sábado, 4 de fevereiro de 2017

Almada Negreiros: uma maneira de ser moderno

Está patente desde ontem, 3 de fevereiro, até ao próximo dia 5 de junho, no museu da Fundação Calouste Gulbenkian, uma exposição evocativa da obra de José Almada Negreiros – o artista em que uns veem uma maneira de ser moderno e de quem outros dizem ser “o homem que quis comer todas as artes” – o omnívoro.
A exposição antológica quer mostrar que o modernismo pode apresentar vários rostos e várias facetas no mesmo rosto. A exibição das 400 obras (um quarto delas inéditas) organiza-se em duas galerias (7 núcleos na Galeria Principal e um na Galeria do Piso Inferior) e mostra uma enorme diversidade de núcleos fluidos e comunicantes que ajudam a estabelecer uma ordem visual, mas sem a pretensão de a conter: pintura, desenho, vitral, cerâmica, cinema, novela gráfica, teatro, dança... – o que permite a alguns chamarem a Almada “o omnívoro”.  
Negreiros integra o imaginário coletivo e de descoberta atinente à arte portuguesa do século XX. E os inéditos da exposição são muitos e surpreendentes: uns, como o retrato de Tareca, nem parecem ter sido feitos por ele; outros, como o que terá pertencido a Gonçalo de Mello Breyner, tio de Sophia, mostram corpos de género indefinido perpassados por linhas finas evocativas de um certo mistério.
Em 1873, o poeta Rimbaud preconizou: “Há que ser absolutamente moderno”. E Almada (1893-1970) levou o mote à letra recusando entender o modernismo como a moda segundo a qual bastaria vestir os estereótipos da representação (e, depois, da abstração). Para ele, o modernismo era, antes, a afirmação de uma condição autónoma do artista, a quem atribuía a responsabilidade, não de pertencer à modernidade, mas de a fazer acontecer. O modernista catalisou a vanguarda artística dos anos 1910, com presença forte na arte do século. Com obra vasta e diversificada, manteve, no entanto, temas recorrentes, e constante intervenção pública através de conferências que prolongaram a ação provocadora dos seus manifestos do início do século e nas quais não cessou de equacionar o papel do artista, da arte e a definição de moderno. Conceção alargada de arte e de artista, pulsão autodidata e circunstâncias epocais levaram-no a trabalhar as mais variadas linguagens e suportes artísticos, absorvendo e reinterpretando diferentes estímulos. A obra mostra a condição complexa, experimental, contraditória e híbrida da modernidade.
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Passados que foram 25 anos sobre a última grande exposição dedicada a Almada, a que agora reúne em Lisboa 4 centenas de trabalhos do artista gera grandes expectativas. E, nesse sentido, a iniciativa inclui um variado programa paralelo com: mesas-redondas; visitas guiadas às gares marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, sítios onde Negreiros deixou painéis a fresco; a peça de teatro “Antes de Começar, pelo Teatro da Esquina (para crianças dos 4 aos 12 anos); o concerto “La Tragedia de Doña Ajada”, com a orquestra da casa; o ciclo na cinemateca com filmes a ele ligados (o cinema fascinava-o); e a projeção rara de Almada, Um Nome de Guerra, o antifilme de Ernesto de Sousa, um admirador confesso.
Uma maneira de ser moderno abarca o arco cronológico (60 anos) da obra de Almada Negreiros, mostrando obras do início da carreira, marcada pelo desenho humorístico e pelas primeiras encomendas, as da Alfaiataria Cunha, até aos óleos dos anos 1950, que tornam mais evidentes as pesquisas geométricas que o ocuparam e que têm no painel Começar (1968) o intrincado ensaio/testamento que Almada faz por encomenda para o átrio do edifício-sede da Gulbenkian.
Nesta exposição, comissariada pela historiadora de arte Mariana Pinto dos Santos (o comissariado executivo é de Ana Vasconcelos), procura-se mostrar com a obra de Almada que o debate em torno da modernidade não assenta apenas na dicotomia centro-periferias nem no discurso que associa as segundas a um atraso permanente. Na verdade, o modernismo é simplesmente plural e são várias as formulações e interpretações do que é ser moderno e do que é dar modernidade à arte. Assim, algumas comportam valências contraditórias, sendo que ora se olha a modernidade como sinónimo de progresso, ora se vê nela uma possibilidade de reinventar a tradição.
A historiografia que tem olhado para o moderno em países como Portugal, Suécia, Islândia, Polónia e Dinamarca, sempre em referência exclusiva a Paris, peca muitas vezes por ignorar as singularidades da produção destas “periferias” e por procurar uma espécie de padronização.
A comissária quis, pois, reunir obras que problematizassem a multiplicidade do modernismo, evidenciando uma série de constantes na produção de Almada, como as pesquisas geométricas, que são a procura do que está na base da representação, de uma linguagem entendível por todos. Pretendeu também realçar o que de novo há na investigação à sua volta, contrariando algumas ideias enraizadas, como a de que há géneros e registos mais importantes do que outros em Almada e a de que ele foi um artista do regime do Estado Novo. Segundo a comissária, Almada sentia que a sua missão era levar o espetáculo até ao fim e que, se alguma coisa não chegava ao público, era porque o artista falhara.
