segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Ignorar os pobres é uma fraude moral

Quem o diz, como se pode ler no site da Rádio Vaticano, é o Papa Francisco em mensagem enviada, a 17 de fevereiro, aos participantes do encontro dos Movimentos Populares que decorreu na cidade de Modesto, na Califórnia (EUA) de 16 a 18 deste mês. 
O Pontífice, escudado nos textos bíblicos, quer do Antigo Testamento, quer do Novo Testamento (sobretudo, do Evangelho de Lucas e das cartas de João e de Tiago), afirma:
“As feridas sociais causadas por um sistema económico desumano e difundido podem ser tratadas e curadas com o comportamento do bom samaritano, fazendo-se próximo de quem precisa”. 
Na ótica de Francisco, “os bons samaritanos”, dotados da “capacidade autêntica de estar próximo de quem sofre” é que salvarão o mundo”, ao invés daqueles hipócritas que “enchem os bolsos ignorando, com estilo, as chagas sociais, para depois manipularem as consciências quando as feridas são evidentes e não se pode mais fingir não as ver”.
Obviamente que o Papa gosta de ter como interlocutores todas as pessoas e grupos. Porém, quando os seus interlocutores são os porta-vozes das periferias existenciais – no caso vertente, os movimentos sociais –, encontra expressões fortes para evidenciar a nudez e crueza das falhas do que denomina “paradigma imperante”, um “sistema económico que causa sofrimentos enormes à família humana”, porque estribado no lucro em vez da solidariedade.
Aos participantes do encontro de Modesto o Papa apresenta a Parábola do Bom Samaritano (vd Lc 10,25-37), que evidencia a antítese entre o leigo “estrangeiro, pagão e impuro”, que se debruça sobre um moribundo agredido por assaltantes e cuida dele, e a indiferença dos mui cultos e mui religiosos sacerdote e levita, intimamente conexos com o Templo, que voltam as costas ao homem ferido e à lei de Deus que exigia a prestação de socorro em casos como este. Não sabemos se desandaram por receio de se contaminarem com as feridas e o sangue derramado, se por medo de serem considerados suspeitos de ato violento, se por convicção desviante sobre a prioridade do serviço do Templo, secundarizando o auxílio ao necessitado.
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O sistema económico, ao colocar no centro o deus dinheiro e ao agir, às vezes, com a mesma brutalidade dos assaltantes da parábola, causa feridas vivas que dificilmente são saradas, visto que outras prioridades se constroem aos olhos circunstantes, dos decisores políticos, dos operadores económicos e, ainda, dos modernos discípulos de Cristo – que tantas vezes preferem ser o sacerdote ou o levita que viram as costas ao sofrimento e fogem a correr par o Templo, em vez de se aproximarem dos necessitados, se debruçarem sobre eles e tratar eficazmente das suas mazelas, implicando os outros nesta ação de solidariedade. É o grito da Justiça em prol dos sofredores da pobreza e da doença! E o Papa denuncia o facto de tais feridas serem a cada passo “transcuradas culposamente”, censurando o “estilo elegante usado para desviar o olhar de forma recorrente”. Com efeito, sob a aparência do politicamente correto ou do bem alinhado com as modas ideológicas, olha-se para quem sofre “sem tocá-lo, distante, vendo-o na televisão”, e adota-se “um discurso de aparência tolerante e cheio de eufemismos, mas nada se faz de sistemático para curar as feridas sociais e enfrentar as estruturas que deixam muitos irmãos ao longo da estrada”. Criam-se muitas fundações, sociedades e associações alegadamente para a solidariedade social, quando o verdadeiro escopo é engrossar o prestígio dos protagonistas e até diminuir os encargos fiscais de empresa e de empresário.
