sábado, 21 de dezembro de 2019

Os desafios da migração implicam acolher, proteger, promover e integrar


É este o núcleo do apelo papal pelo Twitter no Dia Mundial dos Direitos dos Migrantes. E, se pusermos em prática estes ditames, diz o Santo Padre, “contribuiremos para a construção da cidade de Deus e do homem”.
Ora, falando de migrantes, deparamo-nos com muitas e diferentes situações, pelo que os especialistas recomendam um estudo sério e historicizado do fenómeno.
Neste sentido, Laura Terzera, demógrafa especialista em fluxos migratórios, em entrevista ao Vatican News, disse que se trata dum “fenómeno do qual não se pode fazer uma fotografia”, mas cuja história precisa de ser conhecida, bem como o contexto do país em que se está. Por outro lado, verifica a vantagem de a mobilidade poder ser estudada muito melhor agora através do passado porque, embora haja falta de dados, temos mais do que no passado. Com efeito, “temos uma forma de comunicação que é imediata e mais acessível a todos”, quando, por exemplo, a grande migração existente na viragem do século XIX para o século XX até à I Guerra Mundial era conhecida apenas de boca em boca. Todavia, como aponta, hoje constroem-se muito mais muros que no passado, pelo que a mobilidade se torna mais difícil, pois “o aumento das fronteiras deve-se, de alguma forma, ao facto de cada território parecer ter uma bandeira”.
Admitindo que, paralelamente ao fenómeno da migração, há o fenómeno de uma conflitualidade que, segundo dados da ONU, cresce em todo o mundo, a especialista explica:
As  conflitualidades levam a um certo tipo de movimento que é o movimento forçado, isto é, pessoas que não teriam optado por migrar, mas que o fizeram porque são forçadas, forçadas para sobreviver. Por isso, devem-se mover porque há fome, uma catástrofe natural, uma guerra, conflitos. É óbvio que essas são de alguma forma emergências. Então o aspeto da mobilidade económica, a mobilidade familiar é mais manejável, porque é mais programável. Isto, é claro, por sua definição é repentina, é uma emergência.”.
A respeito de migrantes e refugiados e tendo presente os que chegaram recentemente de Lesbos a Roma, o secretário-geral da ONU pediu, no passado dia 17 de dezembro, que seja defendido o direito de asilo que – explicou –, está sendo atacado num momento em que muitas fronteiras e portas estão sendo fechadas aos refugiados, até mesmo às crianças. De acordo com a agência das Nações Unidas para os refugiados, mais de 70 milhões de pessoas no mundo são obrigadas a fugir do seu próprio país. Um número sem precedentes. Entre as verdadeiras emergências, está a tragédia das detenções em campos como os da Líbia, para onde este ano foram reconduzidas cerca de 9.000 pessoas que tentaram atravessar o Mar Mediterrâneo em direção da Europa e onde a ONU denuncia “condições indizíveis”. Em geral, a tendência não é de acolhimento – lamenta António Guterres.      
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Na manhã do passado dia 19 de dezembro, no final das audiências, o Papa Francisco encontrou-se com refugiados de Lesbos recém-chegados a Roma com corredores humanitários sob a égide Cardeal Konrad Krajewski e da Comunidade de Sant’Egidio (que tiveram a oportunidade de verificar a dramática situação dos refugiados que vivem há meses naquela ilha grega em condições desumanas) e colocou uma cruz – no acesso ao Palácio Apostólico a partir do Pátio do Belvedere – em memória dos migrantes e refugiados.
A partir das colinas adjacentes, o campo de refugiados de Moria não parece ser o maior campo de Lesbos, que, junto com a aglomeração construída ao lado – tendas, chapas de metal, pouca água e quase nenhuma eletricidade – acolhe 14.000 migrantes dos 17.000 que existem atualmente naquela ilha grega. Poderia parecer uma espécie de vilarejo entre as oliveiras, se não fosse o facto de que, depois de se ter passado o arame farpado, se chega entre os refugiados e se percebe como as presenças triplicam e as condições humanitárias pioram drasticamente em relação a maio de 2019, quando o cardeal Konrad Krajewski foi como enviado do Papa a Lesbos para a sua primeira visita. Para 33 desses refugiados, graças ao Pontífice e à Comunidade de Sant’Egidio, bem como a um corredor humanitário dentro das fronteiras europeias, a vida mudará em breve.
