As cheias e
inundações dos dias que precederam a quadra natalícia puseram a nu muitas
debilidades e deficiências do nosso ordenamento do território um pouco por todo
o país. Uns destacaram as avarias na rede elétrica; outros sublinharam a queda
de árvores e de postes ou o aluimento de terras; pelo menos o município de Montemor-o-Velho
teve que se haver com largas dezenas de famílias desalojadas; criaram-se
lençóis de água nas estradas e veículos planaram; houve mortes a lamentar; e
alguns rios e ribeiros galgaram as margens.
A Ordem dos Engenheiros Portugueses, em conferência de imprensa,
descobriu a careca governamental pela supressão da execução do plano nacional
de barragens elaborado no tempo de Sócrates, com as consequências que os
especialistas em hidráulica e recursos hídricos evidenciaram.
Entretanto, Daniel Deusdado, a 27 de dezembro, escreveu no DN, um texto que pode ser considerado
modelar sobre o estado de degradação da nossa ferrovia. Sigo-o em parte.
Diz o colunista que passou uma semana, mas não vai ser esquecido por
enquanto, talvez só nas eleições legislativas de 2023, digo eu, “o dia mais crítico do ano para quem sai de Lisboa rumo
ao Norte”, que é a sexta-feira antes do Natal. Ora, pura e simplesmente “não
houve comboios”, sendo que “já no dia anterior tinha havido cancelamentos e os
Alfa Pendular e Intercidades só voltaram a circular na tarde de domingo, dia
22. Assim, em 2019, “a principal linha ferroviária do país, a Linha do Norte,
continua à mercê das cheias de Alfarelos ou do Vale do Tejo, depois de tantos
milhões gastos. É a asserção que eu profiro e que Deusdado colocou sob a forma
de questão. E constata o articulista que, ao invés do que se passa nos diversos
países europeus (talvez excetuando os do Leste), entre as duas principais cidades temos uma linha
excessivamente permeável a acidentes naturais e sem duplicação de vias para
poderem circularem por ali os comboios suburbanos e regionais, de percursos
mais curtos e a velocidade mais baixa, sendo a exceção o troço Azambuja-Lisboa,
os últimos (ou primeiros) quilómetros
do trajeto.
Isto revela
que os gastos feitos com a dita modernização da Linha do Norte foram feitos a
esmo, sem estudo sério das necessidades e sem o devido planeamento, mostrando
ainda o desinvestimento crónico na ferrovia em benefício da rodovia com vias
rápidas e autoestradas sem dúvida necessárias, mas sem se cuidar da segurança e
manutenção das existentes, como foi verificado com a história das pedreiras e
agora se vê no IP3.
As vias
férreas têm sido o parente paupérrimo das vias de comunicação. Depois de os
primeiros governos constitucionais terem dado um sinal de que pretendiam a
otimização da Linha do Norte – até veio aqui um quadro técnico francês dizer
como se devia atuar – os sucessivos executivos entretiveram-se a suprimir quase
todas as linhas férreas de bitola estreita, tendo ficado só um troço da Linha
do Vouga. E a degradação instalou-se e está para durar.
E o problema
da Linha do Norte não passa apenas pelas esporádicas cheias. Aponta Deusdado
que o Alfa, até 2018, já foi mais rápido entre Campanha e a Gare do Oriente – 2,35
horas. Entretanto, desde há dois anos, passou a demorar mais 10 minutos por
condições precárias no troço Ovar-Porto. E hoje leva o mesmo tempo a fazer a
viagem que demorava o Foguete da década de 70, isto é, quase três horas.
E tudo
sucede com a possibilidade, entre 2000 e 2010, de se construírem linhas novas,
pagas a 85% por fundos comunitários, o que Portugal não quis aproveitar. Ora,
se Braga e Faro ficassem a três horas de distância, estaríamos a viver noutro
país. E o mesmo se deve
dizer de Lisboa e Porto estarem apenas a 1,15 horas de viagem.
