segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Em torno de um pequeno catecismo do Concílio Vaticano II –III

Vem agora ao caso a verificação do que os detratores do Vaticano II contestam e querem rejeitar, pelo que se impõe uma reflexão que leve a um discernimento consistente.
Terceira Parte
Retomando as questões mais contestadas,
37- Sobre a liberdade religiosa, dizem que uma das consequências da liberdade religiosa proclamada pelo Vaticano II é a obrigação de os Estados católicos terem de mudar a sua Constituição Política. Sendo assim, da liberdade religiosa resultou a laicização do Estado e a crescente descristianização da sociedade. Concedendo (melhor, reconhecendo) os mesmos direitos aos erros, a verdadeira fé desaparece mais facilmente. O homem que, por sua natureza decaída, segue a via mais fácil, necessita da ajuda das instituições católicas. Numa sociedade marcada pela fé católica, muito mais homens salvariam a alma do que numa sociedade em que a religião é um negócio privado e a verdadeira Igreja deve existir a par das inumeráveis seitas, que possuem os mesmos direitos que Ela (confundem igrejas/comunidades com seitas…).
- Esquecem os autores de tal arrazoado que o Cristo do Evangelho não mandou os discípulos fazer o apostolado da espada obrigando os poderes (políticos, económicos e financeiros) a facilitar o terreno para se prestar o devido culto a Deus. Disse-lhes, sim que fossem por todo o mundo e fizessem discípulos entre todas as nações, batizando em nome do Pai, do filho e do Espírito Santo e ensinando-os a cumprir tudo quanto Ele mandou, garantindo a sua presença junto dos missionários até ao fim dos tempos (cf Mt 28,19-20). Não lhes mandou silenciar os outros nem elaborar constituições políticas e leis favoráveis.
- É certo que Marcos refere sinais e prodígios que acompanharão a pregação missionária (cf Mc 16,17-18), mas eles não violentarão os destinatários da pregação apostólica. Ademais, Jesus advertiu que os mandava como ovelhas para o meio de lobos, que seriam perseguidos, pois, o discípulo não é mais que o Mestre (cf Mt 10,16ss; 16,24).
38- No concernente ao ecumenismo, apontam como consequências a indiferença religiosa e a ruína das missões.  Deduzem que, se alguém se pode salvar em qualquer religião, não tem sentido o apostolado missionário, podendo recusar-se receber na Igreja convertidos de outras religiões, que, entretanto, queiram tornar-se católicos. A atividade missionária reduz-se a ajuda social, sendo que isto contradiz a ordem do Senhor: “Ide, ensinai a todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.” (Mt 28,19).  
- Como vimos, a verdadeira missão exige fidelidade ao mandato, empenhamento apostólico, mas também respeito pelos destinatários. E os factos desdizem os pressupostos dos detratores: a pregação da missão reforça-se e o sentido missionário, se não galvaniza os tradicionalmente vocacionados, desperta interesse e paixão intensa em muitos, mesmo a nível temporário.
- Julgam o ecumenismo, tal como pregado pelo Vaticano II, não como exigência da caridade fraterna, mas um “crime” cometido contra esta (Esta é demais). O verdadeiro amor exige, com efeito, que se deseje e se faça o bem ao próximo. Em matéria religiosa, isso quererá dizer conduzir o próximo à Verdade. Entendem – e bem – como sinal de verdadeiro amor o que dão os missionários, ao abandonar pátria e amigos para pregarem Cristo em país estrangeiro, em meio de perigos e fadigas indizíveis. Acentuam que muitos deram a própria vida, abatidos por doenças ou pela violência. Mas esquecem a dignidade humana canta no Salmo 8. E não são razoáveis ao dizerem que o ecumenismo deixa os homens em suas falsas religiões e mesmo nelas os endurece, que os abandona ao erro e ao imenso perigo da condenação. Acusam esta atitude de mais confortável do que o apostolado missionário, mas também de preguiça, indiferença e respeito humano. Assemelham os teólogos ecuménicos a médicos que estimulam uma pessoa gravemente doente em suas ilusões, em vez de a advertirem sobre a gravidade do seu estado e de a curarem. Talvez fizessem bem em reler todo o decreto Ad Gentes para se aperceberem de que a causa missionária, na sua vivência, ação e solidariedade, longe de enfraquecer, pelo menos ao nível da doutrina e da diretriz, se aninha no seio da comunidade e não só dos especificamente enviados, mobiliza todos os bispos e tem em vista outras vertentes, como a implantação de igrejas nos locais ditos de missão e entrega da gestão progressiva das Igrejas ao clero local e, ainda, o apelo de missionários a partir dos países ditos de missão a partirem em missão a outras paragens (incluindo os da velha cristandade, carentes de novo fulgor cristão), não sendo os lugares de missão meros recetores. Transcrevem-se do decreto Ad Gentes, a título de exemplo, dois segmentos que mostram o profundo interesse da ação missionária, decorrente da catolicidade e do mandato,
“A Igreja, enviada por Deus a todas as gentes para ser ‘sacramento universal de salvação’, por íntima exigência da própria catolicidade, obedecendo a um mandato do seu fundador, procura incansavelmente anunciar o Evangelho a todos os homens. Já os próprios Apóstolos em que a Igreja se alicerça, seguindo o exemplo de Cristo, ‘pregaram a palavra da verdade e geraram as igrejas’.
Aos seus sucessores compete perpetuar esta obra, para que ‘a palavra de Deus se propague rapidamente e seja glorificada (2Ts 3,1), e o reino de Deus seja pregado e estabelecido em toda a terra. No estado atual das coisas, de que surgem novas condições para a humanidade, a Igreja, que é sal da terra e luz do mundo, é com mais urgência chamada a salvar e a renovar toda a criatura, para que tudo seja instaurado em Cristo e n'Ele os homens constituam uma só família e um só Povo de Deus. (AG,1).

Onde é que está a divergência em relação à doutrina tradicional? Depois, vem o empenhamento dos padres conciliares e a sua fé na oração missionária de todos:
“Os Padres do Concílio, em união com o Romano Pontífice, sentindo vivamente a obrigação de difundir por toda a parte o reino de Deus, saúdam muito afetuosamente todos os pregadores do Evangelho, sobretudo aqueles que sofrem perseguição pelo nome de Cristo, e associam-se aos seus sofrimentos. Também eles se sentem inflamados do mesmo amor em que Cristo ardia pelos homens. Mas, conscientes de que Deus é quem faz com que o seu reino venha ao mundo, unem as suas preces às de todos os cristãos para que, por intercessão da Virgem Maria, Rainha dos Apóstolos, as nações sejam quanto antes conduzidas ao conhecimento da verdade e a glória de Deus, que resplandece no rosto de Jesus Cristo, comece a brilhar para todos pelo Espírito Santo” (AG,42).

