A propósito do caso de Tancos, instalou-se a
guerra entre dois corpos policiais e quem sai a perder é a parte menos apoiada
pelo poder político, que vem navegando na onda que a opinião pública, formada (discreta ou despudoradamente)
pelos interesses instalados e a instalar, tem criado nos últimos decénios. O Chefe
do Governo recusa falar da extinção da PJM a quente!
Naturalmente muitas instituições se criaram ou,
pelo menos, se desenvolveram sob o signo da desconfiança. Assim, porque se
desconfia de que o território de um país possa vir a ser objeto de invasão
externa, palco de calamidade pública e, mais recentemente, alvo de terrorismo
organizado, organiza-se um corpo multifacetado de forças armadas (FA) para assegurar a defesa da República na linha
do aforismo romano “Si vis pacem para
bellum” (Se queres a paz,
prepara a guerra), pois, segundo a lógica do Império, “Lex suprema salus Reipublicae” (A lei suprema é a salvação da Pátria).
Porque muitos atentam ilícita e/ou criminosamente contra a segurança de pessoas
e bens e contra a segurança pública, não sabem conviver em sociedade ou
infringem as diversas regras sociais, económicas, financeiras e políticas,
temos leis, códigos (penal,
civil, de estrada, comercial, das sociedades comerciais, do procedimento
administrativo, do trabalho, etc.) e regulamentos, bem como escolas, polícias, inspeções,
tribunais, hospitais, autarquias e, no topo, o órgão legislativo e o órgão
executivo. Porque falham os promotores da legalidade, da boa administração, da
polícia, do profissionalismo e da sã convivência, questionamo-nos sobre quem
fiscaliza os fiscais e, pela atitude desconfiança e de delação (por vezes anónima ou para salvar a pele),
policiamo-nos uns aos outros, até porque não queremos ser acusados de
encobrimento ou ver o nosso emprego em perigo. E, porque muitos atentam capciosa
e encobertamente contra a defesa e segurança, somos servidos por diversos
serviços de informação, discutindo-se as competências de cada um e quem os deve
coordenar, o mesmo sucedendo com polícias e com detentores do poder político. Além
disso e para isto, a desconfiança gerou saudavelmente a divisão do poder
político – legislativo, executivo e judicial – por órgãos diferentes no regime
de separação e interdependência segundo o mecanismo de contrapesos e de
escrutínio. E almejámos a especialização e, porque esta não responde, vem a
multidisciplinaridade.
Todos querem mostrar a prosápia de que são
competentes e mesmo os mais competentes em relação aos demais, pelo que, a cada
passo, se discute o protagonismo sobre este ou aquele feito e se autoafirma a cortesia
e o sentido de estado, que outros não têm.
***
No caso do assalto aos paióis de Tancos, já disse
o que entendi. Penso que, ante as posições oscilantes do Ministro (incidente muito grave e, na esteira da afirmação
do então CEMGFA de material já obsoleto, não perigo para a segurança nacional…),
Primeiro-Ministro de férias e Presidente da República a puxar
extraordinariamente pelas estrelas de comandante supremo das forças armadas, os
chefes militares ajoelharam demasiado e, sobretudo, o Exército, cujo Chefe do
Estado-Maior (CEME) demitiu
e readmitiu os chefes das unidades militares responsáveis pela vigilância dos
paióis, viu a demissão de dois generais (o responsável pelo pessoal e o comandante das forças terrestres) e
transferiu sem explicação os materiais de Tancos para Santa Margarida,
dispensando o Governo de investir nas instalações de Tancos. Em suma, o poder
político tutelar não soube estar politicamente face ao caso exigindo apuramento
de responsabilidades e o poder castrense, sem explicações concludentes,
apressou-se a tranquilizar a nação com um agachamento indevido, sem assumir a
responsabilidade operacional, mas desvalorizando o facto que significara um
murro no estômago do Exército. Ora, este agachamento indevido sem o conveniente
apuramento dos factos e das responsabilidades num país normal seria motivo para
a exoneração do CEME.
***
Por sua vez, o Ministério Público (MP) coadjuvado pela Polícia Judiciária (PJ) não esteve bem. Como a falta de material de
guerra, por roubo ou furto, é crime essencialmente militar, devia ter havido o
bom senso de, sem a PJ perder estatutariamente a direção da investigação
criminal, se entregar a investigação deste facto, nem que fosse por delegação
de competências, à PJM (Polícia
Judiciária Militar) por supostamente esta conhecer melhor a
especificidade do meio castrense. Ao invés, a PJ fez finca-pé nas suas
prerrogativas e, talvez distraída a fiscalizar elementos da PJM ou ocupada
noutras investigações complexas (os escassos meios humanos e logísticos não dão para tudo),
não levou por si a investigação a bom termo, não conseguindo descobrir a
autoria do assalto, a ponto de, um ano depois do assalto, o Presidente da
República vir a terreiro, numa crítica velada ao MP, a “reurgir” o apuramento
de tudo, custe o que custar, doa a quem doer.
