domingo, 30 de setembro de 2018

O fermento da fraternidade nunca deixa de produzir os seus frutos


Disse-o o Papa Francisco a cerca de sete mil membros da Associação Nacional da Polícia de Estado, que recebeu em audiência a 29 de setembro, na Sala Paulo VI, no Vaticano.
É uma associação une os membros da Polícia ainda em atividade e aqueles que, mesmo tendo terminado seu serviço, ainda se sentem parte dela e levam por adiante os seus ideais, nomeadamente a transmissão das “tradições da Polícia de Estado”, favorecendo a união de todos os seus membros, em licença ou em serviço. No dizer do Papa, valorizam-se, deste modo, “a experiência dos membros idosos e o seu património histórico-cultural, que não deve ser esquecido ou diluído, mas transmitido e ampliado e reforça-se o vínculo entre as gerações, às vezes, afetado no contexto das relações sociais”.
E, na ótica do compromisso com o bem comum, Francisco sublinhou:
É muito significativo que fazem parte dessa associação os cidadãos comuns que, mesmo não sendo membros da Polícia, assumem os seus valores e o seu compromisso. Assim, vós formais uma grande família: uma família aberta a todos aqueles que se querem comprometer com o bem comum a partir de seus princípios, uma família que gostaria de envolver e acolher todo o cidadão para difundir uma cultura de legalidade, respeito e segurança.”.
Para o Pontífice, sem tais fundamentos, nenhum contexto social pode alcançar o bem comum, mas tornar-se-á um emaranhado de interesses pessoais contrapostos, pois o bem duma sociedade não é dado apenas pelo bem-estar da maioria ou pelo respeito dos direitos de quase todos, mas pelo bem da coletividade como um conjunto de pessoas, de forma que, se alguém sofre, todos os membros sofrem com ele. Disse-o respaldado na palavra de Paulo no cap. 12 da 1.ª Carta aos Coríntios de que, “se um membro sofre, com ele sofrem todos os membros; e, se um membro é honrado, todos os membros participam da sua alegria” (1Cor 12,26). Ora, nós somos o corpo de Cristo e cada um, pela sua parte, é um membro (cf id 12,27) e, quanto mais fracos parecem ser os membros do corpo, tanto mais são necessários; aqueles que parecem ser os menos honrosos do corpo, a esses rodeamo-los de maior honra, e aqueles que são menos decentes, nós os tratamos com mais decoro, sendo que os que são decentes não têm necessidade disso (cf id 22-24).
Vincando que “toda a injustiça afeta sobretudo os mais pobres”, os mais pobres e atribulados do nosso tempo, explicou:
Quando faltam a legalidade e a segurança, os vulneráveis são os primeiros a serem prejudicados, porque possuem poucos meios para se defenderem e proverem a si mesmos. Toda a injustiça afeta sobretudo os mais pobres e todos aqueles que de várias formas são os últimos. Últimos, neste nosso mundo, são aqueles que deixam a sua terra por causa da guerra e da miséria e devem recomeçar do zero num contexto totalmente novo. Os últimos são aqueles que perderam a casa e o trabalho e lutam para manter a sua família, os últimos são aqueles que vivem marginalizados e doentes, ou são vítimas de injustiças e abusos.”.
E, assinalando o papel da polícia, frisou:
Vós estais próximos a todas essas pessoas quando procurais prevenir o crime, combater o bullying e fraudes, quando colocais à disposição o vosso tempo e as vossas energias na formação dos jovens e na vigilância das escolas, na proteção do território e do património artístico, na organização de encontros e na formação de cidadãos mais ativos e conscientes”.
Ora, a associação a que se dirigiu introduz, segundo o Pontífice, “na massa da sociedade, o fermento da igualdade e da fraternidade que nunca deixa de produzir seus frutos (...), valores transmitidos pelo Evangelho” que transformaram radicalmente as mentalidades e as vidas. Ea introdução dos valores da solidariedade e da paz, que encontram o seu ápice na pessoa e na mensagem de Jesus, foram e ainda hoje são capazes de renovar as relações interpessoais e sociais” – disse Francisco, que enunciou como conclusão o seguinte:
É isso que desejamos para o nosso tempo, sabendo que, quando colocamos em prática a caridade, ela muda o mundo e a história, mesmo que não percebamos logo os seus efeitos. Esse é o nosso objetivo e essa é a contribuição dada pela Associação Nacional da Polícia de Estado todas as vezes que, seguindo o exemplo de seu Padroeiro, São Miguel Arcanjo, se opõe a tudo o que fere ou destrói o ser humano..
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Também o Papa Francisco, ao comentar, por ocasião do Angelus com a multidão reunida na Praça de São Pedro, os textos da Liturgia da Palavra deste XXVI domingo do Tempo Comum no Ano B (dia 30 de setembro), nos remete para o dinamismo da fraternidade, que requer um percurso pedagógico. Tanto Josué como os discípulos de Jesus se encheram de ciúmes por indivíduos que não tinham entrado na tenda da reunião, no primeiro caso, segundo o texto do Livro dos Números (vd Nm 11,25-29 -1.ª leitura) ou que não eram do grupo, no segundo caso, conforme o relato de Marcos (vd Mc 9,38-43.45.47-48), profetizarem ou expulsarem demónios.
Efetivamente, quando o Senhor desceu na nuvem sobre a tenda da reunião e falou com Moisés, tirou-lhe uma parte do Espírito que nele pousava para os 70 anciãos, que profetizaram, mas não continuaram. Entretanto, Eldade e Medad, que ficaram no acampamento, profetizavam. E Josué sugeriu a Moisés que lho proibisse totalmente. Porém, Moisés, sabendo que o Espírito não se deixa aprisionar por espaços por mais nobres que sejam nem pelas pessoas, falou assim:
Tens ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do SENHOR profetizasse, que o SENHOR enviasse o seu espírito sobre ele!” (Nm 11,29). 
Este desejo de Moisés realiza-se hoje em cada crente que recebeu o Batismo (e a Confirmação) por força do Pentecostes, em que o Espírito Santo irrompeu sobre os discípulos com a abundância dos seus dons e está disponível para agir por intermédio de quem, mesmo sem conhecer a Cristo, vive e atua segundo a sua consciência e movido pelo amor fraterno.
Por seu turno, o Evangelho de Marcos (3.ª leitura) mostra-nos os discípulos, pela voz fogosa de João, a queixarem-se de que um homem que não era do grupo expulsava demónios. Mas Jesus, conhecendo os pensamentos ciumentos deles, disse-lhes:
Não o impeçais, porque não há ninguém que faça um milagre em meu nome e vá logo dizer mal de mim. Quem não é contra nós é por nós, pois, seja quem for que vos der a beber um copo de água por serdes de Cristo, em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa.” (Mc 9,39-41).
