terça-feira, 25 de agosto de 2015

Os pais vão pagar pelo alargamento da educação pré-escolar?

Os pais vão pagar mais pelo alargamento da educação pré-escolar para os 4 anos de idade. Esta era, com efeito, uma enunciação badalada na Comunicação Social em 22 de agosto pp. Os testemunhos referiam-se ao processo subsequente à publicação da Lei n.º 65/2015, de 3 de julho, 1.ª alteração à Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto, que vem estabelecer a universalidade da educação pré-escolar para as crianças a partir dos 4 anos de idade.
Enquanto o título e os artigos 1.º e 4.º da Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto, que “estabelece o regime da escolaridade obrigatória para as crianças e jovens que se encontram em idade escolar e consagra a universalidade da educação pré-escolar para as crianças a partir dos 5 anos de idade”, a nova lei em vigor “estabelece o regime da escolaridade obrigatória para as crianças e jovens que se encontram em idade escolar e consagra a universalidade da educação pré-escolar para as crianças a partir dos 4 anos de idade” (vd art.º 1.º/1 e art.º 4.º/1).
Por outro lado, o art.º 2.º da nova lei estabelece a sua regulamentação por decreto-lei, no prazo de 180 dias a partir da data da sua entrada em vigor; o ano letivo a partir do qual se garante a implantação da universalidade desta educação a partir dos 4 anos de idade; e o pressuposto e a consequência dessa regulamentação. É, a este respeito, de ler o n.º 2 do art.º 2.º:
“A regulamentação prevista no número anterior abrange o processo de avaliação da implementação da universalidade da educação pré-escolar às crianças com 4 anos de idade e os mecanismos de aferição da possibilidade de estender a universalidade às crianças com 3 anos de idade, bem como a definição do respetivo prazo”.
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Nestes termos, o acesso à educação pré-escolar será garantido a partir dos 4 anos de idade, contra os atuais 5. O objetivo é que esta alteração possa entrar em vigor no ano letivo 2016/17 e se dote o país com estruturas físicas e humanas que possibilitem a universalidade da educação pré-escolar a partir dos 3 anos de idade, sendo pertinente fixar um prazo para a aplicação deste último desiderato.
O diploma resulta de um projeto de lei apresentado, na AR, pelo PSD e CDS no âmbito de novas medidas de apoio à natalidade. No projeto que deu entrada em abril, os grupos parlamentares indicavam que Portugal já estava “muito perto” de alcançar as metas estabelecidas pela União Europeia, que fixam em 95% a percentagem de crianças, entre os 4 anos e o início da escolaridade obrigatória, que devem frequentar a educação pré-escolar. O projeto apontava ainda para as vantagens de uma “experiência pré-escolar mais precoce” e para “a necessidade de conciliar a vida familiar com a vida profissional”. E acrescentava que, para “alargar esta universalização para os 4 anos de idade, afigura-se igualmente de grande importância garantir uma articulação da rede já existente, de forma a evitar excessos nuns locais e insuficiências noutros”.
Ora, é exatamente a questão da rede da educação pré-escolar que levanta o problema do pagamento. Isto é, a rede existente é a pública, tutelada pelo MEC (Ministério da Educação e Ciência), e a privada, com relevo para as IPSS, tutelada pelo Ministério da Segurança Social, através dos acordos de cooperação/colaboração (uns empregam um termo, outros outro). A parte estritamente “letiva” é inteiramente gratuita quer nos estabelecimentos da rede pública, quer nos da rede privada contemplados por acordo de cooperação. Isto sem falar dos casos em que os pais, usando em absoluto da inteira liberdade de escolha, colocam os filhos onde muito bem entenderem assumindo totalmente os encargos daí decorrentes. Porém, a parte dita de apoio à família (como o almoço e lanche) constituem encargo dos pais, a menos que estes não tenham possibilidades económicas, pelo menos na rede pública. E os encargos dos pais são maiores na rede privada que na rede pública.
Os municípios dizem estar preparados (já suportam quase toda a logística do funcionamento da rede pública) e as associações de pais, em geral, consideram boa a medida. A dúvida reside no seguinte: os estabelecimentos públicos têm de garantir a frequência da educação pré-escolar às crianças de 5 anos, ficando as demais em lista de espera ou a procurar a rede social. Quem arca com os encargos mais volumosos na rede privada social? Não deveria o Estado priorizar as crianças de menores recursos ou cobrir totalmente as despesas das crianças “empurradas” para as IPSS?