 39- Sobre a colegialidade episcopal, entendem que o seu princípio lesa o exercício pessoal da autoridade. O papa e os bispos são convidados a dirigir a Igreja em comum, de modo colegial. Em consequência, o bispo só é chefe da sua diocese, na teoria; mas, na prática, está ligado, ao menos moralmente, às decisões da Conferencia Episcopal, dos Conselhos Presbiterais e das diferentes assembleias. Até Roma não ousa afirmar-se diante das Constituições Episcopais; cede frequentemente às suas pressões – dizem os saudosistas irredutíveis da autoridade papal absoluta, provavelmente querendo ter via mais aberta para a influenciarem e levá-la a determinar o que eles quereriam. Aproximam o princípio da colegialidade episcopal do modo como os  cismáticos orientais concebem a autoridade na Igreja e veem nele a influência da ideia de igualdade propagada por Jean-Jacques Rousseau e pela Revolução Francesa, que negava a existência duma autoridade desejada por Deus e atribuía todo o poder ao povo, em oposição ao ensinamento da Escritura:
“Que cada um se submeta às autoridades instituídas. Pois não há autoridade que não venha de Deus. Tanto é assim que aquele que resiste à autoridade rebela-se contra a ordem estabelecida por Deus” (Rm 13,1-2).

- Para lá do que foi dito anteriormente sobre a colegialidade, note-se que tão genuína é a passagem do Evangelho de João, segundo a qual Jesus confia a Pedro a apascentação de seus cordeiros e suas ovelhas (cf Jo 21,15-23) e a entrega das chaves ao mesmo Pedro (cf Mt 16,17-19), como o poder de ligar e desligar na Terra com consequências no céu entregue aos apóstolos (cf Mt 18,18) e aquele “quem vos ouve a Mim ouve…” (Lc 10,16-26). Depois, vem a colegialidade definida pelo próprio Concílio – vd LG, nota prévia, que, a seguir se condensa:
Colégio não se entende no sentido de grupo de iguais, que delegam o poder em quem preside; mas no de grupo estável, cuja estrutura e autoridade se deduzem da Revelação. No atinente ao Colégio dos Bispos, são também usados os termos Ordem e Corpo. O paralelismo entre Pedro e demais Apóstolos e entre Papa e Bispos não implica a transmissão do poder extraordinário dos Apóstolos aos sucessores, nem a igualdade entre Cabeça e membros, mas só a proporcionalidade entre a relação Pedro-Apóstolos e Papa-Bispos.
Uma pessoa torna-se membro do Colégio pela sagração episcopal e pela comunhão hierárquica com a Cabeça e com os membros do Colégio. Na sagração é conferida a participação ontológica nos ofícios sagrados, como consta da Tradição. Usa-se a palavra munerum e não potestatum, por esta poder entender-se como poder apto para o exercício. Ora, para existir tal poder, deve sobrevir a determinação canónica da parte da autoridade hierárquica. Esta determinação pode consistir na concessão dum ofício particular ou na atribuição de súbditos, e é dada segundo as normas aprovadas pela autoridade suprema. Essa norma ulterior é exigida pela própria natureza das coisas, visto tratar-se de poderes que devem ser exercidos por diversas pessoas que, segundo a vontade de Cristo, cooperam hierarquicamente. Evidentemente, esta ‘comunhão’ foi-se exercendo na vida da Igreja, segundo as circunstâncias, mesmo antes de ser codificada no direito. Por isso se diz expressamente que se requer a comunhão hierárquica com a Cabeça e membros da Igreja. A comunhão é um conceito tido em grande conta na antiga Igreja (e ainda hoje, sobretudo no Oriente). Não se trata, porém, de sentimento vago, mas duma realidade orgânica, que exige uma forma jurídica e é ao mesmo tempo animada pela caridade. Os documentos dos últimos Sumos Pontífices acerca da jurisdição dos Bispos devem ser interpretados segundo esta determinação necessária dos poderes.
Diz-se que o Colégio, que não pode existir sem cabeça, é também sujeito do supremo e pleno poder sobre toda a Igreja’. Isto tem de se admitir necessariamente para que a plenitude do poder do Sumo Pontífice não seja posta em causa. O Colégio entende-se, pois, sempre e necessariamente com a Cabeça, a qual, no Colégio, conserva integralmente o seu cargo de Vigário de Cristo e Pastor da Igreja Universal. Isto é, a distinção não se faz entre o Papa e os Bispos, tomados coletivamente, mas entre o Papa só, e o Papa juntamente com os Bispos. E uma vez que o Papa é a Cabeça do Colégio, só ele pode executar certos atos, que de modo nenhum competem aos Bispos como, por exemplo, convocar e dirigir o Colégio, aprovar normas de ação, etc. Ao juízo do Sumo Pontífice, a quem foi entregue o cuidado de todo o rebanho de Cristo, compete, segundo as necessidades da Igreja, que variam no decurso dos tempos, determinar o modo mais conveniente de atuar esse cuidado, quer essa atuação se faça de modo pessoal quer de modo colegial. Quanto a ordenar, promover e aprovar o exercício colegial, procede o Romano Pontífice segundo a sua própria discrição.
O Sumo Pontífice, visto ser o Pastor supremo da Igreja, pode exercer, como lhe aprouver, o seu poder em todo o tempo; exige-o o próprio cargo. O Colégio, porém, embora exista sempre, nem por isso age permanentemente com uma ação estritamente colegial, conforme consta da Tradição. Isto é, não está sempre ‘em exercício pleno’. Mais ainda: somente por intervalos age de maneira estritamente colegial e nunca sem o consentimento da Cabeça. Diz-se, porém, ‘com o consentimento da Cabeça’ para não se pensar na dependência de pessoa estranha; o termo ‘consentimento’ evoca a comunhão entre a Cabeça e os membros e implica a necessidade do ato que é próprio da Cabeça. Em tudo isto é evidente que se trata da união dos Bispos com a sua Cabeça e nunca de ação dos Bispos independentemente do Papa. Neste caso, faltando a ação da Cabeça, os Bispos não podem agir colegialmente, como se depreende da noção de ‘Colégio’. A Comunhão hierárquica de todos os Bispos com o Sumo Pontífice é habitual na Tradição.
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Como se vê pela nota – e o cap. III da LG di-lo expressamente – é reafirmada a doutrina do Vaticano I sobre o primado. 
Quarta Parte
40- Os detratores do vaticano II observam que as forças liberais e modernistas, que já minavam a Igreja, conseguiram colocar as mãos sobre o Concílio Vaticano II, podendo dizer-se que o Vaticano II foi a faísca que deflagrou uma crise que se preparava já de longa data na Igreja. Acusam os Papas João XXIII e Paulo VI do apoio às forças liberais e modernistas na introdução dum grande número das suas ideias nos textos do Concílio. Antes do Concílio, a Comissão Preparatória, segundo os desiludidos, havia preparado meticulosamente esquemas que eram o eco da fé da Igreja. E era – dizem – sobre esses esquemas que a discussão se devia ter produzido e o voto deveria ter incidido. Porém, os esquemas iniciais foram rejeitados na 1.ª sessão do Concílio e substituídos por novos esquemas preparados pelos liberais. Depois, no quadro da rejeição/aceitação dividem os textos do Concílio Vaticano II em três grupos: os que poderiam ser aceites, por estarem conformes à Doutrina Católica, como, por exemplo, o decreto sobre a formação dos padres; os equívocos, isto é, que podem ser interpretados em sentido erróneo; e os que não podem ser compreendidos num sentido ortodoxo e que, na sua atual formulação, não podem ser aceites, como a Declaração sobre a Liberdade Religiosa. Mais referem que os textos ambíguos podem ser aceites se forem, segundo a expressão de Lefebvre, “interpretados à luz da Tradição”, mas os do terceiro grupo não podem ser aceites antes de terem sido retificados.
- Assim, tendo como intenção a aplicação do espírito do Concílio (e do próprio Concílio), levam em linha de conta o facto de os textos terem sido feitos pelas mãos dos liberais e modernistas, que colaboraram nas redações dos documentos sem a mais elementar das virtudes, a honestidade (como disse Lefebvre). Tendo isso em consideração, cogitam suspeitas ditas fundamentadas a respeito do sentido da maioria das palavras nos textos conciliares. Evidenciam que muita da terminologia sofre de falta de clareza e que alguns textos, para serem interpretados com fé e verdade, precisam de estar expostos ao farol da Tradição; porém, outros, que são inaceitáveis, devem ser rejeitados, descartados ou convertidos. A perversão do léxico conciliar foi aberta, mundana, praticamente total no modo de expor as ideias. Lefebvre disse também que, sem falar da índole um tanto anticatólica da linguagem, muitos dos textos são ambíguos e contribuem para a descristianização da sociedade. Mais dizem que os equívocos foram introduzidos voluntariamente nos textos conciliares com vista a atrair os padres conservadores. Davam-se-lhes ilusões, insistindo no facto de que o texto não significava, no fundo, nada de diferente do que a Igreja havia sempre ensinado. E que fizeram eles lá? Não sabiam latim? Mas - coitados! - em momentos subsequentes, foi possível apoiarem-se sobre essas passagens para defenderem teses inteiramente heterodoxas.
Quinta Parte
41- Nestes termos, concluem que o Vaticano II não fora obra de Deus, nem tão pouco fora o Espírito Santo que o inspirou. Têm-no como perverso, desastroso, catastrófico, uma ruína nas colunas sacrossantas da Igreja Católica. Acusam-no de estar a destruir, ou pelo menos, a contribuir para a destruição da Doutrina Católica, da Fé de sempre, a contribuir para a autodemolição da Igreja de Cristo. E prometem, face a isto, não calarem as suas vozes para denunciarem o evento como obra diabólica dos piores inimigos da Santa Igreja, os liberais e modernistas, que fazem a Igreja Conciliar subsistir, ocupada, ocupada por eles, os modernistas, os progressistas. Consideram a razão deste facto um mistério que só Deus sabe.
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Não é crível que o Espírito Santo ousasse estar de férias permitindo a introdução do diabo na aula conciliar, não só para tentar o caos (isto é transitoriamente possível), mas sobretudo para levar a melhor contra a Igreja. Pelo que é temerário e sinal de anticonversão rejeitar ou minimizar o Concílio, sob o pretexto incriminatório de obra diabólica ou de triunfo do modernismo.
Do sentido da aceitação, veja-se o ensino da Comissão Doutrinal sobre a Lumen Gentium:
“Tendo em conta a praxe conciliar e o fim pastoral do presente Concílio, este sagrado Concílio só define aquelas coisas relativas à fé e aos costumes que abertamente declarar como de fé. Tudo o mais que o sagrado Concílio propõe como doutrina do supremo Magistério da Igreja, devem-no os fiéis receber e abraçar segundo a mente do mesmo sagrado Concílio, a qual se deduz quer do assunto em questão, quer do modo de dizer, segundo as normas da interpretação teológica”.

