terça-feira, 31 de dezembro de 2019

No final deste ano de 2019…


No fim de 2019, a nossa atitude não pode ser de gritos “Morra o velho” e “Viva o novo”, “Adeus 2019”, como se fosse legítimo atirar para prateleira do esquecimento na História o que se passou ao longo destes 365 dias e que os anais históricos registarão se forem minimamente atentos.
Com turbulências e júbilos, com lutos e festas, com erros e êxitos, o ano prestes a findar constitui um marco na História, uma pedra de cristal na vida das pessoas e das comunidades.
Por isso, é decente que se faça um momento de autocrítica.
Assim, o político terá de se examinar em consciência se contribuiu, segundo a sua condição, para o zelo e a gestão da coisa pública, para a promoção do bem comum, para o bem-estar das populações e para o ordenamento sadio do território, num planeta altamente ameaçado pelas alterações climáticas ou se apenas pensou na conquista ou na manutenção do poder a qualquer preço e se o usou para proveito próprio.
O cidadão terá de pensar se tem exercido os direitos e cumprido e os deveres que a cidadania lhe outorga, se tem pago os seus impostos, taxas e tarifas e se honra os compromissos resultantes dos contratos em que é outorgante ou se se alheia da vida pública, foge aos deveres fiscais e contratuais, primando pela fuga, esquemas ou chico-espertismo.
O empresário e o gestor (privado ou público) devem refletir se têm zelado os interesses da empresa ou do serviço, não só em vista do lucro, mas também da eficiência, sustentabilidade e alargamento de ação; dos seus trabalhadores, garantindo-lhes salário condigno, boas condições de trabalho, descanso e férias, articulação da vida profissional com a vida pessoal e familiar; e se têm tido em conta a função social da propriedade, da empresa e do serviço, urgindo o cumprimento de deveres e o exercício de direitos da parte de todos. Será que o empresário tem feito refletir os quiçá elevados custos da produção, circulação e distribuição no emagrecimento de salários (aduzindo que melhor ganhar pouco do que estar desempregado) e no espezinhamento do trabalhador ou na retenção das contribuições e impostos, nomeadamente no atinente às verbas retiradas ao trabalhador?
O trabalhador e o estudante devem questionar-se se têm cumprido escrupulosamente com o seu dever de trabalho ou de estudo, se têm levantado a voz sempre que estão em causa os seus direitos ou os dos colegas, sem têm zelado as pessoas, coisas e bens culturais. Ao invés, não permanecerão, antes, calados com medo de reivindicar ou não serão excessivos nas reivindicações de direitos esquecendo os deveres e a boa consciência do trabalho e do estudo? 
O homem social tem-se relacionado bem com os demais, tem sido zeloso pelos interesses da sociedade de que faz parte, da associação de que é membro, da cooperativa em que está inscrito, do serviço de saúde ou na IPSS em que trabalha? Tem-se interessado pela sorte dos que não têm bens, saúde, direitos, liberdade, sorte, segurança física e proteção social?
Os operadores da justiça (criminal, civil, administrativa, fiscal, comercial e laboral) têm sido escrupulosos na prevenção dos erros, incluindo a prevenção do crime, na investigação criminal, na promoção da justiça, na presunção da inocência, na promoção da justiça, na garantia da equidade, na defesa das liberdades, diretos e garantias, na moderação e no evitar das deficiências e dos excessos?
Os pastores das religiões têm sido solícitos pela sorte das suas ovelhas, assíduos no cuidado pastoral, na promoção da fé, nas liturgias, na organização dos serviços de justiça e caridade (sem as confundirem), na missionação? E os crentes têm-se mostrado disponíveis para a cooperação com os pastores e com os correligionários ou têm integrado a comunidade em situação rotineira ou buscando prebendas, prestígio, capital de relação? Não se empenham no apostolado, segundo a sua condição? São indiferentes? Querem galgar o lugar dos outros? Causam divisões? Desleixam-se na incúria e negligência? Obedecem se solicitados ou nem isso?       
Enfim, pelo mal em que tivermos incorrido, fica bem hoje a confissão do mea culpa e pelo bem em nós ou por nós operado, um profundo e alegre Deo gratias.
***
Não é por acaso que no fim do ano, como nas Solenidades, tantas comunidades religiosas, nomeadamente a diocese de Roma, cantam Te Deum, um hino de louvor e de prece ao Deus santíssimo (três vezes santo), ao Deus da vida, da glória e da misericórdia, cuja tradução oficial em português se transcreve a seguir. 
Te Deum

Nós Vos louvamos, ó Deus, *
Nós Vos bendizemos, Senhor.
Toda a terra Vos adora, *
Pai eterno e omnipotente.

Os Anjos, os Céus e todas as Potestades, *
Os Querubins e os Serafins Vos aclamam sem cessar:
Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do Universo, *
O céu e a terra proclamam a vossa glória.

O coro glorioso dos Apóstolos, *
A falange venerável dos Profetas,
O exército resplandecente dos Mártires *
Cantam os vossos louvores.

A santa Igreja anuncia por toda a terra *
A glória do vosso nome:
Deus de infinita majestade, *
Pai, Filho e Espírito Santo.

Senhor Jesus Cristo, Rei da glória, *
Filho do Eterno Pai,
Para salvar o homem, tomastes a condição humana *
No seio da Virgem Maria.



Vós despedaçastes as cadeias da morte *
E abristes as portas do Céu.
Vós estais sentado à direita de Deus, na glória do Pai, *
E de novo haveis de vir para julgar os vivos e os mortos.

Socorrei os vossos servos, Senhor, *
Que remistes com o vosso Sangue precioso;
E recebei-os na luz da glória, *
Na assembleia dos vossos Santos.

¶ Salvai o vosso povo, Senhor, *
E abençoai a vossa herança;
Sede o seu pastor e guia através dos tempos *
E conduzi-o às fontes da vida eterna.

Nós Vos bendiremos todos os dias da nossa vida *
E louvaremos para sempre o vosso nome.
Dignai-Vos, Senhor, neste dia, livrar-nos do pecado. *
Tende piedade de nós, Senhor, tende piedade de nós.

Desça sobre nós a vossa misericórdia, *
Porque em Vós esperamos.
Em Vós espero, meu Deus, *
Não serei confundido eternamente.


