segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

“A Bíblia é uma biblioteca pequena, mas que dá muito que falar”


A homenagem póstuma a Frei Francolino Gonçalves
Em maio de 2019, o Centro de História da Universidade de Lisboa homenageou postumamente o seu antigo colaborador Frei Francolino Gonçalves, com um simpósio internacional que reuniu vários amigos do biblista português. “A alegria, o humor e a proximidade” foram, segundo a agência Ecclesia, qualidades do religioso dominicano evocadas por Ana Valdez, do Centro de História da Universidade de Lisboa, uma das responsáveis pela iniciativa (que incluiu no painel de convidados o prior do Convento de Saint-Étienne de Jerusalém) e que salientou:
Trata-se de um grupo de amigos que se uniu para recordar uma figura importante da investigação bíblica, com quem tiveram a oportunidade de trabalhar”.
O investigador do Antigo Testamento (AT) na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém é considerado um dos maiores estudiosos da Bíblia, tendo integrado a comissão especializada da Santa Sé. Viveu 40 anos em Jerusalém, onde desenvolveu grande parte do seu trabalho científico, cruzando-se aí com numerosos investigadores, como o padre João Lourenço, que o visitou dois dias antes da sua morte.
Este professor da FT-UCP (Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa) recordou um homem que “sabia ler a antiguidade e propô-la ao presente” e sublinhou ainda a sua capacidade de conseguir “extrair pensamento da análise dos textos antigos e do estudo da arqueologia”.
Frei Martin Staszak destacou o método histórico-crítico seguido por Frei Francolino, que “não toma a Bíblia à letra, mas que “pega na sua mensagem integrando-a na história”. E considerou o especialista, também dominicano:
É da capacidade de pôr as duas em relação que se torna possível o diálogo com as ciências humanas e históricas”.
Frei Francolino Gonçalves nasceu em Corujas (Macedo de Cavaleiros) em 1943; viria a entrar na Ordem dos Pregadores (Dominicanos) onde foi ordenado sacerdote em 1968; foi em Jerusalém que desenvolveu grande parte da sua missão de investigador, trabalhando na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém – a uns passos da Porta de Jaffa, onde as imponentes muralhas de velha cidade se abrem para o bairro muçulmano – aonde chegou em 1969 como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian.
O dominicano português faleceu em Jerusalém a 15 de junho de 2017, aos 74 anos de idade; tinha sido reconduzido pelo Papa Francisco em 2014 como membro da Comissão Bíblica Pontifícia, um cargo que ocupava desde 2009, por nomeação de Bento XVI. Os seus principais centros de interesse foram a dimensão política do profetismo no Próximo Oriente Antigo e a história da formação dos livros proféticos da Bíblia, em especial Isaías e Jeremias. Em 2011, foi distinguido por unanimidade com o prémio da Academia Pedro Hispano.
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Uma entrevista: os vocábulos atingentes à Salvação
A 24 de dezembro de 2010, Ana Gerschenfeld publicou um entrevista concedida pelo biblista em Jerusalém, em que ele assegura que “A Bíblia é uma biblioteca pequena, mas que dá muito que falar”, dizendo que “é fascinante mergulhar nos textos antigos, escritos em hebraico, aramaico, grego, à procura das origens históricas do maior bestseller de sempre: a Bíblia”.
Como quem pensa em voz alta, desenrolou o seu percurso de historiador da Bíblia e, principalmente, dos Livros dos Profetas. Segundo ele, o AT é uma biblioteca no sentido estrito da palavra, que inclui enorme diversidade de textos. E, nas pegadas das pistas linguísticas, históricas, teológicas que ia encontrando neste labirinto de significados, interpretações e reinterpretações, leituras e releituras desses textos, cujos originais nunca ninguém viu, pretendia desvendar como eles foram transmitidos ao longo dos séculos para chegarem até nós na forma que hoje os conhecemos.
