terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Não lhe disse nada: estive só a ajudá-lo a chorar!

Li, como outras muito boas pessoas, a mensagem do Papa Francisco para esta Quaresma de 2017. E ao pensar no enunciado da sua epígrafe A Palavra é um dom. O outro é um dom”, dei comigo a pensar no desafio de Jesus à samaritana junto ao poço de Jacob: “Se conhecesses o dom que Deus tem para dar e quem é que te diz, ‘dá-me de beber’, tu é que lhe pedirias, e Ele havia de dar-te água viva!” (Jo 4,10).
Na verdade, o dom a que se refere Jesus é Ele próprio, que é a Palavra do Pai, o Verbo de Deus, que nos dá a verdadeira água viva, mas que na sua passagem terrena mostrou ter sede perante a samaritana (cf Jo 4,7) e no alto da cruz (cf Jo 19,28). E, de facto, quem bebe da água do poço de Jacob ou da água de outras nascentes e fontes continuará a ter sede, mas quem bebe da água que Jesus dá nunca mais terá sede. E a água que Ele nos der há de tornar-se para nós e em nós fonte de água que dá a vida eterna (cf Jo 4,13-14).
Desta abundância de água da vida em Cristo, fala-nos Jesus no capítulo 7 do Evangelho de João:
No último dia, o mais solene da festa, Jesus, de pé, bradou: ‘Se alguém tem sede, venha a mim; e quem crê em mim que sacie a sua sede! Como diz a Escritura, hão de correr do seu coração rios de água viva.’. Ora Ele disse isto, referindo-se ao Espírito que iam receber os que nele acreditassem” (Jo 7,37-39).
Então, este Outro é também o Espírito Santo, dom de Deus para nós, pois procede do Pai e do Filho e recebe a mesma adoração e a mesma glória.
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Mas este dom é também o outro – o que sofre a fome e a sede, o nu, o sem-abrigo, o sem eira nem beira, o peregrino, o acidentado, o que sofre crise aguda, o enfermo ou o portador de doença incurável, o encarcerado, o moribundo, o defunto, o descartado, o oprimido, o usado, o explorado, o vendido e o mutilado, o pecador, o ignorante, o fraco. Neste está projetado o rosto de Cristo: “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes” (Mt 25,40); e “Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer” (Mt 25,45).
E o que devemos fazer? Satisfazer o preceito do Senhor seguindo o critério que Ele traçou:
Tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo” (Mt 25,35-36).
Mas o cardápio dos deveres que fazem a revolução de vida é mais nítido no cap. 5 de Mateus:
Não basta não matar. Quem se irar contra o irmão será réu perante o tribunal; quem lhe chamar imbecil será réu ante o Conselho; e quem lhe chamar louco será réu da Geena do fogo (vv.21-22).
Não basta que não se tenha na da contra o irmão. Mas, “se fores apresentar a oferta sobre o altar e ali te recordares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar [não desistas da oferta, que ela já não é tua] e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois, volta para apresentares a tua oferta. Com o teu adversário mostra-te conciliador, enquanto caminhardes juntos. (vv.23-25).
Não basta não cometer adultério. Todo aquele que olhar para uma mulher, desejando-a, já cometeu adultério com ela no seu coração. Aquele que se divorciar da sua mulher expõe-na a adultério, e quem casar com a divorciada comete adultério (vv.27-28.32).
Não basta não perjurar e cumprir ante do Senhor os juramentos. É preciso não jurar de maneira nenhuma: nem pelo Céu, que é o trono de Deus, nem pela Terra, que é o estrado dos seus pés, nem por Jerusalém, que é a cidade do grande Rei. O nosso modo de falar deve ser: Sim, sim; não, não. (vv.33-35.37).
É preciso não opor resistência ao mau. “Mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; se alguém quiser litigar contigo para te tirar a túnica, dá-lhe também a capa. E, se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, caminha com ele durante duas. Dá a quem te pede e não voltes as costas a quem te pedir emprestado.” (vv.39-42).
É necessário amar os inimigos e orar pelos que nos perseguem. Fazendo assim, tornar-nos-emos filhos do nosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amamos os que nos amam, que recompensa hemos de ter? Não fazem já isso os cobradores de impostos? E, se saudamos apenas os irmãos, que fazemos de extraordinário? Não o fazem também os pagãos? Temos de ser perfeitos como é perfeito o nosso Pai celeste. (cf vv. 44-48).
E Paulo ensina:Carregai as cargas uns dos outros e assim cumprireis plenamente a lei de Cristo” (Gl 6,2). E é mais explícito a seguir:
“Que o vosso amor seja sincero. Detestai o mal e apegai-vos ao bem. Sede afetuosos uns para com os outros no amor fraterno; adiantai-vos uns aos outros na estima mútua. Não sejais preguiçosos na vossa dedicação; deixai-vos inflamar pelo Espírito; entregai-vos ao serviço do Senhor. Sede alegres na esperança, pacientes na tribulação, perseverantes na oração. Partilhai com os santos que passam necessidade; aproveitai todas as ocasiões para serdes hospitaleiros. Bendizei os que vos perseguem; bendizei, não amaldiçoeis. Alegrai-vos com os que se alegram, chorai com os que choram.” (Rm 12,9-15).
O Apóstolo, além de outros aspetos, prescreve o antídoto para a preguiça e para a inveja. Contra a preguiça, temos a dedicação no afeto, na caridade na ação. Não se trata só de combater a modorra de quem não quer sair da cama ou do canapé, mas de não cair na omissão de praticar o bem ou de não ter a coragem de fugir da ocasião de pecado (estes é que são os contornos da verdadeira preguiça). E, quanto à inveja, recordo que o pior não é desejar desalojar o outro do balouço ou querer ter carro ou dinheiro como ele. O pior da inveja é ficar triste se os outros têm sucesso, se se alegram, e ficar radiante se os outros caem em desgraça, se choram – enfim, quando não os ajudamos. E não é preciso muito para ajudar. Às vezes basta ouvir ou até estar apenas.