Te Deum é um hino, usado principalmente na liturgia católica, como parte do Ofício de Leituras (antigamente, Matinas) da liturgia das Horas e outros eventos solenes de ações de graças. O hino é encontrado também na himnódia ou práticas litúrgicas de outras igrejas cristãs, incluindo o Livro de Oração Comum da Igreja Anglicana, as Matinas luteranas e, de modo menos regular, em outras denominações protestantes e evangélicas. Das palavras “Te Deum laudamus(Louvamos-Te, Deus), deriva a denominação por que o hino ficou conhecido. Também designa as suas traduções para os diversos vernáculos a denominação latina.
A autoria do hino é atribuída a Santo Ambrósio e a Santo Agostinho na ocasião do batismo deste pelo primeiro na catedral de Milão, no ano 387. Porém, alguns atribuem a sua autoria a Santo Hilario ou, mais recentemente, ao Bispo Nicetas de Remesiana.
Além do canto gregoriano, o texto foi musicado por vários compositores, entre eles Marc-Antoine Charpentier, Henry Purcell, Jean-Baptiste Lully, Wolfang Amadeus Mozart, Franz Joseph Hayden, Hector Berlioz,  Bruckner, Antonín Dvirák, António Francisco Braga, António Teixeira, Veríssimo Peliz, Kiko Arguello, João de Sousa Carvalho, Lobo de Mesquita, José Maurício Nunes Garcia  e Padre Zezinho. Também compôs um Te Deum o imperador Pedro I do Brasil e Pedro IV de Portugal.
2019.12.31 – Louro de Carvalho

Governo iniciará procedimento para atualização salarial através de portaria


Ficarão abrangidos por esta atualização salarial, que vai passar a ser feita todos os anos (em vez de 3 em 3 anos, como era usual), os trabalhadores não cobertos pela negociação coletiva.
Depois e a par da vergonhosa notícia orçamental do aumento de 0,2% no vencimento dos trabalhadores em funções públicas, o Governo assumiu o objetivo de realizar todos os anos a atualização salarial dos trabalhadores do setor privado que não têm hipótese de cobertura pela negociação coletiva, processo que deve ser concluído no final do primeiro semestre de cada ano.
A este respeito, Miguel Cabrita, Secretário de Estado Adjunto, do Trabalho e da Formação Profissional, afirmou:
Com este Governo, o nosso trabalho e o nosso esforço será para que todos os anos, sempre que as condições do mercado o permitirem, passar este processo mais para o primeiro semestre, para que possam mais cedo no ano também estes trabalhadores sentirem os benefícios da regulamentação coletiva de trabalho e, em particular, dos aumentos salariais que se justificarem”.
Estão em causa as portarias das condições de trabalho, instrumento que garante ao Estado promover a melhoria das condições de trabalho destes trabalhadores, pois não há associações de empregadores para negociar. Estamos obviamente a falar de trabalhadores do setor privado.
Em declarações à Lusa, o predito Secretário de Estado destacou como “mais relevante” a portaria das condições de trabalho dos trabalhadores administrativos, que estão disseminados por diferentes setores de atividade e que não estão abrangidos por uma negociação coletiva.
Na última década, o processo era feito “aproximadamente de três em três anos”, mas o Governo decidiu realizá-lo nos últimos dois anos: 2018 e em 2019. E, “em 2019, foi a primeira vez em muitos anos que houve uma portaria de condições de trabalho em dois anos seguidos” – disse o governante responsável pela área.
A medida é dirigida especialmente aos trabalhadores administrativos do setor privado que desempenham funções em setores de atividade para os quais não existe associação de empregadores. Serão perto de 100 mil trabalhadores. E o Governo já avançou com aumentos de 3,7% sobre as retribuições mínimas, segundo a Portaria n.º 411-A/2019, de 31 de dezembro, publicada hoje no Diário da República, que “procede à primeira alteração da Portaria n.º 182/2018, de 22 de junho, que regula as condições de trabalho dos trabalhadores administrativos não abrangidos por regulamentação coletiva específica” e, nos termos da qual, “as retribuições mínimas, o subsídio de refeição e a atualização das diuturnidades produzem efeitos a partir do dia 1 de julho de 2019”.
De acordo com o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, a atualização da portaria das condições de trabalho aplica-se a “trabalhadores do setor privado, que desempenham funções como analista de informática, caixa, técnico de estatística, vigilante, inspetor administrativo, entre várias outras”.
“O aumento médio é de 3,7%, sendo que não é igual para todos. As categorias que têm remunerações mais baixas têm aumentos acima dos 5%” – indicou o governante acima referido, explicando que estes aumentos salariais estão em linha com a dinâmica de mercado, visto que os dados dos últimos 12 meses do ano apontam para aumentos salariais na ordem dos 3%.
Assim, o predito aumento “vai incidir sobre as retribuições mínimas previstas na tabela, e representa um aumento médio global de 3,7%, variando entre 5,3% nas categorias mais baixas e 0,9% para as categorias mais elevadas”.
Reconhecendo que esse  aumento médio de 3,7% sobre as retribuições mínimas previstas para os trabalhadores administrativos “está um pouco acima da média de mercado”, Miguel Cabrita sustentou que muitos destes trabalhadores estão nas categorias mais baixas, pelo que “era importante que estes trabalhadores possam continuar a ter um aumento salarial que os coloque acima do salário mínimo”. Com efeito, muitas destas categorias estão próximas ou estão até apanhadas pelo salário mínimo, o que é de impedir.
Além do aumento das retribuições mínimas, estes trabalhadores vão beneficiar duma atualização do subsídio de refeição de 4,50 euros para 4,80 euros, o que representa um aumento de 6,7%, determinou o Governo, indicando que vão ser, também, reposicionadas as categorias de vigilante de 2.ª e de 1.ª categoria dos níveis XI e X para os níveis VI (730€) e V (780€), respetivamente.
Registe-se que o salário mínimo em Portugal, agora designado por Remuneração Mínima Mensal Garantida (RMMG), vai aumentar para os 635 euros em 1 de janeiro de 2020 face ao valor de 600 euros praticado este ano.
Em virtude da atualização da RMMG para 2020 a todas as retribuições inferiores a 635 euros, o Governo vai desencadear no início do próximo ano um novo procedimento para atualização das retribuições mínimas previstas na portaria das condições de trabalho.
É boa notícia, mas o Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social apresenta-a como um facto inteiramente novo e empolgante, quando não é novo – resulta de alteração a portaria anterior – e é modesto. Mesmo a passagem do subsídio de refeição de 4,50 para 4,80 euros não passa de saltinho de pardal, quando em atividades privadas que o creditam em cartão o subsídio anda por volta dos 7 euros, bem mais alto que os 4,77 euros para os trabalhadores da administração pública. E ainda há muita gente que fica a ganhar por mês 660 € e 630€.
Mas, como quem me dá um osso não me deseja morto, é bem-vinda a medida governamental. Uma prenda de fim de ano, para o 2.º semestre do novo ano!
2019.12.31 – Louro de Carvalho

Justiça ao sabor da sensibilidade de procuradores, não!