Ao lado da coerência, Jesus enaltece a dádiva e a cortesia de a receber, venha da parte de quem vier. Porém, Francisco chamou a atenção para o facto de o comportamento dos discípulos de Jesus ser muito humano, muito comum, e o podermos encontrar “nas comunidades cristãs de todos os tempos, provavelmente também em nós mesmos”. E considerou que “o Evangelho deste domingo nos apresenta um daqueles particulares muito instrutivos da vida de Jesus com os seus discípulos”.
Segundo o Papa, “João e os outros discípulos manifestam um comportamento de fechamento diante dum acontecimento que não entra nos seus esquemas, neste caso a ação, mesmo sendo boa, de uma pessoa ‘externa’ ao grupo de seguidores”. Mas Jesus, ao invés, “parece muito livre, plenamente aberto à liberdade do Espírito de Deus, que não é limitado na sua ação por nenhum confim e por nenhum recinto”.
E o organizador do Missal Quotidiano Ferial, da Paulus (2016) sustenta:
As palavras que, um dia, Jesus dirigiu aos Doze têm agora um alcance eclesial. A Igreja não tem o monopólio do bem [como poderia dizer que dentro da Igreja ninguém tem o exclusivo do bem], pois o Espírito também atua fora das suas fronteiras. No dia do Juízo, Deus reconhecerá como Seus todos os que tiverem agido com os outros, movidos pelo amor.”.   
Francisco diz que Jesus quis então educar os discípulos e a nós hoje nesta liberdade interior.
Para o Pontífice, que disse fazer-nos bem “refletir sobre este episódio e fazer um pouco de exame de consciência”, aponta a existência do medo da ‘concorrência’ de que alguém possa atrair novos seguidores. E então não se consegue apreciar o bem que os outros fazem: não é bom porque ele “não é um dos nossos”. É uma forma de autorreferencialidade, estando aqui a raiz do proselitismo. E a Igreja, como disse Bento XVI, não cresce pelo proselitismo, mas pela atração, isto é, “cresce pelo testemunho dado aos outros com a força do Espírito Santo”.
Segundo o Papa, “de boa-fé, aliás, com zelo, gostar-se-ia de proteger a autenticidade duma certa experiência, tutelando o fundador ou o líder dos falsos imitadores”. Mas a grande liberdade de Deus (que ninguém pode tolher) em doar-se a nós “é um desafio e uma exortação a mudar os nossos comportamentos e nossas relações” e “um convite que Jesus nos faz hoje”. E – disse ainda o Papa – “Ele convida-nos a não pensar segundo as categorias do ‘amigo/inimigo’, ‘nós/eles’, ‘quem está dentro/quem está fora’, ‘meu/seu’, mas a ir além, a abrir o coração a fim de reconhecer a presença e a ação de Deus mesmo em âmbitos incomuns e imprevisíveis e em pessoas que não fazem parte de nosso círculo”. “Trata-se de estarmos mais atentos à genuinidade do bem, do bonito e do verdadeiro que é realizado, do que ao nome e procedência de quem o faz”. E, como sugere o Evangelho,  “em vez de julgar os outros, devemos examinar-nos e “cortar”, sem pactos, tudo o que pode escandalizar as pessoas mais fracas na fé”.
Com efeito, o Evangelho, remando contra o escândalo – em que se pode incluir o fenómeno desastroso da pedofilia e dos abusos sexuais de menores, sobretudo por figuras proeminentes das Igrejas – embora não devam ser tomados à letra os diversos elementos metafóricos, mas sendo de tomar toda a sua força normativa e apelativa, é fortemente radical ao estipular: “Se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem em mim, melhor seria para ele atarem-lhe ao pescoço uma dessas mós que são giradas pelos jumentos e lançarem-no ao mar”.
Do mesmo modo se deve acolher o aviso de que se a mão, o pé ou um dos olhos são ocasião de pecado, mais vale cortar, pois é perdível entrar na vida mutilado (maneta), coxo ou cego a ir inteiro para a Geena de fogo inapagável e onde o verme não morre. O mesmo se diga de qualquer elemento corporal.
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Também a fraternidade implica a não acumulação de riquezas que leva ao seu apodrecimento, como espelha a advertência aos ricos por parte de Tiago (vd Tg 5,1-6), mas à divisão (partilha) solidária e equitativa, ainda que não igualitária. A fraternidade não admite que o ouro e a prata dos ricos se enferrujem enquanto o salário que não pagaram aos trabalhadores que lhes ceifaram as searas está a clamar ao céu contra eles. Com efeito, a ferrugem do ouro e da prata, ou seja, o perfume das riquezas acumuladas ou a busca do lucro pelo lucro, à custa da exploração e espezinhamento dos outros, servirá de testemunho contra quem acumula e não sabe repartir e devorará a sua carne como o fogo.
De facto, ninguém pode servir a Deus e às riquezas ou ao dinheiro. Por isso, em nome do amor fraterno, que entronca no amor de Deus, Tiago apela ao arrependimento e à conversão:
Chorai em altos gritos por causa das desgraças que virão sobre vós” (Tg 5,1).
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E o Papa concluiu a sua alocução, pedindo a Maria, “modelo de acolhimento dócil das surpresas de Deus, que nos ajude a reconhecer os sinais da presença do Senhor no meio de nós, descobrindo-O em todo lugar em que Ele se manifestar, até mesmo nas situações mais impensáveis e incomuns”; e que “ela nos ajude a amar a nossa comunidade sem ciúmes e fechamentos, sempre abertos ao horizonte vasto da ação do Espírito Santo”.
Será a fraternidade em projeto e em ação.
2018.09.30 – Louro de Carvalho

Entre a desconfiança e a prosápia do protagonismo


A propósito do caso de Tancos, instalou-se a guerra entre dois corpos policiais e quem sai a perder é a parte menos apoiada pelo poder político, que vem navegando na onda que a opinião pública, formada (discreta ou despudoradamente) pelos interesses instalados e a instalar, tem criado nos últimos decénios. O Chefe do Governo recusa falar da extinção da PJM a quente!
