domingo, 30 de setembro de 2018

Entre a desconfiança e a prosápia do protagonismo


A propósito do caso de Tancos, instalou-se a guerra entre dois corpos policiais e quem sai a perder é a parte menos apoiada pelo poder político, que vem navegando na onda que a opinião pública, formada (discreta ou despudoradamente) pelos interesses instalados e a instalar, tem criado nos últimos decénios. O Chefe do Governo recusa falar da extinção da PJM a quente!
Naturalmente muitas instituições se criaram ou, pelo menos, se desenvolveram sob o signo da desconfiança. Assim, porque se desconfia de que o território de um país possa vir a ser objeto de invasão externa, palco de calamidade pública e, mais recentemente, alvo de terrorismo organizado, organiza-se um corpo multifacetado de forças armadas (FA) para assegurar a defesa da República na linha do aforismo romano “Si vis pacem para bellum” (Se queres a paz, prepara a guerra), pois, segundo a lógica do Império, “Lex suprema salus Reipublicae” (A lei suprema é a salvação da Pátria). Porque muitos atentam ilícita e/ou criminosamente contra a segurança de pessoas e bens e contra a segurança pública, não sabem conviver em sociedade ou infringem as diversas regras sociais, económicas, financeiras e políticas, temos leis, códigos (penal, civil, de estrada, comercial, das sociedades comerciais, do procedimento administrativo, do trabalho, etc.) e regulamentos, bem como escolas, polícias, inspeções, tribunais, hospitais, autarquias e, no topo, o órgão legislativo e o órgão executivo. Porque falham os promotores da legalidade, da boa administração, da polícia, do profissionalismo e da sã convivência, questionamo-nos sobre quem fiscaliza os fiscais e, pela atitude desconfiança e de delação (por vezes anónima ou para salvar a pele), policiamo-nos uns aos outros, até porque não queremos ser acusados de encobrimento ou ver o nosso emprego em perigo. E, porque muitos atentam capciosa e encobertamente contra a defesa e segurança, somos servidos por diversos serviços de informação, discutindo-se as competências de cada um e quem os deve coordenar, o mesmo sucedendo com polícias e com detentores do poder político. Além disso e para isto, a desconfiança gerou saudavelmente a divisão do poder político – legislativo, executivo e judicial – por órgãos diferentes no regime de separação e interdependência segundo o mecanismo de contrapesos e de escrutínio. E almejámos a especialização e, porque esta não responde, vem a multidisciplinaridade.       
Todos querem mostrar a prosápia de que são competentes e mesmo os mais competentes em relação aos demais, pelo que, a cada passo, se discute o protagonismo sobre este ou aquele feito e se autoafirma a cortesia e o sentido de estado, que outros não têm.           
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No caso do assalto aos paióis de Tancos, já disse o que entendi. Penso que, ante as posições oscilantes do Ministro (incidente muito grave e, na esteira da afirmação do então CEMGFA de material já obsoleto, não perigo para a segurança nacional…), Primeiro-Ministro de férias e Presidente da República a puxar extraordinariamente pelas estrelas de comandante supremo das forças armadas, os chefes militares ajoelharam demasiado e, sobretudo, o Exército, cujo Chefe do Estado-Maior (CEME) demitiu e readmitiu os chefes das unidades militares responsáveis pela vigilância dos paióis, viu a demissão de dois generais (o responsável pelo pessoal e o comandante das forças terrestres) e transferiu sem explicação os materiais de Tancos para Santa Margarida, dispensando o Governo de investir nas instalações de Tancos. Em suma, o poder político tutelar não soube estar politicamente face ao caso exigindo apuramento de responsabilidades e o poder castrense, sem explicações concludentes, apressou-se a tranquilizar a nação com um agachamento indevido, sem assumir a responsabilidade operacional, mas desvalorizando o facto que significara um murro no estômago do Exército. Ora, este agachamento indevido sem o conveniente apuramento dos factos e das responsabilidades num país normal seria motivo para a exoneração do CEME.
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Por sua vez, o Ministério Público (MP) coadjuvado pela Polícia Judiciária (PJ) não esteve bem. Como a falta de material de guerra, por roubo ou furto, é crime essencialmente militar, devia ter havido o bom senso de, sem a PJ perder estatutariamente a direção da investigação criminal, se entregar a investigação deste facto, nem que fosse por delegação de competências, à PJM (Polícia Judiciária Militar) por supostamente esta conhecer melhor a especificidade do meio castrense. Ao invés, a PJ fez finca-pé nas suas prerrogativas e, talvez distraída a fiscalizar elementos da PJM ou ocupada noutras investigações complexas (os escassos meios humanos e logísticos não dão para tudo), não levou por si a investigação a bom termo, não conseguindo descobrir a autoria do assalto, a ponto de, um ano depois do assalto, o Presidente da República vir a terreiro, numa crítica velada ao MP, a “reurgir” o apuramento de tudo, custe o que custar, doa a quem doer.    