Quando ali chegou [em 1969], tinha um projeto. A chave de leitura da Bíblia em geral e do AT em particular era a Salvação. Mas importava saber o que é a Salvação, o seu significado – questões que parecem óbvias para a maioria das pessoas, mas que são fundamentais. Por isso, dirigiu-se ao Padre Roland de Vaux, pioneiro, nos anos 1950, das escavações em Qumran, onde foram descobertos os Manuscritos do Mar Morto, bem como do estudo dos manuscritos. E ele disse-lhe que o projeto era perfeito, mas que tinha de começar pelos fundamentos, que estudasse o vocabulário da Salvação. Escolheu dois grupos lexicais hebraicos e percorreu os seus empregos no AT, para ver onde aparecem e em que contexto, a que outros grupos lexicais e grupos semânticos estão associados e o que isso significa. Um desses termos é yasha, que significa literalmente salvar – radical donde vêm nomes como Josué, Jesus. O outro é o radical natsal, sobretudo na sua conjugação causativa, em que significa ‘tirar da mão’, ‘arrancar’, ‘arrebatar’ (arrebatar dum perigo, tirar dum perigo, libertar, salvar). E há um grupo de textos onde existe uma concentração excecional desse vocabulário: o 2.º Livro de Reis, capítulos 18 a 20 (o mesmo texto também se encontra no Livro de Isaías, capítulos 36 a 39, e nas Crónicas, capítulo 32). Estudou esses textos onde tal vocabulário surgia e, verificando que são relatos das relações e dos contactos entre Isaías e o rei Ezequias, já no fim do século VIII a.C. (entre 705 e 701), no contexto da invasão pelo rei assírio Senaquerib, que cercou e ameaçou Jerusalém, já estava atirado para uma pesquisa que não tinha imaginado. Já não estava a estudar a Salvação, mas a questão de relações entre o império assírio e o reino de Judá. Passou assim uns anos e isso deu a tese de doutoramento. Sobre o tema da sua tese, explicitou:
O título em francês (fi-la na Universidade de Lovaina) era L’expédition de Sennachérib en Palestine dans la littérature hébraïque ancienne. Tive de estudar documentos assírios e depois fui ler os relatos da Bíblia e fui encontrar a estratificação desses relatos. E pude isolar pelo menos quatro estratos diferentes, de momentos diferentes – e que são interpretações diferentes dos mesmos acontecimentos históricos. Os textos mais antigos dizem que Jerusalém sofreu terrivelmente com a expedição de Senaquerib, mas a coisa começa a mudar de orientação e o que tinha sido uma derrota terrível acaba por tornar-se uma salvação maravilhosa – devida a Deus.”.
E acrescentou:
A tradição torna-se lendária, já não tem nada a ver com o que aconteceu mas com uma visão que se tem do que aconteceu. E que já nem tem nada a ver com as primeiras versões que foram dadas, que eram mais próximas [no tempo] dos acontecimentos históricos e que são as mais antigas.”.
Quanto ao projeto inicial, disse:
Só há uns 15 anos é que tive a possibilidade de voltar à minha ideia inicial, mas por outro caminho. Já não ando à procura da Salvação, mas apercebi-me de que os textos que falam da Salvação (…) são de facto um sistema religioso em si. Mas esse não é o único sistema religioso que existe no Antigo Testamento: há um outro, que não fala de História, mas do mito da criação. E que é cósmico.”.
Trata-se de duas explicações do mundo: uma, com horizonte cósmico – a criação de toda a humanidade, preocupa-se com a felicidade da pessoa, e é universalista, pois dirige-se a todos os indivíduos; a outra fala de história, da história dum grupo humano e do seu Deus, de Israel e do seu Deus. Acabam por se ligar: o cósmico serve de quadro para o outro. Por isso, o AT começa pelo Cosmos, pela Criação, capítulo 1.º. Chegamos ao capítulo 11. E, a partir do capítulo 12, estreita-se: Abraão. Vai afunilando e, da perspetiva cristã, chega o NT (Novo Testamento) e volta a alargar. É uma construção teológica que reúne dois sistemas religiosos. E, no atinente ao momento da junção dessas duas explicações, observou:
Já estava feita no século III antes da nossa era. E há muitos textos onde se vê claramente como foi feita. A visão cósmica era mais generalizada, era mais fundamental, fazia parte de uma visão próximo-oriental do mundo. Era comum e encontra-se em todos os povos semitas de então. A outra visão é mais particular, obviamente, uma vez que diz respeito a um grupo – e as suas primeiras manifestações datáveis, a meu ver, encontram-se em Oseias e são do século VIII a.C.”.
