Carlos Alexandre, o juiz encarregue da instrução
do caso de Tancos, não desarma e insiste em incomodar o Primeiro-Ministro.
A princípio, porque este fora arrolado como
testemunha pela defesa de Azeredo Lopes, o juiz quis ouvi-lo presencialmente;
depois, apesar de a defesa prescindir dessa audição, o magistrado insistiu na
audição presencial do Primeiro-Ministro, que não teve acolhimento no Conselho
de Estado, mas apenas a possibilidade de o governante depor por escrito.
Assim, Carlos Alexandre formulou 100 perguntas a
que o deponente respondeu com prontidão, obviamente como entendeu,
provavelmente não como o tribunal pretendia.
Quase ao mesmo tempo que foi conhecido o envio
das respostas do Chefe do Governo ao TCIC (Tribunal
Central de Instrução Criminal), assistiu-se a publicações parcelares da
resposta ao questionário das 100 perguntas. Alegando laconicamente esse facto,
o gabinete de António Costa publicou na página oficial do Governo a totalidade
das respostas ao referido questionário.
Vai daí, o juiz Carlos Alexandre, dizendo ter conhecimento
de que fora publicada num site do Governo uma cópia das respostas
que o Primeiro-Ministro deu por escrito sobre o caso de Tancos, decide de imediato notificar o Ministério Público (MP) de que foi publicada uma cópia, num site do Governo, das respostas sobre o
caso de Tancos que o primeiro-ministro, António Costa, deu por escrito ao TCIC.
E recordava que o caso está em segredo de justiça externo, pelo que solicitou ao
MP que se pronunciasse sobre esta divulgação. Neste sentido escreveu:
“Tendo consciência de que os autos se
encontram em segredo de justiça externo e dado que tomei
conhecimento de que, na página oficial da Presidência do Conselho de
Ministros foi decidido publicar cópia (...) alegadamente idêntica às respostas
contidas no depoimento escrito que ontem foi rececionado no Tribunal, após as
16 horas (...), notifique-se o Ministério Público, para se pronunciar sobre
esta divulgação, da qual se juntará um print que ora lhe
apresento.”.
Na própria
página oficial do Governo na Internet, Costa tinha já justificado a publicação
do documento nos seguintes termos:
“Tendo sido postas a circular versões
parciais do depoimento do chefe do executivo, como testemunha arrolada por José
Alberto Azeredo Lopes, entendeu o Primeiro-Ministro dever proceder à divulgação
pública integral das respostas a todas as questões que lhe foram colocadas”.
A isto o
professor universitário de Direito Penal e advogado de Azeredo Lopes, Germano
Marques da Silva, declarou que a decisão do Primeiro-Ministro “não mereceu
qualquer atenção, uma vez que, antes da publicação das respostas na página do
Governo, já alguns jornais tinham publicado o documento na íntegra”. E o advogado
Carlos Pinto de Abreu disse ao Público
não ver qualquer problema legal na publicitação das respostas e aduziu:
“Em geral, qualquer processo público admite
que um interveniente processual possa também publicamente veicular as suas
respostas, sejam as dadas oralmente, [sejam] as dadas por escrito”.
Ao invés, o
advogado Miguel Matias, defensor de um dos 23 acusados no processo de Tancos,
descreveu, na mesma ocasião, a iniciativa do Chefe do Governo como
“deselegante, no mínimo”, tendo em atenção que se deve considerar “a natureza
reservada, por regra, dos atos de instrução, definidos como tal por lei da
República”. E acrescentou:
“A página do Governo e a página do
Primeiro-Ministro destinam-se a dar conhecimento público das ações inerentes ao
exercício do cargo, e não a publicitar respostas a perguntas formuladas por um
juiz de instrução criminal num processo-crime cujas questões nada têm a ver com
o exercício legítimo da governação”.
Sobre a fase
seguinte a este depoimento por escrito do Primeiro-Ministro, Miguel Matias
lembra que, “se algum dos advogados
requerer o contraditório relativamente às respostas de António
Costa ou se o próprio juiz não tiver ficado esclarecido com o teor
das mesmas, poderá ele próprio, e em respeito àquilo que tem vindo
a sustentar, convocar presencialmente a testemunha”. Este dado
é corroborado pelo penalista Germano Marques da Silva, dizendo que “tanto o Ministério
Público como os advogados de defesa como o próprio juiz de instrução podem
pedir explicações sobre as respostas entregues por António Costa”.
Entretanto, sabe-se hoje,
dia 14 de fevereiro, pela RTP, que o MP de primeira instância
se declarou incompetente para se pronunciar sobre se houve ou não
violação do segredo de justiça por parte do Chefe do Governo. Todavia, o juiz de instrução insiste e
defende que é no STJ (Supremo Tribunal de Justiça) que deve a questão ser
discutida, pois, em seu entender, só o Supremo tem competências para
avaliar questões relacionadas com o Chefe do Governo ou o Presidente da
República. Segundo a estação pública de TV, a procuradora de primeira instância tinha informado o juiz de
instrução criminal de que não tinha competência para decidir sobre o assunto. Assim,
o MP junto do STJ terá agora de decidir se abre ou não um inquérito ao
Primeiro-Ministro.
***Nos termos do art.º 86.º do Código do Processo Penal, “o
processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as exceções
previstas na lei”. Não obstante, “o
juiz de instrução pode, mediante requerimento do arguido, do assistente ou do
ofendido e ouvido o Ministério Público, determinar, por despacho irrecorrível,
a sujeição do processo, durante a fase de inquérito, a segredo de
justiça, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles
sujeitos ou participantes processuais”. Também o MP sempre que “os interesses da investigação ou
os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação
ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando
essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de
setenta e duas horas”.
Quanto à vinculação, “o
segredo de justiça vincula todos os sujeitos e participantes processuais, bem
como as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o
processo ou conhecimento de elementos a ele pertencentes, e implica as
proibições de: a) assistência à prática ou tomada de conhecimento do
conteúdo de ato processual a que não tenham o direito ou o dever de assistir;
b) divulgação da ocorrência de ato processual ou dos seus termos,
independentemente do motivo que presidir a tal divulgação”.
Nestes termos, dificilmente se compreende que, tendo
terminado o inquérito, o processo ainda esteja em segredo de justiça externo. E,
se o Chefe do Governo violou o segredo de justiça, estranha-se que o juiz de instrução,
tão diligente a importunar o Primeiro-Ministro, não se tenha incomodado
minimamente em tentar saber quem o violou ao divulgar as versões parciais das
respostas ao questionário. Essa divulgação terá partido do próprio TCIC. Assim,
a primeira iniciativa de violação do segredo de justiça não se pode imputar a
António Costa, o qual mais não fez que usar da prerrogativa da reciprocidade e
do direito de repor na íntegra a sua “verdade” das declarações que proferiu,
embora tal atitude não seja nada elegante. Mas para grandes males… E, se a
política não deve meter-se na justiça, o inverso também é de esperar.
A esta luz, talvez tenham razão Germano Marques da Silva e Carlos Pinto de Abreu.
Foi preciso
ter uma nega do MP para o juiz advertir que o Chefe do Governo responde na
alçada do STJ. E, se é assim, como é que este juiz o pode fazer comparecer no
TCIC?
Enfim, eles
lá o leem, lá o entendem. E interessa é que o processo tenha pernas para andar.
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