2015.08.31 – Louro de Carvalho

Em torno de um Pequeno Catecismo sobre o Concílio Vaticano II – II

Dou agora seguimento à reflexão iniciada no texto anterior, com título semelhante, abordando mais em pormenor alguns aspetos polémicos do grande acontecimento do século XX para a Igreja e para o Mundo, que foi exatamente o Concílio Vaticano II.
Quem se der ao cuidado de confrontar estes textos com o do anteriormente referido noviço do Mosteiro de Santa Cruz, notará que esta reflexão se desdobra em mais questões que as 15 do aludido catecismo.
Segunda Parte
20- O Concílio Vaticano II promulgou, como se disse, 16 documentos: 4 constituições, 9 decretos e 3 declarações.
21- As constituições são por ordem cronológica: a Constituição sobre a Sagrada Liturgia, Sacrosanctum Concilium (SC), 4 de dezembro de 1963; a Constituição Dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium (LG), 21 de novembro de 1964; a Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina Dei Verbum (DV), 18 de novembro de 1965; e a Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium Spes (GS), 7 de dezembro de 1965.
- Os decretos são, por ordem cronológica: o decreto sobre os meios de comunicação social Inter Mirifica (IM), 4 de dezembro de 1963; o decreto sobre as Igrejas Orientais Orientalium Ecclesiarum (OE), 21 de novembro de 1964; o decreto sobre o ecumenismo Unitatis redintegratio (UR), 21 de novembro de 1964; o decreto sobre o múnus pastoral dos bispos na Igreja Christus Dominus (CD), 28 de outubro de 1965; o decreto sobre a atualização dos religiosos Perfectae Caritatis (PC), 28 de outubro de 1965; o decreto sobre a formação sacerdotal Optatam Totius (OT), 28 de outubro de 1965; o decreto sobre o apostolado dos leigos Apostolicam Actuositatem (AA), 18 de novembro de 1965; o decreto sobre a atividade missionária da Igreja Ad Gentes (AG), 7 de dezembro de 1965; e o decreto sobre o ministério e a vida dos presbíteros Presbyterorum Ordinis (PO), 7 de dezembro de 1965. 
- As declarações são por ordem cronológica: a declaração sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs Nostra Aetate (NA), 28 de outubro de 1965; a declaração sobre a educação cristã Gravissimum Educationis (GE), 28 de outubro de 1965; e a declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis Humanae (DH), 7 de dezembro de 1965.
22- Os detratores do Vaticano II acusam os seus documentos de conterem erros incompatíveis com a doutrina católica, sobretudo ao exprimirem o espírito liberal, modernista e progressista, contrário aos ensinamentos tradicionais em muitos pontos. Neste aspeto, evidenciam, como os principais documentos que contradizem os ensinamentos da doutrina católica e dos Papas anteriores ao Concílio (Gregório XVI, Pio IX, S. Pio X, Leão XIII, Pio XI, etc.): a Constituição Lumen Gentium, a Constituição Gaudium Spes, o Decreto Unitatis redintegratio, as declarações Dignitatis Humanae e a Nostra Aetate.
23- Esquecem que qualquer sistema ideológico que contrarie a doutrina da Igreja – como o liberalismo, na ótica de endeusamento do homem e absolutização do capital, o positivismo, como circunscrevendo a validade do conhecimento do mundo meramente visível (negando ou desprezando o das coisas invisíveis e metafísicas), o materialismo histórico (ateu e antiteísta) ou o nacionalismo eclesial e o da supremacia do concílio ou do sínodo sobre o papa – continua a ser contestado pela Igreja e pelo Concílio.
24- Quanto às principais questões que se discutiram no Concílio, das que foram mais importantes e problemáticas, os seus detratores relevam três: a liberdade religiosa, o ecumenismo e a colegialidade episcopal.
É sempre necessário ter em conta o que Pedro afirmou:
“Reconheço por verdade que Deus não faz acepção de pessoas; mas que lhe é agradável aquele que, em qualquer nação, o teme e faz o que é justo” (At 10,34-35).

