenciais de 1995, em França, apesar de as sondagens o darem como favorito. “Não me arrependo”, afirmou à revista “Le Point”, em 2021. “Estava demasiado preocupado com a independência e sentia-me diferente dos que me rodeavam. A minha forma de fazer política não era a mesma”, referiu.

Um outro motivo que o levou a declinar o convite para uma candidatura presidencial  foi não interferir na carreira política da sua filha Martine Aubry.

Manteve-se preocupado com as questões europeias, criando o Notre Europe ou The Jacques Delors Institute, o seu próprio grupo de reflexão, e apoiando grupos dedicados ao federalismo. Durante a crise da dívida europeia de 2010-2013, falou frequentemente sobre a convicção na moeda única, embora reconhecendo os defeitos enquanto projeto lançado com forte vontade política, mas com uma base económica insuficiente. E, em março de 2020, apelou aos chefes de Estado e de Governo da UE a que demonstrassem maior solidariedade, numa altura em que se debatiam para conseguir uma resposta comum à pandemia de covid-19.

O Presidente francês, Emmanuel Macron, prestou homenagem ao “estadista”, numa publicação na rede social X (antigo Twitter). “Arquiteto inesgotável da nossa Europa. Um lutador pela justiça humana. Jacques Delors foi tudo isto. O seu empenho, os seus ideais e a sua retidão inspirar-nos-ão sempre. Saúdo a sua obra e a sua memória e partilho a dor da sua família”, escreveu.

A presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, reagiu na rede social X: “Com a morte de Jacques Delors, a UE perdeu um gigante. Último cidadão honorário da Europa, trabalhou incansavelmente como presidente da Comissão Europeia e membro do Parlamento Europeu em prol de uma Europa unida. Gerações de europeus continuarão a beneficiar do seu legado.”

O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, salientou que Jacques Delors “liderou a transformação da Comunidade Económica Europeia numa verdadeira União, fundada em valores humanistas e apoiada por um mercado único e uma moeda única, o euro”. “Foi um defensor apaixonado e prático da Comunidade até aos seus últimos dias. Grande francês e grande europeu, ficará na história como um dos construtores da nossa Europa”, realçou na rede social X.

Em comunicado, a presidente da Comissão Europeia recordou a “obra de vida”, assente numa UE “dinâmica e próspera”. Ursula von der Leyen elogia o “defensor incansável da cooperação entre as nações europeias e, posteriormente, do desenvolvimento da identidade europeia”, com “inteligência notável e uma humanidade sem paralelo”.

O chanceler alemão Olaf Scholz enalteceu-o enquanto “visionário”. “Jacques Delors defendeu a unificação europeia como ninguém: durante uma década, dirigiu a Comissão Europeia e, como visionário, tornou-se o construtor da UE como a conhecemos hoje”, afirmou na rede social X.

Também em Portugal têm sido várias as reações. Na mesma rede social X, o primeiro-ministro diz que a Europa perdeu “um dos maiores vultos da sua história contemporânea”. António Costa lembra que Delors, “um dos grandes impulsionadores da integração europeia, foi também e sobretudo um grande amigo de Portugal”.

O Presidente da República recorda-o como “grande mentor da evolução das Comunidades para uma União Europeia”, que encarna “a própria construção europeia”. “É um Homem com letra grande que nos deixou hoje”, refere, em nota divulgada na página da Presidência da República.

“Com a morte de Jacques Delors, antigo presidente da Comissão Europeia com quem tive a honra e o prazer de colaborar em tantas ocasiões, a Europa perdeu um dos seus mais extraordinários líderes. Alguém que combinava os ‘pequenos passos’ da integração europeia com o ideal de uma Europa unida”, declarou José Manuel Durão Barroso, antigo presidente da Comissão Europeia (2004-2014), em nota enviada à Lusa.

O presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, sublinha que Delors “marcou a história da Europa e a História de Portugal”. “Como antigo comissário europeu e vice-presidente do Delors Institute, apresento as minhas condolências à família Delors”, escreveu na rede social X.

“Jacques Delors é um dos grandes construtores da Europa. A Europa que sonhou e por que se bateu: a Europa social, a Europa da coesão, em que o crescimento económico e a justiça social formam um par. Obrigado!”, agradeceu o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, na mesma rede social.

Os que trabalharam com Delors recordam um homem com inesgotável energia e dinamismo. Outros descrevem o homem pequeno e elegante como alguém capaz de aplicar “rudeza, delicadeza, perspicácia e habilidade diplomática”, tudo ao mesmo tempo, escreveu a Reuters.

“Não me escondo. Cometo erros, perco a paciência. Mas as pessoas dizem: ‘aquele tipo é humano’. Nunca serei um grande político, porque não consigo preocupar-me com a minha imagem”, disse de si próprio aquele que fez aprovar o Ato Único Europeu, em 1986, o qual levou à criação do Mercado Único Europeu, que entrou em vigor a 1 de janeiro de 1993. 

“Foi protagonista na transformação da Comunidade Europeia em União Europeia (UE), encaminhando as nações da Comunidade para a moeda única e para uma maior cooperação ao nível da defesa”, refere a página “online” do Centro de Informação Europeia Jacques Delors.

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O constitucionalista Vital Moreira, que foi eurodeputado, de 2009 a 2014, e, nessa condição, presidente da Comissão de Comércio Internacional, sustenta que Delors, “depois dos ‘pais fundadores’ da integração europeia”, foi, como presidente da Comissão Europeia, “um verdadeiro refundador do que veio a ser a União Europeia”, no campo económico (mercado único, união económica monetária e euro), no campo social (protocolo social de 1992, instrumentos da coesão económica e social) e na integração política, “com a cidadania europeia e os direitos humanos, o avanço na democracia representativa (PE) e os novos ‘pilares’ da PESC (Política Externa e de Segurança Comum) e do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. Sem a sua visão e impulso político, não teria existido o Tratado de Maastricht, de 1991, “que marca uma autêntica mudança de natureza da União, sum sentido parafederal”.  

Mais: “contribuiu, decisivamente, para levar a França a aceitar a ideia de soberania partilhada com a Alemanha e demais Estados-membros da União, tornando o eixo Paris-Berlim no verdadeiro motor da integração”. Ajudou a “conciliar a esquerda social-democrata europeia” com “a integração europeia” e com “a economia de mercado”, mercê da “junção das dimensões social e política à integração europeia”, até aí votada apenas à conclusão de um ‘mercado comum’. E, nesse aspeto, “lançou as bases dos passos seguintes do aprofundamento da integração europeia, tanto enquanto ‘Europa social’ (Tratado de Amesterdão) como enquanto ‘Europa política’ (Tratado de Lisboa)”.

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Na verdade, é justo celebrar a memória do homem que relançou a União Europeia (UE), a partir da Comunidade Económica Europeia, e que, depois de sair do cargo de presidente da Comissão Europeia continuou a trabalhar ativamente pelos valores europeus. E, mais do que isso, postula que a UE desenvolva, em termos de partilha e de solidariedade, projetos comuns em todas as áreas vitais; que seja mais federação de Estados soberanos, em vez de coleção de entidades nacionalistas e egoístas; que seja menos Europa de burocracia condicionante dos Estados-membros e mais Europa de cidadãos e de Estados democráticos e sociais; que ultrapasse as malhas do atraente neoliberalismo asfixiante da cidadania; e, sobretudo, que trave o combate duro contra o capitalismo financeiro, sem rosto, que diminui ou anula a capacidade interventiva dos poderes políticos e gera o desprezo dos valores inerentes à dignidade da pessoa humana e à sã convivência.

2023.12.29 – Louro de Carvalho