No DN de hoje, 31 de dezembro, Valentina Marcelino dá-nos conta, em breve texto, de que foi revogada a decisão da procuradora que despachou o arquivamento do processo em que a PSP da Amadora se queixava de dois arguidos, tendo insultado um agente policial (chamando-lhe “filho da p…”) e tendo-o socado.
A procuradora considerou que atribuir aquela expressão dita insultuosa ao polícia pode ser considerado um “grito de revolta” e não um crime; e o soco uma forma de defesa.
Agora, por despacho de 10 de dezembro, o MP (Ministério Público) acabou por acusar dois homens que tinham chamado “filho da p…” a um polícia e que tinham sido ilibados por uma procuradora que arquivara o processo por considerar que isso era um “grito de revolta”, exaltação e indignação; e o soco uma forma de defesa para se livrarem das mãos do agente da autoridade.
Chamar “filho da p…” a um agente da autoridade pode ser considerado um “grito de revolta” e desferir um murro num polícia pode ser uma forma de “defesa da força física exercida pelo agente policial” foram as conclusões escritas pela procuradora Cármen Andrade, do DIAP (Departamento de Investigação e Ação Penal) da Amadora, em despacho que decidiu o arquivamento duma queixa de agressões contra agentes da PSP, conforme noticiaram os jornais no passado mês de janeiro (há quase um ano).
A decisão e a argumentação da magistrada do MP desagradaram aos polícias, aos sindicatos e à hierarquia da PSP e do MP. E o caso inflamou as redes sociais, mormente as páginas ligadas às forças de segurança. Os polícias requereram a indicação de novos meios de prova e o inquérito acabou por ser reaberto por ordem do coordenador do DIAP daquela Comarca, Hélder Cordeiro, o mesmo magistrado que acusou os 18 polícias da esquadra de Alfragide – julgados neste ano, tendo sido 8 condenados. E foi este procurador quem veio corrigir a decisão de Cármen Andrade – entretanto transferida para outro tribunal – e acusar os dois homens, um português e outro russo, pelos crimes de resistência e coação sobre funcionário e de injúria agravada.
No seu despacho, o magistrado ignora todas as considerações anteriores da procuradora e frisa:
Os arguidos agiram por meio de violência constrangendo agentes das forças públicas de segurança no desempenho das suas funções a uma ação e a suportar uma atividade desenvolvida pelos arguidos contra si. Os arguidos sabiam que, ao dirigirem aquelas expressões a um agente da PSP, no exercício de funções e por causa delas, ofendiam a honra e consideração pessoal que lhe era devida.”.
O caso que originou o processo ocorreu no Bingo da Amadora, a 12 de maio de 2018. Orlando Yuryevna, de nacionalidade russa, e Pedro Pereira, português, ambos de 45 anos, envolveram-se em desacatos no interior do estabelecimento, tendo sido advertidos por agentes da PSP para saírem da sala. Estariam ambos alcoolizados, “a falar alto e de ânimos exaltados”, situação que se agravou quando um jogador que estava presente os mandou calar.
Já no exterior, Orlando dirigiu-se ao agente da PSP (...) uniformizado e no exercício de funções, e desferiu-lhe um soco no peito, causando-lhe dor, ao mesmo tempo que proferia para aquele agente e ofendido a frase: ‘És um filho da p….’. O agente deu-lhe voz de detenção e o russo “reagiu de forma violenta à tentativa de colocação das algemas” tentando evitar que lhe fossem colocadas. Nesta altura, Pedro Pereira “agarrou o agente (...) pelo braço esquerdo, puxou-o, procurando impedir a consumação da algemagem ao arguido Orlando, ao mesmo tempo que dizia para aquele agente: ‘Filho da p…, não faças isso’.”. E, dentro da esquadra, Orlando terá ameaçado o agente, dizendo-lhe “vamo-nos encontrar noutras alturas e sem farda”. Temos aqui nitidamente a situação criminosa de agressão, injúria e ameaça.
Para a procuradora que arquivara a queixa da PSP, estes comportamentos tinham de ser avaliados no contexto próprio, pelo que escreveu:
Estas palavras só por si e no exato contexto factual em que foram proferidas, não têm o animus de ofender quem quer que seja, funcionando antes como um ‘grito de revolta’, uma manifestação de exaltação e indignação”.
Quanto à agressão de Orlando ao agente, a magistrada entendeu que, “atentas às circunstâncias concretas em que o arguido desferiu o murro, fê-lo num contexto em que se queria defender da própria força física exercida pelo agente policial e não com o intuito de lesar o corpo e/ou a saúde deste”. E, quanto ao “Filho da p…, não faças isso”, expressão dita por Pedro Pereira, a procuradora entendeu:
Não deve ser aferida por si só, mas no contexto factual em que foi proferida e, in casu, não foi acompanhada de animus ofensivo, funcionando apenas como um ‘grito de revolta’, uma manifestação de exaltação e indignação relativamente ao facto de ver as autoridades exercerem força física sobre o seu amigo”.
Sem ofensa, nem para magoar foi o que inferiu a procuradora na sua douta lição de psicologia, em que não se lhe reconhece mérito.
Porém, no seu despacho acusatório, Hélder Cordeiro, determina a medida de coação de termo de identidade e residência aos dois arguidos até ao julgamento. No caso do russo, cuja residência está registada em Alicante, Espanha, as autoridades não conseguiram ainda localizá-lo para o notificar da acusação.
***
Veremos o que decidirão os tribunais, mas uma coisa é certa: a sensibilidade permissiva duma procuradora atrasou pelo menos um ano que se fizesse justiça. Resta saber se a justiça virá na linha da acusação ou se virá do lado da permissibilidade postada no despacho de arquivamento. A jurisprudência dos tribunais da relação, como em tempos verifiquei, não augura nada de justo.
Mas justiça ao sabor das sensibilidades, não! A justiça deve ser feita pela lei e segundo o grau de culpabilidade aferida caso a caso. Um insulto é sempre um insulto, uma agressão é sempre uma agressão e uma ameaça é sempre uma ameaça. Tudo depende do grau de culpabilidade, mas não se pode negar o crime. 
2019.12.31 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

