O juiz Carlos Alexandre está a dirigir a
instrução do processo sobre o furto e a recuperação do material furtado em
Tancos.
Como a defesa do ex-Ministro da Defesa Nacional (ex-MDN), pretendia que fosse ouvido como testemunha o
Primeiro-Ministro (PM). E o
juiz, querendo ouvi-lo presencialmente, solicitou ao Conselho de Estado a
autorização para que o PM depusesse no TCIC (Tribunal Central de Investigação Criminal), também conhecido
por Ticão. E o Conselho acolheu em parte a solicitação do TCIC, pois autorizou
o PM a depor, mas por escrito, tal como este solicitou.
Face a esta autorização do Conselho de Estado, a
defesa do ex-MDN prescindiu dessa audição deixando ao juiz o ónus da elaboração
ou não das perguntas.
Não obstante, o juiz de instrução criminal enviou
ao PM um questionário com 100 perguntas. A comunicação social deu oportunamente
conta das mesmas. Porém, agora que António Costa deu as 100 respostas, são
novamente conhecidas as perguntas e as respetivas respostas.
O teor das perguntas leva a algumas considerações
sobre do zelo do juiz em causa. Pode não se concordar com a personalidade do
magistrado, com o seu provável acantonamento ideológico, com as suas asserções em
entrevistas a insinuar-se distante de uns determinados arguidos e acima de toda
a suspeita, com o seu apego a tribunais de instrução, sem pretensões de
progressão na carreira e promoções, mas é certo que tem capacidade de trabalho,
revela coragem e zelo na autorização das investigações, na análise dos processos
e na direção da instrução. Porém, deve saber o que António Costa também sabe,
ou seja, quod nimis probat nihil probat
(o que prova em demasia nada prova) e há questões que nada interessam ao processo em
curso, como não vale tentar, através do interrogatório, transformar uma testemunha
em arguido.
Assim, por exemplo, embora seja importante, do
ponto de vista político, saber-se do conhecimento que o PM teria ou não do
estado de degradação da segurança dos paióis nacionais de Tancos (PNT), não é em tribunal que se afere a responsabilidade
política da ação ou omissão do Governo. Algo semelhante há que dizer de outras questões
como se o ex-MDN tinha conhecimento das condições de falta de segurança das
preditas instalações ou o atinente aos conteúdos das conversas do PM com o
Chefe de Estado, o ex-MDN, os chefes militares e as entidades responsáveis pela
segurança da República a propósito do furto.
Já as questões relativas ao conhecimento que o
ex-MDN teria ou não sobre os termos da recuperação dos materiais furtados interessavam
obviamente para este processo, bem como aquilo que o PM e o Chefe de Estado eventualmente
soubessem. Porém, aqui o juiz podia estar a resvalar para um campo sensível para
o qual o TCIC não tem competência para inquirir. A responsabilidade criminal do
Chefe de Estado e do PM tem que decorrer sob autorização e no âmbito do STJ (Supremo Tribunal de Justiça). E obviamente
Costa não ia deixar que acontecesse o resvalo sob pena de o processo judicial ficar
pelo caminho.
***
Assim, o PM respondeu
– por escrito, na tarde do dia 4 – ao questionário que o juiz Carlos Alexandre
lhe fez no âmbito da fase de instrução do caso de Tancos. É um documento de 50
páginas sendo 49 ocupadas pelas perguntas e respostas. A notícia foi avançada
pelo Correio da Manhã e confirmada ao
Diário de Notícias por fonte
governamental. O gabinete do Primeiro-Ministro divulgou, na íntegra, as
respostas, sendo de relevar que o chefe do Governo nega ter tido conhecimento
da encenação em torno da descoberta das armas.
A divulgação
das respostas foi justificada pelo gabinete do PM assim:
“Tendo sido postas a circular
versões parciais do depoimento do Primeiro-Ministro como testemunha arrolada
pelo Professor Doutor José Alberto Azeredo Lopes, entendeu o Primeiro-Ministro
dever proceder à divulgação pública integral das respostas a todas as questões
que lhe foram colocadas e que constam do depoimento já entregue ao Tribunal
Central de Instrução Criminal, às 16,22 horas, do dia 4 de fevereiro de 2020.”.
Por 29 vezes
António Costa responde com um simples “Não”,
ou seja, na maior das vezes em que é questionado sobre as manobras
preparatórias da descoberta das armas e o conhecimento que o ex-MDN teria ou
não delas. As respostas poderão suscitar pedidos de esclarecimento dos
advogados e do Ministério Público (PM). E “Não” foi também a sua resposta à multíplice pergunta central
do questionário (pergunta 95):
“E o senhor Primeiro-Ministro? Teve
em algum momento conhecimento de que se tratava de uma recuperação encenada
efetuada mediante um acordo com os detentores do material de guerra e mediante
uma investigação paralela? Quando? De que forma?”.
O Exército
deu público conhecimento, em 29 de
junho de 2017, do desaparecimento de material de guerra dos PNT,
ocorrido na véspera. Em 18 de
outubro do mesmo ano, a PJM (Polícia Judiciária Militar) anunciou que o material havia sido descoberto num terreno
na Chamusca, referindo que a operação envolvera a GNR de Loulé.
O PM afirma que
só um ano depois – na manhã de 12 de outubro de 2018 – é que teve acesso a um
documento, “não assinado, não datado e não timbrado”, supostamente do major
Vasco Brazão (inspetor da PJM), que detalhava
como teria sido combinada com um “informador da PJM” a devolução do material
roubado.
