domingo, 29 de dezembro de 2019

Comboios debaixo de água e outras mazelas ferroviárias


As cheias e inundações dos dias que precederam a quadra natalícia puseram a nu muitas debilidades e deficiências do nosso ordenamento do território um pouco por todo o país. Uns destacaram as avarias na rede elétrica; outros sublinharam a queda de árvores e de postes ou o aluimento de terras; pelo menos o município de Montemor-o-Velho teve que se haver com largas dezenas de famílias desalojadas; criaram-se lençóis de água nas estradas e veículos planaram; houve mortes a lamentar; e alguns rios e ribeiros galgaram as margens.    
A Ordem dos Engenheiros Portugueses, em conferência de imprensa, descobriu a careca governamental pela supressão da execução do plano nacional de barragens elaborado no tempo de Sócrates, com as consequências que os especialistas em hidráulica e recursos hídricos evidenciaram.  
Entretanto, Daniel Deusdado, a 27 de dezembro, escreveu no DN, um texto que pode ser considerado modelar sobre o estado de degradação da nossa ferrovia. Sigo-o em parte.
Diz o colunista que passou uma semana, mas não vai ser esquecido por enquanto, talvez só nas eleições legislativas de 2023, digo eu, “o dia mais crítico do ano para quem sai de Lisboa rumo ao Norte”, que é a sexta-feira antes do Natal. Ora, pura e simplesmente “não houve comboios”, sendo que “já no dia anterior tinha havido cancelamentos e os Alfa Pendular e Intercidades só voltaram a circular na tarde de domingo, dia 22. Assim, em 2019, “a principal linha ferroviária do país, a Linha do Norte, continua à mercê das cheias de Alfarelos ou do Vale do Tejo, depois de tantos milhões gastos. É a asserção que eu profiro e que Deusdado colocou sob a forma de questão. E constata o articulista que, ao invés do que se passa nos diversos países europeus (talvez excetuando os do Leste), entre as duas principais cidades temos uma linha excessivamente permeável a acidentes naturais e sem duplicação de vias para poderem circularem por ali os comboios suburbanos e regionais, de percursos mais curtos e a velocidade mais baixa, sendo a exceção o troço Azambuja-Lisboa, os últimos (ou primeiros) quilómetros do trajeto.
Isto revela que os gastos feitos com a dita modernização da Linha do Norte foram feitos a esmo, sem estudo sério das necessidades e sem o devido planeamento, mostrando ainda o desinvestimento crónico na ferrovia em benefício da rodovia com vias rápidas e autoestradas sem dúvida necessárias, mas sem se cuidar da segurança e manutenção das existentes, como foi verificado com a história das pedreiras e agora se vê no IP3.
As vias férreas têm sido o parente paupérrimo das vias de comunicação. Depois de os primeiros governos constitucionais terem dado um sinal de que pretendiam a otimização da Linha do Norte – até veio aqui um quadro técnico francês dizer como se devia atuar – os sucessivos executivos entretiveram-se a suprimir quase todas as linhas férreas de bitola estreita, tendo ficado só um troço da Linha do Vouga. E a degradação instalou-se e está para durar. 
E o problema da Linha do Norte não passa apenas pelas esporádicas cheias. Aponta Deusdado que o Alfa, até 2018, já foi mais rápido entre Campanha e a Gare do Oriente – 2,35 horas. Entretanto, desde há dois anos, passou a demorar mais 10 minutos por condições precárias no troço Ovar-Porto. E hoje leva o mesmo tempo a fazer a viagem que demorava o Foguete da década de 70, isto é, quase três horas.
E tudo sucede com a possibilidade, entre 2000 e 2010, de se construírem linhas novas, pagas a 85% por fundos comunitários, o que Portugal não quis aproveitar. Ora, se Braga e Faro ficassem a três horas de distância, estaríamos a viver noutro país. E o mesmo se deve dizer de Lisboa e Porto estarem apenas a 1,15 horas de viagem.