Lembro-me de uma história de almanaque, que reza sucintamente que um pobre homem chorava por ter perdido a esposa em consequência de doença grave. Passou por ele uma senhora com um seu filho de tenra idade. Ao ver o homem a chorar, o menino saltou para o colo do estranho e a mãe reparou que as lágrimas do homem iam diminuindo até as faces ficarem perfeitamente enxutas. Entretanto, o miúdo voltou para a mãe, que lhe perguntou:
Que lhe disseste?
Eu não lhe disse nada – respondeu a criança – eu só estive a ajudá-lo a chorar!
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Qualquer tipo de ajuda “que ajude mesmo” será uma boa forma de celebrar a Quaresma, que o Papa entende como “um novo começo, uma estrada que leva a um destino seguro: a Páscoa de Ressurreição, a vitória de Cristo sobre a morte”. É um tempo favorável em que o cristão é chamado, de modo especial, a voltar para Deus “de todo o coração” (Jl 2,12), não se ficando pela mediocridade da vida, mas “crescendo na amizade do Senhor”. Ele “é o amigo fiel que nunca nos abandona, pois, mesmo quando pecamos, espera pacientemente pelo nosso regresso”.
Na base das práticas que enformam a intensificação da vida espiritual (o jejum, a oração e a esmola), está a Palavra de Deus, que ora “somos convidados a ouvir e meditar com maior assiduidade”.
E, para ilustrar a mensagem pontifícia para a Quaresma, Francisco optou, desta vez, pelo episódio lucano do pobre e do rico avarento (Lc 16,19-31). E salienta que a parábola inicia com a apresentação de dois homens contrastantes, sendo que o pobre vem descrito de forma mais detalhada no âmbito dum quadro sombrio, “como o homem degradado e humilhado”.
O nome do pobre – sublinha o Pontífice – é promissor, pois significa “Deus ajuda”. Se “Lázaro é como que invisível para o rico, a nossos olhos aparece como um ser conhecido e quase de família”. Assim, Lázaro ensina-nos que o outro é um dom. Mesmo “à porta do rico não é um empecilho fastidioso, mas um apelo a converter-se e mudar de vida”. E esta é uma boa nota para a Quaresma: “abrir a porta do nosso coração ao outro, porque cada pessoa é um dom, seja ela o nosso vizinho ou o pobre desconhecido”. E é a Palavra de Deus que nos ajuda “a abrir os olhos para acolher a vida e amá-la, sobretudo quando é frágil”, pelo que “é necessário tomar a sério também aquilo que o Evangelho nos revela a propósito do homem rico”.
E o que nos ensina o perfil deste homem rico, que aqui não tem um nome, é que o pecado no cega e nos embute o espírito. Diz-nos O Papa:
“A sua opulência manifesta-se nas roupas, de um luxo exagerado, que usa. De facto, a púrpura era muito apreciada, mais do que a prata e o ouro e, por isso, se reservava para os deuses (cf Jr 10,9) e os reis (cf Jz 8,26). O linho fino era um linho especial que ajudava a conferir à posição da pessoa um caráter quase sagrado. Assim, a riqueza deste homem é excessiva, inclusive porque exibida habitualmente: «Fazia todos os dias esplêndidos banquetes» (Lc 16,19). Entrevê-se nele, dramaticamente, a corrupção do pecado, que se realiza em três momentos sucessivos: o amor ao dinheiro, a vaidade e a soberba.”.
Por seu turno, Paulo põe na ganância do dinheiro a raiz de todos os males (cf 1Tm 6,10), a qual gera a corrupção, a inveja, a contenda e a suspeita. O dinheiro, em vez de instrumento ao nosso dispor para o bem e a solidariedade, “pode-nos subjugar a nós e ao mundo inteiro numa lógica egoísta que não deixa espaço ao amor e dificulta a paz”; e “pode chegar a dominar-nos até ao ponto de se tornar um ídolo tirânico”. Mais: a vida do endinheirado e do arrogante “está prisioneira da exterioridade, da dimensão mais superficial e efémera da existência”.
Depois, vem a soberba como o degrau mais baixo da deterioração moral, levando o homem a vestir-se como se fosse rei, a simular a posição dum deus, esquecendo que é um simples mortal. Por isso, quem o rodeia não cai sob a alçada do seu olhar. O apego ao dinheiro e o egoísmo cegam: “o rico não vê o pobre esfomeado, chagado e prostrado na sua humilhação”. É por isso que o Senhor nos diz claramente, na condenação do dinheiro como objeto de idolatria:
“Ninguém pode servir a dois senhores: ou não gostará de um deles e estimará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24).
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E com a Palavra de Deus, aceite como dom e escutada a partir da palavra de homens – os novos Moisés e os novos profetas (os Pastores, os catequistas ou os simples cristãos) – que vivem ao pé de nós e não esperando que venha Lázaro ao mundo, nós compreenderemos a urgência da conversão a Deus e, consequentemente, à solidariedade fraterna, a partir do reconhecimento da nossa condição humana: “tanto o rico como o pobre morrem” e dum momento para o outro, os dois reconhecem que “nada trouxemos ao mundo e nada podemos levar dele” (1Tm 6,7). E, no longo diálogo que o rico tece, no Além, com Abraão, percebe que, “na sua vida, não havia lugar para Deus, sendo ele mesmo o seu único deus” e reconhece Lázaro de quem requer alívio dos sofrimentos, tal como devia ter feito com ele em vida. Era tarde. A raiz do seu mal esteve em não dar ouvidos à Palavra de Deus, levando-o a não amar a Deus e a desprezar o próximo.
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Assim, a Quaresma há de ajudar-nos a afeiçoar-nos ao dom Palavra e a acolhê-lo com vista à conversão ao dom de Deus e ao dom do outro, na oração e sacramentos, na caridade pela justiça e no apostolado, ainda que seja só ajudando o próximo a chorar. Deus adiuvet!

2017.02.28 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

O Papa visitou em Roma a paróquia anglicana de Todos os Santos

Às 16 horas do dia 26 de fevereiro, o Papa visitou a paróquia anglicana de Todos os Santos, na Via del Babuino, entre a Praça de Espanha e a Praça do Povo, no centro de Roma.  Francisco foi o primeiro Sumo Pontífice a entrar no templo daquela comunidade, construído há 200 anos. 
