Os pais vão pagar mais pelo alargamento
da educação pré-escolar para os 4 anos de idade. Esta era, com efeito, uma
enunciação badalada na Comunicação Social em 22 de agosto pp. Os testemunhos
referiam-se ao processo subsequente à publicação da Lei n.º 65/2015, de 3 de
julho, 1.ª alteração à Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto, que vem estabelecer a
universalidade da educação pré-escolar para as crianças a partir dos 4 anos de
idade.
Enquanto o título e os artigos 1.º e
4.º da Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto, que “estabelece o regime da
escolaridade obrigatória para as crianças e jovens que se encontram em idade
escolar e consagra a universalidade da educação pré-escolar para as crianças a
partir dos 5 anos de idade”, a nova lei em vigor “estabelece o regime da escolaridade obrigatória para as crianças e
jovens que se encontram em idade escolar e consagra a universalidade da
educação pré-escolar para as crianças a partir dos 4 anos de idade” (vd art.º 1.º/1 e art.º 4.º/1).
Por outro lado, o art.º 2.º da nova
lei estabelece a sua regulamentação por decreto-lei, no prazo de 180 dias a
partir da data da sua entrada em vigor; o ano letivo a partir do qual se
garante a implantação da universalidade desta educação a partir dos 4 anos de idade;
e o pressuposto e a consequência dessa regulamentação. É, a este respeito, de ler
o n.º 2 do art.º 2.º:
“A regulamentação prevista no número anterior abrange o
processo de avaliação da implementação da universalidade da educação pré-escolar
às crianças com 4 anos de idade e os mecanismos de aferição da possibilidade de
estender a universalidade às crianças com 3 anos de idade, bem como a definição
do respetivo prazo”.
***
Nestes termos, o acesso à educação
pré-escolar será garantido a partir dos 4 anos de idade, contra os atuais 5. O
objetivo é que esta alteração possa entrar em vigor no ano letivo 2016/17 e se dote
o país com estruturas físicas e humanas que possibilitem a universalidade da
educação pré-escolar a partir dos 3 anos de idade, sendo pertinente fixar um
prazo para a aplicação deste último desiderato.
O diploma resulta
de um projeto de lei apresentado, na AR, pelo PSD e CDS no âmbito de novas
medidas de apoio à natalidade. No projeto que deu entrada em abril, os grupos
parlamentares indicavam que Portugal já estava “muito perto” de alcançar as
metas estabelecidas pela União Europeia, que fixam em 95% a percentagem de
crianças, entre os 4 anos e o início da escolaridade obrigatória, que devem
frequentar a educação pré-escolar. O projeto apontava ainda para as vantagens
de uma “experiência pré-escolar mais precoce” e para “a necessidade de
conciliar a vida familiar com a vida profissional”. E acrescentava que, para “alargar
esta universalização para os 4 anos de idade, afigura-se igualmente de grande
importância garantir uma articulação da rede já existente, de forma a evitar
excessos nuns locais e insuficiências noutros”.
Ora, é exatamente a questão da rede
da educação pré-escolar que levanta o problema do pagamento. Isto é, a rede
existente é a pública, tutelada pelo MEC (Ministério da Educação e Ciência), e a privada, com relevo para as
IPSS, tutelada pelo Ministério da Segurança Social, através dos acordos de cooperação/colaboração
(uns empregam um termo, outros
outro). A parte
estritamente “letiva” é inteiramente gratuita quer nos estabelecimentos da rede
pública, quer nos da rede privada contemplados por acordo de cooperação. Isto sem
falar dos casos em que os pais, usando em absoluto da inteira liberdade de
escolha, colocam os filhos onde muito bem entenderem assumindo totalmente os
encargos daí decorrentes. Porém, a parte dita de apoio à família (como o almoço e lanche) constituem encargo dos pais, a
menos que estes não tenham possibilidades económicas, pelo menos na rede
pública. E os encargos dos pais são maiores na rede privada que na rede pública.
Os municípios dizem estar preparados (já suportam quase toda a logística do
funcionamento da rede pública) e as associações de pais, em geral, consideram boa a medida. A dúvida
reside no seguinte: os estabelecimentos públicos têm de garantir a frequência
da educação pré-escolar às crianças de 5 anos, ficando as demais em lista de
espera ou a procurar a rede social. Quem arca com os encargos mais volumosos na
rede privada social? Não deveria o Estado priorizar as crianças de menores
recursos ou cobrir totalmente as despesas das crianças “empurradas” para as
IPSS?
