A homenagem póstuma a Frei Francolino Gonçalves
Em maio de 2019, o
Centro de História da Universidade de Lisboa homenageou postumamente o seu
antigo colaborador Frei Francolino Gonçalves, com um simpósio internacional que
reuniu vários amigos do biblista português. “A alegria, o humor e a
proximidade” foram, segundo a agência Ecclesia,
qualidades do religioso dominicano evocadas por Ana Valdez, do Centro de
História da Universidade de Lisboa, uma das responsáveis pela iniciativa (que incluiu no painel de convidados o prior do Convento de Saint-Étienne
de Jerusalém) e que salientou:
“Trata-se de um grupo de amigos que
se uniu para recordar uma figura importante da investigação bíblica, com quem
tiveram a oportunidade de trabalhar”.
O investigador do Antigo
Testamento (AT) na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém é considerado um
dos maiores estudiosos da Bíblia, tendo integrado a comissão especializada da
Santa Sé. Viveu 40 anos em Jerusalém, onde desenvolveu grande parte do seu
trabalho científico, cruzando-se aí com numerosos investigadores, como o padre
João Lourenço, que o visitou dois dias antes da sua morte.
Este professor da FT-UCP
(Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa) recordou um homem que “sabia ler a antiguidade
e propô-la ao presente” e sublinhou ainda a sua capacidade de conseguir
“extrair pensamento da análise dos textos antigos e do estudo da arqueologia”.
Frei Martin Staszak
destacou o método histórico-crítico seguido por Frei Francolino, que “não toma
a Bíblia à letra, mas que “pega na sua mensagem integrando-a na história”. E considerou
o especialista, também dominicano:
“É da capacidade de pôr as duas em
relação que se torna possível o diálogo com as ciências humanas e históricas”.
Frei Francolino
Gonçalves nasceu em Corujas (Macedo de Cavaleiros) em 1943; viria a entrar na Ordem dos
Pregadores (Dominicanos) onde foi ordenado sacerdote em 1968; foi em Jerusalém que desenvolveu
grande parte da sua missão de investigador, trabalhando na Escola Bíblica e
Arqueológica Francesa de Jerusalém –
a uns passos da Porta de Jaffa, onde as imponentes muralhas de velha cidade se
abrem para o bairro muçulmano – aonde chegou em 1969 como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian.
O dominicano português
faleceu em Jerusalém a 15 de junho de 2017, aos 74 anos de idade; tinha sido
reconduzido pelo Papa Francisco em 2014 como membro da Comissão Bíblica
Pontifícia, um cargo que ocupava desde 2009, por nomeação de Bento XVI. Os seus
principais centros de interesse foram a dimensão política do
profetismo no Próximo Oriente Antigo e a história da formação dos livros
proféticos da Bíblia, em especial Isaías e Jeremias. Em 2011, foi distinguido
por unanimidade com o prémio da Academia Pedro Hispano.
***
Uma entrevista: os
vocábulos atingentes à Salvação
A 24 de dezembro de 2010, Ana
Gerschenfeld publicou um entrevista concedida pelo biblista em Jerusalém, em
que ele assegura que “A Bíblia é uma
biblioteca pequena, mas que dá muito que falar”, dizendo que “é fascinante
mergulhar nos textos antigos, escritos em hebraico, aramaico, grego, à procura
das origens históricas do maior bestseller de sempre: a Bíblia”.
Como
quem pensa em voz alta, desenrolou o seu percurso de historiador da Bíblia e,
principalmente, dos Livros dos Profetas. Segundo ele, o AT é uma biblioteca no
sentido estrito da palavra, que inclui enorme diversidade de textos. E, nas
pegadas das pistas linguísticas, históricas, teológicas que ia encontrando
neste labirinto de significados, interpretações e reinterpretações, leituras e
releituras desses textos, cujos originais nunca ninguém viu, pretendia
desvendar como eles foram transmitidos ao longo dos séculos para chegarem até
nós na forma que hoje os conhecemos.