Naturalmente muitas instituições se criaram ou, pelo menos, se desenvolveram sob o signo da desconfiança. Assim, porque se desconfia de que o território de um país possa vir a ser objeto de invasão externa, palco de calamidade pública e, mais recentemente, alvo de terrorismo organizado, organiza-se um corpo multifacetado de forças armadas (FA) para assegurar a defesa da República na linha do aforismo romano “Si vis pacem para bellum” (Se queres a paz, prepara a guerra), pois, segundo a lógica do Império, “Lex suprema salus Reipublicae” (A lei suprema é a salvação da Pátria). Porque muitos atentam ilícita e/ou criminosamente contra a segurança de pessoas e bens e contra a segurança pública, não sabem conviver em sociedade ou infringem as diversas regras sociais, económicas, financeiras e políticas, temos leis, códigos (penal, civil, de estrada, comercial, das sociedades comerciais, do procedimento administrativo, do trabalho, etc.) e regulamentos, bem como escolas, polícias, inspeções, tribunais, hospitais, autarquias e, no topo, o órgão legislativo e o órgão executivo. Porque falham os promotores da legalidade, da boa administração, da polícia, do profissionalismo e da sã convivência, questionamo-nos sobre quem fiscaliza os fiscais e, pela atitude desconfiança e de delação (por vezes anónima ou para salvar a pele), policiamo-nos uns aos outros, até porque não queremos ser acusados de encobrimento ou ver o nosso emprego em perigo. E, porque muitos atentam capciosa e encobertamente contra a defesa e segurança, somos servidos por diversos serviços de informação, discutindo-se as competências de cada um e quem os deve coordenar, o mesmo sucedendo com polícias e com detentores do poder político. Além disso e para isto, a desconfiança gerou saudavelmente a divisão do poder político – legislativo, executivo e judicial – por órgãos diferentes no regime de separação e interdependência segundo o mecanismo de contrapesos e de escrutínio. E almejámos a especialização e, porque esta não responde, vem a multidisciplinaridade.       
Todos querem mostrar a prosápia de que são competentes e mesmo os mais competentes em relação aos demais, pelo que, a cada passo, se discute o protagonismo sobre este ou aquele feito e se autoafirma a cortesia e o sentido de estado, que outros não têm.           
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No caso do assalto aos paióis de Tancos, já disse o que entendi. Penso que, ante as posições oscilantes do Ministro (incidente muito grave e, na esteira da afirmação do então CEMGFA de material já obsoleto, não perigo para a segurança nacional…), Primeiro-Ministro de férias e Presidente da República a puxar extraordinariamente pelas estrelas de comandante supremo das forças armadas, os chefes militares ajoelharam demasiado e, sobretudo, o Exército, cujo Chefe do Estado-Maior (CEME) demitiu e readmitiu os chefes das unidades militares responsáveis pela vigilância dos paióis, viu a demissão de dois generais (o responsável pelo pessoal e o comandante das forças terrestres) e transferiu sem explicação os materiais de Tancos para Santa Margarida, dispensando o Governo de investir nas instalações de Tancos. Em suma, o poder político tutelar não soube estar politicamente face ao caso exigindo apuramento de responsabilidades e o poder castrense, sem explicações concludentes, apressou-se a tranquilizar a nação com um agachamento indevido, sem assumir a responsabilidade operacional, mas desvalorizando o facto que significara um murro no estômago do Exército. Ora, este agachamento indevido sem o conveniente apuramento dos factos e das responsabilidades num país normal seria motivo para a exoneração do CEME.
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Por sua vez, o Ministério Público (MP) coadjuvado pela Polícia Judiciária (PJ) não esteve bem. Como a falta de material de guerra, por roubo ou furto, é crime essencialmente militar, devia ter havido o bom senso de, sem a PJ perder estatutariamente a direção da investigação criminal, se entregar a investigação deste facto, nem que fosse por delegação de competências, à PJM (Polícia Judiciária Militar) por supostamente esta conhecer melhor a especificidade do meio castrense. Ao invés, a PJ fez finca-pé nas suas prerrogativas e, talvez distraída a fiscalizar elementos da PJM ou ocupada noutras investigações complexas (os escassos meios humanos e logísticos não dão para tudo), não levou por si a investigação a bom termo, não conseguindo descobrir a autoria do assalto, a ponto de, um ano depois do assalto, o Presidente da República vir a terreiro, numa crítica velada ao MP, a “reurgir” o apuramento de tudo, custe o que custar, doa a quem doer.    
Foi preciso o material furtado aparecer na Chamusca para a PJ vir a descobrir o autor do assalto e desferir, com a PGR ao leme, o ataque aos alegados encobridores do crime (GNR de Loulé e PJM) essencialmente militar em causa. Deteve 7 militares – 4 da PJM, incluindo o seu diretor e 3 da GNR, incluindo um sargento) – e o alegado suspeito do roubo (ou furto), ao todo 8 arguidos.
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Segundo o texto de Ana Henriques, no Público on line, de 28 de setembro, e o de Graça Henriques e Valentina Marcelino, no DN, de 29, o coronel que dirige a PJM, Luís Vieira, confessou ao juiz de instrução criminal do Campus da Justiça de Lisboa, João Bártolo, que o aparecimento na Chamusca das armas e explosivos roubados em Tancos em junho de 2017 fora uma encenação motivada pelo interesse nacional, estando em perigo a segurança do país. Assim, os militares terão feito um acordo de cavalheiros com um ex-fuzileiro de 36 anos (ou 32, segundo alguns), o ladrão das armas, para que devolvesse o material sem sofrer consequências. Com efeito, urgia ter as armas (e respetivos adereços) de volta antes que fossem vendidas. Mas o magistrado aplicou a Vieira, cujo advogado, Rui Baleizão, garantiu recorrer da medida de coação aplicada, bem como ao ex-fuzileiro, a medida de coação mais dura: a prisão preventiva. Já os restantes arguidos implicados no caso aguardarão julgamento em liberdade, mas suspensos de funções, proibidos de contactar entre si e impedidos de entrar em instalações militares.
Os militares queriam ser os primeiros a descobrir o paradeiro das armas e evitar que a PJ hasteasse a bandeira, como refere um memorando assinado pelo, até há poucos meses, porta-voz da Judiciária Militar, ainda não foi detido por se encontrar fora do país e encontrado nas buscas à residência de Vieira por inspetores da PJ, que também eram vigiados pela PJM – guerrilha entre uma instituição civil e uma congénere militar. E os investigadores equacionam até que ponto da cadeia hierárquica das FA e da GNR se estenderão as responsabilidades, apesar de o Comando Geral da Guarda já ter negado o seu envolvimento. Porém, os depoimentos de alguns dos suspeitos no primeiro interrogatório indiciam que vários deles receberam ordens de responsáveis hierárquicos que não foram, pelo menos por enquanto, constituídos arguidos.