- Sobre a liberdade religiosa, citam o n.º 2 da Dignitatis Humanae, como inaceitável:
“Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Essa liberdade consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos ou de qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites”.

- Diga-se que o enunciado sobre a liberdade religiosa funda-se sobre a dignidade da pessoa humana, que muitos esquecem:
“O Concílio declara, além disso, que o direito à liberdade religiosa tem o seu fundamento na dignidade da pessoa humana, tal como a fizeram conhecer a Palavra de Deus e a razão mesma”.

25- Efetivamente, para quem entende ao pé da letra a máxima que “fora da Igreja não há salvação” parece entrar-se em contradição quando se defende a liberdade religiosa. Porém, nem o mandato evangélico nem o seu cumprimento apostólico confundiram a proposta com a imposição, ou o apostolado com o proselitismo. Ademais, sempre os moralistas entenderam e ensinaram que a norma da moralidade era a consciência de cada um retamente formada. Depois, não podem uns exigir a liberdade religiosa para si e negá-la para outros.
- A palavra do Magistério da Igreja veio, em 2000, esclarecer a questão, através da declaração Dominus Iesus, da Congregação para a Doutrina da Fé:
 “Antes de mais, deve crer-se firmemente que a 'Igreja, peregrina na terra, é necessária para a salvação. Só Cristo é mediador e caminho de salvação; ora, Ele torna-se-nos presente no seu Corpo que é a Igreja; e, ao inculcar por palavras explícitas a necessidade da fé e do Batismo (cf Mc 16,16; Jo 3,5), corroborou ao mesmo tempo a necessidade da Igreja, na qual os homens entram pelo Batismo tal como por uma porta'. Esta doutrina não se contrapõe à vontade salvífica universal de Deus (cf 1Tim 2,4); daí, a necessidade de manter unidas estas duas verdades: a real possibilidade de salvação em Cristo para todos os homens, e a necessidade da Igreja para essa salvação”.

- Por outro lado, a carta do Santo Ofício ao arcebispo de Boston, de 8 de outubro de 1949, explicita, não sendo a liberdade religiosa contrária à doutrina anterior:
“Por isso, ninguém será salvo se, sabendo que a Igreja foi divinamente instituída por Cristo, todavia não aceita submeter-se à Igreja ou recusa obediência ao Romano Pontífice, vigário de Cristo na terra”.
“Ora, o Salvador não apenas ordenou que todas as nações entrassem na Igreja, mas ainda decidiu que a Igreja seria o meio de salvação sem o qual ninguém pode entrar no reino celeste”. (...)
“Para que alguém obtenha a salvação eterna não é sempre necessário que seja efetivamente incorporado à Igreja como membro, mas requerido é que lhe esteja unido por voto e desejo”.
“Todavia, não é sempre necessário que este voto seja explícito como o é o dos catecúmenos, mas, quando o homem é vítima de ignorância invencível, Deus aceita também o voto implícito, chamado assim porque incluído na boa disposição de alma pela qual essa pessoa quer conformar a sua vontade à vontade de Deus”. (cf Denzinger-Hünnermann, n. 3867-3870).

26- Em relação ao ecumenismo, importa reter a genuinidade do seu conceito: o movimento que teve origem no século XIX, primeiro entre cristãos não católicos com acompanhamento tímido de alguns católicos, e que tem por objetivo a aproximação das diversas confissões cristãs e a cooperação entre si, quer no aprofundamento da doutrina e na expressão da fé, quer nas causas comuns em termos sociais e humanitários.
27- A princípio, a Igreja Católica guardou claro distanciamento. Apesar de o movimento ecuménico ter sido acolhido muito antes nalguns dos meios académicos e de reflexão do catolicismo, foi com o Papa João XXIII e com o Concílio Vaticano II que o ecumenismo foi integramente assumido pela doutrina e postura católicas.
28- O mesmo contorno de espírito e de práxis conduziu, em seguida, a aproximar-se das religiões não cristãs. É o que se chama diálogo inter-religioso.
29- O Vaticano II consagrou ao ecumenismo um decreto especial, intitulado Unitatis Redintegratio, e às relações da Igreja com as religiões não cristãs a declaração Nostra Aetate.
30- Jesus Cristo fundou uma única Igreja, que subsiste na Igreja Católica. A Igreja de Cristo é única a possuir a plenitude da Verdade. Sendo assim, em tese, a unidade dos cristãos apenas poderia ser restabelecida pela conversão e pelo retorno dos indivíduos ou das comunidades separadas ao seio da Igreja de Jesus Cristo. Tal é o ensinamento de Pio XI em Mortalium animos:
“A união dos cristãos não pode ser buscada de outro modo que não seja favorecendo o retorno dos dissidentes à única e verdadeira Igreja de cristo, a qual tiveram, um dia, a infelicidade de abandonar”.

31- No entanto, no Vaticano II, a Igreja adotou uma nova atitude, que não corresponde a nova doutrina, como pregam alguns. Com efeito:
“Cristo Senhor fundou uma só e única Igreja. Todavia, são numerosas as Comunhões cristãs que se apresentam aos homens como a verdadeira herança de Jesus Cristo. Todos, na verdade, se professam discípulos do Senhor, mas têm pareceres diversos e caminham por rumos diferentes, como se o próprio Cristo estivesse dividido. Esta divisão, porém, contradiz abertamente a vontade de Cristo e é escândalo para o mundo, como também prejudica a santíssima causa da pregação do Evangelho a toda a criatura.” (UR,1).