A sigla TGV é maldita depois da retórica absurda que se tornou central na campanha eleitoral de 2009 entre Sócrates e Manuela Ferreira Leite/Paulo Portas, cheia de incoerências. Ferreira Leite, quando Ministra das Finanças do Governo de Durão Barroso, deixou desenhar um mapa com cinco linhas de Alta Velocidade e Sócrates reduziu para três segundo o desenho do Π (Pi) deitado: Lisboa-Madrid, Aveiro-Salamanca e Faro-Vigo (ou ao menos Lisboa-Porto).
Deusdado admite que, para Sócrates, “tudo se tornava numa odisseia porque as suas decisões tinham muitas vezes objetivos pouco racionais”. Por exemplo, os estudos efetuados na RAVE (Rede de Alta Velocidade) apontavam que a linha Lisboa-Porto tinha mais do dobro dos passageiros e da rentabilidade que a linha Lisboa-Madrid. Mas o governante insistiu nesta última e assinou o contrato da adjudicação do primeiro troço (Poceirão-Caia), quando já se sabia que o dinheiro tinha acabado. Ora, se eu me pergunto porque é que tinha acabado o dinheiro, a resposta está na falta de confiança do e no sistema bancário, que – não o esqueçamos – se tinha chegado à frente, mas ficou abananado com a crise de 2008 e teve de correr ao pote de 12 mil milhões da troika.
Era, pois, como discorre o colunista, muito fácil ser-se contra o “Ferrari” da ferrovia quando, o que se devia discutir era se a “estrada nacional” ferroviária com 150 anos, que a é a linha Lisboa-Porto, poderia ser melhorada ou duplicada para passar a ter o perfil de “autoestrada”, onde até os Alfas podiam andar a 200 Km/h durante a viagem inteira e não apenas durante 25 minutos, como atualmente. Ninguém é contra a velocidade máxima do Alfa, mas muitos, por interesse e comodismo reacionário, são contra a modernização, levantamento (nos troços mais permeáveis a cheias) e duplicação da linha.
Ligar melhor as várias cidades a Lisboa é decisivo num país tão centralista ao ponto de não haver comboios com tempo de viagem decente. Há uma indiferença política face à vida difícil da multidão de “proletários dos serviços” que rumam todas as semanas à capital para subir na escala de valor dos salários. Depois, é preciso mudar quanto antes a bitola nacional, dita ibérica, da via larga (a via estreita já é residual) para a bitola europeia; cuidar da manutenção e segurança das vias; fazer vistorias frequentes do leito e margens (não é tolerável que um comboio bata contra uma pedra ou esbata num aluimento de terras ou desenrocamento de um muro); e fazer aquisição de novo material circulante e manutenção do antigo. Segurança e conforto exigem-se.
Este ostracismo pela ferrovia mais competitiva não sucedeu em Espanha – observa Deusdado, que anota apoiado em números:
Madrid e Barcelona estão separados por 620 quilómetros, mas a viagem dura as mesmas três horas que a Lisboa-Porto. O mesmo se passa com o Madrid-Sevilha (530 quilómetros) e são igualmente três horas – esta linha já existe desde 1992...!”.
O articulista prossegue no seu raciocínio:
Além disso, Portugal está numa enorme encruzilhada porque, ao não ter linhas de bitola europeia e ao não conseguir exportar por ferrovia, está à mercê das restrições cada vez maiores para os camiões de mercadorias TIR nas autoestradas francesas e alemãs, etc. No dia em que a França bloquear o número de camiões a circular, vamos ver como continuamos a exportar. É verdade que o transporte marítimo é até mais barato, mas infinitamente mais lento e impossível de compatibilizar com o “just-in-time” de muitas das indústrias que não fazem stock.”.
E garante que só a ferrovia assegurará o escoamento das exportações das portuguesas, pois há milhares de PME a despachar volumes pequenos para os seus micromercados na Europa.