Quando ali chegou [em 1969], tinha um projeto. A chave de
leitura da Bíblia em geral e do AT em particular era a Salvação. Mas importava
saber o que é a Salvação, o seu significado – questões que parecem óbvias para
a maioria das pessoas, mas que são fundamentais. Por isso, dirigiu-se ao Padre
Roland de Vaux, pioneiro, nos anos 1950, das escavações em Qumran, onde foram
descobertos os Manuscritos do Mar Morto, bem como do estudo dos manuscritos. E
ele disse-lhe que o projeto era perfeito, mas que tinha de começar pelos
fundamentos, que estudasse o vocabulário da Salvação. Escolheu dois grupos
lexicais hebraicos e percorreu os seus empregos no AT, para ver onde aparecem e
em que contexto, a que outros grupos lexicais e grupos semânticos estão
associados e o que isso significa. Um desses termos é yasha, que
significa literalmente salvar – radical donde vêm nomes como Josué, Jesus. O
outro é o radical natsal, sobretudo na sua conjugação causativa, em que
significa ‘tirar da mão’, ‘arrancar’, ‘arrebatar’ (arrebatar dum perigo, tirar dum
perigo, libertar, salvar).
E há um grupo de textos onde existe uma concentração excecional desse
vocabulário: o 2.º Livro de Reis, capítulos 18 a 20 (o mesmo texto também se encontra no
Livro de Isaías, capítulos 36 a 39, e nas Crónicas, capítulo 32). Estudou esses textos onde tal
vocabulário surgia e, verificando que são relatos das relações e dos contactos
entre Isaías e o rei Ezequias, já no fim do século VIII a.C. (entre 705 e 701), no contexto da invasão pelo rei
assírio Senaquerib, que cercou e ameaçou Jerusalém, já estava atirado para uma
pesquisa que não tinha imaginado. Já não estava a estudar a Salvação, mas a
questão de relações entre o império assírio e o reino de Judá. Passou assim uns
anos e isso deu a tese de doutoramento. Sobre
o tema da sua tese, explicitou:
“O título em francês (fi-la na Universidade
de Lovaina) era L’expédition de Sennachérib en Palestine dans la littérature
hébraïque ancienne. Tive de estudar documentos assírios e
depois fui ler os relatos da Bíblia e fui encontrar a estratificação desses
relatos. E pude isolar pelo menos quatro estratos diferentes, de momentos
diferentes – e que são interpretações diferentes dos mesmos acontecimentos
históricos. Os textos mais antigos dizem que Jerusalém sofreu terrivelmente com
a expedição de Senaquerib, mas a coisa começa a mudar de orientação e o que
tinha sido uma derrota terrível acaba por tornar-se uma salvação maravilhosa –
devida a Deus.”.
E acrescentou:
“A
tradição torna-se lendária, já não tem nada a ver com o que aconteceu mas com
uma visão que se tem do que aconteceu. E que já nem tem nada a ver com as
primeiras versões que foram dadas, que eram mais próximas [no tempo] dos
acontecimentos históricos e que são as mais antigas.”.
Quanto ao
projeto inicial, disse:
“Só
há uns 15 anos é que tive a possibilidade de voltar à minha ideia inicial, mas
por outro caminho. Já não ando à procura da Salvação, mas apercebi-me de que os
textos que falam da Salvação (…) são de facto um sistema religioso em si. Mas
esse não é o único sistema religioso que existe no Antigo Testamento: há um
outro, que não fala de História, mas do mito da criação. E que é cósmico.”.
Trata-se de
duas explicações do
mundo: uma, com horizonte cósmico – a criação de toda a humanidade, preocupa-se
com a felicidade da pessoa, e é universalista, pois dirige-se a todos os
indivíduos; a outra fala de história, da história dum grupo humano e do seu
Deus, de Israel e do seu Deus. Acabam por se ligar: o cósmico serve de quadro
para o outro. Por isso, o AT começa pelo Cosmos, pela Criação, capítulo 1.º.
