sábado, 29 de fevereiro de 2020

XIII Dia Mundial das Doenças Raras


Celebra-se, no último dia de fevereiro (este ano, o dia 29) e desde 2008, em mais de 80 países, o Dia Mundial das Doenças Raras, com o objetivo de divulgar a existência destas doenças e despertar na sociedade um olhar de igualdade, inclusão e empatia para os raros, que lutam pela vida num contexto ainda marcado pela falta de informação e pelo preconceito. 
No mundo cerca de 8% da população tem algum dos 6 a 8 mil tipos de doenças consideradas raras em todo o mundo, entre enfermidades de origem genética e não genética – diz Regina Próspero, vice-presidente do Instituto Vidas Raras do Brasil, que explica:
Acreditamos que o diagnóstico precoce seja a melhor forma de salvar vidas e, por isso, investimos nossas forças em promover um diálogo sobre educação e conscientização de todas as doenças raras, seja para profissionais da saúde, estudantes da área, gestores, parlamentares, influenciadores e sociedade em geral (vd Flávia Albuquerque – repórter da Agência Brasil, São Paulo – http://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-02/dia-mundial-das-doencas-raras-e-marcado-por-atividades-em-todo-o-pais).
A predita dirigente entende que “é possível mudar a história de muitas pessoas que podem ter o diagnóstico precoce” se os exames para essas patologias forem incorporados pelo Sistema de Saúde. Com efeito, “o exame do pezinho atualmente é capaz de triar seis doenças raras, mas com as mesmas gotinhas que são colhidas do bebé podem-se triar até 90 doenças raras” (id et ib).
Segundo Regina Próspero, “o material é o mesmo, o que muda é o sistema de qualificação do exame”; e “são doenças que podem fazer toda a diferença na família e que, muitas vezes, não têm tratamento medicamentoso, mas só uma troca de dieta, por exemplo, pode fazer com que essa criança tenha uma vida normal e de qualidade e sem sequelas que podem ser evitadas ao saber precocemente da doença”. Por isso, é necessário ampliar a comunicação para as famílias dando-lhes a opção de pagarem um exame de triagem neonatal, além de incorporar aqueles que não podem pagar, pois há muito que fazer para abranger essa população e evitar danos maiores. É preciso “melhorar o diagnóstico precoce, investir em pesquisas clínicas e dar acesso ao tratamento”, sendo que “as políticas públicas para o setor precisam melhorar bastante” (vd id et ib).
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Na Europa, a organização deste dia de sensibilização é coordenada pela organização europeia para as doenças raras “Eurordis – Rare Diseases Europe” e resulta da colaboração com alianças nacionais de doenças raras de todo o mundo, visando sensibilizar a sociedade para os problemas com que a comunidade das doenças raras se defronta. E, este ano, o tema é “Raro é ser muitos, raro é ser forte, raro é ter orgulho nisso!”.
A Eurordis é uma aliança não governamental, sem fins lucrativos, que reúne mais de 700 associações de doenças raras, de mais de 60 países, que trabalham juntas para melhorar a vida dos mais de 30 milhões de pessoas com doenças raras na Europa.
Em Portugal, o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), em colaboração com a Comissão Interministerial de Coordenação da Estratégia Integrada para as Doenças Raras, associações de apoio às doenças raras e profissionais, promoveu, no dia 28, um evento comemorativo do Dia Mundial das Doenças Raras, nas suas instalações em Lisboa e Porto.
Em torno do estribilho “Um outro olhar sobre as Raras: somos 300 milhões! – Raro é ser muitos, raro é ser forte, raro é ter orgulho nisso!”, o programa concretizou-se com a realização de sessões de palestras curtas sobre doenças raras (com transmissão simultânea por videoconferência em Lisboa e Porto), bem como com a assinatura de um protocolo colaborativo com a “Aliança Portuguesa de Associações de Doenças Raras.
A doença rara é crónica, grave e degenerativa, maioritariamente debilitante e, muitas vezes, precocemente fatal, que requer esforços combinados especiais de várias áreas de intervenção, onde têm grande papel a investigação genética e farmacológica, os produtos de apoio e as respostas sociais ou a satisfação de necessidades educativas especiais, a fim de permitir que os doentes sejam tratados, reabilitados e integrados na sociedade de forma mais eficaz.
Estima-se que, em Portugal, haja cerca de 600 a 800 mil pessoas portadoras destas doenças, que colocam em risco a vida dos doentes e que têm uma prevalência inferior a 5 casos por cada 10.000/pessoas. Há atualmente cerca de 8.000 doenças raras sendo a maioria de origem genética, que afetarão perto de 40 milhões de pessoas na Europa, especialmente crianças.
A variabilidade das práticas clínicas e o desconhecimento por parte dos profissionais de saúde destes doentes levaram a Direção Geral de Saúde (DGS) a criar o Cartão da Pessoa com Doença Rara. O objetivo é assegurar que, em situações de urgência e emergência, os doentes tenham os melhores cuidados e os mais seguros, sejam corretamente encaminhados e evitadas intervenções que possam prejudicar o seu estado de saúde ou causar risco para a sua vida.
Existem, entre nós, algumas entidades dedicadas a esta realidade, nomeadamente, a Aliança Portuguesa de Associações de Doenças Raras e a Associação Raríssimas.
Fundada em 2008, a “Aliança Portuguesa de Associações de Doenças Raras” representa as associações que dela fazem parte junto das instituições de saúde nacionais e internacionais, unindo forças para que consigam mudar a realidade de muitos doentes.
A “Associação Raríssimas – Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras” é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, fundada em abril de 2002, com a missão de apoiar doentes, famílias, amigos que convivem de perto com as doenças raras. A frase “Existimos porque há pessoas raras, com necessidades raras” tornou-se o emblema da associação e gerou uma verdadeira chamada de atenção junto da população portuguesa para as dificuldades sentidas por estas famílias.
A Mesa do Colégio de Especialidade de Enfermagem de Saúde Infantil e Pediátrica, da Ordem dos Enfermeiros, assinalou este dia, enaltecendo os enfermeiros e outros profissionais que se dedicam às crianças/famílias que enfrentam esta difícil situação.
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O Papa, num tuíte por ocasião deste dia, centrado este ano nos temas da equidade e do acesso à igualdade de oportunidades para valorizar o potencial dos pacientes, escreveu:
O Dia Mundial das Doenças Raras oferece-nos a oportunidade de cuidar, todos juntos, dos nossos irmãos e irmãs que são afetados, integrando pesquisa, cuidados médicos e assistência social, para que tenham igualdade de oportunidades e possam ter uma vida plena”.
Por seu turno, o Cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson, prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, em mensagem para este dia, acentuando que existem mais de 300 milhões de pessoas em todo o mundo com uma doença rara, um número considerável que não pode ser ignorado e merece atenção, escreveu:
As doenças raras são frequentemente difíceis de diagnosticar e, na maioria das vezes, os doentes afetados por estas patologias e as suas famílias vivem no estigma, na solidão e com um sentimento de impotência, muitas vezes exasperado pelas dificuldades de ter um tratamento específico para a doença rara e uma assistência adequada. Infelizmente, esta situação é ainda mais grave em todos aqueles países onde o sistema de saúde é mais vulnerável.”.