Esta paróquia, pertencente à diocese do Arquidiaconato da Itália e Malta, representa a maior comunidade anglicana na Itália.
São João Paulo II e Bento XVI haviam visitado, respetivamente, a Catedral de Cantuária e a Abadia de Wesminster. Agora, a visita de Francisco realiza-se no contexto das celebrações do bicentenário do templo e marca uma nova etapa significativa nos 50 anos do início do diálogo ecuménico entre católicos e anglicanos. Não obstante, o evento não se circunscreve a uma mera formalidade, mas constitui um momento de fraternidade na oração, escuta e diálogo recíproco.
Há quatro meses (em outubro de 2016), o Papa havia-se encontrado com o Primaz da Comunhão Anglicana, Justin Welby, os quais celebraram em conjunto a hora litúrgica de Vésperas na Igreja dos Santos André e Gregório, ocasião em que foi firmada uma declaração conjunta que exprime o desejo comum de superar os obstáculos doutrinais que ainda subsistem e prosseguir num ecumenismo concreto nas temáticas compartilhadas. Portanto, continua viva a intenção da predita Declaração Conjunta: a vontade de ir além dos obstáculos na direção da plena unidade e do desejo de um caminho ecuménico, que não seja apenas teológico, mas nas ações concretas sobre questões comuns, tais como o cuidado da criação, a caridade e a paz.
O Papa foi recebido pelo Bispo Robert Innace, responsável pela Igreja anglicana na Europa, pelo Arcebispo David Moxon, Diretor do Centro anglicano de Roma, pelo capelão Reverendo Jonathan Boardman, e pela sua assistente, a Reverenda Dana English.
O encontro iniciou-se com a bênção de um ícone de Cristo Salvador, feito especialmente para a ocasião pelo artista Ian Knowles, Diretor do Centro “Ícone Belém”. Entre outros gestos, procedeu-se à troca do desejo de paz e à recitação do “Pai Nosso”. Alguns membros da comunidade anglicana fizeram perguntas ao Papa.
Em termos do caminho ecuménico, há que salientar que entre as duas comunidades existe uma relação nascida há 50 anos, amadurecida no tempo e traduzida pelas excelentes relações atuais, confirmadas pela colaboração, iniciada em 2002, entre All Saint e a Paróquia de Todos os Santos da Via Apia Nova, cujo titular é o Cardeal Walter Kasper, ex-Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Foi ele que, há 15 anos, iniciou a cooperação, formalizada agora com a assinatura de uma parceria. E, sobre esta caminhada ecuménica, o Padre Francesco Mazzitelli, Reitor da Igreja de Todos os Santos, esclareceu:
“Luigi Orione, o nosso santo fundador transmitiu-nos o ecumenismo da caridade. Partindo disto, nasceu a parceria que nestes 15 anos nos viu colaborar em diversas iniciativas. All Saint contribuiu para a concretização, na nossa Paróquia, da casa de acolhimento “Dom Orione”, que acolhe 20 mulheres sem moradia fixa. Na sexta-feira, 17 de fevereiro, juntamente com o Padre Johnatan, o Bispo Giuseppe Marciante, 15 voluntários anglicanos e 15 católicos, fomos à Estação Ostiense para distribuir refeições para os sem teto.”.
Por seu turno, o Padre Johnatan, encarregado diocesano do Departamento para o Ecumenismo, o Diálogo inter-religioso e os novos cultos, para quem a visita papal adquire grande importância neste momento histórico, acrescentou:
“Esta parceria impele-nos a prosseguir por este caminho e prometo que a partir de agora nós estaremos presentes todas as sextas-feiras na Estação Ostiense”.
E justificou:
“Vivemos um tempo de fortes contraposições e medo. Este encontro traz consigo uma mensagem de esperança. O Papa Francisco, diversas vezes manifestou a sua vontade em interagir com a comunidade anglicana pelo bem comum dos povos. A parceria entre as duas Igrejas é um sinal eloquente para uma cidade como Roma, que acolhe em seu seio diversas Confissões.”.
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Na ocasião o Santo Padre proferiu um discurso de que se respigam os aspetos essenciais.
Depois de agradecer o convite para a celebração conjunta deste bicentenário paroquial, considerou que “transcorreram mais de duzentos anos” desde a realização do “primeiro serviço litúrgico público anglicano em Roma, para um grupo de residentes ingleses”, sublinhando que “muita coisa mudou desde então, em Roma e no mundo”. E, se antes anglicanos e católicos se olhavam “com suspeita e hostilidade”, agora reconhecemo-nos “como verdadeiramente somos: irmãos e irmãs em Cristo, mediante o nosso batismo comum”. E “como amigos e peregrinos desejamos caminhar juntos, seguir juntos o nosso Senhor Jesus Cristo”.
Evocando o novo ícone de Cristo Salvador, acabado de abençoar, reconheceu que Jesus “nos olha”, e o seu olhar “é um olhar de salvação, de amor e de compaixão” – “o mesmo olhar misericordioso que atravessou o coração dos Apóstolos, que iniciaram um novo caminho de vida nova para seguir e anunciar o Mestre”. E vê na imagem uma interpelação de Jesus a todos e a cada um de nós:
“Estás pronto a deixar alguma coisa do teu passado por mim? Queres ser mensageiro de meu coração, de minha misericórdia?”.