Chegamos ao capítulo 11. E, a partir do capítulo 12, estreita-se: Abraão. Vai
afunilando e, da perspetiva cristã, chega o NT (Novo Testamento) e volta a alargar. É uma construção teológica que reúne dois
sistemas religiosos. E, no atinente ao
momento da junção dessas duas explicações, observou:
“Já
estava feita no século III antes da nossa era. E há muitos textos onde se vê
claramente como foi feita. A visão cósmica era mais generalizada, era mais fundamental,
fazia parte de uma visão próximo-oriental do mundo. Era comum e encontra-se em
todos os povos semitas de então. A outra visão é mais particular, obviamente,
uma vez que diz respeito a um grupo – e as suas primeiras manifestações
datáveis, a meu ver, encontram-se em Oseias e são do século VIII a.C.”.
Sobre a
datação os textos da Bíblia e, vista a intemporalidade dos sentimentos,
discorreu:
“É
possível datar com alguma certeza uma boa parte dos escritos. Outros não. (…) São
textos muito desligados de qualquer referência histórica, têm um conteúdo mais
ou menos universal. Por exemplo, em certos salmos, quando uma pessoa se queixa
de que sofre, poderia ser qualquer ser humano. Se não há referência a qualquer
coisa de exterior que possa ajudar, é difícil de datar. Aí, estamos entregues a
critérios linguísticos: o vocabulário que é usado, a sintaxe. Há critérios
objetivos, mas não são absolutos.”.
E aponta que, ao invés do que fazemos
hoje, em que distinguimos o texto e o comentário, na altura “o comentário
entrava no texto e enriquecia-o, alargava-o, engordava-o”. E “fazia-se um novo
texto, que, por sua vez, voltava a ser objeto de comentário, que por sua vez
entrava no texto” (O
texto foi sempre vivo até foi canonizado e ficou congelado).
Quanto à
antiguidade dos textos referiu que o que está no início não é necessariamente mais antigo. Pelo
menos alguns Provérbios são dos textos mais antigos da Bíblia. “Um texto que está perdido lá no meio de um
livro que tem pouco interesse pode ser mais antigo e pode informar-nos muito
mais sobre as coisas do ponto de vista histórico do que o relato que é dado em
primeiro lugar”. Hoje,
pensa-se que os textos mais antigos datáveis com alguma certeza são as partes
mais antigas dos Livros Proféticos: Amós, Oseias, Isaías, Miqueias, Sofonias.
No caso de Isaías, as partes mais antigas, que é preciso isolar, representarão
menos de 5% do que hoje se encontra no Livro. E o trabalho de Frei Francolino era
descobrir o itinerário desses textos, como se construíram, como apareceram,
quando, por que razões, em que circunstâncias, a que respondiam e que
pretendiam. E disse:
“Temos
duas edições do Livro de Jeremias. Uma dessas versões, conhecemo-la hoje
essencialmente pelo texto grego, que é uma tradução da Bíblia que foi feita em
Alexandria, no século II a.C., para os judeus de língua grega, que era a língua
comum de então. A outra edição, mais longa, é o chamado texto massorético, que
é o texto hebraico corrente. Contrariamente àquilo que se pode pensar, a versão
em grego é a edição mais antiga. Isto é, o tradutor desse texto para grego usou
uma edição do livro que era mais antiga do que aquela que temos atualmente em
hebraico. O texto rabínico atual foi feito seis, sete, oito séculos mais tarde.”.
E explica a razão das muitas
diferenças:
“O
texto hebraico primitivo – a matriz anterior, comum a ambos – não tinha vogais
e o sentido das frases dependia da vocalização que se dava ao texto. Vocalizado
de uma maneira, tinha um sentido, de outra, tinha outro. Ora, há casos onde os
tradutores gregos do século III a.C. vocalizaram de uma maneira que faz com que
o sentido seja completamente diferente do que os rabinos dariam séculos mais
tarde.”.
Dando um
exemplo de diferentes vocalizações, adiantou;
“Há
um texto do Livro de Isaías em que temos um par de palavras em hebraico que,
segundo a vocalização que se adota, pode significar ‘Sol/Lua’ (um par
perfeitamente coerente) ou ‘muralha/tijolo’. E justamente, enquanto o texto
grego optou pela vocalização muralha/tijolo, os rabinos, mais tarde, optaram
pela vocalização Sol/Lua. Por isso, a abordagem dos textos tem de ser feita com
muita modéstia e com a consciência de que nem sempre é possível garantir a 100
por cento que o texto só tem um sentido.”.