Subiste o velho problema, o dos direitos e deveres dos pais em matéria da educação, sobretudo em idades tenras – condicionado pela dificuldade em harmonizar a vida profissional com a vida familiar e pela agressividade de uma considerável franja do mundo do trabalho em relação à natalidade – frente ao dever/direito do Estado. Por outro lado, está em causa o estímulo à reposição e aumento da natalidade no país. Será esta uma medida suficiente, sobretudo se não se partir para a flexibilização horária, ao menos no atinente à guarda das crianças? Que tempo resta para as famílias para estarem com os filhos?
E ainda persistem – e bem – as duas convicções basilares: o Estado tem a obrigação de ajudar os pais na sua obrigação de educar os filhos; e a educação pré-escolar constitui uma parte inicial da educação básica, sendo que a passagem ou não pela experiência pré-escolar faz a diferença no percurso da criança.
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Para levar à reflexão sobre o tema, deixo à consideração dois textos que redigi em tempos e agora foram revistos:
A educação enquanto incumbência dos pais
São visíveis as tentações dos Estados modernos em assumir de forma absorvente o múnus educativo das crianças, adolescentes e jovens. Muitas vezes, ao invés de garantir a criação de condições para que todos usufruam de igualdade de oportunidades no acesso à escola e à sua frequência com êxito, estabelecer a rede de educação e ensino públicos com vista àquela garantia, sobretudo para os mais desfavorecidos, numa linha de subsidiariedade, e apoiar técnica e financeiramente a todos independentemente da escola por que optem, o Estado chega ao ponto de planear, programar e avaliar a educação e ensino de forma ostensiva e quase única. Mas a materialização e o desenvolvimento deste desígnio comunitário perigam quando o Estado se vê sem recursos humanos, financeiros, técnicos e logísticos. Resta-lhe o apelo às parcerias público-privadas e à maior responsabilização das autarquias, com as consequências daí advenientes.
Ora, para fazer luz nesta momentosa questão sobre quem detém o ónus/direito de educar, é de percorrer alguns dos textos que merecem a aceitação dos entendidos na matéria e chegaremos à ilação de que o papel preponderante pertence aos pais ou a quem a suas vezes tiver de fazer.
O n.º 3 do art.º 26.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos seleciona a educação como direito prioritário dos pais já que a eles pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos.
A Constituição da República Portuguesa, sem olvidar as obrigações do Estado em termos de proteção, colaboração e cooperação, denomina a educação como ação insubstituível dos pais e das mães em relação aos filhos (cf. n.º 1 do art.º 68.º, alínea c) do n.º 2 do art.º 67.º), reconhece-a como direito e dever dos pais (cf art.º 36.º/5) e inscreve-a como tarefa igual para um e outro cônjuge (art.º 36.º /3). Por outro lado, a lei fundamental estatui como atribuição do Estado a criação de uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades da população (cf. art.º 75.º/1.) e o reconhecimento e a fiscalização do ensino particular e cooperativo (cf. art.º 75.º/2.). E o n.º 4 do art.º 43.º garante, no âmbito da liberdade de aprender e ensinar, o direito de criação de escolas particulares e cooperativas. Deste arrazoado se conclui que o Estado tem um papel fundamental de ordem telemática e reguladora enquanto tem a porta aberta à livre escolha dos pais. De outro modo não faria sentido a criação de escolas não estaduais.
Também abundam os documentos da Igreja Católica, geralmente aceites, que consagram esta opção dos pais em articulação com o papel dos poderes públicos e da própria Igreja.
Assim, o n.º 17 da encíclica Pacem in terris, de João XXIII, refere claramente que aos pais compete a prioridade de direito em questão de sustento e educação dos próprios filhos.
Quanto aos documentos conciliares, o n.º 3 da Declaração sobre a Educação Cristã (Gravissimum Educationis) ensina que os pais têm uma gravíssima obrigação de educar a prole e, por isso, devem ser reconhecidos como seus primeiros e principais educadores; exalta a família como a primeira escola das virtudes sociais de que as sociedades têm necessidade; e acrescenta: 
“Os pais, cujo primeiro e inalienável dever e direito é educar os filhos, devem gozar de verdadeira liberdade na escolha da escola. Por isso, o poder público, a quem pertence proteger e defender as liberdades dos cidadãos, deve cuidar, segundo a justiça distributiva, que sejam concedidos subsídios públicos de tal modo que os pais possam escolher, segundo a própria consciência, com toda a liberdade, as escolas para os seus filhos”.