Foi preciso o material furtado aparecer na
Chamusca para a PJ vir a descobrir o autor do assalto e desferir, com a PGR ao
leme, o ataque aos alegados encobridores do crime (GNR de Loulé e PJM) essencialmente
militar em causa. Deteve 7 militares – 4 da PJM, incluindo o seu diretor e 3 da
GNR, incluindo um sargento) – e o alegado suspeito do roubo (ou furto), ao todo 8 arguidos.
***
Segundo o texto de Ana Henriques, no Público
on line, de 28 de setembro, e o de Graça Henriques e Valentina Marcelino,
no DN, de 29, o coronel que
dirige a PJM, Luís Vieira, confessou ao
juiz de instrução criminal do Campus da Justiça de Lisboa, João Bártolo, que o
aparecimento na Chamusca das armas e explosivos roubados em Tancos em junho de
2017 fora uma encenação motivada pelo interesse nacional, estando em perigo a
segurança do país. Assim, os militares terão feito um acordo de cavalheiros com
um ex-fuzileiro de 36 anos (ou 32, segundo alguns), o ladrão das armas, para que devolvesse o material sem sofrer consequências.
Com efeito, urgia ter as armas (e respetivos adereços) de volta antes que fossem vendidas. Mas o magistrado aplicou a Vieira,
cujo advogado, Rui Baleizão, garantiu recorrer da medida de coação aplicada,
bem como ao ex-fuzileiro, a medida de coação mais dura: a prisão preventiva. Já
os restantes arguidos implicados no caso aguardarão julgamento em liberdade,
mas suspensos de funções, proibidos de contactar entre si e impedidos de entrar
em instalações militares.
Os militares
queriam ser os primeiros a descobrir o paradeiro das armas e evitar que a PJ
hasteasse a bandeira, como refere um memorando assinado pelo, até há poucos
meses, porta-voz da Judiciária Militar, ainda não foi detido por se encontrar
fora do país e encontrado nas buscas à residência de Vieira por inspetores da PJ,
que também eram vigiados pela PJM – guerrilha entre uma instituição civil e uma
congénere militar. E os investigadores equacionam até que ponto da cadeia
hierárquica das FA e da GNR se estenderão as responsabilidades, apesar de o
Comando Geral da Guarda já ter negado o seu envolvimento. Porém, os depoimentos
de alguns dos suspeitos no primeiro interrogatório indiciam que vários deles
receberam ordens de responsáveis hierárquicos que não foram, pelo menos por
enquanto, constituídos arguidos.
***
O furto está
a ser investigado num inquérito autónomo, embora seja possível que as duas
investigações venham a ser fundidas, pois versam sobre o mesmo assunto. Mais um
megaprocesso, de todo não aconselhável. Mas eles lá sabem! Para as autoridades,
o caso começou com a revelação dum informador a uma procuradora de ter sido
sondado para ajudar a forçar a entrada em instalações militares, de forma
discreta, na região onde de facto tudo viria a suceder. A informação, que
identificava o ex-fuzileiro, foi passada às duas polícias, mas os militares não
terão tomado providências e os civis tentaram, sem sucesso, que um juiz lhes
autorizasse as escutas.
O material terá
acabado por ser furtado por um traficante de droga e armas, do que se viria a
arrepender por causa da repercussão do caso. Para negociar a devolução das
armas e explosivos, terá contactado um soldado da GNR de Loulé, velho
companheiro de armas, que tinha a chefiá-lo um sargento com conhecimentos na PJM
do Porto. O plano passava por fazer uma chamada anónima para o piquete da PJM a
revelar onde se encontravam as armas. Assim, a 18 de outubro de 2017: em
colaboração com os guardas de Loulé, os inspetores militares alegadamente recuperaram
tudo, à exceção de algumas munições que o traficante vendera. Os militares
cumpriram a palavra e não o incomodaram.
***
Foram fundamentais
para a investigação da PJ os dados fornecidos pelas operadoras telefónicas e os
registos de portagens, o que já levou à prisão preventiva do diretor da PJM.
As armas
furtadas estavam escondidas na propriedade da avó do principal suspeito do
crime, em Portela de Carregueiros, Tomar, a 35 km dos paióis de Tancos. E foi ali
que, pelo caráter estranho da entrega do material, a investigação, realizada no
âmbito da “Operação Hýbris” da PJ, localizou o suspeito em conjunto com os militares
da PJM e os do NIC (Núcleo de Investigação Criminal) da GNR de Loulé, um dia antes de a descoberta das
armas ser anunciada. A descoberta da legada encenação pela PJ resultou da
triangulação das antenas de telemóveis, apesar de alguns terem o cuidado de os
desligar em alguns momentos-chave.