Mas em Moria, um braço do mar da Turquia, ainda há afegãos, sírios, iraquianos e aumentaram também os africanos, especialmente somalis. Falam farsi, árabe, inglês e francês. Entre eles, encontra-se Said Mohammad, afegão da etnia hazara, historicamente perseguida na pátria, que declarou ao Vatican News:
O maior problema é a aglomeração, há muita gente que vive aqui em Moria. Quando há tantas pessoas, os serviços diminuem, com consequentes problemas de saúde e doenças. Especialmente para crianças e mulheres, é uma grande emergência. A segurança vem imediatamente depois. Há muitas famílias que vivem no meio do mato, em pequenas tendas: uma tenda torna-se a primeira casa das famílias. Faz muito frio aqui durante o inverno à noite, chove com muita frequência e quando uma pessoas encontra uma maneira de se aquecer, precisa de eletricidade. Mas o campo no mato está a expandir-se e, por esta razão, infelizmente, a corrente não chega a todos. E depois não há serviços, como banheiros e chuveiros.”.
Seguindo os passos do Papa, que foi a Lesbos em 2016, o Cardeal Krajewski, Esmoleiro apostólico, voltou a Moria em dezembro de 2019, com as temperaturas agora mais baixas, para ver pessoalmente a situação. Um sorriso, um aperto de mão, um terço de Francisco, uma pequena contribuição em dinheiro dada especialmente às mães com crianças pequenas, encontradas também no centro de recreação da ONG Team Humanity, onde neste período são distribuídos casacos e jaquetas. E conta o Cardeal Krajewski:
Quando estivemos aqui em maio, não havia todas estas tendas: disseram-nos que chegaram 200-300 pessoas durante a noite. Agora é necessária a boa vontade do governo para esvaziar estes ‘campos de concentração’. Entretanto, comecemos por tirar 33 pessoas deste campo e esperemos que toda a Igreja na Europa se abra desta forma, que todas as Conferências Episcopais convidem as pessoas a acolhê-las nas suas dioceses.”.
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Como se disse o Papa recebeu o grupo de 33 refugiados provindos de Lesbos, mas que ali chegaram do Afeganistão, Camarões e Togo. Desses 33 refugiados, 14 são memores e 10 são cristãos. Todos têm em comum “uma história de guerra, violência e pobreza”.
E, na sua alocução, Francisco apelou ao encerramento do centro de detenção de migrantes na Líbia, reafirmando que os refugiados são vítimas de injustiça.
Como memória desse encontro emergem dois coletes salva-vidas, que contam histórias reais. Um foi entregue ao papa Francisco há alguns anos por um grupo de socorristas – o colete estava no corpo de uma menina que se afogou no Mediterrâneo. O segundo, oferecido ao Papa Francisco por outro grupo de socorristas há alguns dias, pertencia a um migrante que perdeu a vida no mar em julho passado. Ninguém sabe quem ele era ou de onde veio.
Francisco disse ao grupo que tinha doado o primeiro dos coletes salva-vidas aos dois subsecretários da secção de migrantes e refugiados do Vaticano: “Esta é a sua missão”, disse, citado pelo Vatican News. O segundo colete foi colocado num crucifixo simbólico para lembrar os sofrimentos dos migrantes, com o Papa a explicar o seu significado espiritual:
Em Jesus Cristo, a cruz é uma fonte de salvação, ‘loucura para os que se perdem – diz São Paulo –, mas para os que se salvam, para nós, é a força de Deus’. Para os cristãos, a cruz é um símbolo de sofrimento e sacrifício e, ao mesmo tempo, de redenção e salvação. Este crucifixo serve para lembrar a todos o compromisso imperativo de salvar toda a vida humana, um dever moral que une os crentes e os não crentes.”.
Francisco apelou ao encerramento dos centros de detenção de migrantes na Líbia, nos quais, os futuros refugiados morrem lentamente de práticas “ignóbeis de tortura e escravatura”. Além disso, o Pontífice encorajou os resgates de migrantes no Mar Mediterrâneo e questionou:
Como podemos não ouvir o grito desesperado de tantos irmãos e irmãs que preferem arriscar os mares tempestuosos em vez de morrerem lentamente nos campos de detenção da Líbia, locais de tortura ignóbil e escravidão”.
O Pontífice, que tem feito da denúncia da situação dos refugiados um pilar do seu papado, exige que os países recebam e integrem aqueles que fogem de dificuldades e conflitos. Logo, em 2016, quando visitou um campo na ilha de Lesbos, trouxe de volta consigo, a bordo do avião em que viajou, um grupo de refugiados sírios para ser realojado em Itália.