Além disso, Deusdado critica a rede móvel de telecomunicações. Diz ter passado anos a viajar de Alfa e sabe que não há uma rede de telemóvel (voz) fiável: os dados caem a cada passo. Depois, os atrasos são quotidianos; muito frequentemente, em qualquer dia, os bilhetes estão esgotados nas horas de maior afluxo; a CP, quase falida, esteve impedida de comprar mais comboios e continua a esticar os 12 Alfas ao limite. Quando um deles se avaria e um outro está na manutenção, é o caos; e o mesmo se passa com os Intercidades.
Para uma estratégia de descarbonização, Deusdado alvitra como fundamental o investimento em metropolitanos nas cidades e diz que ter uma nova linha ferroviária Lisboa-Porto representa a recuperação de 40 anos de atraso, bem como servir melhor as populações do Intercidades. E, quanto à necessidade de bitola europeia até Espanha, para assegurar o futuro das nossas exportações, enquanto a ligação tiver de ser única, diz que não pode ser via Badajoz porque a nossa indústria exportadora está a norte, o que Sócrates e Mário Lino nunca perceberam. E Passos Coelho também não o percebeu, digo eu, quando fez equacionar o projeto duma linha de velocidade qualificada de Sines para Barcelona. Tudo ficou remetido para as calendas gregas!
E o colunista interroga-se: Conseguimos passar a ser um país de primeiro mundo ferroviário até 2029? E verifica:
O Alfa nunca fará Porto-Lisboa em 1,30 horas. O AVE faz os cerca de 600 km de Madrid a Barcelona em cerca de 3 horas, ou seja, a uma velocidade média de cerca de 200km/h. Portanto o Pendular com uma velocidade máxima de 220 km/h não fará certamente médias superiores a 160 km/h e, portanto, levará cerca de 2 horas. Será adequado? Julgo que sim comparando com os tempos da concorrência: avião, automóvel ou autocarro. Mas para tal não poderá utilizar a mesma linha que os suburbanos, regionais ou mercadorias com velocidades muito mais baixas.”.
Concordando com o raciocínio desenvolvido até aqui, a que apus bastantes anotações, não me revejo na asserção de que “Falar no TGV é pura perda de tempo”. Concedo que é necessário tirar o máximo partido dos tipos de comboios que já existem, mas não é suficiente. Pelo menos uma linha de TGV, algures de Aveiro a Salamanca ou a Madrid, é conveniente para passageiros e mercadorias. Até porque uma linha é mais fácil de construir do que regularizar a bitola europeia em todas ao mesmo tempo, tendo em conta que, além disso, será necessário levantar o leito em diversos percursos, duplicar e adquirir material circulante e equipamento de vigilância.  
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O Conselho de Ministros (CM) aprovou, a 19 de dezembro, o decreto-lei que procede à fusão entre a CP – Comboios de Portugal e a EMEF – Empresa de Manutenção de Equipamento Ferroviário. Esta fusão resulta da incorporação da EMEF na CP para reforçar a capacidade operacional e funcional da principal operadora nacional de transporte ferroviário de passageiros.
Neste quadro, diz o respetivo comunicado do CM, “a fusão é uma medida de reorganização que visa garantir a normalização e o reforço da qualidade do serviço público prestado pela CP, tendo por base linhas sólidas de gestão integrada – para a atividade de transporte e para a atividade central de suporte que é a de manutenção e reparação –, com ganhos de qualidade, eficiência e racionalidade, permitindo melhor afetação de recursos, eliminando redundâncias e condicionamentos decorrentes da atual tipologia de organização.
Não iremos ter comboios avariados por muito tempo? Podemos respirar segurança e conforto nas linhas férreas e nas carruagens? E para quando a aquisição de material circulante, melhoria da rede móvel de comunicações. Para quando a otimização da rede ferroviária?
O bem-estar das populações e a dignidade das pessoas também passam por aqui!
2019.12.29 – Louro de Carvalho 

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