Foi preciso o material furtado aparecer na Chamusca para a PJ vir a descobrir o autor do assalto e desferir, com a PGR ao leme, o ataque aos alegados encobridores do crime (GNR de Loulé e PJM) essencialmente militar em causa. Deteve 7 militares – 4 da PJM, incluindo o seu diretor e 3 da GNR, incluindo um sargento) – e o alegado suspeito do roubo (ou furto), ao todo 8 arguidos.
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Segundo o texto de Ana Henriques, no Público on line, de 28 de setembro, e o de Graça Henriques e Valentina Marcelino, no DN, de 29, o coronel que dirige a PJM, Luís Vieira, confessou ao juiz de instrução criminal do Campus da Justiça de Lisboa, João Bártolo, que o aparecimento na Chamusca das armas e explosivos roubados em Tancos em junho de 2017 fora uma encenação motivada pelo interesse nacional, estando em perigo a segurança do país. Assim, os militares terão feito um acordo de cavalheiros com um ex-fuzileiro de 36 anos (ou 32, segundo alguns), o ladrão das armas, para que devolvesse o material sem sofrer consequências. Com efeito, urgia ter as armas (e respetivos adereços) de volta antes que fossem vendidas. Mas o magistrado aplicou a Vieira, cujo advogado, Rui Baleizão, garantiu recorrer da medida de coação aplicada, bem como ao ex-fuzileiro, a medida de coação mais dura: a prisão preventiva. Já os restantes arguidos implicados no caso aguardarão julgamento em liberdade, mas suspensos de funções, proibidos de contactar entre si e impedidos de entrar em instalações militares.
Os militares queriam ser os primeiros a descobrir o paradeiro das armas e evitar que a PJ hasteasse a bandeira, como refere um memorando assinado pelo, até há poucos meses, porta-voz da Judiciária Militar, ainda não foi detido por se encontrar fora do país e encontrado nas buscas à residência de Vieira por inspetores da PJ, que também eram vigiados pela PJM – guerrilha entre uma instituição civil e uma congénere militar. E os investigadores equacionam até que ponto da cadeia hierárquica das FA e da GNR se estenderão as responsabilidades, apesar de o Comando Geral da Guarda já ter negado o seu envolvimento. Porém, os depoimentos de alguns dos suspeitos no primeiro interrogatório indiciam que vários deles receberam ordens de responsáveis hierárquicos que não foram, pelo menos por enquanto, constituídos arguidos.
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O furto está a ser investigado num inquérito autónomo, embora seja possível que as duas investigações venham a ser fundidas, pois versam sobre o mesmo assunto. Mais um megaprocesso, de todo não aconselhável. Mas eles lá sabem! Para as autoridades, o caso começou com a revelação dum informador a uma procuradora de ter sido sondado para ajudar a forçar a entrada em instalações militares, de forma discreta, na região onde de facto tudo viria a suceder. A informação, que identificava o ex-fuzileiro, foi passada às duas polícias, mas os militares não terão tomado providências e os civis tentaram, sem sucesso, que um juiz lhes autorizasse as escutas.
O material terá acabado por ser furtado por um traficante de droga e armas, do que se viria a arrepender por causa da repercussão do caso. Para negociar a devolução das armas e explosivos, terá contactado um soldado da GNR de Loulé, velho companheiro de armas, que tinha a chefiá-lo um sargento com conhecimentos na PJM do Porto. O plano passava por fazer uma chamada anónima para o piquete da PJM a revelar onde se encontravam as armas. Assim, a 18 de outubro de 2017: em colaboração com os guardas de Loulé, os inspetores militares alegadamente recuperaram tudo, à exceção de algumas munições que o traficante vendera. Os militares cumpriram a palavra e não o incomodaram.
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Foram fundamentais para a investigação da PJ os dados fornecidos pelas operadoras telefónicas e os registos de portagens, o que já levou à prisão preventiva do diretor da PJM.
As armas furtadas estavam escondidas na propriedade da avó do principal suspeito do crime, em Portela de Carregueiros, Tomar, a 35 km dos paióis de Tancos. E foi ali que, pelo caráter estranho da entrega do material, a investigação, realizada no âmbito da “Operação Hýbris” da PJ, localizou o suspeito em conjunto com os militares da PJM e os do NIC (Núcleo de Investigação Criminal) da GNR de Loulé, um dia antes de a descoberta das armas ser anunciada. A descoberta da legada encenação pela PJ resultou da triangulação das antenas de telemóveis, apesar de alguns terem o cuidado de os desligar em alguns momentos-chave.