Com efeito, estribado nas palavras de Paulo, “Este é o nosso ministério, nós o temos pela misericórdia de Deus; por isto, não perdemos a coragem” (2Cor 4,1), Francisco assegura que “a misericórdia divina é a fonte de todo o ministério cristão”. Porém, frisando que o Apóstolo nem sempre teve relação fácil com a comunidade Coríntia, sustenta que as divergências do passado foram superadas e Paulo, vivendo o ministério segundo a misericórdia recebida, não se resignou ante as divisões, mas apostou na reconciliação. Assim, nós, “comunidade de cristãos batizados”, se “nos encontramos perante desacordos e nos colocamos diante do rosto misericordioso de Cristo para superá-los”, seguimos o exemplo da atuação paulina numa das primeiras comunidades cristãs. E Francisco explica a dinâmica da mudança em São Paulo:
“Como se compromete Paulo nesta missão, donde começa?  Da humildade, que não é apenas uma bela virtude, é uma questão de identidade: Paulo compreende-se como um servidor, que não se anuncia a si mesmo, mas a Cristo Jesus Senhor. E cumpre este serviço, este ministério, segundo a misericórdia que lhe foi dada, não com base na sua bravura e contando com as suas forças, mas na confiança com que Deus o olha e apoia, com misericórdia a sua fraqueza. Tornar-se humilde é sair do centro, reconhecer-se necessitado de Deus, mendigo de misericórdia: é o ponto de partida para que seja Deus a operar.”.
Citando um Presidente do Conselho Ecuménico das Igrejas que descreve a evangelização cristã como “um mendigo que diz a outro mendigo onde encontrar o pão”, o Papa crê que Paulo teria aprovado tal conceito de evangelização, pois o Apóstolo sentia-se “com fome de misericórdia” e tinha como prioridade “compartilhar com os outros o seu pão: a alegria de ser amados pelo Senhor e de amá-lo”.
Mas, sendo este o nosso tesouro, Paulo diz que o temos “em vasos de barro”. E Francisco recorda que os Coríntios percebiam a tolice que era guardar algo de precioso em vasos de barro – baratos, mas facilmente quebráveis. No entanto, Paulo sentia-se pecador, mas agraciado, pelo que “humildemente reconhece ser frágil como um vaso de barro” e tem consciência de que “precisamente ali, onde a miséria humana se abre à ação misericordiosa de Deus, o Senhor opera maravilhas”, operando assim o “extraordinário poder de Deus”. E é confiante neste humilde poder apostólico, revestido da força de Deus, que Paulo serve o Evangelho.
Ao invés de adversários seus em Corinto, que apelidou ironicamente de “superapóstolos”, Paulo “ensina que, somente reconhecendo-nos frágeis vasos de barro, pecadores sempre necessitados de misericórdia, o tesouro de Deus se derrama em nós e sobre os outros mediante nós”.
Lembra o Papa que, num determinado momento, talvez o mais difícil com a comunidade de Corinto, Paulo chegou a cancelar “uma visita que havia programado, renunciando também às ofertas que teria recebido”. Todavia a tensões na comunhão “não tiveram a última palavra”, pois “a relação voltou ao normal e o Apóstolo aceitou a oferta para o sustento da Igreja de Jerusalém”, passando os cristãos de Corinto a voltar a trabalhar “junto às outras comunidades visitadas por Paulo, para apoiar quem era necessitado”. E daqui Francisco tira ilações para o presente e para a relação ecuménica:
“Este é um sinal forte de comunhão restabelecida. Também a obra que a vossa comunidade desenvolve junto a outras de língua inglesa aqui em Roma pode ser vista desta forma. Uma comunhão verdadeira e sólida cresce e robustece-se quando se age juntos por quem tem necessidade. Por meio do testemunho concorde da caridade, a face misericordiosa de Jesus torna-se visível na nossa cidade.”.
Mas não esquece a vertente da gratidão:
“Católicos e anglicanos, somos humildemente agradecidos porque, depois de séculos de recíproca desconfiança, somos agora capazes de reconhecer que a fecunda graça de Cristo está em ação também nos outros. Agradecemos ao Senhor porque entre os cristãos cresceu o desejo de uma maior proximidade, que se manifesta no rezar juntos e no comum testemunho ao Evangelho, sobretudo por meio das várias formas de serviço.”.
No entanto, adverte para as dificuldades, para o encorajamento e para a responsabilidade:
“Às vezes, o progresso no caminho rumo à plena comunhão pode parecer lento e incerto, mas hoje podemos tirar um encorajamento deste nosso encontro. Pela primeira vez um Bispo de Roma visita a vossa comunidade. É uma graça e também uma responsabilidade: a responsabilidade de fortalecer as nossas relações em louvor a Cristo, ao serviço do Evangelho e desta cidade.”.
E, num contexto de mútuo encorajamento a tornarmo-nos todos “discípulos sempre mais fiéis a Jesus, sempre mais livres dos respetivos preconceitos do passado e sempre mais desejosos de rezar por e com os outros”, o Papa formula um voto orante:
Que os Santos de cada Confissão cristã, plenamente unidos na Jerusalém celeste, nos abram o caminho para percorrer aqui todas as possíveis vias de um caminho cristão fraterno e comum. Onde nos reunimos em nome de Jesus, ali Ele está presente e, dirigindo o seu olhar de misericórdia, chama a trabalharmos pela unidade e pelo amor. Que o rosto de Deus resplandeça sobre nós, sobre as vossas famílias e sobre toda a comunidade!”.
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Nesta ocasião, o Papa anunciou que está a estudar uma viagem ao martirizado Sudão do Sul. E, falando do modo como melhorar as relações à luz de quanto de bom fazem as Igrejas no Sul do mundo, o Papa sublinhou que “as Igrejas jovens têm uma vitalidade diferente, porque são jovens”. E, neste contexto, disse que a razão por que estava a estudar com os colaboradores a possibilidade de uma viagem ao Sudão do Sul é “porque vieram os bispos, o anglicano, o presbiteriano e o católico, os três juntos” a dizer-lhe: “por favor, venha ao Sudão do Sul, apenas um dia, mas não venha sozinho, venha com Justin Welby, o Arcebispo de Cantuária”. E insistiu:
“Deles, Igreja jovem, veio essa criatividade. E estamos pensando se isso pode ser feito, apesar de a situação estar muito ruim lá... Mas devemos fazê-lo, porque eles [os bispos, o anglicano, o presbiteriano e o católico], os três juntos, eles querem a paz e eles trabalham juntos pela paz.”.