Sobre a datação os textos da Bíblia e, vista a intemporalidade dos sentimentos, discorreu:
É possível datar com alguma certeza uma boa parte dos escritos. Outros não. (…) São textos muito desligados de qualquer referência histórica, têm um conteúdo mais ou menos universal. Por exemplo, em certos salmos, quando uma pessoa se queixa de que sofre, poderia ser qualquer ser humano. Se não há referência a qualquer coisa de exterior que possa ajudar, é difícil de datar. Aí, estamos entregues a critérios linguísticos: o vocabulário que é usado, a sintaxe. Há critérios objetivos, mas não são absolutos.”.
E aponta que, ao invés do que fazemos hoje, em que distinguimos o texto e o comentário, na altura “o comentário entrava no texto e enriquecia-o, alargava-o, engordava-o”. E “fazia-se um novo texto, que, por sua vez, voltava a ser objeto de comentário, que por sua vez entrava no texto” (O texto foi sempre vivo até foi canonizado e ficou congelado)
Quanto à antiguidade dos textos referiu que o que está no início não é necessariamente mais antigo. Pelo menos alguns Provérbios são dos textos mais antigos da Bíblia. “Um texto que está perdido lá no meio de um livro que tem pouco interesse pode ser mais antigo e pode informar-nos muito mais sobre as coisas do ponto de vista histórico do que o relato que é dado em primeiro lugar”. Hoje, pensa-se que os textos mais antigos datáveis com alguma certeza são as partes mais antigas dos Livros Proféticos: Amós, Oseias, Isaías, Miqueias, Sofonias. No caso de Isaías, as partes mais antigas, que é preciso isolar, representarão menos de 5% do que hoje se encontra no Livro. E o trabalho de Frei Francolino era descobrir o itinerário desses textos, como se construíram, como apareceram, quando, por que razões, em que circunstâncias, a que respondiam e que pretendiam. E disse:
Temos duas edições do Livro de Jeremias. Uma dessas versões, conhecemo-la hoje essencialmente pelo texto grego, que é uma tradução da Bíblia que foi feita em Alexandria, no século II a.C., para os judeus de língua grega, que era a língua comum de então. A outra edição, mais longa, é o chamado texto massorético, que é o texto hebraico corrente. Contrariamente àquilo que se pode pensar, a versão em grego é a edição mais antiga. Isto é, o tradutor desse texto para grego usou uma edição do livro que era mais antiga do que aquela que temos atualmente em hebraico. O texto rabínico atual foi feito seis, sete, oito séculos mais tarde.”.
E explica a razão das muitas diferenças:
O texto hebraico primitivo – a matriz anterior, comum a ambos – não tinha vogais e o sentido das frases dependia da vocalização que se dava ao texto. Vocalizado de uma maneira, tinha um sentido, de outra, tinha outro. Ora, há casos onde os tradutores gregos do século III a.C. vocalizaram de uma maneira que faz com que o sentido seja completamente diferente do que os rabinos dariam séculos mais tarde.”.
Dando um exemplo de diferentes vocalizações, adiantou;
Há um texto do Livro de Isaías em que temos um par de palavras em hebraico que, segundo a vocalização que se adota, pode significar ‘Sol/Lua’ (um par perfeitamente coerente) ou ‘muralha/tijolo’. E justamente, enquanto o texto grego optou pela vocalização muralha/tijolo, os rabinos, mais tarde, optaram pela vocalização Sol/Lua. Por isso, a abordagem dos textos tem de ser feita com muita modéstia e com a consciência de que nem sempre é possível garantir a 100 por cento que o texto só tem um sentido.”.