Subiste o velho problema, o dos direitos
e deveres dos pais em matéria da educação, sobretudo em idades tenras –
condicionado pela dificuldade em harmonizar a vida profissional com a vida familiar
e pela agressividade de uma considerável franja do mundo do trabalho em relação
à natalidade – frente ao dever/direito do Estado. Por outro lado, está em causa
o estímulo à reposição e aumento da natalidade no país. Será esta uma medida
suficiente, sobretudo se não se partir para a flexibilização horária, ao menos no
atinente à guarda das crianças? Que tempo resta para as famílias para estarem
com os filhos?
E ainda persistem – e bem – as duas convicções
basilares: o Estado tem a obrigação de ajudar os pais na sua obrigação de educar
os filhos; e a educação pré-escolar constitui uma parte inicial da educação
básica, sendo que a passagem ou não pela experiência pré-escolar faz a diferença
no percurso da criança.
***
Para levar à reflexão sobre o tema,
deixo à consideração dois textos que redigi em tempos e agora foram revistos:
A educação enquanto incumbência dos pais
São visíveis as tentações dos
Estados modernos em assumir de forma absorvente o múnus educativo das crianças,
adolescentes e jovens. Muitas vezes, ao invés de garantir a criação de
condições para que todos usufruam de igualdade de oportunidades no acesso à
escola e à sua frequência com êxito, estabelecer a rede de educação e ensino
públicos com vista àquela garantia, sobretudo para os mais desfavorecidos, numa
linha de subsidiariedade, e apoiar técnica e financeiramente a todos
independentemente da escola por que optem, o Estado chega ao ponto de planear,
programar e avaliar a educação e ensino de forma ostensiva e quase única. Mas a
materialização e o desenvolvimento deste desígnio comunitário perigam quando o
Estado se vê sem recursos humanos, financeiros, técnicos e logísticos.
Resta-lhe o apelo às parcerias público-privadas e à maior responsabilização das
autarquias, com as consequências daí advenientes.
Ora, para fazer luz nesta momentosa
questão sobre quem detém o ónus/direito de educar, é de percorrer alguns dos
textos que merecem a aceitação dos entendidos na matéria e chegaremos à ilação
de que o papel preponderante pertence aos pais ou a quem a suas vezes tiver de
fazer.
O n.º 3 do art.º 26.º da Declaração
Universal dos Direitos Humanos seleciona a educação como direito prioritário
dos pais já que a eles pertence a
prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos.
A Constituição da República
Portuguesa, sem olvidar as obrigações do Estado em termos de proteção,
colaboração e cooperação, denomina a educação como ação insubstituível dos pais
e das mães em relação aos filhos (cf. n.º 1 do art.º 68.º, alínea c)
do n.º 2 do art.º 67.º),
reconhece-a como direito e dever dos pais (cf art.º 36.º/5) e inscreve-a como tarefa igual para um e outro
cônjuge (art.º 36.º
/3). Por outro lado, a lei fundamental
estatui como atribuição do Estado a criação de uma rede de estabelecimentos
públicos de ensino que cubra as necessidades da população (cf. art.º
75.º/1.) e o reconhecimento e a
fiscalização do ensino particular e cooperativo (cf. art.º 75.º/2.). E o n.º 4 do art.º 43.º garante, no âmbito da
liberdade de aprender e ensinar, o direito de criação de escolas particulares e
cooperativas. Deste arrazoado se conclui que o Estado tem um papel fundamental
de ordem telemática e reguladora enquanto tem a porta aberta à livre escolha
dos pais. De outro modo não faria sentido a criação de escolas não estaduais.
Também abundam os documentos da Igreja Católica,
geralmente aceites, que consagram esta opção dos pais em articulação com o
papel dos poderes públicos e da própria Igreja.
Assim, o n.º 17 da encíclica Pacem in terris, de João XXIII, refere claramente que aos pais compete a prioridade de direito em
questão de sustento e educação dos próprios filhos.
Quanto aos documentos conciliares, o n.º 3 da
Declaração sobre a Educação Cristã (Gravissimum
Educationis) ensina que
os pais têm uma gravíssima obrigação de educar a prole e, por isso, devem ser
reconhecidos como seus primeiros e principais educadores; exalta a família como
a primeira escola das virtudes sociais de que as sociedades têm necessidade; e
acrescenta:
“Os pais, cujo primeiro e inalienável dever e direito é educar os filhos,
devem gozar de verdadeira liberdade na escolha da escola. Por isso, o poder
público, a quem pertence proteger e defender as liberdades dos cidadãos, deve
cuidar, segundo a justiça distributiva, que sejam concedidos subsídios públicos
de tal modo que os pais possam escolher, segundo a própria consciência, com toda
a liberdade, as escolas para os seus filhos”.