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Oxalá, Deus queira que essa viagem conjunta se realize pelo bem da paz. Será o ecumenismo no seu melhor. Ao mundo fará bem este testemunho de cooperação dialogante, mesmo que a unidade, embora sincera e atuante, ainda seja um dado problemático. E os povos que sofrem estão cansados de esperar, não podem esperar mais!

2017.02.27 – Louro de Carvalho

domingo, 26 de fevereiro de 2017

O que disse efetivamente o Papa sobre ser católico e ser ateu

Muita da comunicação social, infelizmente não só em Portugal, que se deixa pautar pela febre da venda de papel ou da conquista de audiências, adulterou um segmento importante da homilia do Papa Francisco na celebração da missa a que presidiu na Casa de Santa Marta no passado dia 23 de fevereiro. Não é a primeira vez e não será talvez a última que as palavras do Papa são desviadas para sentido diferente daquele com que foram proferidas.
Recordo que, por ocasião da publicação do testamento espiritual do Papa São João Paulo II em abril de 2005, alguns dias após a sua morte, a 2 de abril, os jornais garantiam que o Papa polaco chegara a colocar a hipótese da renúncia ao sumo pontificado. Nada que o Código de Direito Canónico não tenha previsto e regulado. Porém, estupidamente os jornalistas que veicularam em primeira mão tal atoarda baseavam-se na leitura desviante dum ponto do texto do testamento. Refletindo ter levado a bom porto as celebrações do jubileu do 2.º milénio (e inauguração do 3.º), o Pontífice polaco rezava como o velho Simeão, mas laconicamente, “Nunc dimittis”. E os apressados leitores italianos de furo jornalístico, à boa maneira portuguesa, entenderam que, se Deus lhe mandou “nunca te demitas”, era porque João Paulo tivera a tentação de se demitir. Se um fosse um português com o 12.º ano sem conhecimentos de latim, ainda se entenderia a confusão de “nunc” (agora) com “nunca” e “dimittere” com “demitir”. Ora toda a gente sabe que aquele segmento significa apenas que o Senhor já podia agora deixar morrer em paz o seu servo. Não se tratava de renúncia nem de reprimenda por hipótese de renúncia. Razão Tinha o Pontífice quando dizia que a bengala que usava também servia para corrigir jornalistas!
Também Bento XVI foi penalizado por retirarem do contexto uma sua afirmação em Ratisbona sobre o islão. Recordo que um professor de Sagrada Escritura em Lamego (o Dr. António José de Anciães), ao falar da inerrância na Escritura, alertava para a necessidade de não retirarmos as frases bíblicas do seu contexto, exemplificando: “Eh, eh! Alguns dizem que a Bíblia diz que não há Deus, mas não leem bem”. De facto, o salmo 53 (52) diz no seu v. 2: “O insensato diz no seu coração: ‘Não há Deus!’”. Mas o salmo põe tais palavras no coração do insensato e adverte que os insensatos que não procuram Deus o são porque se transviaram e corromperam (cf Sl 53,4).
E quantas vezes não se diz ou escreve algo com um determinado sentido e é entendido em sentido totalmente diverso! É o risco de quem fala ou escreve e o direito de quem ouve ou lê…   
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Afinal, o que se passou com o Papa Francisco? Na sua homilia, partiu do salmo 1, em que se lê:
“Bem-aventurado o homem que não anda segundo o conselho dos ímpios, nem se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores. Antes tem o seu prazer na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite.” (Sl 1,1-2).
Trata-se de um salmo que pertence ao género sapiencial e constitui a meditação introdutória a todo o livro dos Salmos. Esta é uma reflexão de claras conotações éticas a mostrar que o livro, além de ser uma antologia de orações pessoais e litúrgicas, é um espelho de vida e de moral. Por isso, é sublinhada a divisão de caminhos e respetivos comportamentos, em que se figuram dois modos de vida com resultados diferentes, na linha do veiculado no livro do Deuteronómio:
“Repara que coloco hoje diante de ti a vida e o bem, a morte e o mal. Assim, ordeno-te hoje que ames o SENHOR, teu Deus, que andes nos seus caminhos, que guardes os seus mandamentos, preceitos e sentenças. Assim viverás, multiplicar-te-ás e o SENHOR, teu Deus, te abençoará na terra em que vais entrar para dela tomar posse.” (Dt 30,15-16).
São dois objetivos – vida e morte – cada um com sua via. E o mandamento é amar o Senhor e seguir os seus caminhos, guardando todos os seus preceitos, o que garantirá a bênção de Deus.
A seguir, vem o enunciado do resultado para quem se afaste da via da vida, caindo na idolatria:
“Mas se o teu coração se desviar e não escutares, se te deixares arrastar e adorares deuses estranhos e os servires, declaro-vos hoje que, sem dúvida, morrereis; os vossos dias não se prolongarão na terra na qual ides entrar, passando o Jordão, para dela tomar posse” (ib, 17-18).
E o Senhor mobiliza o céu e a terra como testemunhas deste pacto do Senhor dom o povo:
“Tomo hoje por testemunhas contra vós, o céu e a terra; ponho diante de vós a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe a vida para viveres, tu e a tua descendência, amando o SENHOR, teu Deus, escutando a sua voz e apegando-te a Ele, porque Ele é a tua vida e prolongará os teus dias para habitares na terra, que o SENHOR jurou que havia de dar a teus pais, Abraão, Isaac e Jacob.” (ib, 19-20).
São passagens a replicar e ampliar (alternando tu e vós) o teor doutro capítulo do Deuteronómio (Dt 11, 26-28) e antecipam o que vem referido no livro de Josué, como se pode ler:
“Temei o Senhor, e servi-o com toda a reti­dão e verdade. Afastai esses deuses a quem os vossos pais serviram do outro lado do rio e no Egito e servi o Senhor. E se vos desagrada servi-lo, então escolhei hoje aquele a quem quereis servir: os deuses a quem vossos pais serviram, do outro lado do rio, ou os deuses dos amorreus cuja terra ocupastes, porque eu e a minha casa serviremos o Senhor.” (Js 24, 14-15).