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Uma entrevista: os Manuscritos do Mar Morto
Depois falou da importância dos Manuscritos do Mar Morto [rolos de pergaminho, com mais de 2000 anos, descobertos a partir de 1946 em várias grutas perto de Qumran, Israel] para estas pesquisas, vincando:
Um dos seus grandes contributos foi darem a conhecer melhor o que era o judaísmo entre o século II a.C. e o século I, (…) fase decisiva tanto para o nascimento do cristianismo como para a formação do judaísmo rabínico atual. (…) coisas que já se sabiam (…), mas que com os Manuscritos tiveram uma confirmação. O outro grande contributo foi a renovação do estudo da história do texto do AT. Não propriamente da sua produção, mas da transmissão, já nas etapas finais, de um texto que já está quase acabado mas que ainda está em evolução. Bruscamente tinham-se descoberto manuscritos que eram mil anos anteriores aos que tínhamos (até aí, os textos hebraicos mais antigos eram do século IX ou X da nossa era).”.  
Com a evidência dessa diversidade de textos, disse, “foi mais fácil tentar ver se havia famílias textuais, onde é que nasceram, quando e como é que os textos modernos que temos atualmente se constituíram, tanto no hebraico como no grego”. E “isso é muito complexo”. Trata-se duma “tradição extremamente diversificada, onde nunca se pode falar dum só texto nem de texto original” – “são cópias de cópias de cópias de cópias de cópias e o texto original ninguém sabe onde está, ninguém o viu”. E avançou:
A história da transmissão nas etapas finais tem indícios que nos podem ajudar a extrapolar para saber o que se passou antes. As técnicas são mais ou menos as mesmas e aqui também ajudam a compreender melhor o processo que levou à escrita e à formação desta biblioteca que é o Antigo Testamento. Porque é uma biblioteca, são dezenas de livros, não é só um.”.
E, face ao espanto da entrevistadora pelo uso do termo ‘biblioteca’, explanou:
Aliás, há uma confusão à volta do termo utilizado pelas civilizações ocidentais, que vem do grego. Em grego, Bíblia é um plural – ‘os livros’. Mas como a terminação ‘a’ é geralmente feminina e singular em latim e nas línguas que dele derivam, passou a pensar-se que aquilo era um livro e, de facto, nas versões modernas é apresentado num volume. Só que nunca pretendeu ser um livro, mas um volume que tem dezenas de livros. Diferentes! Portanto, é uma biblioteca no sentido estrito. A Bíblia é uma biblioteca pequena, mas que dá muito que falar.”.
À questão se Qumran era o repositório dessa biblioteca respondeu:
A hipótese tradicional é que vivia lá uma comunidade religiosa que tinha essa biblioteca. Mas nesse caso, não é muito provável que tivessem 15 ou 20 cópias dalguns livros. (…) Isso leva alguns a suspeitar que Qumran foi de facto um lugar onde comunidades diferentes, que viviam em lugares diferentes e que tinham cada qual o seu Livro, se puseram de acordo, num momento de perigo, devido à invasão romana, com a revolta judaica e a resposta romana, para esconder os seus manuscritos até que o perigo passasse e pudessem recuperá-los. Mas o perigo não passou e a biblioteca ficou.”.
E essas cópias eram diferentes. E Francolino Gonçalves explicou:
Hoje, com a imprensa, é fácil: fazem-se dez mil, 50 mil, 100 mil cópias de um livro e fica tudo igual. Ali, não. Os livros eram raros e a comunidade que tinha um era uma felizarda. E depois aparecia outro, mas com outra forma. Não havia a uniformidade de hoje.”.