Por sua vez, a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, no seu número 61, releva o papel da família designando-a como que a mãe e a fonte da educação, pois, nela
“Os filhos, rodeados de amor, aprendem mais facilmente a reta ordem das coisas, enquanto as formas aprovadas da cultura vão penetrando como que naturalmente na alma dos adolescentes, à medida que vão crescendo”.

Salientando o papel dos pais na escolha de escola e apelando aos princípios de justiça, o cânone 797.º do Código de Direito Canónico exige que os pais tenham verdadeira liberdade para escolher as escolas e sejam solícitos para que a sociedade civil reconheça essa liberdade dos pais e, de acordo com a justiça distributiva, a proteja com as ajudas económicas.
Também o Catecismo da Igreja Católica dedica dois números a esta matéria: o n.º 2221, considerando primordiais e inalienáveis para os pais o direito e o dever da educação, explicita que o papel dos pais na educação tem tão grande peso que, quando falta, dificilmente pode suprir-se; e o n.º 2223 sublinha o facto de os pais serem os primeiros e principais responsáveis pela educação dos filhos.
Todavia, não havendo alternativa sadia à da liberdade de escolha da escola e da educação pelos indivíduos e famílias, com exceção da educação mínima, é preciso reconhecer que, se esta escolha se transformar em valor absoluto, sem a mobilização de outros valores, podemos resvalar para situações perigosas. É que, como afirma Fernando Adão da Fonseca, no Fórum Liberdade de Educação
“A liberdade de escolha aproveita mais ao mais expedito na identificação das alternativas, ao mais capaz no aproveitamento das oportunidades oferecidas, ao mais forte, numa palavra. Por isso, o valor cristão da fraternidade humana exige que o objetivo fundamental, que é a liberdade de escolha, seja acompanhado de uma preocupação com a solidariedade social, ou seja, que se garanta um mínimo de liberdade de escolha aos mais fracos”.