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O furto está a ser investigado num inquérito autónomo, embora seja possível que as duas investigações venham a ser fundidas, pois versam sobre o mesmo assunto. Mais um megaprocesso, de todo não aconselhável. Mas eles lá sabem! Para as autoridades, o caso começou com a revelação dum informador a uma procuradora de ter sido sondado para ajudar a forçar a entrada em instalações militares, de forma discreta, na região onde de facto tudo viria a suceder. A informação, que identificava o ex-fuzileiro, foi passada às duas polícias, mas os militares não terão tomado providências e os civis tentaram, sem sucesso, que um juiz lhes autorizasse as escutas.
O material terá acabado por ser furtado por um traficante de droga e armas, do que se viria a arrepender por causa da repercussão do caso. Para negociar a devolução das armas e explosivos, terá contactado um soldado da GNR de Loulé, velho companheiro de armas, que tinha a chefiá-lo um sargento com conhecimentos na PJM do Porto. O plano passava por fazer uma chamada anónima para o piquete da PJM a revelar onde se encontravam as armas. Assim, a 18 de outubro de 2017: em colaboração com os guardas de Loulé, os inspetores militares alegadamente recuperaram tudo, à exceção de algumas munições que o traficante vendera. Os militares cumpriram a palavra e não o incomodaram.
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Foram fundamentais para a investigação da PJ os dados fornecidos pelas operadoras telefónicas e os registos de portagens, o que já levou à prisão preventiva do diretor da PJM.
As armas furtadas estavam escondidas na propriedade da avó do principal suspeito do crime, em Portela de Carregueiros, Tomar, a 35 km dos paióis de Tancos. E foi ali que, pelo caráter estranho da entrega do material, a investigação, realizada no âmbito da “Operação Hýbris” da PJ, localizou o suspeito em conjunto com os militares da PJM e os do NIC (Núcleo de Investigação Criminal) da GNR de Loulé, um dia antes de a descoberta das armas ser anunciada. A descoberta da legada encenação pela PJ resultou da triangulação das antenas de telemóveis, apesar de alguns terem o cuidado de os desligar em alguns momentos-chave.
O material furtado em 28 de junho de 2017 foi encontrado a 18 de outubro na Chamusca, ou melhor, foi ali entregue através duma operação “delineada de forma rocambolesca” pela PJM em coordenação com o suspeito autor do crime, que tinha uma viagem marcada para fora do país, tendo o coronel Vieira alinhado no plano alegadamente para que os militares ficassem com os louros da recuperação. A própria encenação da descoberta/entrega teve a participação das polícias, que não se limitaram a ir buscar o material onde o suspeito o deixaria.
Como refere a comunicação social, na noite anterior, dois elementos do NIC da GNR Loulé, terão ido numa carrinha Mercedes da PJM até à propriedade da avó de João Paulino (o suspeito). Com efeito, uma viatura da polícia de investigação militar, não levantando suspeitas, traria tranquilamente o material para o descampado onde viriam a ser encontrado.
A carrinha terá chegado à propriedade à hora jantar. E a PJ suspeita que um dos elementos era o sargento da GNR, pois a localização do seu telemóvel apontava para Carregueiros. Estaria acompanhado dum guarda, o amigo de infância do suspeito e que teria dado o mote inicial para o projeto. Este manteve o telefone desligado durante o tempo considerado necessário, mas ao acioná-lo, a localização apontou para a propriedade onde estariam guardadas as armas. Dali, a viatura terá levado as armas para o terreno na Carregueira e ter-se-á depois encenado a descoberta e mesmo a chamada telefónica que espoletou a ação. Esta terá sido feita por um dos militares que estaria em piquete na margem sul para um oficial na sede da PJM na noite da descoberta. Depois, foi dado o alarme e a equipa no terreno anunciou a descoberta antes de avisar a PJ, a responsável pela investigação.
O plano para a devolução do material terá começado a ser delineado em fins de agosto. O suspeito ter-se-á encontrado com o amigo no NIC da GNR de Loulé. O cruzamento dos dados dos telemóveis permite concluir que se encontraram em Albufeira. O suspeito propôs devolver o produto do roubo se nada lhe acontecesse, até porque não estava a conseguir vendê-lo. Mais tarde, quando se iniciou o processo, a PJ começou a investigar as localizações dos telemóveis (dado que ainda não havia escutas) e percebeu que havia muitas similitudes e localizações estranhas dos vários militares da PJM, nomeadamente no Algarve, com os da GNR. Foi em parte por isto que perceberam que a descoberta poderia não ter sido tão simples, sendo possível ter havido encenação para encontrar as armas com o encobrimento do próprio Diretor da PJM, que agora, terá confessado a encenação a pretexto do interesse nacional. Ora, segundo o MP, em causa estão “factos suscetíveis de integrarem crimes de associação criminosa, denegação de justiça, prevaricação, falsificação de documentos, tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, abuso de poder, recetação, detenção de arma proibida e tráfico de armas”.
E a atual PGR sairá de cena a 12 de outubro com um poderoso trunfo na sua folha de serviço!
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É verdade que tem razão o Diretor da PJM quando afirma a primazia e a urgência da devolução do material de guerra em nome da segurança nacional. Porém, sendo discutível o encobrimento do suspeito – porque o encobrimento implica cumplicidade – o juízo sobre a malícia da encenação tem de ser muito cauteloso em nome da eficácia. Não vá acontecer que uma aplicação cega da lei venha a constituir um precedente para denegação de restituições e denúncia de crimes, verificando-se o princípio aforístico do “summum ius summa iniuria”. Até a PJ tem, pelos vistos, dispensado de outros informadores suspeitos de crime apresentação à justiça. Ou pode-se colaborar só com a PJ?
Considerando que não se fala das armas roubadas de instalações da PSP, é lícito pôr a hipótese de estarmos num contexto de guerra entre polícias e mesmo entre uma instituição civil e a instituição militar num dos seus departamentos mais diminutos (a PJM tem menos de meia centena de efetivos). Fala-se na extinção da PJM. E a instituição castrense perderia mais uma peça como perdeu o serviço militar obrigatório, os tribunais militares em tempo de paz, o regimento de comandos, que readquiriu, mas que viu em perigo, perdeu muito investimento e perde cada vez mais efetivos.
Ficando vazio o conceito de crime essencialmente militar e sem efetivos militares, lá vai despedida a defesa da República cuja componente militar é essencial para garantir a integralidade do território, a defesa das populações contra o terrorismo ou a calamidade pública e as operações de paz.
Aliás, se uma PJ fosse a investigar, sob a direção do MP como o temos hoje, o que se passa em contexto de guerra, muito dificilmente não teríamos um incontável número de oficiais e sargentos nas prisões. Por isso, se pede atenção aos contextos, não?