32- Pretende-se o aprofundamento do estudo da Bíblia, o apuramento da doutrina e a cooperação mútua, bem como a mentalidade e a história das outras comunidades cristãs, no pressuposto de que a História não julgará de todo inocente a prática da Igreja Católica no atinente às matérias que foram e são causa de separação. Por isso, “o modo e o método de formular a doutrina católica de forma alguma devem transformar-se em obstáculo ao diálogo com os irmãos”. No entanto:
“É absolutamente necessário que toda a doutrina seja exposta com clareza. Nada tão alheio ao ecumenismo como aquele falso irenismo pelo qual a pureza da doutrina católica sofre detrimento e é obscurecido o seu sentido genuíno e certo. Ao mesmo tempo, a fé católica deve ser explicada mais profunda e corretamente, de tal modo e com tais termos que possa ser de facto compreendida também pelos irmãos separados. Ademais, no diálogo ecuménico, os teólogos católicos, sempre fiéis à doutrina da Igreja, quando investigarem juntamente com os irmãos separados os divinos mistérios, devem proceder com amor pela verdade, com caridade e humildade. Na comparação das doutrinas, lembrem-se que existe uma ordem ou hierarquia das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente. Assim se abre o caminho pelo qual, mediante esta fraterna emulação, todos se sintam incitados a um conhecimento mais profundo e a uma exposição mais clara das insondáveis riquezas de Cristo”. (UR,11).

33- Finalmente, no concernente ao ecumenismo, os Padres Conciliares afirmam:
“Este sagrado Concílio deseja insistentemente que as iniciativas dos filhos da Igreja católica juntamente com as dos irmãos separados se desenvolvam; que não se ponham obstáculos aos caminhos da Providência; e que não se prejudiquem os futuros impulsos do Espírito Santo. Além disso, declara estar consciente de que o santo propósito de reconciliar todos os cristãos na unidade de uma só e única Igreja de Cristo excede as forças e a capacidade humana. Por isso, coloca inteiramente a sua esperança na oração de Cristo pela Igreja, no amor do Pai para connosco e na virtude do Espírito Santo. ‘E a esperança não será confundida, pois o amor de Deus se derramou em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado’ (Rm 5,5).

34- Quanto ao diálogo inter-religioso, a declaração Nostra Aetate refere, baseando-se no princípio da dignidade da pessoa humana e no direito/dever do seguimento da própria consciência, bem como nas justas aspirações das pessoas e dos grupos:
“Em primeiro lugar, afirma o sagrado Concílio que o próprio Deus deu a conhecer ao género humano o caminho pelo qual, servindo-O, os homens se podem salvar e alcançar a felicidade em Cristo. Acreditamos que esta única religião verdadeira se encontra na Igreja católica e apostólica, à qual o Senhor Jesus confiou o encargo de a levar a todos os homens, dizendo aos Apóstolos: Ide, pois, fazer discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos prescrevi’ (Mt 28, 9-20). Por sua parte, todos os homens têm o dever de buscar a verdade, sobretudo no que diz respeito a Deus e à sua Igreja e, uma vez conhecida, de a abraçar e guardar. O sagrado Concílio declara igualmente que tais deveres atingem e obrigam a consciência humana e que a verdade não se impõe de outro modo senão pela sua própria força, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte. Ora, visto que a liberdade religiosa, que os homens exigem no exercício do seu dever de prestar culto a Deus, diz respeito à imunidade de coação na sociedade civil, em nada afeta a doutrina católica tradicional acerca do dever moral que os homens e as sociedades têm para com a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo. Além disso, ao tratar desta liberdade religiosa, o sagrado Concílio tem a intenção de desenvolver a doutrina dos últimos Sumos Pontífices acerca dos direitos invioláveis da pessoa humana e da ordem jurídica da sociedade.” (NA,1).

35- A Igreja Católica não foi mais apresentada como a única entidade que leva à salvação, mas como instrumento universal e sacramento de salvação. As outras confissões cristãs, e mesmo as religiões não cristãs, foram consideradas também expressões (sem dúvida menos perfeitas, mas ainda assim válidas) de genuína religião, de acesso a Deus, de escada para a salvação eterna. Não é mais uma questão (forçada) de conversão dos não católicos à Igreja Católica, mas de diálogo e de pluralismo religioso.
36- Sobre a colegialidade episcopal, o Concílio não contraria a Tradição nem a doutrina católica do Magistério da Igreja. Efetivamente cada bispo tem autoridade sobre a sua diocese e o papa tem jurisdição sobre a Igreja Universal. Todavia, nem o Papa, a quem incumbe a primeira e a última palavra, fica dispensado de ouvir os bispos quer em concílio e em sínodo quer individualmente, sobretudo para a definição de doutrina em matéria de fé e costumes e é útil que os escute nas questões de governação. Os bispos, além do cuidado para com a porção do rebanho que lhes foi confiada, não podem como sucessores dos apóstolos deixar de ter em conta a solicitude pelas Igrejas.
***
Tudo há que fazer para que a Igreja de Cristo se exprima como comunidade, construa comunhão, se afirme como Povo de Deus e espelhe o vulto misericordioso e terno de Deus.

