domingo, 26 de fevereiro de 2017

O que disse efetivamente o Papa sobre ser católico e ser ateu

Muita da comunicação social, infelizmente não só em Portugal, que se deixa pautar pela febre da venda de papel ou da conquista de audiências, adulterou um segmento importante da homilia do Papa Francisco na celebração da missa a que presidiu na Casa de Santa Marta no passado dia 23 de fevereiro. Não é a primeira vez e não será talvez a última que as palavras do Papa são desviadas para sentido diferente daquele com que foram proferidas.
Recordo que, por ocasião da publicação do testamento espiritual do Papa São João Paulo II em abril de 2005, alguns dias após a sua morte, a 2 de abril, os jornais garantiam que o Papa polaco chegara a colocar a hipótese da renúncia ao sumo pontificado. Nada que o Código de Direito Canónico não tenha previsto e regulado. Porém, estupidamente os jornalistas que veicularam em primeira mão tal atoarda baseavam-se na leitura desviante dum ponto do texto do testamento. Refletindo ter levado a bom porto as celebrações do jubileu do 2.º milénio (e inauguração do 3.º), o Pontífice polaco rezava como o velho Simeão, mas laconicamente, “Nunc dimittis”. E os apressados leitores italianos de furo jornalístico, à boa maneira portuguesa, entenderam que, se Deus lhe mandou “nunca te demitas”, era porque João Paulo tivera a tentação de se demitir. Se um fosse um português com o 12.º ano sem conhecimentos de latim, ainda se entenderia a confusão de “nunc” (agora) com “nunca” e “dimittere” com “demitir”. Ora toda a gente sabe que aquele segmento significa apenas que o Senhor já podia agora deixar morrer em paz o seu servo. Não se tratava de renúncia nem de reprimenda por hipótese de renúncia. Razão Tinha o Pontífice quando dizia que a bengala que usava também servia para corrigir jornalistas!
Também Bento XVI foi penalizado por retirarem do contexto uma sua afirmação em Ratisbona sobre o islão. Recordo que um professor de Sagrada Escritura em Lamego (o Dr. António José de Anciães), ao falar da inerrância na Escritura, alertava para a necessidade de não retirarmos as frases bíblicas do seu contexto, exemplificando: “Eh, eh! Alguns dizem que a Bíblia diz que não há Deus, mas não leem bem”. De facto, o salmo 53 (52) diz no seu v. 2: “O insensato diz no seu coração: ‘Não há Deus!’”. Mas o salmo põe tais palavras no coração do insensato e adverte que os insensatos que não procuram Deus o são porque se transviaram e corromperam (cf Sl 53,4).
E quantas vezes não se diz ou escreve algo com um determinado sentido e é entendido em sentido totalmente diverso! É o risco de quem fala ou escreve e o direito de quem ouve ou lê…   
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Afinal, o que se passou com o Papa Francisco? Na sua homilia, partiu do salmo 1, em que se lê:
“Bem-aventurado o homem que não anda segundo o conselho dos ímpios, nem se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores. Antes tem o seu prazer na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite.” (Sl 1,1-2).
Trata-se de um salmo que pertence ao género sapiencial e constitui a meditação introdutória a todo o livro dos Salmos. Esta é uma reflexão de claras conotações éticas a mostrar que o livro, além de ser uma antologia de orações pessoais e litúrgicas, é um espelho de vida e de moral. Por isso, é sublinhada a divisão de caminhos e respetivos comportamentos, em que se figuram dois modos de vida com resultados diferentes, na linha do veiculado no livro do Deuteronómio:
“Repara que coloco hoje diante de ti a vida e o bem, a morte e o mal. Assim, ordeno-te hoje que ames o SENHOR, teu Deus, que andes nos seus caminhos, que guardes os seus mandamentos, preceitos e sentenças. Assim viverás, multiplicar-te-ás e o SENHOR, teu Deus, te abençoará na terra em que vais entrar para dela tomar posse.” (Dt 30,15-16).
São dois objetivos – vida e morte – cada um com sua via. E o mandamento é amar o Senhor e seguir os seus caminhos, guardando todos os seus preceitos, o que garantirá a bênção de Deus.
A seguir, vem o enunciado do resultado para quem se afaste da via da vida, caindo na idolatria:
“Mas se o teu coração se desviar e não escutares, se te deixares arrastar e adorares deuses estranhos e os servires, declaro-vos hoje que, sem dúvida, morrereis; os vossos dias não se prolongarão na terra na qual ides entrar, passando o Jordão, para dela tomar posse” (ib, 17-18).