2018.09.29 – Louro de Carvalho          

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

De Pedro Julião ou Pedro Hispano a Papa João XXI


No passado dia 26 de setembro, com início às 21,30 horas, decorreu, na “Comuna Teatro de Pesquisa” (Café Teatro), na Praça de Espanha mais uma das SESSÕES CODEX em torno da figura de João XXI, Papa português, sob a moderação de Mário Soares, com a participação de Armando Norte, José Eduardo Franco e Padre Carlos Azevedo.
As SESSÕES CODEX são tertúlias culturais e artísticas dedicadas à vida e ao legado de figuras marcantes da História de Portugal. Em cada sessão, em ambiente tertuliano, os convidados CODEX manifestam novos olhares em formato aberto sobre a figura escolhida, permitindo a cada pessoa uma interpretação livre da personagem.
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Pela resenha biográfica apresentada nas SESSÕES CODEX
João XXI, nascido Pedro Julião Rebolo (mais conhecido como Pedro Hispano), em 1215, em Lisboa, segundo a maior parte dos historiadores, ou em Coimbra, segundo alguns e falecido como João XXI em Viterbo, a 20 de maio de 1277, foi papa de 20 de setembro de 1276 até à data da sua morte. E ficou conhecido como um famoso médico, filósofo, professor e matemático português do século XIII.
Começou os seus estudos na escola episcopal da catedral de Lisboa, tendo mais tarde estudado na Universidade de Paris (alguns historiadores afirmam que terá sido na Universidade de Montpellier) com mestres notáveis, como Alberto Magno, e tendo por condiscípulos Boaventura e Tomás de Aquino, grandes nomes do cristianismo. Lá estudou medicina e teologia, dedicando especial atenção a palestras de dialética, lógica e sobretudo a física e metafísica de Aristóteles.
Entre 1246 e 1252 ensinou medicina na Universidade de Siena, onde escreveu algumas obras, com destaque para o tratado ‘Summulæ Logicales’, o manual de referência sobre lógica aristotélica durante mais de 300 anos, nas universidades europeias, com 260 edições em toda a Europa, traduzido para grego e hebraico.Prova da sua vasta cultura científica é o ‘De oculo’, tratado de oftalmologia, com ampla difusão nas universidades europeias. Miguel Ângelo, ao adoecer gravemente dos olhos, mercê do árduo labor investido na decoração da Capela Sistina, encontrou remédio numa receita de Pedro Hispano. É também o autor do ‘Thesaurus Pauperum’, que trata de várias doenças e suas curas, com cerca de uma centena de edições e traduzido para 12 línguas.No âmbito da Teologia, subscreve ‘Comentários ao pseudoDionísio’ e ‘Scientia libri de anima’. E encontra-se por publicar o ‘De tuenda valetudine’, manuscrito em Paris, dedicada a Branca de Castela, esposa do rei Luís VIII de França, filha de Afonso IX de Castela.Antes de 1261, ano da sua eleição para decano da Sé de Lisboa, ingressou no sacerdócio. O rei Afonso III de Portugal confiou-lhe o priorado da Igreja de Santo André (Mafra) em 1263, posto que o elevou a cónego e deão da Sé de Lisboa, Tesoureiro-mor na Sé do Porto e Dom Prior na Colegiada Real de Santa Maria de Guimarães.
Pontífice dotado de rara simplicidade, João XXI irá marcar o seu breve pontificado (de pouco mais de 8 meses) pela fidelidade ao XIV Concílio Ecuménico de Lião. Apressou-se a mandar castigar, em tribunal criado para o efeito, os que haviam molestado os cardeais presentes no conclave que o elegera. E, embora sem grande sucesso, prosseguiu a missão encetada por Gregório X de reunir a Igreja Grega à Igreja do Ocidente, além de se ter esforçado por libertar a Terra Santa do poder dos turcos. Tentou ainda reconciliar grandes nações europeias, como França, Germânia e Castela, no espírito da unidade cristã, enviando (sem sucesso) legados a Rodolfo de Habsburgo e a Carlos de Anjou. Recebeu em audiência tanto os ricos como os pobres.
O poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321), na Divina Comédia, coloca a alma de João XXI no Paraíso, entre as almas que rodeiam a de São Boaventura, apelidando-o de “aquele que brilha em doze livros”, menção clara aos 12 tratados escritos pelo erudito pontífice. E o rei Afonso X de Leão e Castela, o Sábio, avô de Dom Dinis de Portugal, elogiou-o em forma de canção no canto XII de ‘Paraíso’. Mecenas de artistas e estudantes é tido na sua época por ‘egrégio varão de letras’, ‘grande filósofo’, ‘clérigo universal’ e ‘completo cientista físico e naturalista’.
Mais entregue ao estudo que às tarefas pontifícias, delegou no Cardeal Orsini, o futuro Papa Nicolau III, os assuntos correntes da Sé Apostólica. E, sentindo-se doente, retirou-se para Viterbo, onde faleceu a 20 de maio de 1277, vitimado pelo desmoronamento das paredes do seu aposento, estando o palácio apostólico em obras. Foi sepultado junto do altar-mor da Catedral de São Lourenço, naquela cidade. No século XVI, durante os trabalhos de reconstrução do templo, os seus restos mortais são trasladados para modesto e ignorado túmulo. Porém, através do contributo da Câmara Municipal de Lisboa e do presidente João Soares, o mausoléu foi colocado em definitivo do lado do Evangelho na Catedral de Viterbo, a 28 de março de 2000. (cf Codex Pedro Hispano, o papa Feiticeiro, https://www.viralagenda.com/pt/events/639490/codex-pedro-hispano-o-papa-feiticeiro).
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Aspetos significativos da biografia elaborada pelo historiador Armando Norte
Em outubro de 2016, o historiador Armando Norte publicou a biografia João XXI – O Papa Português (da Esfera dos Livros), onde conta a misteriosa história da vida e morte de Pedro Hispano: padre, médico, filósofo, alquimista, com fama de mago, e Papa que, tendo entrado em divergência com o rei português Dom Afonso III e lhe manteve a excomunhão, se tornou o português com mais poder no mundo antes de António Guterres chegar à ONU.
O conclave que elegeu Pedro Julião/Pedro Hispano
Segundo o predito biógrafo, em 13 de setembro de 1276, o conclave, reunido em Viterbo (Itália), elegeu Papa o cardeal-bispo Pedro Julião, de Lisboa, conhecido nos meios intelectuais e académicos como Pedro Hispano, que assumiu o nome de João XXI, tornando-se no “mais importante indivíduo do seu tempo e num homem ungido para a eternidade”.
