Está
patente desde ontem, 3 de fevereiro, até ao próximo dia 5 de junho, no museu da
Fundação Calouste Gulbenkian, uma exposição evocativa da obra de José Almada
Negreiros – o artista em que uns veem uma
maneira de ser moderno e de quem outros dizem ser “o homem que quis comer
todas as artes” – o omnívoro.
A exposição antológica quer mostrar que o modernismo pode apresentar vários
rostos e várias facetas no mesmo rosto. A exibição das 400 obras (um quarto delas inéditas) organiza-se em duas galerias (7 núcleos
na Galeria Principal e um na Galeria do Piso Inferior) e mostra uma enorme
diversidade de núcleos fluidos e comunicantes que ajudam a estabelecer uma ordem
visual, mas sem a pretensão de a conter: pintura, desenho, vitral, cerâmica, cinema, novela gráfica, teatro,
dança... – o que permite a alguns chamarem a Almada “o omnívoro”.
Negreiros integra o imaginário coletivo e de descoberta atinente
à arte portuguesa do século XX. E os inéditos da exposição são muitos e
surpreendentes: uns, como o retrato de Tareca, nem parecem ter sido feitos por
ele; outros, como o que terá pertencido a Gonçalo de Mello Breyner, tio de
Sophia, mostram corpos de género indefinido perpassados por linhas finas
evocativas de um certo mistério.
Em 1873, o poeta Rimbaud preconizou: “Há que ser absolutamente moderno”. E Almada
(1893-1970) levou o mote à letra recusando entender o modernismo como a moda segundo
a qual bastaria vestir os estereótipos da representação (e, depois, da abstração). Para ele, o modernismo era, antes, a afirmação de uma condição
autónoma do artista, a quem atribuía a responsabilidade, não de pertencer à
modernidade, mas de a fazer acontecer. O modernista catalisou a vanguarda
artística dos anos 1910, com presença forte na arte do século. Com obra vasta e
diversificada, manteve, no entanto, temas recorrentes, e constante intervenção
pública através de conferências que prolongaram a ação provocadora dos seus manifestos do
início do século e nas quais não cessou de equacionar o papel do artista, da
arte e a definição de moderno. Conceção alargada de arte e de artista, pulsão
autodidata e circunstâncias epocais levaram-no a trabalhar as mais variadas
linguagens e suportes artísticos, absorvendo e reinterpretando diferentes
estímulos. A obra mostra a condição complexa, experimental, contraditória
e híbrida da modernidade.
***
Passados
que foram 25 anos sobre a última grande exposição dedicada a Almada, a que
agora reúne em Lisboa 4 centenas de trabalhos do artista gera grandes
expectativas. E, nesse sentido, a iniciativa inclui um variado programa
paralelo com: mesas-redondas; visitas guiadas às gares marítimas de Alcântara e
da Rocha do Conde de Óbidos, sítios onde Negreiros deixou painéis a fresco; a
peça de teatro “Antes de Começar”, pelo Teatro da Esquina (para crianças dos 4 aos
12 anos);
o concerto “La Tragedia de Doña Ajada”, com a orquestra da casa; o
ciclo na cinemateca com filmes a ele ligados (o cinema fascinava-o); e a projeção rara de Almada, Um Nome de Guerra, o antifilme de Ernesto
de Sousa, um admirador confesso.
Uma maneira de ser moderno abarca o arco cronológico (60 anos) da obra de Almada Negreiros, mostrando
obras do início da carreira, marcada pelo desenho humorístico e pelas primeiras
encomendas, as da Alfaiataria Cunha, até aos óleos dos anos 1950, que tornam
mais evidentes as pesquisas geométricas que o ocuparam e que têm no painel Começar (1968) o intrincado ensaio/testamento que Almada faz por encomenda
para o átrio do edifício-sede da Gulbenkian.