A sigla TGV é
maldita depois da retórica absurda que se tornou central na campanha eleitoral
de 2009 entre Sócrates e Manuela Ferreira Leite/Paulo Portas, cheia de
incoerências. Ferreira Leite, quando Ministra das Finanças do Governo de Durão Barroso,
deixou desenhar um mapa com cinco linhas de Alta Velocidade e Sócrates reduziu
para três segundo o desenho do Π (Pi) deitado: Lisboa-Madrid, Aveiro-Salamanca e Faro-Vigo
(ou ao menos
Lisboa-Porto).
Deusdado
admite que, para Sócrates, “tudo se tornava numa odisseia porque as suas
decisões tinham muitas vezes objetivos pouco racionais”. Por exemplo, os
estudos efetuados na RAVE (Rede de Alta Velocidade) apontavam que a linha Lisboa-Porto tinha mais do
dobro dos passageiros e da rentabilidade que a linha Lisboa-Madrid. Mas o
governante insistiu nesta última e assinou o contrato da adjudicação do
primeiro troço (Poceirão-Caia), quando já se
sabia que o dinheiro tinha acabado. Ora, se eu me pergunto porque é que tinha
acabado o dinheiro, a resposta está na falta de confiança do e no sistema
bancário, que – não o esqueçamos – se tinha chegado à frente, mas ficou
abananado com a crise de 2008 e teve de correr ao pote de 12 mil milhões da troika.
Era, pois, como
discorre o colunista, muito fácil ser-se contra o “Ferrari” da ferrovia quando,
o que se devia discutir era se a “estrada nacional” ferroviária com 150 anos,
que a é a linha Lisboa-Porto, poderia ser melhorada ou duplicada para passar a
ter o perfil de “autoestrada”, onde até os Alfas podiam andar a 200 Km/h
durante a viagem inteira e não apenas durante 25 minutos, como atualmente.
Ninguém é contra a velocidade máxima do Alfa, mas muitos, por interesse e
comodismo reacionário, são contra a modernização, levantamento (nos troços
mais permeáveis a cheias) e
duplicação da linha.
Ligar melhor
as várias cidades a Lisboa é decisivo num país tão centralista ao ponto de não
haver comboios com tempo de viagem decente. Há uma indiferença política face à
vida difícil da multidão de “proletários dos serviços” que rumam todas as
semanas à capital para subir na escala de valor dos salários. Depois, é preciso
mudar quanto antes a bitola nacional, dita ibérica, da via larga (a via
estreita já é residual) para a
bitola europeia; cuidar da manutenção e segurança das vias; fazer vistorias
frequentes do leito e margens (não é tolerável que um comboio bata contra uma pedra
ou esbata num aluimento de terras ou desenrocamento de um muro); e fazer aquisição de novo material circulante e
manutenção do antigo. Segurança e conforto exigem-se.
Este
ostracismo pela ferrovia mais competitiva não sucedeu em Espanha – observa
Deusdado, que anota apoiado em números:
“Madrid e Barcelona estão separados por 620 quilómetros, mas a viagem
dura as mesmas três horas que a Lisboa-Porto. O mesmo se passa com o
Madrid-Sevilha (530 quilómetros) e são igualmente três horas – esta linha já
existe desde 1992...!”.
O
articulista prossegue no seu raciocínio:
“Além disso, Portugal está numa enorme encruzilhada porque, ao não ter
linhas de bitola europeia e ao não conseguir exportar por ferrovia, está à
mercê das restrições cada vez maiores para os camiões de mercadorias TIR nas
autoestradas francesas e alemãs, etc. No
dia em que a França bloquear o número de camiões a circular, vamos ver como
continuamos a exportar. É verdade que o transporte marítimo é até mais barato,
mas infinitamente mais lento e impossível de compatibilizar com o “just-in-time”
de muitas das indústrias que não fazem stock.”.
E garante
que só a ferrovia assegurará o escoamento das exportações das portuguesas, pois
há milhares de PME a despachar volumes pequenos para os seus micromercados na
Europa.