Por sua vez, a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, no seu número 61,
releva o papel da família designando-a como que a mãe e a fonte da educação, pois, nela
“Os filhos, rodeados de amor, aprendem mais facilmente a reta ordem das
coisas, enquanto as formas aprovadas da cultura vão penetrando como que
naturalmente na alma dos adolescentes, à medida que vão crescendo”.
Salientando o papel dos pais na escolha de escola e
apelando aos princípios de justiça, o cânone 797.º do Código de Direito
Canónico exige que os pais tenham verdadeira liberdade para escolher as escolas
e sejam solícitos para que a sociedade civil reconheça essa liberdade dos pais
e, de acordo com a justiça distributiva, a proteja com as ajudas económicas.
Também o Catecismo da Igreja Católica dedica dois
números a esta matéria: o n.º 2221, considerando primordiais e inalienáveis
para os pais o direito e o dever da educação, explicita que o papel dos pais na
educação tem tão grande peso que, quando falta, dificilmente pode suprir-se; e
o n.º 2223 sublinha o facto de os pais serem os primeiros e principais
responsáveis pela educação dos filhos.
Todavia, não havendo alternativa sadia à da liberdade
de escolha da escola e da educação pelos indivíduos e famílias, com exceção da
educação mínima, é preciso reconhecer que, se esta escolha se transformar em
valor absoluto, sem a mobilização de outros valores, podemos resvalar para
situações perigosas. É que, como afirma Fernando Adão da Fonseca, no Fórum Liberdade de Educação,
“A liberdade de escolha aproveita mais ao mais expedito na identificação
das alternativas, ao mais capaz no aproveitamento das oportunidades oferecidas,
ao mais forte, numa palavra. Por isso, o valor cristão da fraternidade humana
exige que o objetivo fundamental, que é a liberdade de escolha, seja
acompanhado de uma preocupação com a solidariedade social, ou seja, que se
garanta um mínimo de liberdade de escolha aos mais fracos”.
O direito
constitucional ao ensino
O direito ao ensino comporta, antes
de mais, o direito de acesso à escola, que, por sua vez, engloba dois direitos
de índole diferente: o direito e a liberdade de entrar nas escolas, ficando
vedado ao Estado qualquer óbice ou restrição; e o direito de erigir escolas em
número bastante para possibilitar o acesso de todos.
Sendo o primeiro um direito de
natureza negativa, um direito de liberdade em tudo semelhante aos demais
“direitos, liberdades e garantias”, exige-se ao Estado a respetiva salvaguarda,
defesa e garantia, removendo-se quaisquer impedimentos que alguém possa tentar
opor. É assim questionável a legitimidade das formas limitativas de acesso a
determinados graus do sistema escolar, designadamente o numerus clausus.
Porém, elas parecem estar como que subjacentes no ordenamento constitucional no
atinente ao ensino superior, sob certas condições, sobretudo enquanto não se
dispuser de equipamentos suficientes e adequados, bem como de quadros de
pessoal bastantes para obviar às necessidades deste grau de ensino. Pode ainda
o Estado condicionar o acesso a cursos do ensino superior, que não às escolas,
por via do excesso de quadros qualificados em confronto com as necessidades do
país, mas não por motivo de superlotação escolar.
Quanto ao segundo, trata-se de um
direito de natureza positiva, um direito nitidamente social, que, para lá de constituir
um direito do Estado, o obriga à criação de escolas, por si ou por outrem:
municípios, empresas, associações…
Depois, o direito ao ensino suscita
a igualdade de oportunidades de acesso e de êxito (vd CRP, art.º
74.º, n.º 1, 2.ª parte), exigindo:
a garantia das condições de frequência da escola, como a existência de escolas
próximas, transportes ou alojamento, gratuitidade, subsídios, etc; e a criação
da igualdade de oportunidades de sucesso, como a generalização da educação
pré-escolar, definição dos conteúdos de ensino e metodologia de avaliação, apoio
social escolar… Está em causa a concretização da democratização da educação (vd art.