2015.08.31 – Louro de Carvalho

Em torno de um Pequeno Catecismo sobre o Concílio Vaticano II -I

Um noviço do Mosteiro da Santa Cruz escreveu para a Associação Cultural Santo Atanásio, da Missão Cristo Rei, Resistência Católica Ipatinga, um Pequeno Catecismo sobre o Concílio Vaticano II, em que, a par de informação histórica consistente, ficam espelhadas as razões por que a maior parte dos documentos conciliares não são aceites por este movimento integrista dito genuinamente católico, alinhado com a Fraternidade de São Pio X, que acusa o concílio de proporcionar a “vitória do Modernismo”.
Aqui fica a informação, expurgada dos aspetos inaceitáveis e explícita ou implicitamente contraditados. Também não se transcrevem as perguntas, de fácil subentendimento.
Primeira Parte
1- O Vaticano II foi o XXI Concílio Ecuménico da história da Igreja Católica e o segundo que se realizou no Vaticano, entre 1962 e 1965. Em termos de participação, foi a maior concentração de Padres Conciliares reunidos na Basílica de São Pedro.
2- O anúncio da sua convocação foi feito pelo Papa João XXIII, em 25 de janeiro de 1959, na Basílica do Mosteiro beneditino de São Paulo Extramuros, aos 17 Cardeais, três meses depois de assumir o sumo pontificado (foi eleito Sumo Pontífice a 28 de outubro de 1958). Oficialmente, a sua convocação surge com a Constituição Humanae salutis, de 25 de dezembro de 1961. E o motu próprio Consilium, de 2 de fevereiro de 1962, marcou a inauguração da grande assembleia para 11 de outubro de 1962, 4.º ano do pontificado do Papa Roncalli, que presidiu pessoalmente à sua abertura.
3- O Concílio desenvolveu-se em 4 sessões no decurso de 4 anos: a primeira sessão, de 11 de outubro a 8 de dezembro de 1962; a segunda sessão, de 29 de setembro a 4 de dezembro de 1963; a terceira sessão, de 14 de setembro a 21 de novembro de 1964; e a quarta sessão, de 14 de setembro a 8 de dezembro de 1965.
4- Quem presidiu pessoalmente à celebração do encerramento do Concílio foi o papa Paulo VI em 8 de dezembro de 1965, sucessor de João XXIII, que devido à morte do seu predecessor em 3 de junho de 1963, deu continuidade ao Concílio, promulgou os seus documentos e presidiu ao seu encerramento.
5- O número médio de Padres Conciliares (bispos) ultrapassou o de dois mil. Fala-se em 2.400, além de observadores de outras religiões e mulheres.
6- O Vaticano II foi um concílio eminentemente pastoral (e não meramente pastoral como refere o autor do pequeno catecismo). O próprio papa João XXIII expressou, na sua alocução de abertura, esta perspetiva de não querer dogmatizar nada do que nele fosse apresentado, ou seja, não quis usar da infalibilidade explícita nos documentos promulgados. Por isso, a doutrina e a instrução conciliares constituem uma preciosa oferta ao campo da vida pastoral da Igreja e à renovação espiritual dos seus membros. João XXIII, no seu discurso de abertura, exprimiu-o nos termos seguintes:
 “A finalidade principal deste Concílio não é, portanto, a discussão de um ou outro tema da doutrina fundamental da Igreja, repetindo e proclamando o ensino dos Padres e dos Teólogos antigos e modernos (...). Para isso não havia necessidade de um Concílio. (...) o espírito cristão, católico e apostólico do mundo inteiro espera um progresso na penetração doutrinal e na formação das consciências, é necessário que esta doutrina certa e imutável (...) seja aprofundada e exposta de forma a responder as exigências do nosso tempo. Uma coisa é a substância do depositum fidei (...) e outra é a formulação com que são enunciadas (...). Será preciso atribuir importância a esta forma e, se necessário, insistir com paciência, na sua elaboração (...), cujo caráter é prevalentemente pastoral”.

7- É neste ponto que o Vaticano II se torna diferente dos anteriores: em ter declarado não querer ser mais que um concílio pastoral, que não tem em vista definir expressamente as questões de fé, mas dar diretrizes pastorais para a vida da Igreja.
8- Todavia, há que reconhecer que todos os concílios da Igreja foram também concílios pastorais. Não obstante, não prescindiram de definir o dogma, desmascarar erros, defender a doutrina católica e lutar contra as desordens disciplinares e morais. A originalidade do Vaticano II foi a de querer ser “pastoral” de uma maneira nova, recusando-se a definir explicitamente o dogma, a condenar taxativamente os erros (embora não resista a denunciá-los com toda a clareza) e mesmo a apresentar a Doutrina Católica de modo defensivo e apologético. O concílio retomando e reafirmando a doutrina dos anteriores Concílios, pretende “pôr de manifesto com maior insistência, aos fiéis e a todo o mundo, a natureza e missão universal da Igreja. E as condições do nosso tempo tornam ainda mais urgentes este dever da Igreja, para que deste modo os homens todos, hoje mais estreitamente ligados uns aos outros, pelos diversos laços sociais, técnicos e culturais, alcancem também a plena unidade em Cristo” (cf LG,1).
9- O Vaticano II promulgou dezasseis textos: 9 decretos, 3 declarações e 4 constituições. De entre estas, duas são constituições dogmáticas: a Lumem Gentium (sobre a Igreja: ser e missão) e a Dei Verbum (sobre a Divina Revelação). Isso não significa que tenham proclamado expressamente dogmas ou que sejam de si infalíveis, mas que tratam de matérias referentes ao dogma. A este respeito, Paulo VI declarou explicitamente, a 12 de janeiro de 1966, algumas semanas após o seu encerramento da última sessão conciliar:
“Tendo em vista o caráter pastoral do Concílio, este evitou proclamar de modo extraordinário dogmas dotados da nota de infalibilidade”.

10- Todos os Concílios adaptaram a Igreja ao seu tempo. Fizeram-no, no entanto, anatematizando os erros do dia, punindo os desvios morais ou disciplinares da época, armando a Igreja contra os inimigos. A adaptação não visava conformar-se ao século, mas a resistir-lhe de forma mais eficaz. Não se tratava de agradar ao mundo, mas de o confrontar e de o vencer, para agradar a Deus. João XXIII e Paulo VI procuraram, porém, tornar a Igreja Católica atraente para o homem moderno, mas sem pactuar com o espírito e o estilo mundanos – sublinhe-se. Para tanto, ela deixa de se autorreferenciar e põe o acento em Jesus Cristo, seu fundador, mestre e guia.
11- João XXIII, em 14 de fevereiro de 1960, exprimiu-se nos termos seguintes:
“O fim primeiro e imediato do Concílio é o de apresentar ao mundo a Igreja de Deus, no seu perpétuo vigor de vida e de verdade, e com sua legislação adaptada às circunstâncias presentes, de modo a ser sempre mais conforme à sua divina missão e a estar mais pronta para acorrer às necessidades de hoje e de amanhã. Em seguida, se os irmãos que se separaram e que ainda estão divididos entre si virem a concretizar o comum desejo de unidade, poderemos dizer-lhes então, com uma viva emoção: é a vossa casa; a casa daqueles que trazem o sinal de Cristo”.

12- O Cardeal Montini, futuro Paulo VI, declarava, em abril de 1962:
“A Igreja se propõe, pelo próximo Concílio, a entrar em contacto com o mundo (...) Ela se esforçará para ser (...) amável em sua linguagem e na sua maneira de ser”.

E, paralelamente ao Concílio, Paulo VI, afirmava, na sua encíclica Ecclesiam Suam:
“A Igreja poderia propor-se a realçar os males que se podem encontrar no mundo, a pronunciar anátemas e suscitar cruzadas contra eles (...); parece-nos, ao contrário, que a relação da Igreja com o mundo (...) se pode exprimir melhor sob a forma de um diálogo”.