O direito constitucional ao ensino
O direito ao ensino comporta, antes de mais, o direito de acesso à escola, que, por sua vez, engloba dois direitos de índole diferente: o direito e a liberdade de entrar nas escolas, ficando vedado ao Estado qualquer óbice ou restrição; e o direito de erigir escolas em número bastante para possibilitar o acesso de todos.
Sendo o primeiro um direito de natureza negativa, um direito de liberdade em tudo semelhante aos demais “direitos, liberdades e garantias”, exige-se ao Estado a respetiva salvaguarda, defesa e garantia, removendo-se quaisquer impedimentos que alguém possa tentar opor. É assim questionável a legitimidade das formas limitativas de acesso a determinados graus do sistema escolar, designadamente o numerus clausus. Porém, elas parecem estar como que subjacentes no ordenamento constitucional no atinente ao ensino superior, sob certas condições, sobretudo enquanto não se dispuser de equipamentos suficientes e adequados, bem como de quadros de pessoal bastantes para obviar às necessidades deste grau de ensino. Pode ainda o Estado condicionar o acesso a cursos do ensino superior, que não às escolas, por via do excesso de quadros qualificados em confronto com as necessidades do país, mas não por motivo de superlotação escolar.
Quanto ao segundo, trata-se de um direito de natureza positiva, um direito nitidamente social, que, para lá de constituir um direito do Estado, o obriga à criação de escolas, por si ou por outrem: municípios, empresas, associações…
Depois, o direito ao ensino suscita a igualdade de oportunidades de acesso e de êxito (vd CRP, art.º 74.º, n.º 1, 2.ª parte), exigindo: a garantia das condições de frequência da escola, como a existência de escolas próximas, transportes ou alojamento, gratuitidade, subsídios, etc; e a criação da igualdade de oportunidades de sucesso, como a generalização da educação pré-escolar, definição dos conteúdos de ensino e metodologia de avaliação, apoio social escolar… Está em causa a concretização da democratização da educação (vd art. 73.º, n.º 2), que impõe o zelo e as diligências adequadas à obtenção da garantia da igualdade de oportunidades nas vertentes assinaladas.
O direito ao ensino, como direito positivo, confere ao Estado um conjunto complexo de obrigações: criar uma rede escolar oficial que cubra as necessidades da população; estatuir modalidades de ensino ajustadas aos condicionalismos dos cidadãos, nomeadamente quanto à sua inserção ou proveniência regional (descentralização do ensino, ensino à distância...), à sua ocupação profissional (ensino para trabalhadores, ensino noturno, escolas nas empresas, ensino à distância...), às suas caraterísticas psicopedagógicas (ensino recorrente de adultos, novas oportunidades ou mecanismo similar, ensino especial...); facultar o apoio social escolar (auxílios económicos diretos, saúde escolar, seguro, alojamento, transporte escolar, refeitório e bufete escolares...) tendente a esbater ou mesmo anular as discriminações de ordem económica no acesso e na frequência escolares; e abater as barreiras sociais e culturais no acesso à escola e na sua frequência, através da estreita vinculação dos conteúdos de ensino à cultura e interesses populares, de medidas de promoção da escolaridade, de campanhas de sensibilização educativa, de assunção escolar de formas de discriminação positiva a favor dos trabalhadores e demais cidadãos e grupos de parcos recursos.
A necessidade de superar a função conservadora das desigualdades justifica-se pelo facto de as diversidades e desigualdades de formação reproduzirem, reforçarem e criarem desigualdades sociais a par das desigualdades técnico-profissionais. Marcaram a sociedade os efeitos do dualismo entre ensino liceal e técnico (bem como a unificação pura e simples), privilégios sociais dos diplomados do ensino superior ante os diplomados do ensino médio ou dos formados pelas universidades ante os provindos de institutos politécnicos. Ao almejar a unificação do ensino não superior, nos objetivos e conteúdos essenciais, embora não excluindo a diversificação adequada, o avisado preceito constitucional verbera qualquer forma de organização do ensino suscetível de originar situações discriminatórias ao nível do estatuto social dos cidadãos, ou seja, a distinção estanque ou traduzida em escolas com estatuto diferente e sem a possibilidade de trânsito entre elas, entre ensino liceal e técnico, entre ensino universitário e ensino politécnico, entre ensino superior de longa duração e ensino superior de curta duração, entre ensino regular e ensino profissional, entre escolas de primeira e escolas de segunda.
Não bastando garantir a criação de condições para superar as desigualdades ou para remover impedimentos de acesso e frequência escolares, a Constituição impõe ao legislador o ónus de definir uma política social e escolar capaz de criar condições favoráveis ao acesso de pessoas sem condições económicas às formas superiores de ensino, cultura e investigação. O critério fundamental será a verificação das capacidades de cada um, não entendidas na redutora perspetiva psicologista e conservadora do saber adquirido, das habilidades incorporadas ou do mérito existente, mas no sentido de capacidades de aprendizagem, de capacidades potenciais, tendo em conta os sérios condicionamentos que desigualdades materiais da vida e modos de relacionação social exercem sobre o desenvolvimento das capacidades intelectivas. A definição de tal política educativa originará consequentemente a criação de estabelecimentos de ensino que respondam cabalmente às necessidades de ascensão, logrando estabelecer a real igualdade de oportunidades e estimular a entrada de pessoas de menores condições económico-sociais e com maiores capacidades potenciais.
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Depois disto, será legítimo o Estado, contrariando a Constituição, programar e impor currículo uniforme a todo país e a todas as escolas e segundo as suas opções ideológicas MEC (que podem não ser as do Estado!), bem como definir metas curriculares para disciplina e ano (em vez de definir os mínimos e apoiar, apreciar e premiar as realizações diversas)? Será legítimo o MEC negar o funcionamento de mais uma turma desta ou daquela área curricular, havendo alunos e instalações ou será lícito a escola pública “negar” (ou agir de modo equivalente) o acesso a certo tipo de alunos, com o fito de se constituir em escola de elite? Será lícito a escola pública ou privada inflacionar notas para construir sucesso estatístico ou facilitar a entrada no ensino superior, enganando as pessoas ou iludindo as perspetivas dos jovens?

2015.08.25 – Louro de Carvalho

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