Ao desafio de Josué, que se tornou exemplo para os demais (como Clóvis iria fazer), o povo reagiu:
“Longe de nós abandonarmos o Senhor para servir outros deuses! Pois o Senhor nosso Deus é que nos fez subir, juntamente com nossos pais, da terra do Egito, da casa da escravidão, e realizou aqueles maravilhosos prodígios aos nossos olhos; Ele guardou-nos ao longo de todo o caminho que tivemos de percorrer, e entre todos os povos pelos quais passámos. O Senhor expulsou diante de nós todas as nações e os amorreus que habitavam na terra: também nós serviremos o Senhor, porque Ele é o nosso Deus.” (ib, 16-18).
E à objeção de Josué
Vós não sereis capazes de servir o Se­nhor, porque Ele é um Deus santo, um Deus zeloso que não perdoará as vossas transgressões nem os vossos peca­dos. Quando abandonardes o Senhor para servir a deuses estranhos, Ele voltar-se-á contra vós e far-vos-á mal; há de des­truir-vos, após ter-vos feito bem.” (ib, 19-20).
O povo respondeu: “Não. É ao Se­nhor que queremos servir.” (ib, 21). Josué já não aduziu como testemunhas o céu e a terra, mas os próprios israelitas:
“Josué disse-lhes então: ‘Sois tes­te­mu­nhas contra vós mesmos de que escolhestes o Senhor para o servir’. E eles responderam: ‘Somos testemunhas!’. E Josué ordenou: Tirai, pois, os deuses estranhos que estão no meio de vós, e inclinai os vossos corações para o Senhor, Deus de Israel.’. E o povo respondeu a Josué: ‘Nós serviremos o Senhor nosso Deus, e obedeceremos à sua voz’.” (ib, 22-24)
Face a esta postura do povo, Josué fez aliança com ele e deu-lhe, em Si­quém, leis e prescrições, escreveu aquelas palavras no livro da Lei e, tomando uma grande pedra, erigiu-a como monumento, sob o carvalho que se estava no santuário do Se­nhor. Depois, disse ao povo (cf ib, 25-27):
“Esta pedra servirá de testemunho entre nós, pois ela ouviu todas as palavras que o Senhor nos disse; ela servirá de testemunho contra vós, para que não renegueis o vosso Deus” (ib, 27).
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Porém, Francisco tira consequências do salmo donde partiu a sua reflexão em torno do real e penoso “escândalo” de quem se professa cristão (alegadamente escolhendo a via da vida) e depois mostra o seu verdadeiro rosto com uma vida que de cristã nada tem; e do contratestemunho de quem “explora” e “destrói” as vidas dos outros sob a capa de bom católico. E fê-lo comentando as palavras severas usadas por Jesus no Evangelho e chamando à conversão (que não se pode adiar) os protagonistas de certas “vidas duplas”, sendo que todo o motivo de escândalo ou o que for ocasião de pecado deve ser eliminado. Por outro lado, quem ajudar os discípulos do Senhor não ficará sem a sua recompensa, enquanto quem os levar ao pecado incorrerá em terrível castigo.
No dizer do Papa, a Escritura refere-se a quem tem “a sua força” no Senhor, “que se sente pequenino, que sabe que sem o Senhor nada pode fazer”. Esse “é bem-aventurado no Senhor”.
E o salmo mostra a contraposição entre os seguidores da lei de Deus e os arrogantes, malvados” – contraposição visível no trecho evangélico do dia (Mc 9, 41-50), onde também há bons e maus.
Nas palavras de Jesus vê-se a figura dos justos que se sentem pequeninos, mas cuja confiança está em Deus. É um trecho em que “por 4 vezes” se repete o termo “escândalo”. Usando-o, o Senhor foi muito severo: “Ai de quem escandalizar um só destes pequeninos!”. De facto, segundo o Pontífice, “o escândalo, para o Senhor, é destruição”. Por isso, Jesus aconselha:
“É melhor que se destrua a si mesmo que aos outros. Corta a tua mão, o pé, arranca um olho, lança-te ao mar. Mas não escandalizes os pequeninos, ou seja, os justos, os que confiam no Senhor, que simplesmente creem no Senhor.” (cf Mc 9,42-48).
Dissertando sobre o que é o escândalo e referindo que diz respeito à vida concreta de cada pessoa, o Papa explicitou, como se pôde ler no site da Rádio Vaticano, a 23 de fevereiro:  
“O escândalo é dizer uma coisa e fazer outra; é a vida dupla. Um exemplo? Eu sou muito católico, vou sempre à missa, pertenço a esta associação e àquela; mas a minha vida não é cristã, não pago o justo aos meus empregados, exploro as pessoas, faço negócios sujos, lavagem de dinheiro. Esta é uma vida dupla. Infelizmente, muitos católicos são assim e escandalizam.”.
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E é aqui que bate o ponto! Francisco transliterou palavras comuns de outrem: “Quantas vezes ouvimos no bairro ou noutras partes: ‘Mas ser católico como aquele, é melhor ser ateu!’. Não foi o Papa que disse ou sequer se interrogou que ser ateu é melhor que ser católico de vida dupla ou hipócrita. Mas foi claro ao aproveitar-se de lugares comuns na linguagem corrente:
“Eis o escândalo, que destrói, que desmoraliza. E isto acontece todos os dias: é suficiente ver o telejornal ou ler os jornais. Nos jornais há tantos escândalos, e há também a grande publicidade dos escândalos. E com os escândalos destrói-se.”.
E aduziu, para exemplo, um facto recente relativo a uma grande empresa à beira da falência. As autoridades queriam evitar uma greve justa, mas que não seria boa e procuraram entrar em contacto com o responsável da empresa. O dirigente, que dizia ser homem muito católico, estava numa praia do Médio Oriente a passar as férias invernais, enquanto os trabalhadores estavam sem salário e condições de trabalho. Apesar de o episódio não ter sido publicado, as pessoas souberam-no. Estes, diz o Papa “são os escândalos, a vida dupla”. E Jesus, face a isto, diz: A estes pequeninos, que creem em mim, não os arruínes com a tua vida dupla.