Por isso, o cardeal atribui um papel substancial à pesquisa científica, que precisa da participação dos doentes para obter resultados significativos orientados para as suas necessidades. Com efeito, o conhecimento científico e a pesquisa das indústrias farmacêuticas, mesmo que zelem a proteção da propriedade intelectual e almejem um lucro justo como apoio à inovação, “devem encontrar adequadas composições com direito ao diagnóstico e ao acesso a terapias essenciais, especialmente no caso de doenças raras”, pois está em causa o direito fundamental de todos à saúde e à assistência, que pertence ao valor da justiça, sendo que a distribuição desigual de recursos económicos, especialmente em países de magros recursos, não permite garantir uma justiça em saúde que proteja a dignidade e a saúde de cada pessoa, especialmente entre os mais necessitados e pobres. É por isso que o Dia Mundial das Doenças Raras se centra este ano na justiça e em condições mais justas para as pessoas afetadas por estas situações de doença. 
E, depois de enfatizar que os princípios de subsidiariedade e de solidariedade devem inspirar a comunidade internacional, bem como as políticas de saúde – “para garantir a todos, em particular às populações mais vulneráveis, sistemas de saúde eficientes, acesso equitativo ao diagnóstico e ao tratamento e o apoio e a assistência específica para os doentes e suas famílias” – o purpurado observa:
É importante estudar atividades, em sinergia com os vários atores da área, que possam valorizar o potencial dos doentes raros, porque às vezes o doente pode sentir falta de humanidade”.
E recorda o que Francisco escreveu na sua mensagem para o Dia Mundial do Doente 2020:
Na doença a pessoa sente comprometida não só a sua integridade física, mas também as dimensões relacionais, intelectual, afetiva e espiritual; e por isso, além da terapia, espera apoio, solicitude, atenção... em suma, amor”.
Por fim, o Cardeal Turkson confia a Maria, Salus infirmorum, os que sofrem de doenças raras, “para que nos ajude a estarmos atentos às necessidades uns dos outros e a sabermos como dar com um coração generoso”.
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É importante que todos juntos, ao lado de familiares, assistentes sociais, agentes pastorais e voluntários, em espírito de fraternidade, cuidem dos irmãos e irmãs que sofrem de uma doença rara – perturbadora do quotidiano de quem a sofre e dos envolvidos nela – integrando o apoio médico com atividades, incluindo desportos, e compromissos nas redes sociais que os façam sentirem-se parte dinâmica da sociedade. E, entre nós, passado que está o escândalo da “Raríssimas”, é imperativo que a causa mobilize toda a sociedade e os decisores políticos.
2020.02.29 – Louro de Carvalho  

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Há coisas que não se devem dizer por inconvenientes ou até insultuosas

Há dias, recebi uma chamada telefónica por parte duma agente duma empresa prestadora de serviços a comunicar que um técnico de relações públicas estaria naquele dia na cidade sede do concelho a que pertence a minha área de residência para esclarecimento e propostas. E, talvez para concitar o meu interesse pela entrevista com o predito senhor, lançou-me a questão: O senhor não quer pagar menos na fatura mensal?
Confesso que a pergunta me irritou, porque a recebi como um insulto à minha inteligência. Obviamente todos querem serviços e bens mais baratos e melhores. Porém, quando operadores comerciais nos abordam com as suas propostas e começam por aí, estão a agir mal, em meu entender. Costuma ser a caça ao cliente para, daí a uns meses, se voltar ao custo anterior ou se agravar a oneração da fatura. Por isso, sem me explicar muito, só respondi: “Uma pergunta dessas não se faz por insultuosa”. E desligámos sem atritos visíveis ou audíveis.
Depois, fiquei a pensar que já tinha ouvido coisa do género. Com efeito, há uns oito anos, uma antiga aluna minha de Literatura Portuguesa, tocou à campainha e eu atendi. Queria demover-me de cliente duma determinada operadora telefónica e passar-me para outra por alegadamente prestar um serviço menos oneroso. Respondi agradecendo, mas afirmei que preferia continuar com a mesma operadora, ao que ela retorquiu: “Então prefere continuar a perder dinheiro”. E eu anuí laconicamente: “Pois”!
É lata de técnico de vendas, dir-se-á. Pois, mas também há a lata de políticos e de detentores de cargos públicos. E dou alguns exemplos entre os muitos que poderia referir.
Joacine Moreira, após o diferendo com o Livre, garantiu que iria continuar na Assembleia da República. Poderia aduzir o que todos sabemos: o mandato é do deputado e não do partido e seria deputada não inscrita, como prevê o Regimento da Assembleia da República. Mas foi mais categórica ao dizer que foi para estar no Parlamento que nasceu. Veremos se, nas próximas eleições legislativas, algum partido político se verá obrigado a candidatá-la a deputada e em lugar elegível ou se, em alternativa, será escolhida para assessora de deputado/a ou se será selecionada para o painel do pessoal técnico e administrativo do Parlamento. 
Vitalino Canas, um dos propostos pelo PS para juiz do Tribunal Constitucional (TC), já depois de ter sido o seu nome rejeitado na votação parlamentar, confessou que anda, há 40 anos, a sonhar ser juiz do TC. Sabe-se agora que foi rejeitada por votação a sua escolha, bem como a do outro candidato. Veremos de o PS insiste na sua candidatura, negoceia a sua eleição ou se espera o milagre. Sonhar faz bem, mas a realização do sonho não depende só de nós.
Jorge Sampaio, quando foi galardoado com o Prémio Príncipe das Astúrias, aos jornalistas que lhe perguntavam para quem era o montante em dinheiro do prémio respondeu que era para si, pois “isto está tão mal…”. E, a ver um jogo na Alemanha, já depois de ter deixado a presidência, disse que estava ali a ver futebol e a beber umas cervejas com os amigos, pois já estava nesta “cidadania banal”.
O mandato presidencial de Cavaco Silva ficou conhecido por discursos substanciosos, por avisos bastante assertivos, mas também por atoardas que não lhe ficavam bem, como o caso das vacas felizes ou sorridentes e a desvalorização por eventual saída da zona Euro por parte da Grécia, referindo que, tirando um dos 19 países do Euro, ainda ficavam 18. E, agora, a propósito do debate parlamentar sobre a despenalização da eutanásia, disse uma coisa lastimável, desnecessária e que não ajuda nada a credibilidade dos que “estamos contra a eutanásia e contra a distanásia ou obstinação terapêutica”: que os portugueses deviam tomar nota dos deputados que votassem a favor da eutanásia. Ora, os deputados não podem ser responsabilizados nominalmente pelas suas opiniões e posicionamentos parlamentares. Lá virá o tempo em que os portugueses terão a oportunidade de fazer o julgamento dos partidos, que não o dos deputados em si, aquando das novas eleições legislativas em 2023 ou antes, se a legislatura for encurtada por dissolução da Assembleia da República.
Também o Presidente Marcelo tem um mandato polvilhado de ditos a tempo e fora de tempo em que intervém em áreas cuja competência no tempo dificilmente lhe cabe. Agora, com a instalação do pânico generalizado do novo corona vírus, o Presidente dos afetos reagiu à insinuação de que os contactos podiam ocasionar o contágio, respondeu que não obrigava ninguém a cumprimentá-lo (Ainda não estamos na Coreia do Norte nem na República Popular da China – digo eu). É óbvio que os jornalistas, que são enervantes por vezes, não estavam a pedir-lhe quarentena. No entanto, já depois de a Diretora-Geral de Saúde ter posto a questão da epidemia nos termos corretos, nomeadamente quanto aos equipamentos disponíveis no SNS, aos planos de contingência por parte das empresas, à promessa de seguirem, dentro de dias, orientações para a industria hoteleira e às precauções que os portugueses devem tomar em termos preventivos e aquando dos sintomas, Marcelo Rebelo de Sousa admitiu adequar “a necessidade e a proporcionalidade” dos compromissos internacionais agendados e prometeu, na altura, decidir se é necessário “mudar tudo ou ajustar os planos”.