Nesta
exposição, comissariada pela historiadora de arte Mariana Pinto dos Santos (o comissariado executivo
é de Ana Vasconcelos), procura-se mostrar com a obra de Almada que o debate em torno
da modernidade não assenta apenas na dicotomia centro-periferias nem no discurso
que associa as segundas a um atraso permanente. Na verdade, o modernismo é simplesmente
plural e são várias as formulações e interpretações do que é ser moderno e do
que é dar modernidade à arte. Assim, algumas comportam valências contraditórias,
sendo que ora se olha a modernidade como sinónimo de progresso, ora se vê nela
uma possibilidade de reinventar a tradição.
A
historiografia que tem olhado para o moderno em países como Portugal, Suécia,
Islândia, Polónia e Dinamarca, sempre em referência exclusiva a Paris, peca
muitas vezes por ignorar as singularidades da produção destas “periferias” e por
procurar uma espécie de padronização.
A
comissária quis, pois, reunir obras que problematizassem a multiplicidade do modernismo,
evidenciando uma série de constantes na produção de Almada, como as pesquisas
geométricas, que são a procura do que está na base da representação, de uma
linguagem entendível por todos. Pretendeu também realçar o que de novo há na
investigação à sua volta, contrariando algumas ideias enraizadas, como a de que
há géneros e registos mais importantes do que outros em Almada e a de que ele
foi um artista do regime do Estado Novo. Segundo a comissária, Almada
sentia que a sua missão era levar o espetáculo até ao fim e que, se alguma
coisa não chegava ao público, era porque o artista falhara.
***
Com
uma apetência natural para desenhar e sem qualquer formação em arte – não
cursou Belas Artes nem sequer andou numa escola de desenho industrial (as netas Rita e Catarina
e dizem que a escola não era para ele) – Almada começou pelo desenho humorístico na
imprensa, deixando que a atividade se alastrasse rapidamente. Colaborou com a
revista Orpheu (título fundamental do século XX português nas letras e nas artes), escreveu e apresentou
os seus manifestos, às vezes com estrondo; encenou, coreografou e dançou, influenciado
pela passagem por Lisboa dos revolucionários Ballets Russes de Sergei
Diaghilev; criou figurinos, pintou, organizou congressos e exposições, algumas
delas por concretizar, e com sonhos de internacionalização.
Em
Almada Negreiros, o desenho atravessa tudo e está antes de tudo, na linha
inaugurada pelo Renascimento. Não obstante, ele lhe dê mais importância do que
à escrita, à pintura em tela ou a fresco, aos grandes painéis em azulejo ou às
tapeçarias, aos objetos de cena, aos figurinos, aos vitrais, aos trabalhos
gráficos, aos desenhos pequeninos que faz em qualquer papel que encontre e em
qualquer lado. Almada parece ser tudo em simultâneo.
Companheiro
dos modernistas da Brasileira – Fernando Pessoa, Mário Sá-Carneiro, Amadeo de
Souza Cardoso e Santa Rita Pintor – assina capas de livros e publicações como Manifesto Anti-Dantas; K4, O
Quadrado Azul; Portugal Futurista. Em 1919, parte para Paris, onde
vive um ano em condições muito precárias, regressando para sair de novo, anos
mais tarde, desta vez para Madrid (1927-1932), onde trabalha muito e tem a seu lado Ione
Mignoni, a italiana filha de um cenógrafo e de uma cantora de ópera e que, até
ao fim, terá falado de Almada como o grande amor da sua vida. No regresso, está
instituído o Estado Novo e, com ele, vem uma proposta de integração das artes
defendida desde o início do século pela Bauhaus e, antes dela, pelo Arts &
Crafts da Inglaterra da 2.ª metade do século XIX. “Desta integração”, diz
Mariana Pinto dos Santos, “Almada tira a ideia de que a modernidade tem de
estar em tudo na vida, que o moderno não é um movimento a que se pertence – é o
que se faz, é o que se é”.