Exemplificando como o caso do Livro de Jeremias, extremamente interessante, confessou:
Descobriram-se uns 5 ou 6 manuscritos do Livro de Jeremias em Qumran e há uns que confirmam o texto que temos atualmente em hebraico – o texto longo. Mas também há manuscritos que confirmam a existência do texto curto, que é o que temos em grego. Já existiam as duas edições! E não se excluíam uma à outra. Não se deitou fora a mais curta, não, guardou-se. E com certeza que havia uns que só liam uma e outros que só liam a outra. Tivemos assim a confirmação da existência, já naquela altura, de uma edição revista e aumentada – e provavelmente corrigida – e de outra que não tinha sido corrigida.”.
Que a mais curta não é versão abreviada da outra é explicado assim, de forma algo burlesca:
Não, essa é a visão tradicional, a explicação segundo a qual o tradutor grego de Jeremias, preguiçoso, terá resumido, abreviado, deixado cair bocados de aqui, bocados de além. Mas não funcionava muito bem, porque o tradutor também mudou a ordem dos textos. O exame dos textos já tinha levado um ou outro especialista a suspeitar que não era assim. Mas como é que se podia dizer que uma tradução era anterior àquilo que se supunha que, pelo facto de estar em hebraico, era o livro original?”.
E avisa que “dizer que se está em hebraico é anterior é um preconceito”.
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Uma entrevista: a interpretação da Bíblia
Quanto às leituras da Bíblia, há duas. Ele faz a histórico-crítica tentando situar os textos, sendo que o relato dos começos do Livro do Génesis é mítico, não em termos depreciativos. E explica:
O mito é provavelmente das formas mais sublimes que nós temos para expressar certas verdades, certas realidades – sobre a própria humanidade, sobre a relação da humanidade com o Cosmos e tudo isso. Mas aquilo que parece história é óbvio que é uma história criada. Pode haver – e há com certeza – certos acontecimentos históricos que estão por detrás, mas que se tornaram lendários e que são apresentados só pelo sentido religioso que têm. É um testemunho de fé e um testemunho de fé é partidário por definição. Portanto, faz parte dum relato que não é necessariamente histórico e que não pretende ser um relato objetivo.”.
Nem a já Igreja Católica defende a Bíblia como sendo uma realidade histórica, como defendeu.
Concedendo que há pessoas, nomeadamente os criacionistas, que interpretam a Bíblia à letra, observou:
Penso que isso vem duma espécie de medo perante a razão e duma preocupação em sacralizar as formas de expressão, que os impede de descobrir o sentido dessas expressões, a verdadeira mensagem que está por detrás. Fixam-se na materialidade do linguístico e do imagético e pensam que isso é canónico, normativo. E isso impede-os de aceder ao verdadeiro sentido dos relatos, à sua verdadeira mensagem.”.
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Uma entrevista: as imagens proféticas no Livro de Jeremias
Referindo que ia ter um seminário sobre as imagens proféticas no Livro de Jeremias, assegurou:
O Livro de Jeremias enxameia de profetas por todo o lado, mas há 5 ou 6 imagens de profetas, de tipos de profetas. Eu costumo dizer a brincar que o Livro de Jeremias é o ateliê onde se esculpiram ou se pintaram as imagens proféticas que povoam o nosso imaginário ocidental.”.
E, sobre os diferentes tipos de profetas, disse que havia “os profetas do passado, anteriores ao momento da escrita do livro”, todos bons, que constituíam dois grupos: os que anunciaram a ruína de grandes reinos e de países poderosos; e os que exortavam Israel à conversão. E “há os profetas do presente, que estão sempre associados aos sacerdotes”. E, ao invés do que que se pensa, não há oposição entre os sacerdotes e estes profetas: “formam um par constante e têm o Templo como lugar social”. Todos são maus e estão condenados a desaparecer pois “anunciam uma mensagem falsa e pretendem falar em nome de Deus, quando Deus nem sequer lhes falou”. E o insigne biblista considerou:
Há também muita gente que profetiza, mas que nunca é chamada profeta. E há o próprio Jeremias. São imagens diferentes, grupos, modelos diferentes que têm aparentemente lugares sociais diferentes, estão associados a grupos diferentes, com funções diferentes. Mas o que é extremamente interessante são as diferenças apreciáveis entre o texto grego e o texto hebraico.”.