Costa conta
que mostrou, nessa altura, o documento ao então ainda Ministro da Defesa, hoje o
principal arguido do caso, tendo ficado com a convicção que ele nunca o tinha
visto anteriormente: “O então MDN nunca me deu conhecimento de ter
lido o referido documento”. Foi precisamente a 12 de outubro de 2018
que Azeredo Lopes se demitiu de Ministro da Defesa Nacional. O chefe do Governo
diz que obteve o documento depois de instruções dadas nesse sentido à sua
assessoria militar e quando o caso estava a ser amplamente noticiado e até o
PSD já o tinha explorado politicamente.
Nunca falou com nenhum elemento da
Casa Militar do Presidente da República sobre este assunto. E, questionado
sobre “em que moldes” falou com o Presidente sobre o assunto, a resposta é
genérica:
“Nos
termos da Constituição da República Portuguesa, mantenho permanentemente
informado Sua Excelência o Presidente da República acerca dos assuntos
respeitantes à condução da política interna e externa do País”.
O PM também explica porque é que em 26 de outubro de 2018 disse,
questionado por jornalistas, que não conhecia o documento de Vasco Brazão,
quando na verdade o conhecia desde 12 de outubro:
“O contexto
temporal da pergunta reportava-se ao momento da recuperação do material, isto
é, outubro de 2017. E nessa altura, outubro de 2017, não tinha qualquer
conhecimento do ‘documento’.”.
No seu entender,
da leitura que fez do predito documento, além de confusão, só podia tirar três
conclusões: a PJM queria recuperar o material furtado; havia um informador cuja
identidade se tentava proteger; e a PJM procurava ocultar a operação à PJ. Ou,
seja: do documento o PM não retirou a conclusão de que a descoberta das armas
tivesse resultado de uma encenação.
Um ano
antes, em 20 de outubro de 2017 (três dias depois do achamento do material roubado), o documento havia sido entregue pelo então diretor da
PJM, coronel Luís Vieira (um dos arguidos) ao chefe de
gabinete de Azeredo Lopes, tenente-general Martins Pereira – o que permite ao
MP supor que Azeredo Lopes soube da encenação montada pela PJM para a
descoberta do material logo após esta ter acontecido, mas nunca a revelando ao
MP (que tanto
investigava então o desaparecimento das armas como o seu achamento). A este respeito, Costa reitera o que já tinha dito
na comissão parlamentar de inquérito (CPI) ao caso de Tancos:
“Considero que o professor doutor Azeredo Lopes sempre desempenhou com
lealdade as funções de ministro da Defesa Nacional”.
Quando lhe é
perguntado se o Ministro poderia ter dado a concordância ao diretor da PJM,
coronel Luís Vieira (também arguido neste processo) para que as diligências necessárias à descoberta do
material furtado em junho de 2017 fossem feitas com desconhecimento do MP e da
PJ diz não crer que isso pudesse ter acontecido. E, face à pergunta como
explicava o facto de o “documento Brazão” não ter sido transmitido pelo Ministério
da Defesa à investigação criminal que estava a ser conduzida pelo MP ou à PGR,
respondeu:
“Não posso propor qualquer explicação para um facto que não era do meu
conhecimento e sobre o qual não tive qualquer domínio”.
Na resposta
ao questionário, António Costa, que teve conhecimento do desaparecimento do
material de guerra, a 28 de junho de 2017, por Azeredo Lopes, diz que soube do
achamento das armas através de contacto telefónico do Ministro da Defesa, “na
manhã do próprio dia da recuperação” e reconhece ter “estranhado” que o
comunicado da PJM falasse na colaboração da GNR de Loulé, tendo em conta a
distância entre Loulé e o local da operação, mas admitiu que “resultasse de uma
operação que decorrera em diversas localidades”. Refere também que não lhe
suscitou “perplexidade” ter a descoberta das armas sido anunciada pela PJM (e não pelo
MP, que tutelava o inquérito), pois supunha
que na altura que a PJM atuasse “no quadro da colaboração institucional” com o
MP.
O PM nega, pois,
que Azeredo Lopes lhe tivesse dado conhecimento de que a PJM iria continuar a
investigar o roubo das armas numa investigação paralela, apesar de a PGR (Procuradoria-Geral
da República) ter
determinado que o inquérito estava totalmente por conta do MP. Nunca falou do assunto (ou de qualquer outro) com o então diretor da PJM, coronel Luís Vieira, também arguido. Apenas
com o Ministro da Defesa e outros membros do Governo, com o Presidente da
República, com os chefes dos serviços secretos (SIS e SIED) e com a secretária-geral do Sistema de Segurança
Interna (SSI), bem como com o CEMGFA e outras chefias militares (os chefes
dos ramos, por exemplo), numa
reunião por si convocada em 11 de julho de 2017.
***
Enfim, Costa, na sua habilidade e laconismo, pouco mais adianta ao
tribunal que o referido na informação à CPI e não é crível que ulteriores
esclarecimentos a solicitar tragam qualquer novidade. É a condição do político
batido, do jurista hábil e a condição do detentor de alto cargo público que
dificilmente é obrigado a descer do pedestal enquanto se mantiver no exercício
do cargo. Em todo o caso, as respostas do PM abonam em parte a idoneidade, a
boa-fé e a lealdade do ex-ministro. Não sei se é o que o juiz pretende. Talvez o
juiz quisesse saber mais pormenores, mas o longo interrogatório com os
expectáveis e lacónicos “não”, os óbvios
“sim” (que
também existem) e as questões pouco úteis ao processo não lhe facilitaram a consecução
do objetivo de descobrir toda a verdade, o que duvido venha a suceder. É o condicionamento
da justiça pela política e uma certa judicialização da política, espelhada esta
na tentativa de saber pormenores sobre eventual responsabilidade dos políticos
na degradação das instalações dos PNT e sobre o conteúdo relacional das
conversas entre chefias militares e políticos.
2020.02.05
– Louro de Carvalho
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