13- Com efeito, enquanto a Comissão Preparatória criada por João XXIII pensava organizar um concílio normal – teve um enorme trabalho para esboçar esquemas que servissem de base aos debates conciliares –, o Secretário para a Unidade dos Cristãos, igualmente estabelecido por João XXIII (em junho de 1960), trabalhava num outro sentido. E a verdadeira intenção de João XXIII prevaleceu: no início do concílio, livrara-se dos esquemas preparatórios, julgados demasiado doutrinais, e o Concílio comprometeu-se com a rota preparada pelo Secretariado.
14- Torna-se, assim, claro que o vaticano II não foi um concílio como os demais. Os textos que promulgou, fruto de um “diálogo” com o mundo, são mais textos diplomáticos (destinados a dar uma boa imagem a Igreja) do que textos magisteriais (ensinando as verdades da fé contra tudo e contra todos), porém, sem deixar de firmar e acentuar a doutrina, dando-lhe um rosto desconhecido ou restituindo-lhe os meandros esquecidos.
15- Por outro lado, torna-se igualmente claro que, mesmo que o Vaticano II não tenha produzido expressamente atos de Magistério Extraordinário, a infalibilidade lhe pertence enquanto órgão do Magistério Ordinário Universal, porque quase todos os bispos do mundo nele se fizeram então presentes. Além disso, o ecumenismo e a liberdade religiosa são ensinados hoje pelos bispos do mundo inteiro, o que equivale ao exercício do Magistério Ordinário Universal, que é infalível.
16- Assim, a sua doutrina e demais disposições não podem ser votadas ao desprezo nem ser consideradas matéria de segunda grandeza, mas espelho de uma doutrina e disciplina de Igreja mais do “sim” que do “não”, mais do vulto misericordioso de Deus, incarnado em Jesus Cristo, que veio para que tenhamos a vida em abundância e não para condenar o mundo (cf Jo 3,16-17; 10,10).
17- Apesar de tudo, não pode deixar de sobressair a dimensão eminentemente pastoral do Vaticano II. A este respeito o Cardeal Ratzinger, em 1988, afirmou expressamente:
“A verdade é que o Concílio, ele mesmo, não definiu nenhum dogma e procurou situar-se num nível mais modesto, simplesmente como um concílio pastoral. Apesar disso, numerosos são aqueles que o interpretam como se se tratasse de um ‘superdogma’ que sozinho tem a importância”.

18- Tal, porém, não legitima a subestimação que alguns pretendem fazer do Concílio, acusando-o de ser, “desde a origem, objeto de um jogo desonesto”, já que supostamente, durante ele, se insistira sobre seu caráter pastoral para evitar exprimir-se com precisão teológica, mas, depois, se desejara dar-lhe uma autoridade igual ou mesmo superior à dos concílios anteriores. É, pois, de rejeitar a posição e Mons. Lefebvre, a partir de 1976, que declarou:
“É preciso, então, desmitificar este Concílio, que eles quiseram pastoral em razão de seu horror instintivo pelo dogma e para facilitar a introdução oficial de ideias liberais num texto eclesiástico. Mas, terminada a operação, dogmatizaram o Concílio, o compararam ao de Niceia, o pretendem semelhante aos outros, senão superior!”

19- Concluindo esta parte, embora o próprio Concílio Vaticano II não tenha definido expressamente dogmas em matéria de fé e moral, os seus documentos são de ter em plena linha de conta, quer encarados em si próprios, quer no desenvolvimento que a caminhada sinodal lhes veio a imprimir, não só às constituições, mas também aos decretos e declarações. Constitui forte temeridade passar em claro a doutrina conciliar como querer alimentar a preguiça supina do seu não estudo.
Não se pode desprezar subestimar a oportunidade da passagem do Espírito ou o tempo de Deus (o kairós).

2015.08.30 – Louro de Carvalho

sábado, 29 de agosto de 2015

Terá razão alguma opinião pública?