O predito grupo de 33 refugiados foi acolhido em Roma pela Comunidade de Santo Egídio no dia 4, graças a um corredor humanitário acompanhado pelo cardeal Konrad Krajewski.  
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Eis, para que conste, a transcrição da pequena, mas emocionante alocução papal:
Este é o segundo colete salva-vidas que recebi de presente. O primeiro foi um grupo de socorristas que no deu. Pertencia a uma menina que se afogou no Mediterrâneo. Dei-o aos dois Subsecretários da Secção de Migrantes e Refugiados do Dicastério para o Serviço de Desenvolvimento Humano Integral. E disse-lhes: “Esta é a vossa missão!”. Com isto queria sublinhar o compromisso ineludível da Igreja de salvar a vida dos migrantes para depois serem acolhidos, protegidos, promovidos e integrados.
Estoutro colete, oferecido por um outro grupo de socorristas há uns dias, pertencia a um migrante que desapareceu no mar no passado mês de julho. Ninguém sabe quem era nem donde vinha. Só se sabe que o seu colete se encontrou à deriva no Mediterrâneo central a 3 de julho de 2019, em determinadas coordenadas geográficas. Deparamo-nos com outra morte causada pela injustiça. Sim, porque é a injustiça que obriga muitos migrantes a abandonar as suas terras. É a injustiça que o obriga a atravessar os desertos e a sofrer abusos e torturas nos campos de detenção. É a injustiça que os rejeita e os leva a morrer no mar.
O colete “veste” uma cruz de resina colorida, que quer exprimir a experiência espiritual que captei nas palavras dos socorristas. Em Jesus Cristo, a cruz é uma fonte de salvação, “tolice para os que estão perdidos”, diz São Paulo, “mas para os que se salvam”, para nós, “é a força de Deus” (1Cor 1,18). Na tradição cristã, a cruz é um símbolo de sofrimento e sacrifício e, ao mesmo tempo, de redenção e salvação.
Esta cruz é transparente: representa o desafio a olhá-la mais de perto e buscar sempre a verdade. A cruz é luminescente: quer encorajar a nossa fé na ressurreição, o triunfo de Cristo sobre a morte. Também o emigrante desconhecido, que morreu com a esperança de uma nova vida, compartilha esta vitória. Os socorristas contaram-me como estão a aprender humanidade com as pessoas que conseguem salvar. Revelaram-me como em cada missão redescobrem a beleza de ser grande a família humana, unida na fraternidade universal.
Decidi mostrar aqui este colete salva-vidas “crucificado” nesta cruz, para recordar que devemos ter os olhos abertos, o coração aberto, para lembrar a todos o compromisso imperativo de salvar toda a vida humana, um dever moral que une os crentes e os não crentes.
Como podemos deixar de escutar o grito desesperado de tantos irmãos e irmãs que preferem enfrentar um mar tempestuoso a morrer lentamente nos campos de detenção da Líbia, locais de tortura e ignóbil escravidão? Como podemos permanecer indiferentes aos abusos e à violência daqueles que são vítimas inocentes, deixando-os à mercê de traficantes sem escrúpulos? Como nos podemos “desviar”, como o sacerdote e o levita da parábola do bom samaritano (cf Lc 10,31-32), tornando-nos responsáveis pelas suas mortes? A nossa preguiça é pecado!
Agradeço ao Senhor por todos aqueles que decidiram não ficar indiferentes e se esforçam por ajudar os infelizes, sem fazerem muitas perguntas sobre como ou porque encontraram aquele pobre meio morto no caminho. O problema não se resolve bloqueando os navios. Devemos, antes, comprometer-nos seriamente a esvaziar os campos de detenção na Líbia, avaliando e aplicando todas as soluções possíveis. Devemos denunciar e perseguir os traficantes que exploram e maltratam os migrantes, sem medo de revelar conluio e cumplicidade com as instituições. Os interesses económicos devem ser deixados de lado para que a pessoa, cada pessoa cuja vida e dignidade são preciosas aos olhos de Deus, esteja no centro. Devemos socorrer e salvar, porque somos todos responsáveis ​​pela vida do nosso próximo, e o Senhor nos pedirá que demos conta disso no dia do juízo. Obrigado.
Agora, olhando para este colete e olhando para a cruz, cada um ore em silêncio. O Senhor vos abençoe a todos.
2019.12.21 – Louro de Carvalho

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