***
Uma entrevista: os Manuscritos do Mar Morto
Depois falou
da importância dos Manuscritos do Mar Morto [rolos de pergaminho, com mais de
2000 anos, descobertos a partir de 1946 em várias grutas perto de Qumran,
Israel] para estas pesquisas, vincando:
“Um
dos seus grandes contributos foi darem a conhecer melhor o que era o judaísmo
entre o século II a.C. e o século I, (…) fase decisiva tanto para o nascimento
do cristianismo como para a formação do judaísmo rabínico atual. (…) coisas que
já se sabiam (…), mas que com os Manuscritos tiveram uma confirmação. O outro
grande contributo foi a renovação do estudo da história do texto do AT. Não
propriamente da sua produção, mas da transmissão, já nas etapas finais, de um
texto que já está quase acabado mas que ainda está em evolução. Bruscamente tinham-se
descoberto manuscritos que eram mil anos anteriores aos que tínhamos (até aí,
os textos hebraicos mais antigos eram do século IX ou X da nossa era).”.
Com a evidência dessa diversidade de
textos, disse, “foi mais fácil tentar ver
se havia famílias textuais, onde é que nasceram, quando e como é que os textos
modernos que temos atualmente se constituíram, tanto no hebraico como no grego”.
E “isso é muito complexo”. Trata-se duma “tradição extremamente diversificada,
onde nunca se pode falar dum só texto nem de texto original” – “são cópias de cópias de cópias de cópias de
cópias e o texto original ninguém sabe onde está, ninguém o viu”. E
avançou:
“A
história da transmissão nas etapas finais tem indícios que nos podem ajudar a
extrapolar para saber o que se passou antes. As técnicas são mais ou menos as
mesmas e aqui também ajudam a compreender melhor o processo que levou à escrita
e à formação desta biblioteca que é o Antigo Testamento. Porque é uma
biblioteca, são dezenas de livros, não é só um.”.
E, face ao
espanto da entrevistadora pelo uso do termo ‘biblioteca’, explanou:
“Aliás,
há uma confusão à volta do termo utilizado pelas civilizações ocidentais, que
vem do grego. Em grego, Bíblia é um plural – ‘os livros’. Mas como a terminação
‘a’ é geralmente feminina e singular em latim e nas línguas que dele derivam,
passou a pensar-se que aquilo era um livro e, de facto, nas versões modernas é
apresentado num volume. Só que nunca pretendeu ser um livro, mas um volume que
tem dezenas de livros. Diferentes! Portanto, é uma biblioteca no sentido
estrito. A Bíblia é uma biblioteca pequena, mas que dá muito que falar.”.
À questão
se Qumran era o repositório dessa biblioteca respondeu:
“A
hipótese tradicional é que vivia lá uma comunidade religiosa que tinha essa
biblioteca. Mas nesse caso, não é muito provável que tivessem 15 ou 20 cópias
dalguns livros. (…) Isso leva alguns a suspeitar que Qumran foi de facto um
lugar onde comunidades diferentes, que viviam em lugares diferentes e que
tinham cada qual o seu Livro, se puseram de acordo, num momento de perigo,
devido à invasão romana, com a revolta judaica e a resposta romana, para
esconder os seus manuscritos até que o perigo passasse e pudessem recuperá-los.
Mas o perigo não passou e a biblioteca ficou.”.
E essas
cópias eram diferentes. E Francolino Gonçalves explicou:
“Hoje,
com a imprensa, é fácil: fazem-se dez mil, 50 mil, 100 mil cópias de um livro e
fica tudo igual. Ali, não. Os livros eram raros e a comunidade que tinha um era
uma felizarda. E depois aparecia outro, mas com outra forma. Não havia a uniformidade
de hoje.”.