A hipocrisia política é má conselheira por duas ordens de razões: primeiro, porque contraria demasiadas vezes a verdade, sem que daí advenha qualquer benefício para a coisa pública (ao contrário da diplomacia, que, em nome da boa relação entre Estados e da paz, gere a informação); depois, porque se desmascara ao primeiro descuido ou logo que um objetivo mais ambicioso se imponha.
Vêm estas considerações na sequência de hoje, dia 29 de agosto, a Comunicação Social ter relevado à saciedade as declarações e a interrogação do cauteloso, mas ora descuidado, eurodeputado Paulo Rangel na que foi a última aula deste ano da universidade de verão do PSD. O orador daquele areópago partidário elogiou o alegado “ataque sério e consistente” feito nos últimos tempos à corrupção e à “promiscuidade”, criticando a forma como o líder socialista “faz graçolas” com “coisas demasiado sérias”, como o caso do BES/GES.
O ora desacautelado professor universitário disse que “foi durante este Governo, não é obra deste Governo, não é mérito deste Governo, mas foi durante este Governo que pela primeira vez em Portugal houve um ataque sério, profundo e consistente, à corrupção e à promiscuidade”.
É certo que, fazendo jus ao seu espírito e estilo de cautela, ressalvou que o dito “ataque sério” não é obra nem mérito deste Governo. Todavia, esta dita “Universidade de Verão”, que, a meu ver, peca por compaginar um desfile de discursos emergentes do circunstancialismo de cada ano e não sobre temas de fundo que forneçam uma capacitação reflexiva de ciência e práxis políticas, deu azo a uma polémica inútil e que vem ao arrepio do que vulgarmente se professa.
Todos os operadores políticos e judiciais afirmam a plenos pulmões que a Justiça tem os seus princípios, o seu tempo, a sua metodologia. Todos afirmam epigraficamente: à justiça o que é da justiça e à política o que é da política. Mais: são recorrentes as asserções de que o Ministério Público e os Tribunais não têm agenda política nem se deixam condicionar pela política.
Eu costumo dizer que todo o ato da magistratura é expressão do poder político que a Constituição lhe atribui. Por isso, eu atrevo-me a acrescentar o adjetivo “partidária” ao nome “política”. Parece que foi em nome daqueles pressupostos que António Costa conseguiu que o congresso do seu partido tivesse gerido com bastante discrição a então recente situação da detenção e prisão preventiva do ex-primeiro-ministro (não lhe tendo corrido de feição o que se tem passado a seguir), chegando ao ponto de declarar que a amizade e os sentimentos pelos amigos não podem impedir nem o avanço da justiça nem o da ação política. E, razoavelmente, também Passos Coelho assegurou não dever pronunciar-se por casos concretos que tramitam na área da justiça.
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Ora, a intervenção de Paulo Rangel, que não significa nem a fuga à presunção de inocência do arguido até sentença condenatória transitada em julgado nem o atropelo à presunção de que se faz justiça – e justiça, tanto quanto possível, célere, imparcial e eficaz – mas parece vir dar razão àqueles que, sobretudo nos últimos tempos, se mostram convictos de que o Ministério Público (MP) e o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) têm, subjacente e até ostentam um propósito de política partidária, favorável à atual maioria parlamentar, ou então uma sede de protagonismo pessoal.
A própria defesa do ex-primeiro-ministro (e o próprio, que não é um preso político, mas um político preso) martela recorrentemente a tecla da suposta ilegalidade da prisão preventiva, o mecanismo da prisão para investigar, em vez da prisão como medida de coação para evitar os putativos factos previstos no CPP (código do processo penal). Mais: chega a afirmar-se que aquilo que está em causa é o homem em si e não os factos, sem provas, ou o ensarilhamento das eleições ao partido de que é oriundo o político preso.
Com efeito, as coincidências são muitas, o que leva a que alguma opinião pública tenha dificuldade em aceitar, perante a diversidade de informação que vem para as pantalhas da Comunicação Social, que a investigação esteja a ser célere, cuidada e imparcial. Se é certo que os arguidos devem ter o mesmo tratamento de base, também é certo que um arguido deveras exposto – no caso, um político preso – deve ser tratado de modo que não persistam dúvidas legítimas de que ele esteja a ser utilizado com outros fins, que não os de justiça. Ou, como dizem alguns, há que tratar de igual forma o que é igual e de forma diferente o que é diferente. Os operadores judiciais não podem colocar-se a jeito de críticas infundadas.
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Ademais, um(a) detentor(a) de cargo político vir apregoar a separação dos poderes e, ao mesmo tempo e a propósito de casos concretos, bradar ao vento que acabou o tempo da impunidade é, no mínimo, contraditório. Por outro lado, como é que se pode apregoar a separação dos poderes, se nunca ela foi estatuída, antes foram os poderes assumidos, cada um em seu próprio quadro, mas com base no mecanismo estável da interdependência e no do sistema de funcionamento dos contrapesos. Não é verdade que é o Presidente quem nomeia o Governo, que emerge do Parlamento? Não é o Parlamento que faz as leis, que o Presidente promulga ou veta ou, ainda, submete à apreciação do Tribunal Constitucional para juízo da constitucionalidade? Não são os juízes que aplicam as leis aos casos concretos que se lhes apresentam para julgamento? Não pode o Presidente demitir o primeiro-ministro em determinados casos e dissolver o Parlamento? Não é ele que marca as eleições? E, nalguns países, o Presidente da República não é eleito pelo Parlamento ou por um colégio eleitoral em que tem preponderância o Parlamento?
Onde está a separação? É verdade que as decisões dos tribunais prevalecem sobre as dos outros órgãos, mas também cabe ao Parlamento decretar amnistias e ao Presidente conceder indultos.(Dispenso-me de invocar os artigos específicos da CRP, porque o tenho feito recorrentemente).
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Mas Paulo Rangel não tem a razão toda quando, ao elogiar o alegado “ataque sério e consistente” feito nos últimos tempos à corrupção e à “promiscuidade”, acentuou que isso não é obra nem mérito do atual Governo. Se quer partidarizar a investigação e a justiça, pode recordar que foi este Governo quem nomeou a atual Procuradora-Geral da República, quem alterou o ordenamento judiciário (o CITIUS, os diversos códigos), quem dá os meios para a investigação, quem disponibiliza as instalações onde funcionam os tribunais, quem leva o MP a definir as prioridades de investigação. Aliás, o MP não é independente do Governo, mas autónomo.
E não tem razão quando ironicamente interroga: “Alguém acredita que um primeiro-ministro seria investigado se o PS fosse governo?”. Ele sabe perfeitamente que Sócrates esteve sob escuta (e investigação), pelo menos, nos casos do “Free port” e da “Face Oculta”. Que se saiba, foi o MP (e não o Governo) que encerrou o processo Free port, com umas dezenas de perguntas por fazer ao então primeiro-ministro, alegadamente por falta de tempo, e foram o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o Procurador-Geral da República que determinaram a destruição das cassetes das escutas que alegadamente envolviam o primeiro-ministro.
Não será, antes, verdade que todos os governos se tentam a influenciar, a seu modo, a tramitação da investigação e da justiça? Não serão também os investigadores e magistrados homens e mulheres não imunes de todo ao contexto em que vivem e operam?
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Por seu turno, o também eurodeputado do PS, Francisco Assis, considerou que as de Rangel são “declarações de uma gravidade extrema e significam uma clara operação de partidarização do sistema judicial”, pelo que exigiu ao líder do PSD e primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, que clarifique “perante o país se se reconhece nestas declarações e neste estilo de campanha eleitoral ou se, pelo contrário, censura esta forma de fazer política”.
Assis entende as declarações de Paulo Rangel como “um insulto a um princípio fundamental de um Estado de direito democrático, que é o princípio da separação dos poderes, constituem uma ofensa ao sistema judicial nas suas várias vertentes”.
Sobre este aspeto, esclareci o meu ponto de vista acima. Todavia, o eurodeputado do PS tem razão quando acentua a gravidade do que foi dito:
“Não foram proferidas [as declarações] por uma pessoa qualquer – foram proferidas pelo Dr. Paulo Rangel, que é hoje uma das figuras de referência do PSD – nem foram proferidas num contexto qualquer. Foram proferidas num ambiente institucional de uma Universidade de Verão do PSD”.

Francisco Assis foi perentório:
“Uma situação desta natureza não permite meias-tintas, exige uma demarcação absolutamente clara. Os portugueses têm o direito de saber se o Dr. Pedro Passos concorda ou não concorda com este estilo de intervenção política”.

Mais do que saber o que pensa Passos Coelho, eu preferia saber o pensa o PS (isso o sei e o disse Rangel), que perde a oportunidade privilegiada de se pronunciar a preceito e claramente.
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Quanto às ditas graçolas de que é acusado o líder do partido socialista, que venha atirar a primeira pedra o político que não tenha usado de suas graçolas na discussão política partidária e interpartidária, mesmo a propósito de assuntos sérios.
No atinente à investigação de banqueiros, foi no tempo da última governança socialista que eclodiu o caso do BPN e a constituição de arguido de alguns intervenientes e a prisão do seu presidente executivo. Rangel deve recordar-se. E que tem feito a justiça hoje?
Relativamente à discussão do programa da PAF e do PS, é óbvio que as leituras são diferentes. Nem outra coisa seria de esperar. Porém, o juízo sobre a matéria não cabe no âmbito desta reflexão, pelo menos hoje.
De resto, os portugueses farão o seu juízo sobre a pureza ou não do ambiente democrático e sobre a bondade ou não das propostas eleitorais de cada candidatura (partido ou frente), procurando saber a verdade toda a respeito dos números, bons ou maus, tendo em conta que as metodologias de fabrico das estatísticas não foram alteradas substancialmente nos últimos anos. Porém, é preciso fazer e ler – e exigir que se faça – estatística de todos os dados, fenómenos e movimentos e não apenas de alguns.
Meias verdades não são compatíveis com o politicamente correto. Ou já desapareceu a claustrofobia democrática apontada outrora pelo eurodeputado socialdemocrata?

2015.08.29 – Louro de Carvalho