Ora, se Dom Pedro V tivesse feito tais cálculos, teria deixado de visitar doentes e não teria morrido de febre tifoide. Mas continua a ter razão a personagem Maria de “Frei Luís de Sousa”:
Em pestes e desgraças assim, eu entendia, se governasse, que o serviço de Deus e do rei me mandava ficar, até à última, onde a miséria fosse mais e o perigo maior, para atender com remédio e amparo aos necessitados. Pois, rei não quer dizer pai comum de todos?”.
Por fim, recordo uma entrevista dum juiz de instrução criminal em que referiu não ter amigos ricos, quando estava a supervisionar um processo em que um dos arguidos estava alegadamente envolvido por amigos que lhe pagavam as despesas astronómicas que lhe eram imputadas. E recordo, ainda, aquele juiz desembargador que redigiu um acórdão em que citava a Bíblia para justificar a redução de pena de violência doméstica a um condenado na 1.ª instância por a mulher ter praticado adultério.
Obviamente há muito mais coisas que não devem ser ditas nem escritas. Enfim, há coisas que nem deviam pensar-se, pelo que seria melhor não serem ditas nem escritas, por poderem vir a configurar inconveniência ou mesmo insulto. E se se pensasse antes de falar ou escrever? É que, depois, a palavra já deixa de ser de quem a proferiu e passa a ser de quem a recebe.
2020.02.28 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Aeroporto do Montijo está em risco de não avançar


Apesar de toda a movimentação contra a construção no Montijo um aeroporto complementar ao da Portela, adotada pelo Governo a reboque da Vinci, proprietária da ANA, o único fator que faz parar o projeto é a recusa do PSD e dos partidos à esquerda do PS de anuírem à pretensão do Governo de alterar o diploma legal segundo o qual um projeto desta envergadura não será exequível se houver oposição de alguma das autarquias afetadas. E os partidos da oposição são, neste aspeto, acompanhados por alguns constitucionalistas que entendem que a mudança das regras a meio do jogo pode levantar problemas de constitucionalidade.
De facto, algumas das autarquias afetadas, nomeadamente as da Moita e do Seixal, já fizeram saber da sua oposição ao aeroporto no Montijo, posicionamento que vem na linha de várias outros tomadas de posição, que se destacam as de: “Plataforma Cívica Aeroporto BA6-Montijo Não!”; 8 organizações ambientalistas; Ordem dos Engenheiros Portugueses; e ex-Primeiro-Ministro José Sócrates.  
Mal foi conhecida a nota da APA (Agência Portuguesa do Ambiente), que dava conta da decisão de propor a DIA (Declaração de Impacte Ambiental) favorável condicionada à construção do designado Aeroporto do Montijo e Respetivas Acessibilidades, a “Plataforma Cívica Aeroporto BA6-Montijo Não!” veio esclarecer que sempre afirmou não responder esta opção aos interesses estratégicos de Portugal no domínio das infraestruturas aeronáuticas civis e do desenvolvimento sustentado do país. Com efeito, o uso da BA6 é o que tem mais impactos negativos sobre as populações, sobre a sua saúde e segurança e sobre o meio ambiente envolvente. Além disso, é a pior localização para instalar um aeroporto civil, pois, na principal aproximação sul à pista, situam-se escolas, hospital e instalações industriais caraterizadas pela manipulação, transporte e uso de substâncias voláteis e perigosas; e, na zona sobrevoada na aproximação à pista 01, habitam mais de 30 000 pessoas.
A APA impõe a execução de medidas estruturais de garantia da insonorização das casas, apresentando valores a suportar pela ANA, sem explicar a forma como foram avaliados, as coberturas e condições. E, segundo a nota da APA, confirmam-se todos os perigos, riscos e agressões que têm sido apontados. Mais: a APA refere três áreas a dirimir – avifauna, ruído e mobilidade – esquecendo outras não menos importantes, como a segurança de pessoas e bens, a segurança aeronáutica e os riscos de colisão com aves. Assim, a APA cria um novo paradigma: não são as Infraestruturas que respeitam o Ordenamento do Território, mas é o Ordenamento que se adapta às Infraestruturas. Também nada é referido sobre a mobilidade ferroviária no acesso ao aeroporto e como é que ela será resolvida no futuro, quando o Programa do Governo lhe dá especial prioridade, na linha das orientações da UE.
É do conhecimento público que, na fase de consulta pública, nenhuma das Organizações e Associações ambientalistas se pronunciou favoravelmente ao EIA (estudo de impacto ambiental) e à opção Montijo. E, sendo admissível que a esmagadora maioria das 1180 participações será contrária à construção do aeroporto no Montijo (não foram publicados relatórios), torna-se inexplicável que a decisão de DIA seja favorável, ainda que condicionada. E, ao decidir-se pela DIA, favorável condicionada à tomada de 160 medidas corretivas, evidenciando o montante de cerca de 48 milhões de euros de compensações, a APA está a dar um sinal de contornos perigosos, ou seja, desde que se pague, tudo é possível.
Por seu turno, 8 organizações ambientalistas vão recorrer aos tribunais e à Comissão Europeia para travar o aeroporto no Montijo, por considerarem “ir contra as leis nacionais, as diretivas europeias e os tratados internacionais”. São elas: Almargem, ANP/WWF, A Rocha, GEOTA, LPN, FAPAS, SPEA e Zero – que reiteram que todo o processo “tem forçosamente que ser apreciado no contexto de uma avaliação ambiental estratégica” em que sejam ponderadas todas as opções possíveis. E salientam:
A construção de um novo aeroporto não pode ser decidida como um projeto avulso, desenquadrado dos instrumentos de planeamento estratégico aos quais o país está vinculado, e tem de ter como base o conhecimento mais completo e atual de todas as componentes (climática, ecológica, social, económica, etc.).”.
Entendem as associações que ficam na DIA várias respostas por dar, por exemplo sobre cenários de crescimento do turismo, alternativas ao transporte aéreo (como o comboio, menos poluidor) ou sobre as alternativas ao Montijo – questões que teriam resposta com uma avaliação ambiental estratégica que contemplasse a expansão do aeroporto Humberto Delgado. E, em seu entender, o EIA do novo aeroporto “tem insuficiências graves” porque não avalia corretamente o impacto ambiental do projeto e estabelece medidas desadequadas de compensação e mitigação. Não se consideram devidamente os impactos sobre os valores naturais, nem os impactos para a saúde pública ou para a qualidade de vida das populações. E nem é considerada a questão das alterações climáticas e as emissões de gases com efeito de estufa, que o Governo quer reduzir, nem a segurança de pessoas e bens.
Frisam as associações que o valor da compensação financeira proposta não tem qualquer fundamento quanto à valorização do que se perde, nem qualquer fundamento quanto à eficácia na resolução dum problema real. E, porque o Governo não deu importância a estas e outras preocupações graves levantadas por inúmeras entidades durante o processo de consulta pública, as organizações de ambiente não veem outra alternativa que não seja pô-las à consideração do sistema judicial e das autoridades europeias.
A Ordem dos Engenheiros Portugueses (OEP) arrasa em toda a linha a opção do Governo para o novo aeroporto de Lisboa na base aérea do Montijo. De facto, instituição liderada por Mineiro Aires entende que a opção “é política e resulta de diversas condicionantes, cuja conjugação acabou por ditar um caminho irreversível”, além de considerar que “só pode ser entendida como o entendimento da consequência de um processo que roçou a opacidade e que conduziu o país para essa inevitabilidade”.