O número de conclavistas era diminuto: dada a recente morte de dois cardeais-diáconos, o sacro colégio era composto por 11 elementos. Entretanto, um dos cardeais morreu durante o conclave e outro faltou por motivos desconhecidos. Portanto, só 9 ficaram com a decisão eleitoral. Dois desses homens eram cardeais-bispos, um dos quais o próprio Pedro Julião; três eram cardeais-presbíteros; e os outros quatro eram cardeais-diáconos. Todos eles eram repetentes em eleições papais e alguns acabaram por ser eleitos papas em conclaves posteriores.
Como Papa, Pedro Julião era a máxima autoridade política e religiosa do mundo cristão, juiz de última instância em todas as disputas, único legislador em matéria eclesiástica, legitimador e derrubador de reis, chefe da hierarquia católica e supremo representante de Deus na Terra, com a possibilidade de excomungar e lançar interditos, declarar guerras, fazer a paz. Era dono de um poder sem rival na Idade Média.
Porém, a escolha surpreendeu pelo facto de o eleito não pertencer as famílias da nobreza romana, itálica, ou gaulesa, cujos membros eram tradicionalmente eleitos para ocupar a mais alta posição da Igreja Católica Romana. Mas, na aparente fragilidade de apoios, residirá uma das razões para a decisão, emergindo o português como via capaz de assegurar a manutenção dos equilíbrios existentes no interior do cardinalato. E importa sublinhar que a escolha não era inócua, “antes plena de efeitos, significados e consequências”. Naquele século, o Papa era a principal personalidade política no concerto internacional de poderes, fruto da preponderância duma Igreja pujante e de forte programa centralizador incrementado pelo papado durante a alta Idade Média, cujo apogeu coincidiu com o pontificado de Inocêncio III (1198-1216). Na verdade, com o crescimento da Igreja em complexidade e dimensão, complexificou-se e alargou-se a estrutura hierárquica e a máquina burocrático-administrativa, bem como se logrou a melhoria substancial do aparelho fiscal. A essa política de sedimentação do poder da Igreja, liderada pelo papado, dá-se comummente o nome de teocracia papal.
Desperta curiosidade na designação de João XXI o facto de não haver João XX na lista dos papas. A razão do lapso é a errada contabilização de Martinho Polónio (de origem eslava), dominicano contemporâneo de Pedro Hispano e muito apreciado como pregador e canonista.
A morte de Pedro Hispano por derrocada do seu apartamento foi tida como prova do seu caráter malévolo por magia (e alegados desregramentos de conduta, passando pelo laxismo no governo eclesiástico), ou castigo divino por suposto pretensiosismo, incluindo o de achar que viveria muitos anos.
A vida do professor e médico em Paris e Siena
Sabe-se muito pouco do percurso de Pedro Julião: sobram rastos difusos, abundam becos sem saída, acumulam-se, tantas vezes prodigiosamente, as brumas, sobretudo no atinente à infância e primeira juventude. Do reconstituível, infere-se que o futuro Papa terá nascido no início do século XIII, em data que a tradição situa no intervalo entre os anos 10 e 20, mas que a crítica histórica aproxima do início da primeira década. Provavelmente terá nascido em Lisboa, embora haja hipóteses alternativas (pouco fundamentadas) de ter nascido em Coimbra. Quanto às origens familiares, tudo se resume a algumas especulações sobre o nome e profissão do pai, talvez um médico, de nome próprio Julião, atendendo às regras da onomástica medieval e ao uso generalizado do sistema de patronímico em Portugal, ignorando-se em absoluto o estatuto social da sua família e o seu nível de riqueza e património.
Terá sido na Sé de Lisboa e na escola capitular anexa que Pedro Julião passou os seus primeiros anos. É de supor que o seu trajeto escolar tenha sido semelhante ao de muitos outros oblatos, jovens entregues à Igreja pelos pais para se dedicarem ao serviço de Deus, a entrada no sacerdócio, passando pelo cumprimento dos primeiros estudos com base nos salmos, introdução à liturgia e ao ritual e iniciação aos Evangelhos e à doutrina católica. Nestas primeiras etapas, Pedro Julião terá alcançado grande sucesso, já que, pouco tempo depois, foi enviado para a Universidade de Paris para estudos mais avançados, lá continuando a dar aulas após a conclusão dos estudos. E deu aulas de medicina em Siena, no final da década de 1240, não estando esclarecido onde terá contactado com as ciências médicas: Em Salerno, Montpellier, em Paris? Anos mais tarde, foi nomeado mestre-escola na catedral de Lisboa, mas o regime de absentismo afasta a hipótese de aí ter ensinado, a não ser durante estâncias muito breves.
O conselheiro e arcebispo que manteve a excomunhão de Dom Afonso III
No âmbito eclesiástico, Pedro Julião recebeu vários benefícios, apesar das disposições que então procuravam limitar os fenómenos da acumulação para evitar a apropriação abusiva de cargos e de rendimentos. Percorreu quase todo o cursus honorum da Igreja do seu tempo: cónego, mestre-escola, arcediago e deão. Também foi conselheiro régio e, já em contexto apostólico, terá ficado a seu cuidado a saúde de Gregório IX. Ademais, desempenhou legações a mando de Inocêncio V na condição de comissário papal até alcançar a posição de cardeal-bispo de Túsculo (Itália). Foi um trajeto variado e com marcos importantes, incluindo passagens por duas das mais importantes dioceses portuguesas, a arquidiocese de Braga e a sé de Lisboa, e a nomeação para o governo da igreja de Guimarães, posição sempre muito disputada ao nível do reino português e reservada a figuras de grande projeção da cena política e eclesiástica.
Decisiva para essa caminhada foi a desenvoltura com que sempre se moveu nos círculos de poder, designadamente junto da corte régia e da Santa Sé, conseguindo insinuar a sua presença, com sucesso, junto do rei Afonso III (de quem divergiria mais tarde) e de mais do que um pontífice. No geral, foi um percurso diferenciado e sólido que o capacitou para a carreira bem-sucedida que desenvolveu junto da Cúria romana, primeiro como cardeal, depois como Sumo Pontífice.