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Com uma apetência natural para desenhar e sem qualquer formação em arte – não cursou Belas Artes nem sequer andou numa escola de desenho industrial (as netas Rita e Catarina e dizem que a escola não era para ele) – Almada começou pelo desenho humorístico na imprensa, deixando que a atividade se alastrasse rapidamente. Colaborou com a revista Orpheu (título fundamental do século XX português nas letras e nas artes), escreveu e apresentou os seus manifestos, às vezes com estrondo; encenou, coreografou e dançou, influenciado pela passagem por Lisboa dos revolucionários Ballets Russes de Sergei Diaghilev; criou figurinos, pintou, organizou congressos e exposições, algumas delas por concretizar, e com sonhos de internacionalização.
Em Almada Negreiros, o desenho atravessa tudo e está antes de tudo, na linha inaugurada pelo Renascimento. Não obstante, ele lhe dê mais importância do que à escrita, à pintura em tela ou a fresco, aos grandes painéis em azulejo ou às tapeçarias, aos objetos de cena, aos figurinos, aos vitrais, aos trabalhos gráficos, aos desenhos pequeninos que faz em qualquer papel que encontre e em qualquer lado. Almada parece ser tudo em simultâneo.
Companheiro dos modernistas da Brasileira – Fernando Pessoa, Mário Sá-Carneiro, Amadeo de Souza Cardoso e Santa Rita Pintor – assina capas de livros e publicações como Manifesto Anti-Dantas; K4, O Quadrado Azul; Portugal Futurista. Em 1919, parte para Paris, onde vive um ano em condições muito precárias, regressando para sair de novo, anos mais tarde, desta vez para Madrid (1927-1932), onde trabalha muito e tem a seu lado Ione Mignoni, a italiana filha de um cenógrafo e de uma cantora de ópera e que, até ao fim, terá falado de Almada como o grande amor da sua vida. No regresso, está instituído o Estado Novo e, com ele, vem uma proposta de integração das artes defendida desde o início do século pela Bauhaus e, antes dela, pelo Arts & Crafts da Inglaterra da 2.ª metade do século XIX. “Desta integração”, diz Mariana Pinto dos Santos, “Almada tira a ideia de que a modernidade tem de estar em tudo na vida, que o moderno não é um movimento a que se pertence – é o que se faz, é o que se é”.
Ora, o Estado Novo do Portugal de Salazar, como a Alemanha nazi de Hitler e a Itália fascista de Mussolini, tem um forte desejo de modernidade. Porém, o facto de Almada ter participado em exposições promovidas pelo Secretariado de Propaganda Nacional (mais tarde Secretariado Nacional de Informação) do também modernista António Ferro (o paladino da propaganda do regime) e de ter aceitado várias encomendas para obras públicas – gares marítimas, liceus, universidades – não significa que fosse um artista alinhado com o regime. Aliás, entre 1932 e 1937, escreveu um conjunto de textos em que contestava frontalmente a política de Ferro e a sua visão do modernismo, proclamando a liberdade do artista. E, em 1936, participou na exposição dos artistas independentes ao lado de António Pedro, de Vieira da Silva, de Mário Eloy e da própria Sarah Affonso [com quem se casara em 1934]. Sentindo o fechamento quando regressa de Madrid, manifestou-se contra ele. Ferro admirava Mussolini, mas respeitava o Almada e sabia que não podia entrar em ruptura com ele. Caraterizou-o, logo em 1921, no Diário de Lisboa:
“José de Amada Negreiros faz tudo o que quer, é o grande saltimbanco da arte moderna portuguesa (...). A arte é para Almada Negreiros uma vitrina de brinquedos. Dá corda a este, dá corda àquele – mas não se decide por nenhum... Almada não se decide por nenhuma arte, toda a arte, contudo, se decidiu por ele.”.
A partir de 1941, ano em que recebe o prémio Columbano, Almada participa nas exposições oficiais, aceita sistematicamente (e até procura) encomendas públicas, sem dinheiro e num mundo em que o Estado é o único cliente. Por outro lado, Almada queria ser exposto e reconhecido, que o seu trabalho fosse visto. Trabalhar em espaços públicos dá-lhe a possibilidade de cumprir um dos seus objetivos: fazer acontecer a modernidade, levá-la à vida das pessoas para que a ela não aceda apenas o pequeno grupo que visita exposições, sejam elas independentes ou não.
No entanto, a forma como o artista responde a algumas das encomendas reflete a sua capacidade de reação e de distanciamento ideológico da chamada “política do espírito” promovida pelo regime. Se não pode escolher o tema porque a encomenda o define bem, pode interpretá-lo à sua maneira. Por exemplo, nas igrejas de Nossa Senhora de Fátima, as figuras dos vitrais têm uma linguagem gráfica muito próxima do seu desenho humorístico; e o Cristo da capela mortuária vai ficando verde, a cor identitária de Almada. Na igreja do Santo Condestável, a Virgem da Anunciação tem a pela escura, evocando o nascimento do artista em São Tomé; e as varinas dos frescos da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos parecem africanas, longe da estilização vigente na época. O seu trabalho nesta gare é dos que mais incomodam o regime, sobretudo pela pintura de saltimbancos a pedir esmola e pela exploração do tema da emigração numa sala de visitas da cidade (Portugal era mais o lugar donde se partia do que o porto de acolhimento). Por isso, vários conservadores influentes chegaram a pedir que os frescos fossem destruídos.
Nunca desligando a arte da política Almada dizia sempre que fazia arte e não política. E trabalhava para o regime sem lhe obedecer à letra, o que, às vezes, indispunha o poder. É que “todo o artista faz realismo social”, como confessava numa entrevista em 1953.
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(cf Lucinda Canelas, “Almada Negreiros, o homem que quis comer todas as artes”, Público, 3 de fevereiro; “Almada Negreiros: um português sem mestre”, revista do Expresso, 4 de fevereiro; catálogo da exposição “José de Almada Negreiros: uma maneira de ser moderno”, Museu Calouste Gulbenkian, fevereiro).

2017.02.04 – Louro de Carvalho

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