O documento de 26 páginas – que integra os contributos de Matias Ramos, antigo presidente do LNEC, e de vários colégios da OEP: colégio nacional de engenharia civil, colégio de engenharia do ambiente e comissão de especialização de transportes e vias de comunicação – recorda que o processo “foi integralmente conduzido pela concessionária ANA, detida pela Vinci” e lamenta que “a engenharia portuguesa não tivesse oportunidade para qualquer intervenção na avaliação de eventuais alternativas possíveis, mas que o arrastar do tempo acabou por aniquilar, pelo que a solução que agora se encontra em processo de AIA (Avaliação de Impacto Ambiental) acabou por inevitável e irrefutável. E, considerando que a alternativa do Campo de Tiro de Alcochete para o novo aeroporto de Lisboa é a mais satisfatória, observa:
Esta solução, que na altura foi politicamente aceite e considerada, é a única que interessa ao país, porquanto permitiria a construção de um aeroporto de raiz, com duas pistas paralelas e demais equipamentos aeroportuários e respetivas acessibilidades e meios de acesso, que configurariam os requisitos de um verdadeiro aeroporto internacional, infraestrutura de que o país não dispõe e que com esta solução continuará a não dispor”.
Com a privatização da ANA, Portugal perdeu a soberania aeroportuária. E a OEP vinca:
Com este contrato de concessão todos os aeroportos nacionais e das regiões autónomas foram concessionados e passaram a ser geridos pela ANA, agora já detida pela Vinci”.
Por outro lado, a instituição dirigida por Mineiro Aires assume:   
 “A Ordem dos Engenheiros não é insensível à falta de capacidade financeira do país para poder avançar com a única solução que entendemos ser consistente e de futuro, que passaria pela construção de um verdadeiro e adequado novo aeroporto de Lisboa (NAL), localizado nos concelhos de Montijo e Benavente, na proximidade de Canha, no campo de tiro de Alcochete, o que entende ser a única justificação para que possamos aceitar a decisão, muito embora esta fundamentação tenha sido muito pouco demonstrada”.
Por outro lado, refere a OEP que nem se chega a saber quanto poderia ter custado uma outra qualquer alternativa, porquanto os interesses da concessionária desde muito cedo se viraram para a reconversão da BA6 (base aérea do Montijo), tudo tendo sido feito nesse sentido”. E frisa a unanimidade da aceitação da evidência de que a solução Montijo irá atingir a saturação muito antes do prazo de concessão terminar.
Do ponto de vista ambiental, a OEP frisa que o EIA sobre o aeroporto no Montijo não apreciou os efeitos do impacto das aves nos aviões, na segurança aeronáutica, que, a seu ver, “constitui uma lacuna grave”, além de subsistirem dúvidas sobre se esta solução será a que assegura melhor os desenvolvimentos regionais colaterais que normalmente se encontram associados à implantação de uma infraestrutura aeroportuária”. E a OEP releva ainda outros aspetos negativos da opção Montijo, como o ruído, qualidade do ar e riscos de contaminação da água.
Sócrates, por sua vez, afirma que, se a solução Montijo for adotada, será a única opção que nunca teve um estudo de comparação com qualquer outra alternativa.
Referindo que a decisão de construir um novo aeroporto, baseada em previsões realistas e no interesse nacional, foi alvo de injustas acusações de despesismo e megalomania e, loando as vantagens do Alqueva para a economia, esgrime a espada pelo aeroporto em Alcochete.  
O primeiro argumento (de natureza ambiental) é que nenhum novo aeroporto internacional de uma capital europeia deve ser construído perto duma cidade ou ao lado duma área protegida e que, para construir um novo aeroporto internacional com pista acima dos 2100 metros, a legislação ambiental impõe a comparação entre lugares possíveis, não permitindo o estudo de um único local, previamente decidido, sendo a isto que se chama avaliação ambiental estratégica.
O segundo argumento tem a ver com a urgência. E à solução Montijo contrapõe Alcochete, que tem o projeto aprovado desde 2010, com avaliação ambiental estratégica aprovada, estudo de impacte ambiental realizado, a respetiva avaliação ambiental aprovada e o parecer positivo das câmaras. Ou seja, Alcochete responde melhor à urgência. É só tirar o projeto do papel.
Depois, aduz a questão financeira. A quem diz que Alcochete é um projeto caro, responde que a sua construção está prevista em fases. Assim, a 1.ª fase de Alcochete, coexistente com a Portela, não é mais dispendiosa que Montijo. E o acesso a Lisboa seria pela ponte Vasco da Gama.
E acrescenta a iniquidade da mudança de legislação a meio do percurso, bem como a legislação “ad hoc” (Aliás, coisas que o político bem soube promover).
A crítica de Sócrates não será vista de soslaio por este Governo, seu herdeiro político?
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Enfim, Portugal nem sequer consegue fazer um aeroporto incapaz de crescer e permeável à subida de nível do Oceano, quanto mais um aeroporto decente como reza o projeto para Alcochete, sem contestação sustentável! Estranha ANA…
2020.02.27 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

O Papa centrou no Mistério Pascal a mensagem quaresmal de 2020


Por motivos litúrgicos e seguindo, por exemplo, a cronologia do livro dos Atos dos Apóstolos (cronologia de caráter teológico na medida em que o mesmo autor, Lucas, no final do 3.º Evangelho já apresenta a Ascensão – cf Lc 50-53), separamos as diversas partes do mesmo e único Mistério Pascal: Ceia, com a instituição da Eucaristia e o mandamento novo do amor e serviço fraternos; Paixão e Morte; Ressurreição, com as aparições às mulheres e aos discípulos; Ascensão; e Pentecostes.
O Mistério Pascal é único, para ele concorre toda a vida de Jesus, que passou pelo mundo a fazer o bem e curando os oprimidos (cf At 10,38). E é isto que João evidencia ao falar da Morte de Jesus já como glorificação: Ceia, Morte, Ressurreição, Ascensão e dom do Espírito são realidades do mesmo mistério, momento e processo. Por isso, João refere que Jesus, “inclinando a cabeçaentregou o espírito(cf Jo 19,30). Não é expressão eufemista a indicar a morte, mas é para dizer que Jesus, à hora da sua morte, inclinando a cabeça, nos entregou o Espírito Santo.
João, ao escrever 60 anos depois dos factos, recorda que as duas aparições do Ressuscitado que relata em Jo 20,19-31 se passaram na tarde no primeiro dia da semana, consagrado como o dia do Senhor, ou seja, a hora em que os cristãos se reúnem para a celebração do Dia do Senhor.
A ressurreição de Jesus não é mero acontecimento do passado; é um acontecimento de ordem sobrenatural e presentificado que nos convoca e compromete hoje como sempre.