E o Senhor mobiliza o céu e a terra como testemunhas deste pacto do Senhor dom o povo:
“Tomo hoje por testemunhas contra vós, o céu e a terra; ponho diante de vós a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe a vida para viveres, tu e a tua descendência, amando o SENHOR, teu Deus, escutando a sua voz e apegando-te a Ele, porque Ele é a tua vida e prolongará os teus dias para habitares na terra, que o SENHOR jurou que havia de dar a teus pais, Abraão, Isaac e Jacob.” (ib, 19-20).
São passagens a replicar e ampliar (alternando tu e vós) o teor doutro capítulo do Deuteronómio (Dt 11, 26-28) e antecipam o que vem referido no livro de Josué, como se pode ler:
“Temei o Senhor, e servi-o com toda a reti­dão e verdade. Afastai esses deuses a quem os vossos pais serviram do outro lado do rio e no Egito e servi o Senhor. E se vos desagrada servi-lo, então escolhei hoje aquele a quem quereis servir: os deuses a quem vossos pais serviram, do outro lado do rio, ou os deuses dos amorreus cuja terra ocupastes, porque eu e a minha casa serviremos o Senhor.” (Js 24, 14-15).
Ao desafio de Josué, que se tornou exemplo para os demais (como Clóvis iria fazer), o povo reagiu:
“Longe de nós abandonarmos o Senhor para servir outros deuses! Pois o Senhor nosso Deus é que nos fez subir, juntamente com nossos pais, da terra do Egito, da casa da escravidão, e realizou aqueles maravilhosos prodígios aos nossos olhos; Ele guardou-nos ao longo de todo o caminho que tivemos de percorrer, e entre todos os povos pelos quais passámos. O Senhor expulsou diante de nós todas as nações e os amorreus que habitavam na terra: também nós serviremos o Senhor, porque Ele é o nosso Deus.” (ib, 16-18).
E à objeção de Josué
Vós não sereis capazes de servir o Se­nhor, porque Ele é um Deus santo, um Deus zeloso que não perdoará as vossas transgressões nem os vossos peca­dos. Quando abandonardes o Senhor para servir a deuses estranhos, Ele voltar-se-á contra vós e far-vos-á mal; há de des­truir-vos, após ter-vos feito bem.” (ib, 19-20).
O povo respondeu: “Não. É ao Se­nhor que queremos servir.” (ib, 21). Josué já não aduziu como testemunhas o céu e a terra, mas os próprios israelitas:
“Josué disse-lhes então: ‘Sois tes­te­mu­nhas contra vós mesmos de que escolhestes o Senhor para o servir’. E eles responderam: ‘Somos testemunhas!’. E Josué ordenou: Tirai, pois, os deuses estranhos que estão no meio de vós, e inclinai os vossos corações para o Senhor, Deus de Israel.’. E o povo respondeu a Josué: ‘Nós serviremos o Senhor nosso Deus, e obedeceremos à sua voz’.” (ib, 22-24)
Face a esta postura do povo, Josué fez aliança com ele e deu-lhe, em Si­quém, leis e prescrições, escreveu aquelas palavras no livro da Lei e, tomando uma grande pedra, erigiu-a como monumento, sob o carvalho que se estava no santuário do Se­nhor. Depois, disse ao povo (cf ib, 25-27):
“Esta pedra servirá de testemunho entre nós, pois ela ouviu todas as palavras que o Senhor nos disse; ela servirá de testemunho contra vós, para que não renegueis o vosso Deus” (ib, 27).
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Porém, Francisco tira consequências do salmo donde partiu a sua reflexão em torno do real e penoso “escândalo” de quem se professa cristão (alegadamente escolhendo a via da vida) e depois mostra o seu verdadeiro rosto com uma vida que de cristã nada tem; e do contratestemunho de quem “explora” e “destrói” as vidas dos outros sob a capa de bom católico. E fê-lo comentando as palavras severas usadas por Jesus no Evangelho e chamando à conversão (que não se pode adiar) os protagonistas de certas “vidas duplas”, sendo que todo o motivo de escândalo ou o que for ocasião de pecado deve ser eliminado. Por outro lado, quem ajudar os discípulos do Senhor não ficará sem a sua recompensa, enquanto quem os levar ao pecado incorrerá em terrível castigo.
No dizer do Papa, a Escritura refere-se a quem tem “a sua força” no Senhor, “que se sente pequenino, que sabe que sem o Senhor nada pode fazer”. Esse “é bem-aventurado no Senhor”.
E o salmo mostra a contraposição entre os seguidores da lei de Deus e os arrogantes, malvados” – contraposição visível no trecho evangélico do dia (Mc 9, 41-50), onde também há bons e maus.