E, parafraseando outra passagem do Evangelho, o Papa evocou o momento de o escandaloso se apresentar à porta do Céu, criticando-o como Gil Vicente no Auto da Barca do Inferno:
– “Sou eu, Senhor!”. – “Ah”. – “Mas como, não te recordas? Eu ia à missa, estava ao teu lado, pertencia a esta associação, faço isto... não te recordas de todas as ofertas que dei?” – “Sim, recordo. As ofertas, recordo-me delas: todas sujas. Todas roubadas aos pobres. Não te conheço”.
O problema nasce, pois, da atitude bem descrita na 1.ª leitura daquele dia (Ecl 5,1-10): “Não confies nas tuas riquezas e não digas: não preciso de ninguém”. E ainda: “Não sigas o teu instinto nem a tua força, satisfazendo as paixões do teu coração”. Na verdade a vida dupla resulta das paixões do coração, dos pecados capitais. Quem dá escândalo segue as paixões, mesmo que as esconda. É um texto replicado na carta de Tiago, pelo que o Pontífice admoesta:  
“A cada um de nós fará bem, hoje, pensar se há algo de dupla vida em nós, de parecer justos, de parecer bons crentes, bons católicos, mas por detrás fazer outra coisa. Trata-se de compreender se a atitude é a de quem diz: ‘Mas sim, o Senhor perdoar-me-á tudo, mas eu continuo...’. E, apesar de estar ciente dos próprios erros, repete: ‘Sim, isto não está bem, converter-me-ei, mas não hoje: amanhã’. Um exame de consciência que deve levar à conversão do coração, a partir da consciência de que o escândalo destrói.”.
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Cada vez se exige mais que não peguemos nas coisas pela rama, mas as encaremos na sua profundidade, sempre vendo com olhos de ver, ouvindo com ouvidos purificados e falando e escrevendo com verdade total. Assim, o risco de quem fala/escreve não o precipita no barranco de cegos e o direito de quem ouve/lê não será um direito cujo exercício se torne vazio ou insone como o sino sem badalo ou com badalo partido. É a autenticidade de vida e de ação a impor-se!

2017.02.26 – Louro de Carvalho

sábado, 25 de fevereiro de 2017

SMS e negócios de Estado

Tenho enorme dificuldade em perceber e aceitar que os negócios de Estado sejam tratados superficialmente como se fossem brincadeiras de miúdos, o que fica espelhado no modo como são abordadas algumas questões na praça pública, a facilidade como altas figuras da República falam das diversas matérias, as queixinhas e intrigas que alguns protagonizam e sobretudo a utilização de SMS (Short Message Service).
Mário Centeno terá expedido e recebido SMS na comunicação com António Domingues a propósito das condições exigidas por este para aceitar as funções de liderança na CGD, designadamente em matéria salarial e declarativa (sobretudo no âmbito da declaração de rendimentos e de património junto do TC), o que desembocou na publicação do Decreto-lei n.º 39/2016, de 28 de julho, que retirava os então futuros gestores do banco público do regime do estatuto do gestor público, com a fundamentação vertida no texto preambular do referido normativo.
Porque já deixei entender a minha dupla posição sobre essa matéria (quanto à não bondade do decreto-lei e quanto à sua alegada ineficácia por supostamente a Lei n.º 4/83, de 2 de abril, não ficar revogada), abstenho-me de a repetir. Agora, vem ao caso a posição do PSD e, em certa medida, a do CDS sobre uma potestativa nova Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Caixa Geral de Depósitos e as relações dos partidos ditos da direita com o Presidente da República.
Foi criada uma CPI, a requerimento do PSD e do CDS, para investigar o que se passou na/e com a CGD desde 2003 até ao presente que viesse a justificar a situação que levou à necessidade de capitalizar o banco do Estado. Porém, quando a CPI entendeu maioritariamente (com os votos do PS, PCP e BE) rejeitar o pedido do PSD e do CDS sobre o conhecimento da correspondência entre Domingues e Centeno, nomeadamente as SMS, que podia denotar algum compromisso do Ministro das Finanças atingente à dispensa da entrega das declarações ao TC (Tribunal Constitucional), por não se integrar no âmbito do objeto da CPI, os partidos requerentes levaram o caso à conferência de líderes parlamentares. Aí, o Presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, houve por bem não admitir a discussão da matéria por se tratar de um assunto da CPI com que a conferência nada tinha a ver, não tendo que dar quaisquer orientações à Comissão.
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A situação teve como desfecho a demissão do Presidente de CPI, não se sabendo se a mesma produzirá o consequente relatório ou se ficamos por aqui mesmo sem apuramento de resultados e concomitantemente as respetivas responsabilidades. Isto, depois de inúmeras pessoas terem sido ouvidas, até contradizendo-se umas às outras.
Mas os dois partidos ditos da direita parlamentar anunciaram a constituição de uma nova CPI para obter conhecimento das SMS que Centeno e Domingues trocaram entre si, ao mesmo tempo que Domingues parecia prometer que, embora não fosse esse o seu desejo, estará disposto a enviar à CPI as SMS se os deputados lho pedirem.
Ferro Rodrigues reagiu preventivamente em nome do regimento e da Constituição. Por um lado, à luz do regimento, não se torna plausível a existência paralela de duas CPI com o mesmo ou similar objeto; por outro, o n.º 1 do artigo 34.º da CRP garante a inviolabilidade do “sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada”.  
Entretanto, Assunção Cristas, líder do CDS, no debate quinzenal com o Primeiro-Ministro no Parlamento, no dia 22, anunciou ter solicitado uma audiência ao Presidente da República a queixar-se do funcionamento da Assembleia da República onde alegadamente a esquerda oprimia os direitos da minoria – o que levou a que Ferro Rodrigues garantisse que a porta do seu gabinete estava sempre aberta para receber as reclamações, sendo que a Constituição consagra a separação dos poderes, e um deputado centrista a argumentar que fora o Presidente do Parlamento a fechar a porta às reclamações e a advertir que a condução dos trabalhos da parte do Presidente não permite apartes desse género.