O autor do 4.º Evangelho já tinha falado da ressurreição de Lázaro como um sinal de que Jesus é a Ressurreição e a Vida. Mas a ressurreição de Lázaro foi tornar a viver, voltar atrás à vida natural para, mais tarde, voltar a morrer. Ora, a ressurreição de Jesus é um passo para a frente: é vencer a morte para a vida que não mais acaba. Jesus, tendo ultrapassado as barreiras naturais e físicas, é o mesmo, mas de modo diferente. É isto que João diz ao apresentar Jesus, que surge no meio dos discípulos, estando as portas fechadas (vd Jo 20,19-31). Veio e pôs-se no meio deles. Agora, é capaz de se tornar presente para os seus quando quer; e Ele quer estar com os seus em qualquer circunstância. A Paz não é apenas saudação ou desejo, mas dom efetivo da paz, como tinha dito: “Deixo-os a paz, dou-vos a minha paz(Jo 14,27). Depois, fez-se reconhecer pelos elementos da crucifixão: os sinais da morte no lado, nas mãos e nos pés. O que se apresenta aos discípulos não é apenas o Mestre, a personagem do passado, mas o Senhor. Com a ressurreição, Jesus mostra ser verdadeiro Deus porque é senhor da vida e da morte. Já tinha anunciado aos seus amigos, doravante irmãos, que, com a sua visita após a paixão e morte, o seu coração seria inundado por uma enorme alegria (Jo 16,22). Assim, não admira que os discípulos se tenham alegrado ao verem o Senhor. É nesta postura de Senhor da vida e da morte que Jesus, o Enviado por excelência, envia os seus discípulos: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. O conector ‘como’ não estabelece uma simples comparação entre dois atos de envio, mas a continuidade intrínseca de uma missão única: o Filho estende aos discípulos a missão que recebeu do Pai. E, para ela, comunica, soprando, aos discípulos o sopro do Espírito Santo, evocando o ato da criação do homem, em que Deus lhe insuflou nas narinas o sopro da vida, significando que Jesus faz dos discípulos homens novos, animando-os com uma energia diferente, a força de Deus, o Espírito Santo, e conferindo-lhes o poder de perdoar os pecados – poder reservado a Deus e a seu Filho – porque se trata da mesma missão salvífica.
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João começa por relevar a situação da comunidade: anoitecer, portas fechadas, medo – quadro que reproduz a situação da comunidade desamparada em ambiente hostil, desorientada e insegura, uma comunidade que perdeu as suas referências e a sua identidade e que não sabe a que se agarrar. Entretanto, põe-se “no meio deles”. João indica, deste modo, que os discípulos, experienciando o encontro com Jesus ressuscitado, redescobrem o seu ponto de referência, em torno do qual a comunidade se constrói e toma consciência da sua identidade. A comunidade cristã só existe de forma consistente se estiver centrada no Ressuscitado.
Jesus saúda-os, desejando-lhes a paz (shalom, em hebraico). A paz é um dom messiânico, mas, aqui, significa a transmissão da serenidade, tranquilidade e confiança, que permitirão aos discípulos superar o medo e a insegurança, de modo que nem o sofrimento, nem a morte, nem a hostilidade do mundo os poderão derrotar, pois o Ressuscitado está no meio deles. A seguir, Jesus mostra-lhes as mãos e o lado – sinais evocadores da entrega de Jesus, do seu amor total expresso na cruz (na entrega da vida, no amor oferecido até à última gota de sangue), e em que os discípulos O reconhecem. A permanência destes sinais no Ressuscitado indica que Jesus é em permanência o Messias cujo amor se derrama sobre os discípulos e cuja entrega alimenta a comunidade.
Vem depois a comunicação do Espírito. O gesto de soprar sobre os discípulos reproduz o gesto de Deus ao comunicar a vida ao homem de argila (João utiliza o mesmo verbo do texto grego de Gn 2,7). Com o sopro genesíaco de Deus, o homem tornou-se um ser vivente; e, com este “sopro” pascal, Jesus transmite aos discípulos a vida nova e faz nascer o Homem Novo. Agora, os discípulos possuem a vida em plenitude e estão capacitados – como Jesus – para fazerem da sua vida um dom de amor aos homens. Fortificados pelo Espírito, formam a comunidade da nova aliança e são chamados a testemunhar, com gestos e palavras, o amor de Jesus.
Por fim, Jesus explicita a missão dos discípulos: a eliminação do pecado (Não é ele o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo? – cf Jo 1,29). As suas palavras não significam que os discípulos podem ou não (consoante os seus interesses ou disposição) perdoar os pecados. Significam, sim, que são chamados a testemunhar no mundo essa vida que o Pai oferece a todos os homens. E quem aceitar esta proposta será integrado na comunidade de Jesus; e quem não a aceitar continuará a percorrer caminhos de egoísmo e morte, isto é, de pecado. A comunidade, animada pelo Espírito, será a mediadora desta oferta de salvação. 
***
À volta do Mistério Pascal, fonte de reconciliação dos homens com Deus, surge o brado paulino, que Francisco assume com vigor: “Em nome de Cristo, suplicamo-vos: reconciliai-vos com Deus (2Cor 5,20). E, considerando o “Mistério da morte e ressurreição de Jesus, perene da vida cristã pessoal e comunitária, o Papa pretende que voltemos continuamente a este Mistério com a mente e o coração, pois o mistério não para de crescer em nós se “nos deixarmos envolver pelo seu dinamismo espiritual e aderirmos a ele com uma resposta livre e generosa”.
O Mistério Pascal é fundamento da conversão, pois escutar e receber o kérygma, ou seja, a Boa Nova da morte e ressurreição de Jesus, enche de alegria o cristão. Com efeito, estamos perante “o Mistério dum amor tão real, tão verdadeiro, tão concreto, que nos proporciona uma relação cheia de diálogo sincero e fecundo” (cf Exort. ap. Christus vivit, 117). Crer neste anúncio conduz à rejeição da “mentira de que a nossa vida teria origem em nós mesmos”, quando ela nasce, afinal, do amor de Deus Pai, que dá a vida em abundância (cf Jo 10,10). Por isso, o Papa estende a todos os cristãos o que escreveu aos jovens na Exortação apostólica “Christus vivit(n.º 123):
Fixa os braços abertos de Cristo crucificado, deixa-te salvar sempre de novo. E, quando te aproximares para confessar os teus pecados, crê firmemente na sua misericórdia que te liberta de toda a culpa. Contempla o seu sangue derramado pelo grande amor que te tem e deixa-te purificar por Ele. Assim, poderás renascer sempre de novo.”.
Na verdade, a Páscoa de Jesus não é acontecimento do passado, mas, pela força do Espírito Santo, é atual e leva-nos a contemplar e tocar com fé a carne de Cristo nas pessoas que sofrem.
Também a conversão, que é urgente, passa pela contemplação aprofundada do Mistério pascal, que nos testemunha a concessão da misericórdia de Deus, cuja experiência só é possível no contacto face a face – diálogo de coração a coração, de amigo a amigo – com Cristo crucificado e ressuscitado, que nos ama e Se entregou por nós (Gl 2,20). É este o estilo de oração que se recomenda no tempo quaresmal. Na verdade, “o cristão reza ciente da sua indignidade de ser amado”, mas deixando que a oração “escave dentro de nós” e rompa “a dureza do nosso coração”, para o converter cada vez mais a Deus e à sua vontade. E conseguiremos isso se nos deixarmos conduzir como Israel no deserto (cf Os 2,16) fazendo ressoar em nós com maior profundidade e disponibilidade a voz de Cristo, se modo que, envolvidos pela sua Palavra, consigamos experimentar a sua misericórdia gratuita por nós.
Ao proporcionar-nos mais uma vez este tempo favorável de conversão, que não podemos desperdiçar, mas agradecer e permitir que nos sacuda do nosso torpor, Deus mostra a vontade apaixonada que tem de dialogar com os seus filhos.
Face à presença do mal, até dramática, na nossa vida e na vida da Igreja e do mundo, a Quaresma, oferecida para a mudança de rumo manifesta a tenacidade de Deus em não interromper o diálogo de salvação connosco. Essa tenacidade é tal que o Pai fez recair sobre o seu Filho todos os nossos pecados. Este “fez-Se pecado por nós” (2 Cor 5,21). Foi como se Deus se tivesse virado contra Si próprio (cf Enc. Deus caritas est, 12). De facto, Deus ama também os seus inimigos (cf Mt 5,43-48), não se limitando a recomendá-lo a nós. Por outro lado, o diálogo que pretende entabular com cada homem por meio do Mistério Pascal não é como o diálogo atribuído aos atenienses, que passavam o tempo a dizer ou a escutar as últimas novidades, levados por uma curiosidade vazia e mundana (cf At 17,21), tentação também de hoje.