É precisamente este discurso eufemístico e hipócrita e esta postura de desmazelo atento que o Bispo de Roma aponta como “fraude moral, que antes ou depois se descobre e se dissipa como uma miragem”. Na verdade, os feridos existem e são uma realidade; e o desemprego é real, tal como a violência, a corrupção, a crise de identidade, o esvaziamento das democracias, a crise ecológica”. Diante desta crise ecológica concomitante da crise sociomoral, Francisco exorta os povos indígenas, os pastores e os governantes a “defenderem a criação”, confiando na ciência, mas sem crerem na existência de uma “ciência neutra”.
Na perspetiva papal, vertida para a mensagem referenciada supra, “a gangrena de um sistema não pode ser camuflada eternamente porque antes ou depois se sente o mau cheiro e quando não pode ser mais negada pelo próprio poder que criou este estado de coisas, nasce a manipulação do medo, a insegurança, a raiva, incluindo a indignação das pessoas, e transfere-se a responsabilidade de todos os males para alguém que não está próximo”. Sendo esta uma grande tentação que engorda “este processo social em andamento em muitas partes do mundo”, constitui “uma ameaça séria para a humanidade”. Não é, assim, lícito “classificar as pessoas em próximas ou não” e “aquelas que podem se tornar vizinhas de casa ou não”.
A este cenário atitudinal do mundo o Papa contrapõe o ensino de Jesus. Jesus ensina a “tornar-se próximo dos que precisam”, o que é possível se no próprio coração existir “compaixão e capacidade de sofrer com o outro”. E a Igreja explicita dever ser “como o dono da hospedaria ao qual o samaritano confia, no final da parábola, a pessoa que sofre” (releia-se o Auto da Alma, de Gil Vicente). Assim, “os cristãos e  todos os homens de boa vontade devem viver e agir agora, porque muito tempo precioso foi perdido sem resolver essas realidades destruidoras”.
É, segundo Francisco, “da participação ativa das pessoas, em grande parte realizada pelos movimentos populares”, que “depende a maneira como se pode resolver essa crise profunda”. E o Papa reiterou o que disse no último encontro com os Movimentos Populares:
“Nenhum povo é criminoso e nenhuma religião é terrorista; não existe o terrorismo cristão, nem o judeu ou muçulmano; enfrentando o terror com amor trabalhamos pela paz; e nisso se encontra a humanidade verdadeira que resiste à desumanização manifestada em forma de indiferença, hipocrisia e intolerância”.  
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Também no passado dia 16 de fevereiro, o arcebispo emérito de Barcelona, Cardeal Lluís Martínez Sistach, apresentou a Francisco, em audiência privada, o programa do II Congresso internacional das grandes cidades dedicado à “Laudato si”, encíclica sobre o cuidado da casa comum – evento que ocorrerá no Rio de Janeiro, de 13 a 15 de julho próximo.
O purpurado assegura o grande interesse do Papa pelo tema da pastoral nas cidades desde o seu tempo de arcebispo de Buenos Aires. Efetivamente, em discurso aos participantes do I Congresso, em 2014, em Barcelona, o Sumo Pontífice acenara as dificuldades que, como arcebispo duma megalópole como Buenos Aires, teve que enfrentar e convidou os bispos a aprofundar “desafios e possíveis horizontes de uma pastoral urbana”. Entre estes, destacou: uma “pastoral evangelizadora audaz e sem temores”, o “diálogo com realidades multiculturais”, a força da “religiosidade popular” e a atenção “aos pobres, aos excluídos, aos descartados”.
O II Congresso – promovido pela fundação “Antoni Gaudí para as Grandes Cidades”, presidida pelo próprio Cardeal Sistach, com a colaboração do Arcebispo do Rio de Janeiro, Cardeal Orani João Tempesta – é “estritamente dedicado ao mundo latino-americano” e centrará os trabalhos nos ensinamentos papais sobre ecologia, à luz da encíclica “Laudato si”.