O material furtado
em 28 de junho de 2017 foi encontrado a 18 de outubro na Chamusca, ou melhor,
foi ali entregue através duma operação “delineada
de forma rocambolesca” pela PJM em coordenação com o suspeito autor do crime,
que tinha uma viagem marcada para fora do país, tendo o coronel Vieira alinhado
no plano alegadamente para que os militares ficassem com os louros da
recuperação. A própria encenação da
descoberta/entrega teve a participação das polícias, que não se limitaram a ir
buscar o material onde o suspeito o deixaria.
Como refere a comunicação social, na noite anterior, dois elementos do
NIC da GNR Loulé, terão ido numa carrinha Mercedes da PJM até à propriedade da
avó de João Paulino (o suspeito). Com efeito, uma viatura da polícia de investigação
militar, não levantando suspeitas, traria tranquilamente o material para o
descampado onde viriam a ser encontrado.
A carrinha terá chegado à propriedade à hora jantar. E a PJ suspeita que um dos elementos era o sargento
da GNR, pois a localização do seu telemóvel apontava para Carregueiros. Estaria
acompanhado dum guarda, o amigo de infância do suspeito e que teria dado o mote
inicial para o projeto. Este manteve o telefone desligado durante o tempo considerado
necessário, mas ao acioná-lo, a localização apontou para a propriedade onde
estariam guardadas as armas. Dali, a viatura terá levado as armas para o
terreno na Carregueira e ter-se-á depois encenado a descoberta e mesmo a
chamada telefónica que espoletou a ação. Esta terá sido feita por um dos
militares que estaria em piquete na margem sul para um oficial na sede da PJM
na noite da descoberta. Depois, foi
dado o alarme e a equipa no terreno anunciou a descoberta antes de avisar a PJ,
a responsável pela investigação.
O plano para
a devolução do material terá começado a ser delineado em fins de agosto. O suspeito
ter-se-á encontrado com o amigo no NIC da GNR de Loulé. O cruzamento dos dados dos telemóveis permite concluir que se
encontraram em Albufeira. O suspeito propôs devolver o produto do roubo
se nada lhe acontecesse, até porque não estava a conseguir vendê-lo. Mais tarde,
quando se iniciou o processo, a PJ
começou a investigar as localizações dos telemóveis (dado que ainda
não havia escutas) e percebeu
que havia muitas similitudes e localizações estranhas dos vários militares da
PJM, nomeadamente no Algarve, com os da GNR. Foi em parte por isto que
perceberam que a descoberta poderia não ter sido tão simples, sendo possível
ter havido encenação para encontrar as armas com o encobrimento do próprio Diretor
da PJM, que agora, terá confessado a
encenação a pretexto do interesse nacional. Ora, segundo o MP, em causa estão “factos suscetíveis de integrarem
crimes de associação criminosa, denegação de justiça, prevaricação,
falsificação de documentos, tráfico de influência, favorecimento pessoal
praticado por funcionário, abuso de poder, recetação, detenção de arma proibida
e tráfico de armas”.
E a atual
PGR sairá de cena a 12 de outubro com um poderoso trunfo na sua folha de
serviço!
***
É verdade
que tem razão o Diretor da PJM quando afirma a primazia e a urgência da devolução
do material de guerra em nome da segurança nacional. Porém, sendo discutível o
encobrimento do suspeito – porque o encobrimento implica cumplicidade – o juízo
sobre a malícia da encenação tem de ser muito cauteloso em nome da eficácia. Não
vá acontecer que uma aplicação cega da lei venha a constituir um precedente
para denegação de restituições e denúncia de crimes, verificando-se o princípio
aforístico do “summum ius summa iniuria”.
Até a PJ tem, pelos vistos, dispensado de outros informadores suspeitos de crime
apresentação à justiça. Ou pode-se colaborar só com a PJ?
Considerando
que não se fala das armas roubadas de instalações da PSP, é lícito pôr a hipótese
de estarmos num contexto de guerra entre polícias e mesmo entre uma instituição
civil e a instituição militar num dos seus departamentos mais diminutos (a PJM tem menos
de meia centena de efetivos). Fala-se
na extinção da PJM. E a instituição castrense perderia mais uma peça como perdeu
o serviço militar obrigatório, os tribunais militares em tempo de paz, o regimento
de comandos, que readquiriu, mas que viu em perigo, perdeu muito investimento e
perde cada vez mais efetivos.
Ficando vazio
o conceito de crime essencialmente militar e sem efetivos militares, lá vai
despedida a defesa da República cuja componente militar é essencial para garantir
a integralidade do território, a defesa das populações contra o terrorismo ou a
calamidade pública e as operações de paz.
Aliás, se uma
PJ fosse a investigar, sob a direção do MP como o temos hoje, o que se passa em
contexto de guerra, muito dificilmente não teríamos um incontável número de oficiais
e sargentos nas prisões. Por isso, se pede atenção aos contextos, não?
2018.09.29 – Louro de Carvalho
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