Segundo o Papa, centrar a vida no Mistério Pascal significa sentir compaixão pelas chagas do Crucificado presentes nas vítimas das guerras, das prepotências contra a vida, das variadas formas de violência, dos desastres ambientais, da iníqua distribuição dos bens da terra, do tráfico de seres humanos e da sede desenfreada de lucro, que é uma forma de idolatria. E, se a oração é nevrálgica no cristão e na comunidade, não o é menos o apelo à partilha dos bens com os necessitados por parte dos homens e mulheres de boa vontade, como forma de participação pessoal na edificação dum mundo mais justo. De facto, a partilha, na caridade, torna o homem mais humano, ao passo que a acumulação comporta o risco do embrutecimento no egoísmo. Por isso, diz o Papa, “podemos e devemos ir mais além, considerando as dimensões estruturais da economia”. Assim, nesta Quaresma (de 26 a 28 de março), decorrerá em Assis o encontro de jovens economistas, empreendedores e transformativos, a contribuir para delinear uma economia mais justa e inclusiva, na certeza de que “a política é uma forma eminente de caridade” (cf Pio XI, Discurso à FUCI, 18/XII/1927) e “ocupar-se da economia com o mesmo espírito evangélico, que é o espírito das Bem-aventuranças” também o será.
Enfim, fixando o olhar do coração no Mistério Pascal, nos converteremos ao diálogo aberto com Deus e nos tornaremos o que Jesus diz dos discípulos: sal da terra e luz do mundo (cf Mt 5, 13.14). E isto decorre do Mistério Pascal: batizados, celebramos a Eucaristia, vivemos em comunidade.
2020.02.26 – Louro de Carvalho

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Generais alertam Marcelo para a “pré-falência” das Forças Armadas


Nos últimos quatro anos o Comandante Supremo das Forças Armadas tem recorrentemente apelado para o reconhecimento do papel dos militares na sociedade portuguesa e no mundo por parte do Governo e das populações e tem encarecido a capacidade e o aprumo com que têm desempenhado as mais diversas missões que lhes têm sido confiadas. Todavia, o desrespeito pela instituição militar tem sido palmar por parte dos sucessivos governos – e este não é exceção – quer na falta de investimento nas infraestruturas, quer na valorização das condições de prestação do serviço, o que leva muita gente a concluir pela inutilidade das Forças Armadas (FFAA) num pequeno país como o nosso.
Por outro lado, surgem casos que nada abonam em favor dos servidores militares, de que se destacam: a suposta discriminação de orientação sexual no Colégio Militar; a morte de dois instruendos num curso de comandos; e o furto e recuperação de material de guerra dos PNT (Paióis Nacionais de Tancos). Nestes casos, sobrepôs-se à disciplina e à justiça militares a vertente civil da disciplina e da justiça (esta mais complacente, morosa e ineficaz) por via da desconfiança na capacidade de a instituição militar ministrar a disciplina (que tem sido inconclusiva e passível de recuos) e pelo facto de terem acabado os tribunais militares para os crimes estritamente militares em tempos de paz. E, por fim, regista-se o abandono em barda das fileiras por parte das praças e, recentemente, também dos oficiais (15111 militares saíram das FFAA em 5 anos) e é difícil preencher as vagas nas academias militares e na Escola Naval, bem como as abertas para oficiais contratados. 
A culpa deste estado de degradação é, sem dúvida, dos governos e dos chefes militares.
Entretanto, como noticiava o Expresso, do passado sábado, dia 22 de fevereiro, e refere o DN, de hoje, dia 25, quatro oficiais-generais assinaram uma carta de alerta dirigida ao Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas. Desses, três são ex-chefes do Estado-Maior: o general Manuel Taveira Martins, ex-chefe do Estado-Maior da Força Aérea, o general José Pinto Ramalho, ex-chefe do Estado-Maior do Exército, e o almirante Fernando Melo Gomes, ex-chefe do Estado-Maior da Armada. O quarto oficial-general é o major-general Luís Sequeira, ex-secretário-geral do Ministério de Defesa Nacional (MDN). São todos presidentes dos órgãos dirigentes do Grupo de Reflexão Estratégica Independente (GREI), que integra um vasto conjunto de oficiais-generais dos três ramos, na reserva e na reforma, que desempenharam cargos de alta responsabilidade na hierarquia das FFAA e na GNR. E foi em nome do GREI que tomaram a iniciativa de escrever àquele que é o garante constitucional do funcionamento das instituições democráticas.
Os subscritores dizem estar a assistir “com preocupação ao contínuo processo de degradação das Forças Armadas e ao consequente aumento das vulnerabilidades do sistema de defesa nacional e da posição do país no quadro das alianças que integra”.
E os generais apresentam dez razões para o “estado da arte”:
- A reforma estrutural iniciada em 2013 designada “Defesa 2020” teve resultados muito aquém dos objetivos, do que resultaram consequências gravosas que urge reverter. O Governo de então pretendia “obter ganhos de eficiência, economias de escala e vetores de inovação” e, sobretudo, “racionalizar a despesa”. Porém, as reformas passaram a privilegiar a redução de despesa como um fim, quase sempre com prejuízo dos critérios de racionalidade económica e militar. Assistiu-se a cortes aleatórios nos orçamentos e nos efetivos, à alienação e abandono de infraestruturas, ao cancelamento de programas de reequipamento e à venda de equipamentos sem se proceder à indispensável substituição.
- As despesas com pessoal, operação e manutenção “têm estado abaixo dos montantes” necessários para “garantir a prontidão operacional”, pelo que “têm crescido as dificuldades de manutenção e a sustentação no âmbito geral das FFAA, com maior incidência na Marinha e na Força Aérea, pelas caraterísticas dos meios que operam”. O calendário e fluxos financeiros da LPM (Lei de Programação Militar) sofrem frequentes descontinuidades por via de cativações, deduções, transferência de saldos e, em certos casos, dificuldades associadas à complexidade técnica e administrativa dos processos; a “conservação, manutenção, segurança, modernização e edificação de infraestruturas” têm sido “insuficientemente realizadas”; há “graves deficiências a nível da habitabilidade e funcionalidade de muitas infraestruturas”; e a Marinha, perdido o navio reabastecedor, limita a sua capacidade operacional às águas nacionais.
- Na reforma “Defesa 2020”, previa-se um efetivo nas FFAA de 30 a 35 mil. Porém, no final da década passada (2018-2019), o número estava 30% abaixo desse valor e, no Exército, era de 50% – mínimos nunca verificados nas FFAA. Quanto à falta de efetivos, o estado das FFAA é grave, mas no caso do Exército é de “emergência institucional”, pois “uma unidade do Exército só é passível de emprego operacional quando o seu potencial de combate, em pessoal e material, se encontra acima dos 75%”. A situação é insustentável e “já compromete o cumprimento de algumas missões atribuídas”.
- As alterações ao estatuto dos militares das FFAA penalizaram os fatores influenciadores da carreira, nomeadamente na passagem à reserva e à reforma, no condicionamento das promoções e na consequente progressão na carreira.
- O conceito de condição militar, definido na lei desde 1989, tem vindo a ser descaraterizado de tal forma que hoje não passa de um slogan que objetivamente penaliza os militares.