A relação entre Pedro Julião e Afonso III parece ter sido marcada, na sua origem e durante um período de tempo considerável, por grande proximidade e sentimentos mútuos de afeto e respeito. O futuro João XXI serviu o rei como procurador em várias ocasiões, integrou o conselho régio e, provavelmente, foi enviado a desempenhar missões diplomáticas junto da Cúria apostólica em defesa dos interesses portugueses. A contrario, as razões da rutura posterior entre os dois homens parecem prender-se, em grande medida, com o processo de escolha para bispo da Sé de Lisboa, vago pela morte do bispo Aires Vasques (1258-1282). Por conveniência dos interesses políticos, o monarca patrocinou a eleição de mestre Mateus para bispo de Lisboa. Em discordância aberta com o rei, Pedro Julião encabeçou um movimento alargado de protesto no interior do cabido, numa altura em que era o deão em funções e em que terá aspirado a ser ele próprio nomeado para prelado da diocese lisboeta. O desenlace acabaria em desfavor de Pedro Julião e do cabido que o secundava, pois foi eleito mestre Mateus para a posição em causa. Anos mais tarde, ao ser eleito Papa, João XXI não esqueceria o episódio e, como os seus antecessores, acusou o rei de prática sistemática de abusos e desmandos contra a Igreja em Portugal e de ser “um crónico afrontador das liberdades eclesiásticas”. Manteve os interditos sobre o reino e renovou as excomunhões feitas ao rei.
Um filósofo, médico e alquimista com reputação de mago
A popularidade de que gozou durante a medievalidade, prolongada no Renascimento e persistindo até hoje, tem uma origem bastante diferente: remete para a sua dimensão de intelectual e para os contributos que lhe são atribuídos no âmbito da história da ciência e história das ideias, em concreto os estudos que dedicou aos ramos da filosofia e da medicina.
Porém a vasta produção bibliográfica, a diferente natureza dos assuntos e a coerência interna dos textos de Pedro Hispano ou que lhe foram creditados, desde o século XIV, tendo como premissa a sua vasta ciência, assumida pelo próprio e asseverada em crónicas (contemporâneas e posteriores), suscitam reservas no atinente à atribuição a uma única personalidade.
Entre tantas dúvidas, a crítica textual mais recente parece pouco inclinada a atribuir ao pontífice todos os tratados que compõem o habitual cânone de manuscritos que lhe são consagrados. E há especialistas que sustentam que poucos desses trabalhos, ou (exageradamente) nenhuns, devem ser atribuídos a João XXI, propondo-os como a produção de um ou vários Pedros Hispanos seus contemporâneos. Esta polémica, não estéril, é inconclusiva, mas obriga a distinguir, no conjunto das obras imputadas a Pedro Hispano, entre a produção cuja autoria se encontra suficientemente estabilizada e os escritos cuja catalogação e atribuição suscitam maior discussão.
As dificuldades em estabelecer com rigor a autoria das obras de João XXI são inúmeras e estão longe de ser um exclusivo do Papa português. São muito numerosos os autores e escritos da medievalidade que subsistem enredados em polémicas, enfrentando problemas insolúveis, eivados de propostas contraditórias, baseadas em variado tipo de argumentos: filológicos, caligráficos, cronológicos, ontológicos, etc.
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Seja como for, considerando apenas o corpo de obras de Pedro Hispano fixado com maior rigor e descontando os muitos textos em relação aos quais existem reservas, verifica-se que a sua quantidade, qualidade e impacto foram muito desiguais. Neste aspeto, as obras sobreviventes de medicina e de lógica sobrepõem-se às restantes em número, importância e repercussão. Olhando às quantidades produzidas, fica-se com a perceção de que o Hispano se ocupou em especial de tratados médicos. Contam-se neste capítulo cerca de três dezenas de escritos, a que se seguem, a larga distância, as obras de filosofia e de alquimia. Só depois vêm as peças de teologia. Quanto aos escritos sobre zoologia, afiguram-se residuais no conjunto da sua produção intelectual. Mas há ainda a assinalar uma obra, em tudo excêntrica ao resto da sua produção, um tratado em verso sobre os elementos atmosféricos.
No campo dos saberes médicos, o Hispano comentou praticamente todas as principais autoridades em que assentava a aprendizagem nas escolas medievais na área de medicina, em conformidade com o elenco da escola médica de Salerno, fundada no século X e que teve um enorme impacto na evolução da história da medicina. Quanto à adesão à alquimia, o interesse pela química medieval era, ao tempo, inseparável do mundo do ocultismo e das ciências ocultas, o que lhe valeu, em alguns círculos, a pejorativa e controversa reputação de mago.
E foi num contexto de grande efervescência intelectual, marcado pela recuperação no Ocidente de obras de Aristóteles, que o Hispano redigiu os manuscritos filosóficos responsáveis por lhe assegurar um lugar na História da Filosofia. Entre os trabalhos que lhe são imputados com mais insistência e segurança, são indiscutivelmente os mais famosos e celebrados: o ‘Thesaurus pauperum’, no domínio das ciências médicas, e as ‘Summulae logicales’, no ramo da lógica.
O ‘Thesaurus pauperum’ é um rol de conselhos e preceitos médicos, com um copioso número de receitas – algumas das quais elaboradas pelo próprio Pedro Hispano – atinentes à quase totalidade do conjunto conhecido das doenças humanas na medievalidade. Os males e as receitas são apresentados segundo um critério anatómico num texto que se inicia com um rol de prescrições para as maleitas que atingem a cabeça e culmina com o catálogo das doenças e receitas relacionadas com os pés.
No respeitante às ‘Summulae Logicales, referidas também por ‘Tractatus’ e outras designações, alcançaram fama em função da doutrina lógica exposta, que apresentava e compatibilizava tendências filosóficas opostas, nomeadamente entre os nominalistas (que aprofundaram as questões semânticas e os significados dos nomes em filosofia) e os realistas (que entendiam os conceitos universais como sendo reais). Embora reconhecida unanimemente, a importância das Sumulae como texto didático, tem variado largamente conforme as interpretações sobre o seu valor intelectual e científico. Vêm, porém, espelhados nos compêndios de Filosofia Escolástica (na dialética) do século XX. 
Mas é devido à sua produção científica e, especialmente, a estas duas obras – o Thesaurum pauperum e as Summulae logicales – que Pedro Hispano, o Papa João XXI, deve muito da sua celebridade, sem o que, não obstante o seu notável percurso eclesiástico, não passaria de uma pequena nota de rodapé na História. Em especial, foram as Summulae Logicales, que cercaram de larga fama o seu nome. A esse livro, aludiu Dante na Divina Comédia (1321). E foi por causa desse livro que o autor florentino reservou a João XXI um lugar no Paraíso. Era essa a ambição dum cristão na Idade Média; teria de ser essa a máxima aspiração de um homem da Igreja como fora o português toda a vida; e, acima de tudo, seria essa a aspiração de um pontífice, o representante de Deus na Terra: entrar no Paraíso, alcançar o lugar final da Bem-Aventurança.