Cá está, mais uma vez, a preocupação com os pobres, os excluídos, os descartados, que ficam esquecidos tantas vezes no anonimato das grandes cidades e na exploração abusiva e destruidora do Planeta. Nestes termos, virão a propósito os pronunciamentos sobre ecologia por parte de especialistas do mundo inteiro, líderes religiosos, reitores de universidades e prefeitos de grandes cidades, que servirão de base a debates a fazer em mesas-redondas e simpósios. As reflexões serão feitas a partir de três temas ecológicos: o problema da água, as questões relacionadas à poluição dos grandes conglomerados urbanos e a gestão dos resíduos e detritos.
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Porém, em tão pouco tempo, o Papa não fala dos pobres apenas a Movimentos Populares ou a congressistas. Foi também a uma universidade. Na verdade, deixou o Vaticano, na manhã do passado dia 17, para uma visita à Universidade “Roma Tre”, a mais nova da Cidade.
Depois de afirmar que a instrução e a formação académica das novas gerações são uma exigência primordial para a vida e para o desenvolvimento da sociedade, passou a discorrer em resposta a questões levantadas por alguns alunos. Assim, reconheceu haver “uma onda de violência nas nossas cidades” e que “a violência é um processo que nos torna anónimos”. No entanto, sublinhou a riqueza que a sociedade detém:
“A nossa sociedade é rica de bens, de atos de solidariedade e de amor com o próximo. Tantas pessoas e tantos jovens, certamente também muitos entre vós, estão comprometidos no voluntariado e no serviço aos mais necessitados. Vós deveis ser gratos e orgulhosos por estes valores.”.
Porém, recordou que, no mundo, “há tantos sinais de inimizade e de violência, de ações violentas”. E, evocando o teor da sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano, que propõe a não violência como estilo de vida e de ação política, reiterou que, de facto, estamos a viver uma “verdadeira guerra mundial em pedaços”, que a Comunidade internacional não consegue travar. E acrescentou:
“A universidade é um universo, um lugar onde se pode dialogar. Uma universidade deve fazer um trabalho artesanal de diálogo, onde se formam as consciências, com um profundo confronto entre as exigências do bem, do verdadeiro e do belo, e a realidade com as suas contradições. Por exemplo, a indústria das armas, que, ao invés de diminuírem, aumentam. Diante desta dramática realidade, os jovens jamais devem perder a esperança. As bombas destroem os corpos e as dependências destroem os corpos, mas também as mentes e as almas.”.
Neste sentido, sugeriu à universidade o comprometimento com projetos de partilha e de serviço aos últimos, sobretudo na Cidade de Roma, “onde reinam urgências sociais, pobreza, migrantes, gente que dorme pelas ruas e passa fome”. E disse:
“Vós deveis ser protagonistas de ações construtivas, de combate à cultura do hedonismo e do descarte, baseados em ídolos do dinheiro e do prazer”.
E, partindo da sua experiência pessoal, apelando:
“Não tenhais medo de vos abrirdes aos horizontes do espírito, mediante o dom da fé. Não tenhais medo de vos abrirdes ao encontro com Cristo e aprofundar a vossa relação com Ele. Vós podeis tornar-vos ‘agentes da caridade intelectual’. Assim, a universidade pode dar a sua contribuição para a renovação da sociedade; pode e deve ser lugar onde se elabora a cultura do encontro e do acolhimento de pessoas, culturas e religiões diferentes”.
Por fim, encorajou docentes e estudantes a viverem a universidade como ambiente de verdadeiro diálogo e de confronto construtivo, pois a solidariedade, vivida concretamente e não com palavras, gera paz e esperança. Com efeito, a universidade tem de encontrar espaço para cuidar das pessoas todas e do seu mundo. Se não, para que serve a ciência que produz?
De facto, como dizia o Bispo do Porto, “os pobres não podem esperar” e o Ano da Misericórdia tinha de repor e reforçar a prática das obras por força da fé e da justiça, à luz da caridade.

2017.02.19 – Louro de Carvalho

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