“A Bíblia é uma biblioteca pequena, mas que dá muito que falar”


A homenagem póstuma a Frei Francolino Gonçalves
Em maio de 2019, o Centro de História da Universidade de Lisboa homenageou postumamente o seu antigo colaborador Frei Francolino Gonçalves, com um simpósio internacional que reuniu vários amigos do biblista português. “A alegria, o humor e a proximidade” foram, segundo a agência Ecclesia, qualidades do religioso dominicano evocadas por Ana Valdez, do Centro de História da Universidade de Lisboa, uma das responsáveis pela iniciativa (que incluiu no painel de convidados o prior do Convento de Saint-Étienne de Jerusalém) e que salientou:
Trata-se de um grupo de amigos que se uniu para recordar uma figura importante da investigação bíblica, com quem tiveram a oportunidade de trabalhar”.
O investigador do Antigo Testamento (AT) na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém é considerado um dos maiores estudiosos da Bíblia, tendo integrado a comissão especializada da Santa Sé. Viveu 40 anos em Jerusalém, onde desenvolveu grande parte do seu trabalho científico, cruzando-se aí com numerosos investigadores, como o padre João Lourenço, que o visitou dois dias antes da sua morte.
Este professor da FT-UCP (Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa) recordou um homem que “sabia ler a antiguidade e propô-la ao presente” e sublinhou ainda a sua capacidade de conseguir “extrair pensamento da análise dos textos antigos e do estudo da arqueologia”.
Frei Martin Staszak destacou o método histórico-crítico seguido por Frei Francolino, que “não toma a Bíblia à letra, mas que “pega na sua mensagem integrando-a na história”. E considerou o especialista, também dominicano:
É da capacidade de pôr as duas em relação que se torna possível o diálogo com as ciências humanas e históricas”.
Frei Francolino Gonçalves nasceu em Corujas (Macedo de Cavaleiros) em 1943; viria a entrar na Ordem dos Pregadores (Dominicanos) onde foi ordenado sacerdote em 1968; foi em Jerusalém que desenvolveu grande parte da sua missão de investigador, trabalhando na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém – a uns passos da Porta de Jaffa, onde as imponentes muralhas de velha cidade se abrem para o bairro muçulmano – aonde chegou em 1969 como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian.
O dominicano português faleceu em Jerusalém a 15 de junho de 2017, aos 74 anos de idade; tinha sido reconduzido pelo Papa Francisco em 2014 como membro da Comissão Bíblica Pontifícia, um cargo que ocupava desde 2009, por nomeação de Bento XVI. Os seus principais centros de interesse foram a dimensão política do profetismo no Próximo Oriente Antigo e a história da formação dos livros proféticos da Bíblia, em especial Isaías e Jeremias. Em 2011, foi distinguido por unanimidade com o prémio da Academia Pedro Hispano.
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Uma entrevista: os vocábulos atingentes à Salvação
A 24 de dezembro de 2010, Ana Gerschenfeld publicou um entrevista concedida pelo biblista em Jerusalém, em que ele assegura que “A Bíblia é uma biblioteca pequena, mas que dá muito que falar”, dizendo que “é fascinante mergulhar nos textos antigos, escritos em hebraico, aramaico, grego, à procura das origens históricas do maior bestseller de sempre: a Bíblia”.
Como quem pensa em voz alta, desenrolou o seu percurso de historiador da Bíblia e, principalmente, dos Livros dos Profetas. Segundo ele, o AT é uma biblioteca no sentido estrito da palavra, que inclui enorme diversidade de textos. E, nas pegadas das pistas linguísticas, históricas, teológicas que ia encontrando neste labirinto de significados, interpretações e reinterpretações, leituras e releituras desses textos, cujos originais nunca ninguém viu, pretendia desvendar como eles foram transmitidos ao longo dos séculos para chegarem até nós na forma que hoje os conhecemos.
Quando ali chegou [em 1969], tinha um projeto. A chave de leitura da Bíblia em geral e do AT em particular era a Salvação. Mas importava saber o que é a Salvação, o seu significado – questões que parecem óbvias para a maioria das pessoas, mas que são fundamentais. Por isso, dirigiu-se ao Padre Roland de Vaux, pioneiro, nos anos 1950, das escavações em Qumran, onde foram descobertos os Manuscritos do Mar Morto, bem como do estudo dos manuscritos. E ele disse-lhe que o projeto era perfeito, mas que tinha de começar pelos fundamentos, que estudasse o vocabulário da Salvação. Escolheu dois grupos lexicais hebraicos e percorreu os seus empregos no AT, para ver onde aparecem e em que contexto, a que outros grupos lexicais e grupos semânticos estão associados e o que isso significa. Um desses termos é yasha, que significa literalmente salvar – radical donde vêm nomes como Josué, Jesus. O outro é o radical natsal, sobretudo na sua conjugação causativa, em que significa ‘tirar da mão’, ‘arrancar’, ‘arrebatar’ (arrebatar dum perigo, tirar dum perigo, libertar, salvar). E há um grupo de textos onde existe uma concentração excecional desse vocabulário: o 2.º Livro de Reis, capítulos 18 a 20 (o mesmo texto também se encontra no Livro de Isaías, capítulos 36 a 39, e nas Crónicas, capítulo 32). Estudou esses textos onde tal vocabulário surgia e, verificando que são relatos das relações e dos contactos entre Isaías e o rei Ezequias, já no fim do século VIII a.C. (entre 705 e 701), no contexto da invasão pelo rei assírio Senaquerib, que cercou e ameaçou Jerusalém, já estava atirado para uma pesquisa que não tinha imaginado. Já não estava a estudar a Salvação, mas a questão de relações entre o império assírio e o reino de Judá. Passou assim uns anos e isso deu a tese de doutoramento. Sobre o tema da sua tese, explicitou:
O título em francês (fi-la na Universidade de Lovaina) era L’expédition de Sennachérib en Palestine dans la littérature hébraïque ancienne. Tive de estudar documentos assírios e depois fui ler os relatos da Bíblia e fui encontrar a estratificação desses relatos. E pude isolar pelo menos quatro estratos diferentes, de momentos diferentes – e que são interpretações diferentes dos mesmos acontecimentos históricos. Os textos mais antigos dizem que Jerusalém sofreu terrivelmente com a expedição de Senaquerib, mas a coisa começa a mudar de orientação e o que tinha sido uma derrota terrível acaba por tornar-se uma salvação maravilhosa – devida a Deus.”.
E acrescentou:
A tradição torna-se lendária, já não tem nada a ver com o que aconteceu mas com uma visão que se tem do que aconteceu. E que já nem tem nada a ver com as primeiras versões que foram dadas, que eram mais próximas [no tempo] dos acontecimentos históricos e que são as mais antigas.”.
Quanto ao projeto inicial, disse:
Só há uns 15 anos é que tive a possibilidade de voltar à minha ideia inicial, mas por outro caminho. Já não ando à procura da Salvação, mas apercebi-me de que os textos que falam da Salvação (…) são de facto um sistema religioso em si. Mas esse não é o único sistema religioso que existe no Antigo Testamento: há um outro, que não fala de História, mas do mito da criação. E que é cósmico.”.
Trata-se de duas explicações do mundo: uma, com horizonte cósmico – a criação de toda a humanidade, preocupa-se com a felicidade da pessoa, e é universalista, pois dirige-se a todos os indivíduos; a outra fala de história, da história dum grupo humano e do seu Deus, de Israel e do seu Deus. Acabam por se ligar: o cósmico serve de quadro para o outro. Por isso, o AT começa pelo Cosmos, pela Criação, capítulo 1.º. Chegamos ao capítulo 11. E, a partir do capítulo 12, estreita-se: Abraão. Vai afunilando e, da perspetiva cristã, chega o NT (Novo Testamento) e volta a alargar. É uma construção teológica que reúne dois sistemas religiosos. E, no atinente ao momento da junção dessas duas explicações, observou:
Já estava feita no século III antes da nossa era. E há muitos textos onde se vê claramente como foi feita. A visão cósmica era mais generalizada, era mais fundamental, fazia parte de uma visão próximo-oriental do mundo. Era comum e encontra-se em todos os povos semitas de então. A outra visão é mais particular, obviamente, uma vez que diz respeito a um grupo – e as suas primeiras manifestações datáveis, a meu ver, encontram-se em Oseias e são do século VIII a.C.”.
Sobre a datação os textos da Bíblia e, vista a intemporalidade dos sentimentos, discorreu:
É possível datar com alguma certeza uma boa parte dos escritos. Outros não. (…) São textos muito desligados de qualquer referência histórica, têm um conteúdo mais ou menos universal. Por exemplo, em certos salmos, quando uma pessoa se queixa de que sofre, poderia ser qualquer ser humano. Se não há referência a qualquer coisa de exterior que possa ajudar, é difícil de datar. Aí, estamos entregues a critérios linguísticos: o vocabulário que é usado, a sintaxe. Há critérios objetivos, mas não são absolutos.”.
E aponta que, ao invés do que fazemos hoje, em que distinguimos o texto e o comentário, na altura “o comentário entrava no texto e enriquecia-o, alargava-o, engordava-o”. E “fazia-se um novo texto, que, por sua vez, voltava a ser objeto de comentário, que por sua vez entrava no texto” (O texto foi sempre vivo até foi canonizado e ficou congelado)
Quanto à antiguidade dos textos referiu que o que está no início não é necessariamente mais antigo. Pelo menos alguns Provérbios são dos textos mais antigos da Bíblia. “Um texto que está perdido lá no meio de um livro que tem pouco interesse pode ser mais antigo e pode informar-nos muito mais sobre as coisas do ponto de vista histórico do que o relato que é dado em primeiro lugar”. Hoje, pensa-se que os textos mais antigos datáveis com alguma certeza são as partes mais antigas dos Livros Proféticos: Amós, Oseias, Isaías, Miqueias, Sofonias. No caso de Isaías, as partes mais antigas, que é preciso isolar, representarão menos de 5% do que hoje se encontra no Livro. E o trabalho de Frei Francolino era descobrir o itinerário desses textos, como se construíram, como apareceram, quando, por que razões, em que circunstâncias, a que respondiam e que pretendiam. E disse:
Temos duas edições do Livro de Jeremias. Uma dessas versões, conhecemo-la hoje essencialmente pelo texto grego, que é uma tradução da Bíblia que foi feita em Alexandria, no século II a.C., para os judeus de língua grega, que era a língua comum de então. A outra edição, mais longa, é o chamado texto massorético, que é o texto hebraico corrente. Contrariamente àquilo que se pode pensar, a versão em grego é a edição mais antiga. Isto é, o tradutor desse texto para grego usou uma edição do livro que era mais antiga do que aquela que temos atualmente em hebraico. O texto rabínico atual foi feito seis, sete, oito séculos mais tarde.”.
E explica a razão das muitas diferenças:
O texto hebraico primitivo – a matriz anterior, comum a ambos – não tinha vogais e o sentido das frases dependia da vocalização que se dava ao texto. Vocalizado de uma maneira, tinha um sentido, de outra, tinha outro. Ora, há casos onde os tradutores gregos do século III a.C. vocalizaram de uma maneira que faz com que o sentido seja completamente diferente do que os rabinos dariam séculos mais tarde.”.
Dando um exemplo de diferentes vocalizações, adiantou;
Há um texto do Livro de Isaías em que temos um par de palavras em hebraico que, segundo a vocalização que se adota, pode significar ‘Sol/Lua’ (um par perfeitamente coerente) ou ‘muralha/tijolo’. E justamente, enquanto o texto grego optou pela vocalização muralha/tijolo, os rabinos, mais tarde, optaram pela vocalização Sol/Lua. Por isso, a abordagem dos textos tem de ser feita com muita modéstia e com a consciência de que nem sempre é possível garantir a 100 por cento que o texto só tem um sentido.”.