- O sistema remuneratório dos militares das FFAA “tem sofrido um progressivo desajustamento em relação a outros setores da administração pública equiparáveis, quer no leque salarial, quer nas condições de reforma, quer na remuneração dos cargos de topo na carreira”.
- Tem-se acentuado a “tendência para desvalorizar as qualificações dos militares em relação a funcionários civis”, com “o progressivo afastamento de militares dos cargos superiores do Ministério da Defesa”.
- Há vários problemas de vulto no sistema de saúde militar. Por exemplo, o Hospital das Forças Armadas “continua a ser afetado por insuficiência de recursos humanos, de valências e de infraestruturas que o impedem de garantir com eficácia a suas finalidades” (não acolheu todos os casos do curso de comandos em que morreram dois instruendos). A reforma realizada “piorou as condições de assistência dos militares e das suas famílias, sem qualquer poupança de recursos materiais e humanos”. E, no atinente ao IASFA (Instituto de Ação Social das Forças Armadas), ressalta a “dívida acumulada de várias dezenas de milhões de euros”, por lhe ter sido atribuída a responsabilidade pelos custos da ADM (assistência na doença aos militares) sem a correspondente contrapartida.
- Indica-se como ponto negativo para a situação das FFAA o facto de – pelas alterações no processo da justiça e da disciplina militar, “bem como medidas avulsas que limitam a liberdade e a manobra das chefias militares no domínio administrativo e financeiro” – existirem reflexos negativos a nível do comando da hierarquia e da disciplina e na eficácia e eficiência militares.
- Tudo isto deu azo ao fomento da utilização crescente de redes paralelas e horizontais de associação e de informação no espaço digital. Daí “o enfraquecimento da cadeia hierárquica e a emergência de condições favoráveis ao aparecimento de fenómenos inorgânicos”.
Alguns partidos já reagiram: PCP, CDS e PS. Até ao momento não conheço comentários do PSD e do BE. Mas, por exemplo, o PCP entende que o aviso dos generais “tem razão de ser”, mas sem “novidade nas situações descritas, em relação às quais as associações profissionais têm vindo a alertar”. E o deputado António Filipe, responsável pela defesa no grupo parlamentar do PCP, lembra que estas situações não nasceram hoje e que “já eram denunciadas pelas associações quando alguns dos generais que subscrevem a carta eram chefes dos ramos”. Por isso, sublinha que não podem isentar-se de “alguma quota de responsabilidade”. O deputado reconhece que são “problemas reais” e que, para serem solucionados “exigem vontade política muito forte”. Com efeito, para “criar condições de atratividade é preciso rever as condições salariais e de saídas profissionais”. Considera o atual Ministro da Defesa Nacional “melhor do que os antecessores” e a “querer resolver os problemas”, só que o problema são “as ‘contas certas’ – a margem de manobra é zero e quaisquer outras medidas além da Lei de Programação Militar têm obstáculos enormes”.
Por seu turno, o presidente do CDS salienta que “as Forças Armadas desempenham um papel fundamental no exercício da soberania e na defesa da independência nacional, do território, dos cidadãos e do Estado de direito democrático”. Por isso, vinca:
A sustentação das Forças Armadas, a preservação do interesse nacional e o reforço do prestígio externo de Portugal recomendam um diálogo político-militar construtivo e um amplo consenso político entre os principais partidos”.
Francisco Rodrigues dos Santos, mostrando-se apreensivo “com o facto de o número de efetivos se encontrar abaixo do exigível, com a fraca atratividade da carreira militar, especialmente para os mais jovens, e com os baixos níveis de investimento na segurança cooperativa no exterior”, diz que devem ter as FFAA todas as condições de eficácia, operacionalidade e adaptabilidade “às mudanças que se verificam em termos internacionais – nomeadamente o terrorismo, o cibercrime e a segurança na gestão dos recursos”. E, contra a precariedade nas FFAA, observa:
Com vista a resolver estas dificuldades, é necessária convergência política e militar nas seguintes respostas: rever o estatuto remuneratório das Forças Armadas; criar um quadro permanente de praças no Exército e na Força Aérea; implementar modelos alternativos de recrutamento voluntário nas Forças Armadas; apostar na segurança cooperativa no quadro das alianças internacionais em que Portugal está inserido, uma vez que segurança afastada de Portugal é também a nossa própria defesa.
Já o PS não tem dúvidas de que o Governo tem vindo a priorizar o investimento nas FFAA e na LPM (duvido), que resultou de consenso alargado no Parlamento. Diogo Leão, membro da Comissão de Defesa Nacional, diz que, em relação às dificuldades de recrutamento, “os problemas não são novos e têm vindo a degradar-se na última década”. E julga “extremamente redutor” que “só melhores salários e carreira” possam determinar a atratividade para o ingresso nas FFAA, pois, “para muita gente, as Forças Armadas são uma vocação e não apenas uma profissão”. O deputado não comenta em concreto a iniciativa dos generais, por desconhecer o teor da carta e, quanto à oportunidade da mesma, responde:
Nada a censurar. Tendo muito respeito pelos quatro oficiais-generais que subscrevem a carta, devemos valorizar todo o debate que se faça na sociedade e que contará com a experiência destes generais que ocuparam cargos relevantes.”.
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Um Estado tem de ter FFAA sólidas, mesmo que a sua soberania seja apenas simbólica. E o país é mais que um símbolo e os seus compromissos com a população e o mundo são prementes.
2020.02.25 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Do “Sede santos” ao “Sede perfeitos”


Uma passagem conhecida do Livro do Levítico (vd Lv 19,1-2.17-18) releva a ordem de Deus a Moisés no sentido de que diga ao Povo de Israel: “Sede santos porque Eu, o vosso Deus, sou santo”. Na verdade, a comunhão com o Deus santo postula o cultivo da santidade por parte dos membros do povo de Deus.
E, se a lei da santidade atinge as mais diversas vertentes da vida humana, a predita ordem de Deus pretende o comportamento “justo” para com os irmãos, membros da comunidade do Povo de Deus – que passa pela destruição das raízes do mal que se inculcam e desenvolvem no íntimo do homem – de modo que nos corações de ninguém haja ódio ou rancor contra os irmãos. Por outro lado, a expressão do convite à santidade na vertente fraterna é “amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Ser santo ou amar o próximo é o princípio fundamental da Lei que Jesus retoma, aprofunda e expande, sobretudo na redefinição de quem é o nosso próximo.
Nesta linha de pensamento, o sacerdote que presidiu à celebração eucarística no dia 23, o 7.º domingo do Tempo Comum no Ano A, depois de perguntar quem foi batizado – questão a que responderam todos os presentes –, fez a seguinte pergunta: “Quem de vós é santo?”. E, apesar de o sacerdote manter o seu braço levantado, quase ninguém se apresentou como santo. Ele reagiu dizendo que ou lhe mentimos quando respondemos que éramos batizados ou agora que não nos reconhecemos como santos; e advertiu que não estava a perguntar se todas as nossas atitudes e ações eram santas, mas se nós éramos santos.
Depois, esclareceu que todos os batizados são santos porque Deus lhes colocou nos corações as raízes da santidade e lhes confiou a administração do dom da santidade, avisando que nem os que honramos como santos de altar foram perfeitos em tudo o que fizeram, mas que se esforçaram pela oração e pelas ações por serem um pouco melhores de dia para dia, pois a perfeição resulta dum processo contínuo de aperfeiçoamento, por vezes heroico.