O material furtado em 28 de junho de 2017 foi encontrado a 18 de outubro na Chamusca, ou melhor, foi ali entregue através duma operação “delineada de forma rocambolesca” pela PJM em coordenação com o suspeito autor do crime, que tinha uma viagem marcada para fora do país, tendo o coronel Vieira alinhado no plano alegadamente para que os militares ficassem com os louros da recuperação. A própria encenação da descoberta/entrega teve a participação das polícias, que não se limitaram a ir buscar o material onde o suspeito o deixaria.
Como refere a comunicação social, na noite anterior, dois elementos do NIC da GNR Loulé, terão ido numa carrinha Mercedes da PJM até à propriedade da avó de João Paulino (o suspeito). Com efeito, uma viatura da polícia de investigação militar, não levantando suspeitas, traria tranquilamente o material para o descampado onde viriam a ser encontrado.
A carrinha terá chegado à propriedade à hora jantar. E a PJ suspeita que um dos elementos era o sargento da GNR, pois a localização do seu telemóvel apontava para Carregueiros. Estaria acompanhado dum guarda, o amigo de infância do suspeito e que teria dado o mote inicial para o projeto. Este manteve o telefone desligado durante o tempo considerado necessário, mas ao acioná-lo, a localização apontou para a propriedade onde estariam guardadas as armas. Dali, a viatura terá levado as armas para o terreno na Carregueira e ter-se-á depois encenado a descoberta e mesmo a chamada telefónica que espoletou a ação. Esta terá sido feita por um dos militares que estaria em piquete na margem sul para um oficial na sede da PJM na noite da descoberta. Depois, foi dado o alarme e a equipa no terreno anunciou a descoberta antes de avisar a PJ, a responsável pela investigação.
O plano para a devolução do material terá começado a ser delineado em fins de agosto. O suspeito ter-se-á encontrado com o amigo no NIC da GNR de Loulé. O cruzamento dos dados dos telemóveis permite concluir que se encontraram em Albufeira. O suspeito propôs devolver o produto do roubo se nada lhe acontecesse, até porque não estava a conseguir vendê-lo. Mais tarde, quando se iniciou o processo, a PJ começou a investigar as localizações dos telemóveis (dado que ainda não havia escutas) e percebeu que havia muitas similitudes e localizações estranhas dos vários militares da PJM, nomeadamente no Algarve, com os da GNR. Foi em parte por isto que perceberam que a descoberta poderia não ter sido tão simples, sendo possível ter havido encenação para encontrar as armas com o encobrimento do próprio Diretor da PJM, que agora, terá confessado a encenação a pretexto do interesse nacional. Ora, segundo o MP, em causa estão “factos suscetíveis de integrarem crimes de associação criminosa, denegação de justiça, prevaricação, falsificação de documentos, tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, abuso de poder, recetação, detenção de arma proibida e tráfico de armas”.
E a atual PGR sairá de cena a 12 de outubro com um poderoso trunfo na sua folha de serviço!
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É verdade que tem razão o Diretor da PJM quando afirma a primazia e a urgência da devolução do material de guerra em nome da segurança nacional. Porém, sendo discutível o encobrimento do suspeito – porque o encobrimento implica cumplicidade – o juízo sobre a malícia da encenação tem de ser muito cauteloso em nome da eficácia. Não vá acontecer que uma aplicação cega da lei venha a constituir um precedente para denegação de restituições e denúncia de crimes, verificando-se o princípio aforístico do “summum ius summa iniuria”. Até a PJ tem, pelos vistos, dispensado de outros informadores suspeitos de crime apresentação à justiça. Ou pode-se colaborar só com a PJ?
Considerando que não se fala das armas roubadas de instalações da PSP, é lícito pôr a hipótese de estarmos num contexto de guerra entre polícias e mesmo entre uma instituição civil e a instituição militar num dos seus departamentos mais diminutos (a PJM tem menos de meia centena de efetivos). Fala-se na extinção da PJM. E a instituição castrense perderia mais uma peça como perdeu o serviço militar obrigatório, os tribunais militares em tempo de paz, o regimento de comandos, que readquiriu, mas que viu em perigo, perdeu muito investimento e perde cada vez mais efetivos.
Ficando vazio o conceito de crime essencialmente militar e sem efetivos militares, lá vai despedida a defesa da República cuja componente militar é essencial para garantir a integralidade do território, a defesa das populações contra o terrorismo ou a calamidade pública e as operações de paz.
Aliás, se uma PJ fosse a investigar, sob a direção do MP como o temos hoje, o que se passa em contexto de guerra, muito dificilmente não teríamos um incontável número de oficiais e sargentos nas prisões. Por isso, se pede atenção aos contextos, não?
2018.09.29 – Louro de Carvalho          

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