***
Uma entrevista: os Manuscritos do Mar Morto
Depois falou da importância dos Manuscritos do Mar Morto [rolos de pergaminho, com mais de 2000 anos, descobertos a partir de 1946 em várias grutas perto de Qumran, Israel] para estas pesquisas, vincando:
Um dos seus grandes contributos foi darem a conhecer melhor o que era o judaísmo entre o século II a.C. e o século I, (…) fase decisiva tanto para o nascimento do cristianismo como para a formação do judaísmo rabínico atual. (…) coisas que já se sabiam (…), mas que com os Manuscritos tiveram uma confirmação. O outro grande contributo foi a renovação do estudo da história do texto do AT. Não propriamente da sua produção, mas da transmissão, já nas etapas finais, de um texto que já está quase acabado mas que ainda está em evolução. Bruscamente tinham-se descoberto manuscritos que eram mil anos anteriores aos que tínhamos (até aí, os textos hebraicos mais antigos eram do século IX ou X da nossa era).”.  
Com a evidência dessa diversidade de textos, disse, “foi mais fácil tentar ver se havia famílias textuais, onde é que nasceram, quando e como é que os textos modernos que temos atualmente se constituíram, tanto no hebraico como no grego”. E “isso é muito complexo”. Trata-se duma “tradição extremamente diversificada, onde nunca se pode falar dum só texto nem de texto original” – “são cópias de cópias de cópias de cópias de cópias e o texto original ninguém sabe onde está, ninguém o viu”. E avançou:
A história da transmissão nas etapas finais tem indícios que nos podem ajudar a extrapolar para saber o que se passou antes. As técnicas são mais ou menos as mesmas e aqui também ajudam a compreender melhor o processo que levou à escrita e à formação desta biblioteca que é o Antigo Testamento. Porque é uma biblioteca, são dezenas de livros, não é só um.”.
E, face ao espanto da entrevistadora pelo uso do termo ‘biblioteca’, explanou:
Aliás, há uma confusão à volta do termo utilizado pelas civilizações ocidentais, que vem do grego. Em grego, Bíblia é um plural – ‘os livros’. Mas como a terminação ‘a’ é geralmente feminina e singular em latim e nas línguas que dele derivam, passou a pensar-se que aquilo era um livro e, de facto, nas versões modernas é apresentado num volume. Só que nunca pretendeu ser um livro, mas um volume que tem dezenas de livros. Diferentes! Portanto, é uma biblioteca no sentido estrito. A Bíblia é uma biblioteca pequena, mas que dá muito que falar.”.
À questão se Qumran era o repositório dessa biblioteca respondeu:
A hipótese tradicional é que vivia lá uma comunidade religiosa que tinha essa biblioteca. Mas nesse caso, não é muito provável que tivessem 15 ou 20 cópias dalguns livros. (…) Isso leva alguns a suspeitar que Qumran foi de facto um lugar onde comunidades diferentes, que viviam em lugares diferentes e que tinham cada qual o seu Livro, se puseram de acordo, num momento de perigo, devido à invasão romana, com a revolta judaica e a resposta romana, para esconder os seus manuscritos até que o perigo passasse e pudessem recuperá-los. Mas o perigo não passou e a biblioteca ficou.”.
E essas cópias eram diferentes. E Francolino Gonçalves explicou:
Hoje, com a imprensa, é fácil: fazem-se dez mil, 50 mil, 100 mil cópias de um livro e fica tudo igual. Ali, não. Os livros eram raros e a comunidade que tinha um era uma felizarda. E depois aparecia outro, mas com outra forma. Não havia a uniformidade de hoje.”.
Exemplificando como o caso do Livro de Jeremias, extremamente interessante, confessou:
Descobriram-se uns 5 ou 6 manuscritos do Livro de Jeremias em Qumran e há uns que confirmam o texto que temos atualmente em hebraico – o texto longo. Mas também há manuscritos que confirmam a existência do texto curto, que é o que temos em grego. Já existiam as duas edições! E não se excluíam uma à outra. Não se deitou fora a mais curta, não, guardou-se. E com certeza que havia uns que só liam uma e outros que só liam a outra. Tivemos assim a confirmação da existência, já naquela altura, de uma edição revista e aumentada – e provavelmente corrigida – e de outra que não tinha sido corrigida.”.
Que a mais curta não é versão abreviada da outra é explicado assim, de forma algo burlesca:
Não, essa é a visão tradicional, a explicação segundo a qual o tradutor grego de Jeremias, preguiçoso, terá resumido, abreviado, deixado cair bocados de aqui, bocados de além. Mas não funcionava muito bem, porque o tradutor também mudou a ordem dos textos. O exame dos textos já tinha levado um ou outro especialista a suspeitar que não era assim. Mas como é que se podia dizer que uma tradução era anterior àquilo que se supunha que, pelo facto de estar em hebraico, era o livro original?”.
E avisa que “dizer que se está em hebraico é anterior é um preconceito”.
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Uma entrevista: a interpretação da Bíblia
Quanto às leituras da Bíblia, há duas. Ele faz a histórico-crítica tentando situar os textos, sendo que o relato dos começos do Livro do Génesis é mítico, não em termos depreciativos. E explica:
O mito é provavelmente das formas mais sublimes que nós temos para expressar certas verdades, certas realidades – sobre a própria humanidade, sobre a relação da humanidade com o Cosmos e tudo isso. Mas aquilo que parece história é óbvio que é uma história criada. Pode haver – e há com certeza – certos acontecimentos históricos que estão por detrás, mas que se tornaram lendários e que são apresentados só pelo sentido religioso que têm. É um testemunho de fé e um testemunho de fé é partidário por definição. Portanto, faz parte dum relato que não é necessariamente histórico e que não pretende ser um relato objetivo.”.