73.º, n.º 2), que impõe
o zelo e as diligências adequadas à obtenção da garantia da igualdade de
oportunidades nas vertentes assinaladas.
O direito ao ensino, como direito
positivo, confere ao Estado um conjunto complexo de obrigações: criar uma rede
escolar oficial que cubra as necessidades da população; estatuir modalidades de
ensino ajustadas aos condicionalismos dos cidadãos, nomeadamente quanto à sua
inserção ou proveniência regional (descentralização do ensino, ensino à
distância...), à sua
ocupação profissional (ensino para trabalhadores, ensino noturno, escolas nas
empresas, ensino à distância...), às suas
caraterísticas psicopedagógicas (ensino recorrente de adultos, novas
oportunidades ou mecanismo similar, ensino especial...); facultar o apoio social escolar (auxílios
económicos diretos, saúde escolar, seguro, alojamento, transporte escolar,
refeitório e bufete escolares...) tendente a
esbater ou mesmo anular as discriminações de ordem económica no acesso e na
frequência escolares; e abater as barreiras sociais e culturais no acesso à
escola e na sua frequência, através da estreita vinculação dos conteúdos de
ensino à cultura e interesses populares, de medidas de promoção da
escolaridade, de campanhas de sensibilização educativa, de assunção escolar de
formas de discriminação positiva a favor dos trabalhadores e demais cidadãos e
grupos de parcos recursos.
A necessidade de superar a função
conservadora das desigualdades justifica-se pelo facto de as diversidades e
desigualdades de formação reproduzirem, reforçarem e criarem desigualdades
sociais a par das desigualdades técnico-profissionais. Marcaram a sociedade os
efeitos do dualismo entre ensino liceal e técnico (bem como a
unificação pura e simples),
privilégios sociais dos diplomados do ensino superior ante os diplomados do
ensino médio ou dos formados pelas universidades ante os provindos de
institutos politécnicos. Ao almejar a unificação do ensino não superior, nos
objetivos e conteúdos essenciais, embora não excluindo a diversificação adequada,
o avisado preceito constitucional verbera qualquer forma de organização do
ensino suscetível de originar situações discriminatórias ao nível do estatuto
social dos cidadãos, ou seja, a distinção estanque ou traduzida em escolas com
estatuto diferente e sem a possibilidade de trânsito entre elas, entre ensino
liceal e técnico, entre ensino universitário e ensino politécnico, entre ensino
superior de longa duração e ensino superior de curta duração, entre ensino
regular e ensino profissional, entre escolas de primeira e escolas de segunda.
Não bastando garantir a criação de
condições para superar as desigualdades ou para remover impedimentos de acesso
e frequência escolares, a Constituição impõe ao legislador o ónus de definir
uma política social e escolar capaz de criar condições favoráveis ao acesso de
pessoas sem condições económicas às formas superiores de ensino, cultura e
investigação. O critério fundamental será a verificação das capacidades de cada
um, não entendidas na redutora perspetiva psicologista e conservadora do saber
adquirido, das habilidades incorporadas ou do mérito existente, mas no sentido
de capacidades de aprendizagem, de capacidades potenciais, tendo em conta os
sérios condicionamentos que desigualdades materiais da vida e modos de
relacionação social exercem sobre o desenvolvimento das capacidades
intelectivas. A definição de tal política educativa originará consequentemente
a criação de estabelecimentos de ensino que respondam cabalmente às
necessidades de ascensão, logrando estabelecer a real igualdade de
oportunidades e estimular a entrada de pessoas de menores condições
económico-sociais e com maiores capacidades potenciais.
***
Depois disto, será legítimo o Estado,
contrariando a Constituição, programar e impor currículo uniforme a todo país e
a todas as escolas e segundo as suas opções ideológicas MEC (que podem
não ser as do Estado!), bem como definir
metas curriculares para disciplina e ano (em vez de definir os mínimos e
apoiar, apreciar e premiar as realizações diversas)? Será legítimo o MEC negar o funcionamento de mais
uma turma desta ou daquela área curricular, havendo alunos e instalações ou será
lícito a escola pública “negar” (ou agir de modo equivalente) o acesso a certo tipo de alunos, com o fito de se
constituir em escola de elite? Será lícito a escola pública ou privada inflacionar
notas para construir sucesso estatístico ou facilitar a entrada no ensino
superior, enganando as pessoas ou iludindo as perspetivas dos jovens?
2015.08.25 – Louro de Carvalho
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