Os caminhos da justiça e o espírito de Cruzada
Tomado o nome apostólico, Pedro Julião procedeu à escolha da divisa e insígnias que daí em diante o identificariam. A divisa que escolheu foi “Dirige, domine Deus meus, in conspectu tuo viam meam” (Guia-me, Senhor meu Deus, pelos caminhos da tua justiça – Sl 5,9-10) – um lema que talvez remeta para a personalidade controversa que muitas crónicas apontam. Quanto às insígnias, o recém-eleito optou por apresentar no brasão de armas, como ornamentos exteriores, os símbolos típicos da heráldica dos romanos pontífices, de acordo com o ritual latino: no topo, a tríplice tiara, correspondente às três funções apostólicas de ensinar, santificar e governar; ao centro, as duas chaves cruzadas, uma de cor dourada e a outra prateada, simbolizando as chaves do Reino dos Céus, atributo iconográfico associado a Pedro, o príncipe dos Apóstolos, que segundo o Evangelho de Mateus as recebera do próprio Cristo (Mt 16,18-19); na base do brasão, duas borlas pendentes da extremidade duma corda que entrelaçava as chaves (a corda é de cor púrpura, associada aos pontífices de Roma, entendidos como herdeiros da púrpura imperial romana); e, no interior do brasão, o escudo de João XXI, reconhecível pela forma esquartelada ou quadripartida que apresentava.
Resolvidas as questões formais, simbólicas e protocolares, João XXI envolveu-se numa intensa atividade executiva e legislativa, como se pode conferir pela leitura do registo oficial dos seus diplomas, as ‘Regesta’. As ‘Regesta’, cópias de cartas papais e de outros documentos oficiais, com valor notarial, eram preservadas nos arquivos da chancelaria apostólica, arquivadas em volumes próprios para o efeito e destinadas à manutenção de um registo interno para conservar e validar os atos dos vários papas. Mais modernamente acabaram por tomar o idêntico nome de ‘Regesta’ as publicações com a lista de documentos promulgados por cada pontífice, dispostos por ordem cronológica e com sumários cuidadosos dos conteúdos desses atos.
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Nos breves oito meses em que foi incontestavelmente a figura mais importante da Cristandade, João XXI elaborou uma significativa produção diplomática, materializada naqueles registos, que ultrapassou a centena de bulas e cartas apostólicas. E esse corpo documental permite perceber as principais orientações políticas a desenvolver, que se podem resumir na defesa da supremacia religiosa e política do Papa na Cristandade, no desejo de unidade entre as igrejas de Roma e de Constantinopla, na luta contra o inimigo de Fé, o Islão (materializada num fervoroso espírito de Cruzada), e no combate às heterodoxias doutrinais e aos desvios de fé, como sucedeu na famosa disputa entre averroístas e agostinianos, que dividiu a Universidade de Paris.
No plano político, João XXI, ao chegar ao pontificado, teve de atuar em várias frentes pôr fim a vários dos problemas que herdara: conciliar os reis de França e de Castela-Leão, respetivamente Filipe III e Afonso X, em luta pelo controlo da área de Navarra; sanar a questão do título de imperador dos romanos, reivindicado por Carlos de Anjou, rei da Sicília, e por Rodolfo de Habsburgo, imperador do Sacro Império Germânico; sufocar a turbulência que pairava na área itálica e que agitava comunas rivais, como Perúgia e Assis, mas que também afetava as relações das comunas com o papado; e repor a autoridade da Igreja face à desobediência de reis em conflito aberto com alguns setores da Igreja, como sucedia no caso português, com Afonso III.
Porém, apesar do seu fulgurante trajeto eclesiástico e dos ambiciosos projetos políticos que protagonizou, amplamente testemunhados pelos registos da chancelaria papal, a sua morte de, oito meses depois de eleito, não lhe permitiu deixar uma marca impressiva na história da Igreja.
(cf Armando Norte, João XXI – O Papa Português, referido e Armando Norte, Papa João XXI. O português mais poderoso de sempre antes de Guterres in Observador jornal on line, 16 de outubro de 2016: https://observador.pt/especiais/papa-joao-xxi-o-portugues-mais-poderoso-de-sempre-antes-de-guterres/; Francesco X. Calcagno, Philosophia Scolastica, Vol. Primum, ed. 4.ª, M. D’Auria Pontificius Editor, Neapoli, Italia: 1963, pgs 90-94).
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Em Janeiro de 1277, João XXI interveio numa disputa entre teólogos na Universidade de Paris que marcou o seu pontificado. Alguns professores foram acusados pelo bispo de Paris, Étienne Tempier, de defender teses contra a fé cristã. Antes de tomar posição, o Papa pediu ao bispo que averiguasse o que se passava. Mas o prelado antecipou-se e condenou mais de cem teses, entre elas, algumas defendidas pelo dominicano Tomás de Aquino. Os dominicanos culparam João XXI e não lhe perdoaram
Quando morreu, João XXI foi enterrado na Catedral de São Lorenzo, em Viterbo, junto ao altar-mor. Mas, ao longo dos séculos a sua sepultura mudou várias vezes de lugar. Em 1560, o cardeal Gambara levantou a campa para fazer obras. As ossadas foram colocadas num sarcófago atrás da porta da nave central da igreja. Em 1726, o túmulo voltou a ser removido e, desta vez, depositado junto à entrada. No século XIX, o embaixador de Portugal junto à Santa Sé, o duque de Saldanha, mandou construir um monumento digno para acolher as ossadas do Papa. Mas este diplomata morreu e a obra não foi concluída. Então, em 1886, por iniciativa do bispo de Viterbo, o túmulo foi trasladado para uma das capelas da catedral, a de São Filipe. Durante a II Guerra Mundial, a catedral foi bombardeada e a capela de São Filipe ficou em ruínas. O representante da Santa Sé em Portugal, Monsenhor Fernando Cento, solicitou uma nova localização. Mas esta só foi concretizada no ano 2000, quando João XXI regressou à sepultura inicial, num túmulo onde estão inscritas as palavras de Dante: “Pedro Hispano, aquele que brilha nos seus 12 livros”. (cf revista Sábado, de 6 de maio de 2010)
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Um português notável, certamente. Pena é que muitos não teimem em lutar por uma produção pessoal e/ou coletiva que, sem o desejarem, os catapulte por si mesma à fama e ao contributo para o progresso da ciência, arte e técnica e prol do homem e da comunidade humana, assim como é de lamentar a falta de apoio político e económico aos investigadores que vão surgindo ou a obnubilação dos talentos existentes, que não são tão poucos como às vezes se crê.
2018.09.28 – Louro de Carvalho