Quem o diz, como se pode ler no site da Rádio Vaticano, é o Papa Francisco em mensagem enviada, a
17 de fevereiro, aos participantes do encontro dos Movimentos Populares que
decorreu na cidade de Modesto, na Califórnia (EUA) de 16
a 18 deste mês.
O Pontífice, escudado nos textos bíblicos, quer do
Antigo Testamento, quer do Novo Testamento (sobretudo, do Evangelho de Lucas e das
cartas de João e de Tiago),
afirma:
“As feridas sociais causadas por um sistema económico
desumano e difundido podem ser tratadas e curadas com o comportamento do bom
samaritano, fazendo-se próximo de quem precisa”.
Na ótica de Francisco, “os bons samaritanos”, dotados
da “capacidade autêntica de estar próximo de quem sofre” é que salvarão o mundo”,
ao invés daqueles hipócritas que “enchem os bolsos ignorando, com estilo, as
chagas sociais, para depois manipularem as consciências quando as feridas são
evidentes e não se pode mais fingir não as ver”.
Obviamente que o Papa gosta de ter como interlocutores
todas as pessoas e grupos. Porém, quando os seus interlocutores são os
porta-vozes das periferias existenciais – no caso vertente, os movimentos
sociais –, encontra expressões fortes para evidenciar a nudez e crueza das
falhas do que denomina “paradigma imperante”, um “sistema económico que causa
sofrimentos enormes à família humana”, porque estribado no lucro em vez da
solidariedade.
Aos participantes do encontro de Modesto o Papa apresenta
a Parábola do Bom Samaritano (vd Lc 10,25-37), que
evidencia a antítese entre o leigo “estrangeiro, pagão e impuro”, que se
debruça sobre um moribundo agredido por assaltantes e cuida dele, e a
indiferença dos mui cultos e mui religiosos sacerdote e levita, intimamente
conexos com o Templo, que voltam as costas ao homem ferido e à lei de Deus que
exigia a prestação de socorro em casos como este. Não sabemos se desandaram
por receio de se contaminarem com as feridas e o sangue derramado, se por medo
de serem considerados suspeitos de ato violento, se por convicção desviante sobre
a prioridade do serviço do Templo, secundarizando o auxílio ao necessitado.
***
O sistema económico, ao colocar no centro o deus dinheiro e ao
agir, às vezes, com a mesma brutalidade dos assaltantes da parábola, causa
feridas vivas que dificilmente são saradas, visto que outras prioridades se
constroem aos olhos circunstantes, dos decisores políticos, dos operadores
económicos e, ainda, dos modernos discípulos de Cristo – que tantas vezes
preferem ser o sacerdote ou o levita que viram as costas ao sofrimento e fogem
a correr par o Templo, em vez de se aproximarem dos necessitados, se debruçarem
sobre eles e tratar eficazmente das suas mazelas, implicando os outros nesta
ação de solidariedade. É o grito da Justiça em prol dos sofredores da pobreza e
da doença! E o Papa denuncia o facto de tais feridas serem a cada passo “transcuradas
culposamente”, censurando o “estilo elegante usado para desviar o olhar de
forma recorrente”. Com efeito, sob a aparência do politicamente correto ou do
bem alinhado com as modas ideológicas, olha-se para quem sofre “sem tocá-lo,
distante, vendo-o na televisão”, e adota-se “um discurso de aparência tolerante
e cheio de eufemismos, mas nada se faz de sistemático para curar as feridas
sociais e enfrentar as estruturas que deixam muitos irmãos ao longo da
estrada”. Criam-se muitas fundações, sociedades e associações alegadamente para
a solidariedade social, quando o verdadeiro escopo é engrossar o prestígio dos
protagonistas e até diminuir os encargos fiscais de empresa e de empresário.