Por seu turno, os partidos à esquerda e Ferro Rodrigues chamaram a atenção para a separação dos poderes, reiterando que o Parlamento não responde perante o Presidente da República.
Porém, Marcelo Rebelo de Sousa agendou a audiência solicitada para o passado dia 24 e recebeu a delegação do CDS chefiada por Cristas, mas convidou, para uma hora antes, Ferro Rodrigues a fim de almoçar em Belém com o Presidente.
O que transpareceu para público foi a receção anfitriã e o acompanhamento de Ferro por Marcelo até à porta e uma imagem fotográfica que denota troca amistosa de confidências, levando à conclusão de que tudo vai bem entre os dois Presidentes, o do órgão plural e o do órgão unipessoal.
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Entrementes, o Presidente Marcelo, foi duramente criticado, à direita, por dar a cara, confiado no Primeiro-Ministro, pela inevitável permanência de Mário Centeno na pasta das Finanças e, recentemente, por ter comparado a situação em que alguns queriam ver a saída de Centeno do Governo com aquele momento em que Vítor Gaspar se despediu em 2013, provocando a crise política de que resultou a “irrevogável” apresentação do pedido de demissão do vice-primeiro-ministro e a tentativa de conciliação dos partidos para um governo de Salvação nacional proposta pelo Presidente da República de então.
Todavia, é de notar que a posição de Marcelo em relação a Centeno conheceu quatro momentos distintos: o assentimento, ao que se sabe agora, relativo aquando da promulgação do aludido decreto-lei; a posição clara que relativiza a força do decreto-lei, quando esclarece que este, não revogando a aludida lei de 1983, não dispensa os gestores do banco público das obrigações declarativas junto do TC e que, se as dúvidas persistirem, podem os deputados em sede legislativa proceder à respetiva clarificação; a fé confessada no Primeiro-Ministro de que não houve compromisso de Centeno com Domingues, baseada no facto de o Chefe do Governo ter garantido que não houve nenhum documento formal escrito nesse sentido, levando o Presidente a acreditar em António Costa e no seu Ministro, o que provocou críticas duras sobre o alegado envolvimento excessivo do Presidente na solidariedade com o Governo e a descrença no crédito da palavra de Ministro; a tomada de posição mais calculada, depois de António Lobo Xavier ter garantido no programa “Quadratura do Círculo” na SIC Notícias que havia SMS para Domingues comprometedores para Centeno e, eventualmente, Lobo Xavier os ter mostrado ao Presidente. Como é do conhecimento público, o Primeiro-Ministro, apesar de ausente, solicitou uma audiência ao Presidente para Centeno. E Centeno, que se explicou junto do Presente, veio a público dizer, em conferência de imprensa, que nunca tinha declarado que não havia entendimento sobre as matérias em causa, mas que admitia ter havido “erro de perceção mútuo” e que o seu lugar estava naturalmente à disposição do Primeiro-Ministro.
Daqui resultou: uma declaração de confiança de António Costa no Ministro das Finanças; uma declaração de Marcelo a dizer, entre outras coisas, que, “ouvido o Senhor Primeiro-Ministro, que lhe comunicou manter a sua confiança no Senhor Professor Doutor Mário Centeno, aceitou tal posição, atendendo ao estrito interesse nacional, em termos de estabilidade financeira”; e uma reação de críticos do desempenho presidencial de Marcelo a recordar que, nos termos da Constituição, não cabe ao Presidente manifestar ou não confiança nos ministros, mas apenas nomeá-los ou exonerá-los sob proposta do Primeiro-Ministro (vd alínea h do art.º 33.º da CRP), sem do que só este é que é responsável pela informação a prestar a Presidente sobre o andamento da política interna e externa do país (vd alínea c do n.º 1 do art.º 201.º da CRP), sendo os ministros responsáveis perante o Parlamento, no quadro da responsabilidade do Governo (vd n.º 2 do art.º 191.º da CRP).  
Recentemente, Marcelo comparou, como se disse, a questão Centeno com a questão Gaspar, o que deixou furioso o PSD, que entende que as situações são incomparáveis. É óbvio que os conteúdos e contornos dos dois momentos não são iguais, mas são igualmente suscetíveis. Antes, era a situação de crise devida ao programa de resgate do país; agora é o tempo da credibilização da governança apoiada numa inédita melhoria parlamentar, com a Europa a olhar de soslaio para a solução, mas com resultados à vista, nomeadamente a redução da dívida líquida, algum aumento do poder de compra e a iminência da saída do país do processo de défice excessivo.
Por outro lado, a criação de uma nova CPI, que parecia absurda, graças ao cuidado com que o requerimento foi redigido, delimitando o seu objeto, nos termos regimentais e constitucionais, tornou-se viável e sem criar suscetibilidades aos partidos da maioria, dado que o objeto não parece um duplicado da outra CPI sobre a CGD, no que Marcelo terá ajudado Ferro Rodrigues a não ver objeções regimentais e constitucionais, bem como quaisquer outros problemas, ao funcionamento da nova Comissão. Ademais, veio Jorge Miranda, prestigiado constitucionalista, dizer que o artigo 34.º da CRP não se aplica à troca de correspondência entre Centeno e Domingues por não estar no estrito âmbito da esfera privada, mas atingir negócios (que não segredos, digo eu) de Estado.
Assim, embora Marcelo tenha dito que SMS de Centeno/Domingues não o façam mudar de posição e Costa tenha dito que “só um PM insano dispensaria este ministro” (vd Expresso de hoje, 25 de fevereiro).
Pode, no entanto, suceder que Centeno, se for desmascarado com as SMS e/ou se se sentir agastado, venha a bater com a porta quando conseguir sem margem para dúvidas a saída de Portugal do procedimento por défice excessivo.
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Em suma, há demasiado fumo nestas questões de Estado, que não podiam ser tratadas assim. Comunicar sobre matéria pública por email e SMS revela superficialidade e torna-se perigoso. Fala-se muito de situações e métodos que nunca se sabe se estão no campo das hipóteses e que podem ser utilizados por outrem ad libitum. E, nisto, seriedade e conversação franca exigem-se!

2017.02.25 – Louro de Carvalho