Nem a já Igreja Católica defende a Bíblia como sendo uma realidade histórica, como defendeu.
Concedendo que há pessoas, nomeadamente os criacionistas, que interpretam a Bíblia à letra, observou:
Penso que isso vem duma espécie de medo perante a razão e duma preocupação em sacralizar as formas de expressão, que os impede de descobrir o sentido dessas expressões, a verdadeira mensagem que está por detrás. Fixam-se na materialidade do linguístico e do imagético e pensam que isso é canónico, normativo. E isso impede-os de aceder ao verdadeiro sentido dos relatos, à sua verdadeira mensagem.”.
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Uma entrevista: as imagens proféticas no Livro de Jeremias
Referindo que ia ter um seminário sobre as imagens proféticas no Livro de Jeremias, assegurou:
O Livro de Jeremias enxameia de profetas por todo o lado, mas há 5 ou 6 imagens de profetas, de tipos de profetas. Eu costumo dizer a brincar que o Livro de Jeremias é o ateliê onde se esculpiram ou se pintaram as imagens proféticas que povoam o nosso imaginário ocidental.”.
E, sobre os diferentes tipos de profetas, disse que havia “os profetas do passado, anteriores ao momento da escrita do livro”, todos bons, que constituíam dois grupos: os que anunciaram a ruína de grandes reinos e de países poderosos; e os que exortavam Israel à conversão. E “há os profetas do presente, que estão sempre associados aos sacerdotes”. E, ao invés do que que se pensa, não há oposição entre os sacerdotes e estes profetas: “formam um par constante e têm o Templo como lugar social”. Todos são maus e estão condenados a desaparecer pois “anunciam uma mensagem falsa e pretendem falar em nome de Deus, quando Deus nem sequer lhes falou”. E o insigne biblista considerou:
Há também muita gente que profetiza, mas que nunca é chamada profeta. E há o próprio Jeremias. São imagens diferentes, grupos, modelos diferentes que têm aparentemente lugares sociais diferentes, estão associados a grupos diferentes, com funções diferentes. Mas o que é extremamente interessante são as diferenças apreciáveis entre o texto grego e o texto hebraico.”.
E, para assinalar as diferenças, exemplificou:
No texto hebraico, Jeremias recebe 32 vezes o título de profeta. No texto grego, só quatro – e em dois textos bem identificados, bem definidos. Mas o mais engraçado é que há um capítulo (o 28 no texto hebraico e o 34 no texto grego, se não me engano) onde há uma disputa entre um senhor chamado Ananias e Jeremias. No texto hebraico, tanto Ananias como Jeremias recebem o título de profeta. Cada um seis vezes, de maneira absolutamente simétrica. Portanto, a disputa, no texto hebraico, massorético, é entre o profeta Ananias e o profeta Jeremias. Mas no texto grego, só Ananias recebe um título – de falso profeta.”.
Falso profeta é uma tradução, que aparece umas 7 ou 8 vezes, da palavra profeta em hebraico (navi). Mas o tradutor pensa que Ananias não é verdadeiro profeta e, portanto, chama-o falso profeta, pseudoprofeta o que significa que, “no texto hebraico que o tradutor grego usou, Ananias recebia o título de profeta, que o tradutor interpretou como o seu contrário”. A palavra que significasse falso profeta não podia constar do texto hebraico, “porque não existe correspondente em hebraico”: “em hebraico, só existe navi”. Há falsos profetas, “mas isso já exige uma perífrase do tipo que profetizou na mentira”. Não há, pois, uma palavra. “Portanto, só pode ser essa a explicação – até porque acontece várias vezes no livro de Jeremias e acontece uma vez no livro de Zacarias”. E, voltando a Ananias, o nosso Biblista considerou:
O que interessa ainda aqui é que só Ananias é que recebe um título. Jeremias ainda não tem título. Ele é Jeremias de Anatoth. (…) E, portanto, neste texto, a disputa é entre o profeta Ananias e Jeremias, que ainda não é nada!”.
Isto quer dizer “que Jeremias não era socialmente profeta”. E Frei Francolino explanou:
Foi feito profeta mais tarde e quando esse texto, que não é tão antigo como isso, foi composto, Jeremias ainda não era profeta. Só mais tarde é que passou a sê-lo, que foi declarado, foi reconhecido como tal. Porque ele passou toda a vida a dizer mal dos profetas! Só disse mal dos profetas! Neste texto, é engraçado, o Jeremias diz a certa altura ‘tu e o teu bando, vós os profetas!’. Portanto, isso supõe que, para o autor deste relato, Jeremias não é nem podia ser nem queria ser profeta. Mas depois, não só passou a sê-lo – passou a ser uma espécie de profeta por excelência, num processo que poderíamos chamar de canonização, de beatificação.”.
Isto, segundo o biblista, “está ligado a um processo de atribuição da supremacia absoluta à lei de Moisés sobre o profetismo” e “foi preciso promover também Moisés ao título de profeta, de mais do que profeta, de protótipo dos profetas, de quem está acima”. E Francolino rematou:
Penso que foi uma maneira, diríamos hoje, de submeter os profetas aos rabinos. Os profetas tornam-se repetidores de Moisés, para afastar a instituição de qualquer aventura, dar segurança, submeter tudo a uma norma precisa. Não venha um agora a dizer que viu, que lhe disseram, que Deus lhe disse e que teve uma revelação. Já está, há só um e é esse do passado.”.
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Concluindo
Já todos sabíamos que a interpretação literal da Bíblia aplicada a todos os textos é idiotice, tal como a alegada correspondência da antiguidade dos textos à ordem por que aparecem na bíblia atualmente, como sabíamos que a Bíblia é uma ausência biblioteca. Mas com os Manuscritos de Qumran tudo vem a confirmar-se, a consolidar-se e a ampliar-se o sentido da biblioteca e explicar melhor as diferenças das cópias. E fica a perceber-se como o livro de Jeremias é lugar-chave para o estudo do profetismo e seu alcance. Prosit!
 2019.12.30 – Louro de Carvalho