É precisamente este discurso eufemístico e hipócrita e
esta postura de desmazelo atento que o Bispo de Roma aponta como “fraude moral,
que antes ou depois se descobre e se dissipa como uma miragem”. Na verdade, os
feridos existem e são uma realidade; e o desemprego é real, tal como a
violência, a corrupção, a crise de identidade, o esvaziamento das democracias,
a crise ecológica”. Diante desta crise ecológica concomitante da crise sociomoral,
Francisco exorta os povos indígenas, os pastores e os governantes a “defenderem
a criação”, confiando na ciência, mas sem crerem na existência de uma “ciência
neutra”.
Na perspetiva papal, vertida para a mensagem
referenciada supra, “a gangrena de um sistema não pode ser camuflada
eternamente porque antes ou depois se sente o mau cheiro e quando não pode ser
mais negada pelo próprio poder que criou este estado de coisas, nasce a
manipulação do medo, a insegurança, a raiva, incluindo a indignação das
pessoas, e transfere-se a responsabilidade de todos os males para alguém que
não está próximo”. Sendo esta uma grande tentação que engorda “este processo
social em andamento em muitas partes do mundo”, constitui “uma ameaça séria
para a humanidade”. Não é, assim, lícito “classificar as pessoas em próximas ou
não” e “aquelas que podem se tornar vizinhas de casa ou não”.
A este cenário atitudinal do
mundo o Papa contrapõe o ensino de Jesus. Jesus ensina
a “tornar-se próximo dos que precisam”, o que é possível se no próprio coração
existir “compaixão e capacidade de sofrer com o outro”. E a Igreja explicita
dever ser “como o dono da hospedaria ao qual o samaritano confia, no final da
parábola, a pessoa que sofre” (releia-se o Auto
da Alma, de Gil Vicente). Assim,
“os cristãos e todos os homens de boa vontade devem viver e agir agora,
porque muito tempo precioso foi perdido sem resolver essas realidades
destruidoras”.
É, segundo Francisco, “da participação ativa das
pessoas, em grande parte realizada pelos movimentos populares”, que “depende a
maneira como se pode resolver essa crise profunda”. E o Papa reiterou o
que disse no último encontro com os Movimentos Populares:
“Nenhum povo é criminoso e nenhuma religião é terrorista;
não existe o terrorismo cristão, nem o judeu ou muçulmano; enfrentando o terror
com amor trabalhamos pela paz; e nisso se encontra a humanidade verdadeira que
resiste à desumanização manifestada em forma de indiferença, hipocrisia e
intolerância”.
***
Também no passado dia 16 de fevereiro, o arcebispo emérito de
Barcelona, Cardeal Lluís Martínez Sistach, apresentou a Francisco, em audiência
privada, o programa do II Congresso internacional das grandes cidades dedicado
à “Laudato si”, encíclica sobre o
cuidado da casa comum – evento que ocorrerá no Rio de Janeiro, de 13 a 15 de julho
próximo.
O purpurado assegura o grande interesse do Papa pelo tema da
pastoral nas cidades desde o seu tempo de arcebispo de Buenos Aires. Efetivamente,
em discurso aos participantes do I Congresso, em 2014, em Barcelona, o Sumo
Pontífice acenara as dificuldades que, como arcebispo duma megalópole como Buenos
Aires, teve que enfrentar e convidou os bispos a aprofundar “desafios e
possíveis horizontes de uma pastoral urbana”. Entre estes, destacou: uma “pastoral
evangelizadora audaz e sem temores”, o “diálogo com realidades multiculturais”,
a força da “religiosidade popular” e a atenção “aos pobres, aos excluídos, aos
descartados”.
O II Congresso – promovido pela fundação “Antoni Gaudí para as
Grandes Cidades”, presidida pelo próprio Cardeal Sistach, com a colaboração do
Arcebispo do Rio de Janeiro, Cardeal Orani João Tempesta – é “estritamente dedicado ao
mundo latino-americano” e centrará os trabalhos nos ensinamentos papais sobre
ecologia, à luz da encíclica “Laudato si”.