Além disso,
Deusdado critica a rede móvel de telecomunicações. Diz ter passado anos a
viajar de Alfa e sabe que não há uma rede de telemóvel (voz) fiável: os dados caem a cada passo. Depois, os
atrasos são quotidianos; muito frequentemente, em qualquer dia, os bilhetes
estão esgotados nas horas de maior afluxo; a CP, quase falida, esteve impedida
de comprar mais comboios e continua a esticar os 12 Alfas ao limite. Quando um
deles se avaria e um outro está na manutenção, é o caos; e o mesmo se passa com
os Intercidades.
Para uma
estratégia de descarbonização, Deusdado alvitra como fundamental o investimento
em metropolitanos nas cidades e diz que ter uma nova linha ferroviária Lisboa-Porto
representa a recuperação de 40 anos de atraso, bem como servir melhor as
populações do Intercidades. E, quanto à necessidade de bitola europeia até
Espanha, para assegurar o futuro das nossas exportações, enquanto a ligação
tiver de ser única, diz que não pode ser via Badajoz porque a nossa indústria
exportadora está a norte, o que Sócrates e Mário Lino nunca perceberam. E
Passos Coelho também não o percebeu, digo eu, quando fez equacionar o projeto
duma linha de velocidade qualificada de Sines para Barcelona. Tudo ficou remetido
para as calendas gregas!
E o
colunista interroga-se: Conseguimos
passar a ser um país de primeiro mundo ferroviário até 2029? E verifica:
“O Alfa nunca fará Porto-Lisboa em 1,30 horas. O AVE faz os cerca de 600
km de Madrid a Barcelona em cerca de 3 horas, ou seja, a uma velocidade média
de cerca de 200km/h. Portanto o Pendular com uma velocidade máxima de 220 km/h
não fará certamente médias superiores a 160 km/h e, portanto, levará cerca de 2
horas. Será adequado? Julgo que sim comparando com os tempos da concorrência:
avião, automóvel ou autocarro. Mas para tal não poderá utilizar a mesma linha
que os suburbanos, regionais ou mercadorias com velocidades muito mais baixas.”.
Concordando
com o raciocínio desenvolvido até aqui, a que apus bastantes anotações, não me
revejo na asserção de que “Falar no TGV é
pura perda de tempo”. Concedo que é necessário tirar o máximo partido dos
tipos de comboios que já existem, mas não é suficiente. Pelo menos uma linha de
TGV, algures de Aveiro a Salamanca ou a Madrid, é conveniente para passageiros
e mercadorias. Até porque uma linha é mais fácil de construir do que
regularizar a bitola europeia em todas ao mesmo tempo, tendo em conta que, além
disso, será necessário levantar o leito em diversos percursos, duplicar e
adquirir material circulante e equipamento de vigilância.
+++
O Conselho
de Ministros (CM) aprovou, a 19 de dezembro, o
decreto-lei que procede à fusão entre a CP – Comboios de Portugal e a EMEF –
Empresa de Manutenção de Equipamento Ferroviário. Esta fusão resulta da
incorporação da EMEF na CP para reforçar a capacidade operacional e funcional
da principal operadora nacional de transporte ferroviário de passageiros.
Neste
quadro, diz o respetivo comunicado do CM, “a fusão é uma medida de
reorganização que visa garantir a normalização e o reforço da qualidade do
serviço público prestado pela CP, tendo por base linhas sólidas de gestão
integrada – para a atividade de transporte e para a atividade central de
suporte que é a de manutenção e reparação –, com ganhos de qualidade,
eficiência e racionalidade, permitindo melhor afetação de recursos, eliminando
redundâncias e condicionamentos decorrentes da atual tipologia de organização.
Não iremos
ter comboios avariados por muito tempo? Podemos respirar segurança e conforto
nas linhas férreas e nas carruagens? E para quando a aquisição de material
circulante, melhoria da rede móvel de comunicações. Para quando a otimização da
rede ferroviária?
O bem-estar
das populações e a dignidade das pessoas também passam por aqui!
2019.12.29 –
Louro de Carvalho
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