Exemplificando como o caso do Livro
de Jeremias, extremamente interessante, confessou:
“Descobriram-se
uns 5 ou 6 manuscritos do Livro de Jeremias em Qumran e há uns que confirmam o
texto que temos atualmente em hebraico – o texto longo. Mas também há
manuscritos que confirmam a existência do texto curto, que é o que temos em
grego. Já existiam as duas edições! E não se excluíam uma à outra. Não se
deitou fora a mais curta, não, guardou-se. E com certeza que havia uns que só
liam uma e outros que só liam a outra. Tivemos assim a confirmação da
existência, já naquela altura, de uma edição revista e aumentada – e provavelmente
corrigida – e de outra que não tinha sido corrigida.”.
Que a mais
curta não é versão abreviada da outra é explicado assim, de forma algo burlesca:
“Não,
essa é a visão tradicional, a explicação segundo a qual o tradutor grego de
Jeremias, preguiçoso, terá resumido, abreviado, deixado cair bocados de aqui,
bocados de além. Mas não funcionava muito bem, porque o tradutor também mudou a
ordem dos textos. O exame dos textos já tinha levado um ou outro especialista a
suspeitar que não era assim. Mas como é que se podia dizer que uma tradução era
anterior àquilo que se supunha que, pelo facto de estar em hebraico, era o
livro original?”.
E avisa que “dizer que se está em hebraico é anterior é um preconceito”.
***
Uma entrevista: a interpretação da
Bíblia
Quanto às
leituras da Bíblia, há duas. Ele faz a histórico-crítica tentando situar os textos, sendo que o
relato dos começos do Livro do Génesis é mítico, não em termos depreciativos. E
explica:
“O
mito é provavelmente das formas mais sublimes que nós temos para expressar
certas verdades, certas realidades – sobre a própria humanidade, sobre a
relação da humanidade com o Cosmos e tudo isso. Mas aquilo que parece história
é óbvio que é uma história criada. Pode haver – e há com certeza – certos
acontecimentos históricos que estão por detrás, mas que se tornaram lendários e
que são apresentados só pelo sentido religioso que têm. É um testemunho de fé e
um testemunho de fé é partidário por definição. Portanto, faz parte dum relato
que não é necessariamente histórico e que não pretende ser um relato objetivo.”.
Nem a já Igreja Católica defende a Bíblia como sendo uma realidade histórica,
como defendeu.
Concedendo que há pessoas, nomeadamente os criacionistas, que
interpretam a Bíblia à letra, observou:
“Penso
que isso vem duma espécie de medo perante a razão e duma preocupação em
sacralizar as formas de expressão, que os impede de descobrir o sentido dessas
expressões, a verdadeira mensagem que está por detrás. Fixam-se na
materialidade do linguístico e do imagético e pensam que isso é canónico,
normativo. E isso impede-os de aceder ao verdadeiro sentido dos relatos, à sua
verdadeira mensagem.”.
***
Uma entrevista: as imagens proféticas no Livro de Jeremias
Referindo que ia ter um seminário
sobre as imagens proféticas no Livro de Jeremias, assegurou:
“O
Livro de Jeremias enxameia de profetas por todo o lado, mas há 5 ou 6 imagens
de profetas, de tipos de profetas. Eu costumo dizer a brincar que o Livro de
Jeremias é o ateliê onde se esculpiram ou se pintaram as imagens proféticas que
povoam o nosso imaginário ocidental.”.
E, sobre os
diferentes tipos de profetas, disse que havia “os profetas do passado, anteriores ao momento da escrita do
livro”, todos bons,
que constituíam dois grupos: os que anunciaram a ruína de grandes reinos e de
países poderosos; e os que exortavam Israel à conversão. E “há os profetas do presente, que estão sempre
associados aos sacerdotes”. E, ao invés do que que se pensa, não há
oposição entre os sacerdotes e estes profetas: “formam um par constante e têm o
Templo como lugar social”. Todos são maus e estão condenados a desaparecer pois
“anunciam uma mensagem falsa e pretendem falar em nome de Deus, quando Deus nem
sequer lhes falou”. E o insigne biblista considerou:
“Há
também muita gente que profetiza, mas que nunca é chamada profeta. E há o
próprio Jeremias. São imagens diferentes, grupos, modelos diferentes que têm
aparentemente lugares sociais diferentes, estão associados a grupos diferentes,
com funções diferentes. Mas o que é extremamente interessante são as diferenças
apreciáveis entre o texto grego e o texto hebraico.”.