Cá está, mais uma vez, a preocupação com os pobres, os excluídos,
os descartados, que ficam esquecidos tantas vezes no anonimato das grandes
cidades e na exploração abusiva e destruidora do Planeta. Nestes termos, virão a propósito os pronunciamentos sobre ecologia por parte de especialistas do
mundo inteiro, líderes religiosos, reitores de universidades e prefeitos de
grandes cidades, que servirão de base a debates a fazer em mesas-redondas e
simpósios. As reflexões serão feitas a partir de três
temas ecológicos: o problema da água,
as questões relacionadas à poluição dos
grandes conglomerados urbanos e a gestão
dos resíduos e detritos.
***
Porém, em tão pouco tempo, o Papa não fala
dos pobres apenas a Movimentos Populares ou a congressistas. Foi também a uma
universidade. Na verdade, deixou o Vaticano, na manhã do passado dia 17, para uma
visita à Universidade “Roma Tre”, a mais nova da Cidade.
Depois de afirmar que a instrução e a formação académica das
novas gerações são uma exigência primordial para a vida e para o desenvolvimento
da sociedade, passou a discorrer em resposta a questões levantadas por alguns
alunos. Assim, reconheceu haver “uma onda de violência nas nossas cidades” e
que “a violência é um processo que nos torna anónimos”. No entanto, sublinhou a
riqueza que a sociedade detém:
“A
nossa sociedade é rica de bens, de atos de solidariedade e de amor com o
próximo. Tantas pessoas e tantos jovens, certamente também muitos entre vós,
estão comprometidos no voluntariado e no serviço aos mais necessitados. Vós
deveis ser gratos e orgulhosos por estes valores.”.
Porém, recordou que, no mundo, “há
tantos sinais de inimizade e de violência, de ações violentas”. E, evocando o
teor da sua Mensagem para o Dia Mundial
da Paz deste ano, que propõe a não violência como estilo de vida e de ação
política, reiterou que, de facto, estamos a viver uma “verdadeira guerra
mundial em pedaços”, que a Comunidade internacional não consegue travar. E
acrescentou:
“A universidade é um universo, um lugar onde se pode
dialogar. Uma universidade deve fazer um trabalho artesanal de diálogo, onde se
formam as consciências, com um profundo confronto entre as exigências do bem,
do verdadeiro e do belo, e a realidade com as suas contradições. Por exemplo, a
indústria das armas, que, ao invés de diminuírem, aumentam. Diante desta
dramática realidade, os jovens jamais devem perder a esperança. As bombas
destroem os corpos e as dependências destroem os corpos, mas também as mentes e
as almas.”.
Neste sentido, sugeriu à universidade
o comprometimento com projetos de partilha e de serviço aos últimos, sobretudo
na Cidade de Roma, “onde reinam urgências sociais, pobreza, migrantes, gente
que dorme pelas ruas e passa fome”. E disse:
“Vós
deveis ser protagonistas de ações construtivas, de combate à cultura do
hedonismo e do descarte, baseados em ídolos do dinheiro e do prazer”.
E, partindo da sua experiência pessoal, apelando:
“Não tenhais medo de vos abrirdes aos horizontes do espírito,
mediante o dom da fé. Não tenhais medo de vos abrirdes ao encontro com Cristo e
aprofundar a vossa relação com Ele. Vós podeis tornar-vos ‘agentes da caridade
intelectual’. Assim, a universidade pode dar a sua contribuição para a
renovação da sociedade; pode e deve ser lugar onde se elabora a cultura do
encontro e do acolhimento de pessoas, culturas e religiões diferentes”.
Por fim, encorajou docentes e estudantes
a viverem a universidade como ambiente de verdadeiro diálogo e de confronto
construtivo, pois a solidariedade, vivida concretamente e não com palavras,
gera paz e esperança. Com efeito, a universidade tem de encontrar espaço para
cuidar das pessoas todas e do seu mundo. Se não, para que serve a ciência que
produz?
De facto, como dizia o Bispo do Porto, “os pobres não podem esperar”
e o Ano da Misericórdia tinha de repor e reforçar a prática das obras por força
da fé e da justiça, à luz da caridade.
2017.02.19 – Louro
de Carvalho
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