Nas palavras de Jesus vê-se a figura dos justos que se sentem pequeninos, mas cuja confiança está em Deus. É um trecho em que “por 4 vezes” se repete o termo “escândalo”. Usando-o, o Senhor foi muito severo: “Ai de quem escandalizar um só destes pequeninos!”. De facto, segundo o Pontífice, “o escândalo, para o Senhor, é destruição”. Por isso, Jesus aconselha:
“É melhor que se destrua a si mesmo que aos outros. Corta a tua mão, o pé, arranca um olho, lança-te ao mar. Mas não escandalizes os pequeninos, ou seja, os justos, os que confiam no Senhor, que simplesmente creem no Senhor.” (cf Mc 9,42-48).
Dissertando sobre o que é o escândalo e referindo que diz respeito à vida concreta de cada pessoa, o Papa explicitou, como se pôde ler no site da Rádio Vaticano, a 23 de fevereiro:  
“O escândalo é dizer uma coisa e fazer outra; é a vida dupla. Um exemplo? Eu sou muito católico, vou sempre à missa, pertenço a esta associação e àquela; mas a minha vida não é cristã, não pago o justo aos meus empregados, exploro as pessoas, faço negócios sujos, lavagem de dinheiro. Esta é uma vida dupla. Infelizmente, muitos católicos são assim e escandalizam.”.
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E é aqui que bate o ponto! Francisco transliterou palavras comuns de outrem: “Quantas vezes ouvimos no bairro ou noutras partes: ‘Mas ser católico como aquele, é melhor ser ateu!’. Não foi o Papa que disse ou sequer se interrogou que ser ateu é melhor que ser católico de vida dupla ou hipócrita. Mas foi claro ao aproveitar-se de lugares comuns na linguagem corrente:
“Eis o escândalo, que destrói, que desmoraliza. E isto acontece todos os dias: é suficiente ver o telejornal ou ler os jornais. Nos jornais há tantos escândalos, e há também a grande publicidade dos escândalos. E com os escândalos destrói-se.”.
E aduziu, para exemplo, um facto recente relativo a uma grande empresa à beira da falência. As autoridades queriam evitar uma greve justa, mas que não seria boa e procuraram entrar em contacto com o responsável da empresa. O dirigente, que dizia ser homem muito católico, estava numa praia do Médio Oriente a passar as férias invernais, enquanto os trabalhadores estavam sem salário e condições de trabalho. Apesar de o episódio não ter sido publicado, as pessoas souberam-no. Estes, diz o Papa “são os escândalos, a vida dupla”. E Jesus, face a isto, diz: A estes pequeninos, que creem em mim, não os arruínes com a tua vida dupla.
E, parafraseando outra passagem do Evangelho, o Papa evocou o momento de o escandaloso se apresentar à porta do Céu, criticando-o como Gil Vicente no Auto da Barca do Inferno:
– “Sou eu, Senhor!”. – “Ah”. – “Mas como, não te recordas? Eu ia à missa, estava ao teu lado, pertencia a esta associação, faço isto... não te recordas de todas as ofertas que dei?” – “Sim, recordo. As ofertas, recordo-me delas: todas sujas. Todas roubadas aos pobres. Não te conheço”.
O problema nasce, pois, da atitude bem descrita na 1.ª leitura daquele dia (Ecl 5,1-10): “Não confies nas tuas riquezas e não digas: não preciso de ninguém”. E ainda: “Não sigas o teu instinto nem a tua força, satisfazendo as paixões do teu coração”. Na verdade a vida dupla resulta das paixões do coração, dos pecados capitais. Quem dá escândalo segue as paixões, mesmo que as esconda. É um texto replicado na carta de Tiago, pelo que o Pontífice admoesta:  
“A cada um de nós fará bem, hoje, pensar se há algo de dupla vida em nós, de parecer justos, de parecer bons crentes, bons católicos, mas por detrás fazer outra coisa. Trata-se de compreender se a atitude é a de quem diz: ‘Mas sim, o Senhor perdoar-me-á tudo, mas eu continuo...’. E, apesar de estar ciente dos próprios erros, repete: ‘Sim, isto não está bem, converter-me-ei, mas não hoje: amanhã’. Um exame de consciência que deve levar à conversão do coração, a partir da consciência de que o escândalo destrói.”.
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Cada vez se exige mais que não peguemos nas coisas pela rama, mas as encaremos na sua profundidade, sempre vendo com olhos de ver, ouvindo com ouvidos purificados e falando e escrevendo com verdade total. Assim, o risco de quem fala/escreve não o precipita no barranco de cegos e o direito de quem ouve/lê não será um direito cujo exercício se torne vazio ou insone como o sino sem badalo ou com badalo partido. É a autenticidade de vida e de ação a impor-se!

2017.02.26 – Louro de Carvalho

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