Um ministro deve saber que é escrutinado em suas palavras e gestos


Recentemente Augusto Santos Silva, Ministro dos Negócios Estrangeiros, produziu asserções que desgostaram o tecido empresarial português. Como qualquer governante deve saber – e este por maioria de razão – os ministros e secretários de Estado, aliás como os políticos, estão na ribalta da crítica a propósito de palavras que proferem ou de gestos que exibem.
Todos lembram que o então Ministro do Ambiente Carlos Borrego foi obrigado a demitir-se por ter contado uma anedota sobre os hemofílicos, Jaime Gama, no tempo de Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, foi repreendido pelo presidente do Parlamento António Almeida Santos por chamar ignorante à então deputada Manuela Ferreira Leite, Manuel Pinho, então Ministro da Economia, demitiu-se pelo que sussurrou no Parlamento para o então deputado Bernardino Soares e pelo gesto de dedos e testa que fez, Mário Lino, quando Ministro das Obras Públicas, foi gozado pelo galicismo “jamais” sobre a não possibilidade de construir o novo aeroporto na margem Sul, o Ministro da Cultura João Soares demitiu-se por ter dito que dois senhores mereciam um par de estalos e um Secretário de Estado da Educação foi ensinado por Jaime Gama, presidente do Parlamento, a dirigir-se ao Presidente e aos Deputados. Isto para não mencionar mais casos.
Quanto a Santos Silva, já foi criticado por dizer que tinha que malhar na direita, por entender que a lei não se leva à letra. E agora, falando das nossas empresas, disse que “a qualidade da gestão é fraca, os bancos só querem emprestar para a compra da casa e o tecido industrial não ‘é capaz, por si só’, de perceber a vantagem da inovação”.
O Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros fez esta afirmação pouco diplomática – para chefe da nossa diplomacia – talvez com a autoridade que tem de professor na Faculdade de Economia do Porto, onde também se formam gestores. Será a qualidade da formação de gestores má sabendo o professor e ministro do que fala? Ou as nossas empresas preferem a gestão amadora à gestão profissionalizada? Ou furtam-se a pagar salário condigno a gestores?
Mas o professor, que foi governante em governos de António Guterres, de José Sócrates e o tem sido nos de António Costa e que não zelou a administração e gestão do Estado deixando que o 2.º Governo de José Sócrates tivesse levado o país à quase bancarrota e à troika, falava em Coimbra para graduados e pós-graduados portugueses no estrangeiro e considerou que o problema principal das empresas portuguesas “está na sua descapitalização”, pois a banca “só gosta de emprestar dinheiro para compra de casa”, sendo que a segunda fonte de problemas é falta da qualidade dos gestores. Por isso, o governante quer que “os doutorados tragam mais qualidade para a gestão”. E disse-o na sessão de encerramento do 8.º Fórum Anual de Graduados Portugueses no Estrangeiro (GraPE 2019), que decorreu no Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra.
Para o Ministro de Estado – foi nesta qualidade que interveio –, um tecido industrial “muito pouco qualificado” e “muito pouco capitalizado” terá também dificuldades em atrair jovens qualificados ou até em perceber as vantagens da aposta na inovação.
E continuou na sua oração sapiencial: os empresários e os gestores não percebem o que está em causa. E o Ministro receia que o atual tecido industrial português seja capaz, por si só, “de perceber a vantagem em trazer inovação para o seu seio e a vantagem em contratar pós-graduados e doutorados”. Por isso, sentenciou que “é preciso mudar o tecido industrial”, considerando que atrair investimento estrangeiro para o país também é uma forma de o tecido nacional mudar, face à competição que vem de fora.
Segundo o governante, as empresas que se estão a instalar no país requerem recursos humanos qualificados e localizações próximas de centros de investigação e universidades, sendo que as empresas estrangeiras que investem em Portugal se confrontam “crescentemente com falta de mão de obra qualificada, incluindo doutorados”, especialmente nas áreas da “ciência de dados, engenharias e informáticas”. Com efeito, para o Ministro, “o panorama português é de escassez de mão de obra qualificada e não um panorama de abundância de mão de obra qualificada sem saídas profissionais”.
Na sua intervenção, Santos Silva frisou que as vagas de emigrantes dos anos de 1960 e 70 foram responsáveis por mudanças no país, quer pelas remessas enviadas para as famílias, quer pelas vindas periódicas nos verões, quer pela requalificação do imobiliário ou a criação de pequenas e médias empresas nas suas terras de origem.
Depois, “questionando o auditório, perguntou pelo contributo que os jovens portugueses hoje emigrados darão ao país “daqui a 30 anos” e, “se há uma espécie de laço ou de dívida em relação ao país, como é que se veem a contribuir para o desenvolvimento de Portugal.
Por fim, solicitou aos jovens graduados que deem respostas no próximo fórum, em 2020.
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Menos de 48 horas depois de Santos Silva afirmar que um dos principais problemas das empresas em Portugal “é a fraquíssima qualidade da gestão”, António Saraiva, presidente da CIP (Confederação Empresarial de Portugal), reagiu e respondeu:
Ficámos assim a saber qual a imagem que um dos mais importantes elementos do Governo tem das empresas e empresários nacionais. A perceção confessada diz muito da forma como cumpre no exterior a missão que o país lhe confiou. Promover o investimento externo no país e denegrir injustamente a imagem de empresários e empresas portuguesas não me parece ser exatamente aquilo que se entende como a nobre missão de defesa do interesse nacional.”.
Este discurso, muito pouco diplomático, contraria o que o Governo, a várias vozes, diz tantas vezes em conferências de empresas e empresários. E António Saraiva recordou isso mesmo:
É de tal modo insofismável a verdade dos factos que comprovam que o milagre económico do país se deve essencialmente às empresas e aos empresários portugueses, esse mesmo milagre de que o Governo que Augusto Santos Silva faz parte tanto gosta de se gabar, aqui e além-mar, que as afirmações proferidas pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros só podem ser entendidas por terem sido ditas por alguém que, vivendo fechado em ambientes palacianos, há muito que não sai à rua para ver como o mundo lá fora gira e avança.”.
A CIP reconhece os problemas de qualificações que ainda subsistem na gestão das empresas portuguesas, e por isso tem lançado programas de formação a nível empresarial, mas também lembra a carreira do próprio Ministro enquanto governante. E Saraiva escreve:
Não podemos é consentir que aquele que maiores responsabilidades tem na promoção e defesa dos interesses de Portugal seja aquele que mais destrata as empresas e empresários que arrancaram, com o povo português, o Estado da falência em que a fraquíssima administração política de sucessivos governos nos deixaram…. alguns de que o próprio Augusto Santo Silva fez parte. (…) Não quero acreditar que estas afirmações resultem de um sectarismo ideológico incapaz de reconhecer méritos e competências à iniciativa privada.”.
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Face a tal reação, o Ministro veio, através da TSF, em jeito de pedido de desculpa aos empresários portugueses, dizer que “não queria ofender os empresários portugueses” e a sua intenção “nunca foi denegrir as empresas portuguesas”.
Ou seja, depois de ter identificado a fraquíssima qualidade da gestão como um dos principais problemas das empresas nacionais, o ministro dos Negócios Estrangeiros vem agora pedir desculpa aos empresários. O governante salienta que as palavras em causa foram ditas num contexto muito particular e admite que não voltaria a utilizar o mesmo argumento. Ainda assim, nota que há problemas no tecido empresarial nacional que não podem ser disfarçados e insiste na necessidade de as empresas contratarem gestores qualificados.
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Do meu ponto de vista, Santos Silva tem razão nas asserções feitas. Só pecou pela generalização de atribuição das mazelas gestionárias a todos os gestores, a todos os empresários e a toda a banca. Estava no seu papel político-pedagógico de puxar pelos doutorados. Por isso, o remédio não está em não repetir mais o discurso, mas em passar a ressalvar a existência de alguns bons gestores e alguns bons empresários e a puxar por eles como quis puxar pelos doutorados.
Acredito que a CIP reconheça as debilidades de capitalização e gestão e tenha feitos alguns esforços no sentido da melhoria. Porém, enquanto os custos da produção se refletirem nos baixos salários, no trabalho em condições desumanas, a situação não se recomendará e os esforços de qualificação serão insuficientes. E, mesmo que tudo estivesse sobre rodas, haveria sempre muito caminho por fazer.
2019.12.30 – Louro de Carvalho