Ora,
o Estado Novo do Portugal de Salazar, como a Alemanha nazi de Hitler e a Itália
fascista de Mussolini, tem um forte desejo de modernidade. Porém, o facto de
Almada ter participado em exposições promovidas pelo Secretariado de Propaganda
Nacional (mais
tarde Secretariado Nacional de Informação) do também modernista António Ferro (o paladino da propaganda
do regime)
e de ter aceitado várias encomendas para obras públicas – gares marítimas,
liceus, universidades – não significa que fosse um artista alinhado com o
regime. Aliás, entre 1932 e 1937, escreveu um conjunto de textos em que contestava
frontalmente a política de Ferro e a sua visão do modernismo, proclamando a
liberdade do artista. E, em 1936, participou na exposição dos artistas independentes
ao lado de António Pedro, de Vieira da Silva, de Mário Eloy e da própria Sarah
Affonso [com
quem se casara em 1934]. Sentindo o fechamento quando regressa de Madrid, manifestou-se
contra ele. Ferro admirava Mussolini, mas respeitava o Almada e sabia que não
podia entrar em ruptura com ele. Caraterizou-o, logo em 1921, no Diário de Lisboa:
“José de Amada Negreiros
faz tudo o que quer, é o grande saltimbanco da arte moderna portuguesa (...). A
arte é para Almada Negreiros uma vitrina de brinquedos. Dá corda a este, dá
corda àquele – mas não se decide por nenhum... Almada não se decide por nenhuma
arte, toda a arte, contudo, se decidiu por ele.”.
A
partir de 1941, ano em que recebe o prémio Columbano, Almada participa nas
exposições oficiais, aceita sistematicamente (e até procura) encomendas públicas,
sem dinheiro e num mundo em que o Estado é o único cliente. Por outro lado,
Almada queria ser exposto e reconhecido, que o seu trabalho fosse visto. Trabalhar
em espaços públicos dá-lhe a possibilidade de cumprir um dos seus objetivos:
fazer acontecer a modernidade, levá-la à vida das pessoas para que a ela não
aceda apenas o pequeno grupo que visita exposições, sejam elas independentes ou
não.
No
entanto, a forma como o artista responde a algumas das encomendas reflete a sua
capacidade de reação e de distanciamento ideológico da chamada “política do
espírito” promovida pelo regime. Se não pode escolher o tema porque a encomenda
o define bem, pode interpretá-lo à sua maneira. Por exemplo, nas igrejas de
Nossa Senhora de Fátima, as figuras dos vitrais têm uma linguagem gráfica muito
próxima do seu desenho humorístico; e o Cristo da capela mortuária vai ficando
verde, a cor identitária de Almada. Na igreja do Santo Condestável, a Virgem da Anunciação tem a pela escura, evocando o nascimento do artista em São
Tomé; e as varinas dos frescos da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos parecem
africanas, longe da estilização vigente na época. O seu trabalho nesta gare é
dos que mais incomodam o regime, sobretudo pela pintura de saltimbancos a pedir
esmola e pela exploração do tema da emigração numa sala de visitas da cidade (Portugal era mais o
lugar donde se partia do que o porto de acolhimento). Por isso, vários
conservadores influentes chegaram a pedir que os frescos fossem
destruídos.
Nunca
desligando a arte da política Almada dizia sempre que fazia arte e não
política. E trabalhava para o regime sem lhe obedecer à letra, o que, às vezes,
indispunha o poder. É que “todo o artista faz realismo social”, como confessava
numa entrevista em 1953.
***
(cf Lucinda
Canelas, “Almada Negreiros, o homem que quis comer todas as artes”, Público, 3 de fevereiro; “Almada Negreiros: um português sem
mestre”, revista do Expresso, 4 de fevereiro; catálogo da exposição “José de Almada Negreiros: uma maneira de
ser moderno”, Museu Calouste Gulbenkian, fevereiro).
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