E, apesar de não nos podermos arvorar em perfeitos ou melhores que os outros, como faziam os fariseus, a verdade é que o sacerdote tem razão. Com efeito, pelo Batismo, tornamo-nos filhos de Deus, herdeiros do Céu, templos do Espírito Santos e membros desta Igreja peregrina e santa (em Cristo, sua cabeça, totalmente santo, e em tantos dos seus membros), embora pecadora em muitos dos seus membros que incorrem, pelo menos, no pecado de omissão e de não busca da perfeição – o que os leva a reconhecerem-se pecadores e necessitados do perdão de Deus.
Tanto assim é que os seguidores de Cristo se autodenominavam de “santos”, passando a designar-se “cristãos” a partir do estabelecimento da Igreja em Antioquia.
É por isso que Paulo (1Cor 3,16-23) pergunta: “Não sabeis que sois Templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?”. Na verdade, o Templo era considerado, no contexto veterotestamentário, o lugar por excelência da presença de Deus no meio do seu Povo, sendo aí que Israel se encontrava com o seu Deus e estabelecia comunhão com Ele. Porém, o verdadeiro Templo da nova aliança é a comunidade cristã e o coração de cada crente em Jesus Cristo. De facto, nós somos o palácio onde Deus habita. E onde dois ou três estiverem reunidos em nome de Cristo, Cristo estará no meio deles (cf Mt 18,20). Porém, ser Templo de Deus implica superar a preocupação de procurar a “sabedoria do mundo” que leva, tantas vezes, à emulação, ao ciúme, à rivalidade, ao confronto, ao conflito. Por isso, o Apóstolo exorta os coríntios a deixarem a “sabedoria do mundo” e a deixarem que seja “sabedoria de Deus” (amor até ao extremo, dom da vida) a orientar a vida de cada um e da comunidade, mesmo que seja alicerçada na loucura e no escândalo da cruz de Cristo, segundo judeus e gentios, mas salvação para os crentes.
Obviamente estas afirmações de Paulo não significam aversão a todos os valores humanos ou renúncia à ciência e ao conhecimento, mas apenas querem dizer que o segredo da felicidade e da realização do homem não está na ciência, na técnica, na eloquência, na definição dum esquema filosófico que explique cabalmente a vida do homem: está, antes, em Jesus que, em toda a sua vida e, de forma eminente na cruz, testemunhou que só o amor, a doação, a entrega, o serviço, geram vida plena e fazem nascer o Homem Novo. Assim, tudo é nosso, mas nós somos de Cristo e Cristo é de Deus. E, por Cristo, o mediador da salvação, chegaremos a Deus.
***

Mais do que a santidade na ótica veterotestamentária, que implica destacar-se do mundo ou do contexto dos povos para se entregar à comunhão com o Deus da Aliança, Cristo (vd Mt 5,38-48) exorta à perfeição: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”. Ora, isto continua a ter como referência Deus, o Pai celeste, e afina, exigindo mais, os preceitos da Lei.
Assim, já não basta a lei de Talião, que tem forte respaldo veterotestamentário, mas que se limita a evitar vinganças excessivas e brutais. Jesus, ao invés, propõe uma lógica inteiramente nova: é preciso acabar, de uma vez por todas, com a espiral de violência; para isso, Jesus propõe que os seus seguidores e membros do Reino sejam capazes de interromper o curso da violência, assumindo uma atitude pacífica, de não resistência, de não resposta às provocações.
Em concreto, Jesus apela a que não se responda com a mesma moeda a quem nos agride fisicamente, mas que se desarme o violento oferecendo a outra face. Isto não cabe na lógica do mundo, mas é plausível na lógica do Reino de Deus. E há, graças a Deus, pessoas que encaixam esta lógica. Por exemplo, a freira que, andando na rua a pedir para os pobres, recebeu um escarro do interlocutor, nobremente disse: “Já tenho a recompensa, só falta a dos pobres”. E o interlocutor, vencido, deu-lhe uma avultada esmola. Pessoalmente, tive um caso em que, a um pedido de colaboração por parte dum editor de rádio para um determinado programa, o desanquei por atitudes que assumiu no passado, estando a minha pessoa e cargo em causa. E ele reagiu, humildemente, dizendo: “Já tenho a paga, só falta a colaboração para o programa”.   
Outra coisa que não cabe na lógica do mundo, mas cabe na do Reino, é a entrega da capa (que servia para proteger dos rigores da noite) a quem exigia a entrega da túnica (peça que não era tirada senão ao que era vendido como escravo). Igualmente Jesus cita o caso de quem exige o acompanhamento por uma milha e que, na ótica de Cristo, deve ser acompanhado por duas milhas – alusão à prática das patrulhas romanas que, desorientadas, requisitavam os habitantes palestinos para as guiarem durante algum tempo. Além disso, o Mestre recomenda que não se ignore, nem se deixe sem atender quem pede dinheiro emprestado.
Com isto, Mateus quer dizer que os membros da comunidade de Jesus manifestam a todos um amor sem medida, muito além daquilo que é humanamente exigido. E, assim, inauguram uma nova era de relações entre os homens.
Depois, o Evangelho propõe o amor aos inimigos. Alegadamente a Lei antiga manda “Ama o teu próximo e odeia o teu inimigo(ora, a Lei prescreve o amor ao próximo, mas não o ódio aos inimigos). O verbo “odiar”, nas línguas semitas, pode apenas significar “não amar”. No entanto, o amor ao próximo havia adquirido, na época de Jesus, um sentido muito restrito: era o amor aos mais chegados que incluía, quando muito, todos os israelitas, não atingindo, em caso algum, os não membros do Povo eleito. Por isso, a exortação de Jesus configura uma verdadeira novidade e postula uma autêntica revolução das mentalidades. Para o Mestre dos mestres, não basta amar aqueles a quem nos sentimos ligados por laços étnicos, sociais, familiares ou religiosos; pelo contrário, o amor deve atingir todos, sem exceção, incluindo os inimigos, o que implica rezar por aqueles que nos perseguem e caluniam. Esta impõe-se como a condição para a filiação divina, “para serdes filhos do vosso Pai que está nos Céus”, que “faz nascer o sol sobre bons e maus e chover sobre justos e injustos”.
Fica, assim, abolida qualquer forma de discriminação, bem como todo o tipo de barreiras que separam os homens. E o amor de Deus para todos e cada um é a razão do amor que os discípulos do Reino hão de dedicar a todos os homens e mulheres que Deus coloca no seu caminho. Ser filho de Deus é parecer-se com Deus na afeição e na ação.
Descendo à terra pela mão de Cristo, impõe-se que amemos como Ele nos amou, que façamos como Ele fez, que procedamos como Ele mandou – crendo, amando e servindo –, pois assim teremos a vida e a teremos em abundância.
Se na lógica veterotestamentária a ordem é a santidade porque Deus é santo, doravante o apelo é que sejamos perfeitos porque Ele é perfeito e quer que nós também o sejamos. Aqui temos a síntese do ensinamento que Mateus pretende apresentar catequeticamente à sua comunidade: viver na dinâmica do Reino exige a superação da perspetiva legalista e casuística, para viver em comunhão total com Deus, deixando que a vida de Deus, que nos enche o coração, se manifeste na vida quotidiana transformando as relações interpessoais em verdadeiras relações fraternas.
Para tanto, há um longo caminho a percorrer no aperfeiçoamento contínuo com a ajuda de Cristo, o fac totum em nome do Pai. Sem Ele nada podemos fazer e sem o Espírito Santo que o Pai e o Filho nos enviaram nem sequer sabemos o que devemos pedir. Mas com Ele tudo poderemos, tudo conseguiremos.
2020.02.24 – Louro de Carvalho