E, para assinalar as diferenças, exemplificou:
No texto hebraico, Jeremias recebe 32 vezes o título de profeta. No texto grego, só quatro – e em dois textos bem identificados, bem definidos. Mas o mais engraçado é que há um capítulo (o 28 no texto hebraico e o 34 no texto grego, se não me engano) onde há uma disputa entre um senhor chamado Ananias e Jeremias. No texto hebraico, tanto Ananias como Jeremias recebem o título de profeta. Cada um seis vezes, de maneira absolutamente simétrica. Portanto, a disputa, no texto hebraico, massorético, é entre o profeta Ananias e o profeta Jeremias. Mas no texto grego, só Ananias recebe um título – de falso profeta.”.
Falso profeta é uma tradução, que aparece umas 7 ou 8 vezes, da palavra profeta em hebraico (navi). Mas o tradutor pensa que Ananias não é verdadeiro profeta e, portanto, chama-o falso profeta, pseudoprofeta o que significa que, “no texto hebraico que o tradutor grego usou, Ananias recebia o título de profeta, que o tradutor interpretou como o seu contrário”. A palavra que significasse falso profeta não podia constar do texto hebraico, “porque não existe correspondente em hebraico”: “em hebraico, só existe navi”. Há falsos profetas, “mas isso já exige uma perífrase do tipo que profetizou na mentira”. Não há, pois, uma palavra. “Portanto, só pode ser essa a explicação – até porque acontece várias vezes no livro de Jeremias e acontece uma vez no livro de Zacarias”. E, voltando a Ananias, o nosso Biblista considerou:
O que interessa ainda aqui é que só Ananias é que recebe um título. Jeremias ainda não tem título. Ele é Jeremias de Anatoth. (…) E, portanto, neste texto, a disputa é entre o profeta Ananias e Jeremias, que ainda não é nada!”.
Isto quer dizer “que Jeremias não era socialmente profeta”. E Frei Francolino explanou:
Foi feito profeta mais tarde e quando esse texto, que não é tão antigo como isso, foi composto, Jeremias ainda não era profeta. Só mais tarde é que passou a sê-lo, que foi declarado, foi reconhecido como tal. Porque ele passou toda a vida a dizer mal dos profetas! Só disse mal dos profetas! Neste texto, é engraçado, o Jeremias diz a certa altura ‘tu e o teu bando, vós os profetas!’. Portanto, isso supõe que, para o autor deste relato, Jeremias não é nem podia ser nem queria ser profeta. Mas depois, não só passou a sê-lo – passou a ser uma espécie de profeta por excelência, num processo que poderíamos chamar de canonização, de beatificação.”.
Isto, segundo o biblista, “está ligado a um processo de atribuição da supremacia absoluta à lei de Moisés sobre o profetismo” e “foi preciso promover também Moisés ao título de profeta, de mais do que profeta, de protótipo dos profetas, de quem está acima”. E Francolino rematou:
Penso que foi uma maneira, diríamos hoje, de submeter os profetas aos rabinos. Os profetas tornam-se repetidores de Moisés, para afastar a instituição de qualquer aventura, dar segurança, submeter tudo a uma norma precisa. Não venha um agora a dizer que viu, que lhe disseram, que Deus lhe disse e que teve uma revelação. Já está, há só um e é esse do passado.”.
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Concluindo
Já todos sabíamos que a interpretação literal da Bíblia aplicada a todos os textos é idiotice, tal como a alegada correspondência da antiguidade dos textos à ordem por que aparecem na bíblia atualmente, como sabíamos que a Bíblia é uma ausência biblioteca. Mas com os Manuscritos de Qumran tudo vem a confirmar-se, a consolidar-se e a ampliar-se o sentido da biblioteca e explicar melhor as diferenças das cópias. E fica a perceber-se como o livro de Jeremias é lugar-chave para o estudo do profetismo e seu alcance. Prosit!
 2019.12.30 – Louro de Carvalho

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