E, para
assinalar as diferenças, exemplificou:
“No
texto hebraico, Jeremias recebe 32 vezes o título de profeta. No texto grego,
só quatro – e em dois textos bem identificados, bem definidos. Mas o mais
engraçado é que há um capítulo (o 28 no texto hebraico e o 34 no texto grego,
se não me engano) onde há uma disputa entre um senhor chamado Ananias e
Jeremias. No texto hebraico, tanto Ananias como Jeremias recebem o título de
profeta. Cada um seis vezes, de maneira absolutamente simétrica. Portanto, a
disputa, no texto hebraico, massorético, é entre o profeta Ananias e o profeta
Jeremias. Mas no texto grego, só Ananias recebe um título – de falso profeta.”.
Falso profeta é uma tradução, que
aparece umas 7 ou 8 vezes, da palavra profeta em hebraico (navi). Mas o tradutor pensa que Ananias não é verdadeiro
profeta e, portanto, chama-o falso profeta, pseudoprofeta o que significa que, “no
texto hebraico que o tradutor grego usou, Ananias recebia o título de profeta,
que o tradutor interpretou como o seu contrário”. A palavra que significasse falso profeta não podia constar do texto
hebraico, “porque não existe correspondente em hebraico”: “em hebraico,
só existe navi”. Há falsos profetas, “mas
isso já exige uma perífrase do tipo que
profetizou na mentira”. Não há, pois, uma palavra. “Portanto, só pode ser
essa a explicação – até porque acontece várias vezes no livro de Jeremias e
acontece uma vez no livro de Zacarias”. E, voltando a Ananias, o nosso Biblista
considerou:
“O que interessa ainda aqui é que só Ananias é que recebe um título.
Jeremias ainda não tem título. Ele é Jeremias de Anatoth. (…) E, portanto,
neste texto, a disputa é entre o profeta Ananias e Jeremias, que ainda não é
nada!”.
Isto quer
dizer “que
Jeremias não era socialmente profeta”. E Frei Francolino explanou:
“Foi
feito profeta mais tarde e quando esse texto, que não é tão antigo como isso,
foi composto, Jeremias ainda não era profeta. Só mais tarde é que passou a
sê-lo, que foi declarado, foi reconhecido como tal. Porque ele passou toda a
vida a dizer mal dos profetas! Só disse mal dos profetas! Neste texto, é
engraçado, o Jeremias diz a certa altura ‘tu e o teu bando, vós os profetas!’. Portanto,
isso supõe que, para o autor deste relato, Jeremias não é nem podia ser nem
queria ser profeta. Mas depois, não só passou a sê-lo – passou a ser uma
espécie de profeta por excelência, num processo que poderíamos chamar de canonização,
de beatificação.”.
Isto,
segundo o biblista, “está
ligado a um processo de atribuição da supremacia absoluta à lei de Moisés sobre
o profetismo” e “foi preciso promover também Moisés ao título de profeta, de
mais do que profeta, de protótipo dos profetas, de quem está acima”. E
Francolino rematou:
“Penso
que foi uma maneira, diríamos hoje, de submeter os profetas aos rabinos. Os
profetas tornam-se repetidores de Moisés, para afastar a instituição de
qualquer aventura, dar segurança, submeter tudo a uma norma precisa. Não venha
um agora a dizer que viu, que lhe disseram, que Deus lhe disse e que teve uma
revelação. Já está, há só um e é esse do passado.”.
***
Concluindo
Já
todos sabíamos que a interpretação literal da Bíblia aplicada a todos os textos
é idiotice, tal como a alegada correspondência da antiguidade dos textos à ordem
por que aparecem na bíblia atualmente, como sabíamos que a Bíblia é uma ausência
biblioteca. Mas com os Manuscritos de Qumran tudo vem a confirmar-se, a consolidar-se
e a ampliar-se o sentido da biblioteca e explicar melhor as diferenças das
cópias. E fica a perceber-se como o livro de Jeremias é lugar-chave para o
estudo do profetismo e seu alcance. Prosit!
2019.12.30 – Louro de Carvalho