sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Há quem diga que o diabo mora no Vaticano

A edição de hoje, dia 31 de outubro, do Diário de Notícias insere um artigo de Miguel Angel Belloso, diretor da revista espanhola Atualidad Económica subordinado ao título “O Diabo também mora no Vaticano”. É óbvio que a peça jornalística, ou melhor aquele texto de opinião, não se refere ao empório do Vaticano, aos antigos desmandos do IOR, aos alegados gastos excessivos de cardeais e de outros altos dignitários em imóveis ou repastos de índole sumptuária nem ao ambiente de murmúrio e intriga, de carreirismo e obstrução às reformas da cúria romana. Não, o fenómeno da morada do diabo no Vaticano incide sobre o perfil do Papa argentino, em virtude do qual “o Vaticano viu-se sacudido pelo vendaval Francisco”, que, segundo o autor, nada terá prendido com a Argentina (não sei se se quer referir ao tempo da ditadura se ao da democracia pró- socialista).
Tanto quanto nos é dado conhecer, o Pontífice não fica surpreendido nem amedrontado pelo facto de o apelidarem de marxista quando denuncia os efeitos perversos do capitalismo selvagem e sem rosto ou o sistema de uma economia que mata, quando escalpeliza o fosso existente entre o pequeno grupo dos muito ricos e o grupo enorme dos muito pobres, explorados e vilipendiados e quando propõe a erradicação das situações de pobreza. A pobreza evangélica que o Papa defende é aquela que decorre da atitude de desapego perante os bens, não aquela que, equivalente à miséria, é imposta pela ambição, silenciamento, descalabro social e económico, distorção, fraude e espezinhamento. Esta tem de ser, por dever de justiça, claramente denunciada e corajosamente erradicada.
Porém, Belloso acusa o Papa de vir “contaminado de populismo e embebido da retórica infeliz da doutrina social da Igreja, para a qual os excessos e fracassos do socialismo são erros bem intencionados enquanto a fé no mercado é a expressão de algo parecido com um cataclismo moral”.
Já Paulo VI, timoneiro das II, III e IV sessões do Vaticano II, promotor da reforma litúrgica e autor da encíclica Populorum Progressio (1967) e da carta apostólica Octogesima Adveninens (1971), foi por alguns considerado agente de Satanás, elemento da maçonaria e atreito às teses comunistas (quando ele, se tinha alguma preferência ideológica, era a próxima da democracia cristã). E o Papa João Paulo II, quando foi objeto de uma tentativa de atentado, em Fátima, a 12 de maio de 1982, por um presbítero ultraconservador, o foi sob o pretexto de filocomunista.
No caso vertente, o colunista do aludido periódico nacional, citando Joaquín Garrigues Walker, político espanhol pós-franquista, que dizia que os “liberais cabiam num táxi”, defende que eles são marginais e mal compreendidos e lamenta que eles dificilmente tenham lugar na Igreja, pelo facto de serem denegridos por quem rege o destino da mesma Igreja. Mais: porfia por garantir que, se detêm grandes fortunas, o conseguiram não por ganância, mas por meios honestos. No entanto, a cada passo se veem confrontados com a persecutória sentença lapidar: “...é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus” (Mt 19,24). Não creio que se possa pegar no Evangelho e eliminar tal sentença. Cristo não o permitiria.
Porém, Belloso mostra-se injusto e de olhar enviesado quando, para atacar Francisco, evoca os “felizes papados de João Paulo II e de Bento XVI, reencontrados com a economia de mercado e sensíveis ao efeito terapêutico do capitalismo sobre a pobreza”.
Para fazer gala desta afirmação, é preciso não ter lido, por exemplo, as encíclicas Laborem Exercens (1981), Sollicitudo Rei Socialis (1987) e Centesimus Annus (1991), de João Paulo II, ou as encíclicas Spe Salvi (2007) e Caritas in Veritate (2009), de Bento XVI. Sobre estes dois pontífices, não italianos, é comum dizer-se que eram um pouco conservadores e até retrógrados do ponto de vista teológico e litúrgico (o que não quer dizer que, pelo menos o segundo destes papas, não sejam de uma profundidade inquestionável e sustentabilidade de formulação), mas abundante e corajosamente avançados em matéria social e de empenhamento pela autonomia das realidades terrestres. É certo que travaram e até descredibilizaram as formulações teológicas feitas a partir dos pobres e explorados – a chamada teologia da libertação, por verem nela, de forma enviesada, o perigo do alinhamento com o marxismo, o que foi extremamente redutor – mas não deixaram de acentuar a opção preferencial da Igreja pelos pobres.
Não posso, em nome da verdade e da justiça, deixar de citar de João Paulo II o seguinte passo do seu “Ato de Confiança” em Fátima, no dia 13 de maio de 1991:
Existe o perigo de substituir o marxismo por uma outra forma de ateísmo,  que adulando a liberdade tende a destruir as raízes da moral humana e cristã. (…) Mostrai que sois Mãe dos pobres,  de quem morre de fome e sem assistência na doença,  de quem sofre injustiças e afrontas,  de quem não encontra trabalho, casa nem abrigo, de quem é oprimido e explorado de quem desespera ou em vão procura o repouso longe de Deus. (…) Que os povos não reabram novos fossos de ódio e vingança; que o mundo não ceda à ilusão de um falso bem-estar que avilta a dignidade da pessoa e compromete para sempre os recursos da criação. 
Não se vê aqui predileção nem pelo marxismo nem pelo capitalismo hedonista e selvagem.
Quanto a Bento XVI, há que dizer que será tudo menos marxista, será tudo menos defensor do capitalismo e da economia de mercado, no estado em que estes sistemas se encontram. E, sobretudo na segunda das suas encíclicas mencionadas, Ratzinger faz uma resenha dos malefícios dos diversos sistemas económicos que determinam a vida das pessoas e dos povos, advogando, como os predecessores, uma nova ordem económica internacional, uma nova ordem internacional (vejam-se sobretudo os n.os 66 e 67 da Caritas in Veritate – CV). E, quanto ao mercado e sua economia, leia-se o que o Papa alemão escreveu (sublinho alguns segmentos):
O mercado, se houver confiança recíproca e generalizada, é a instituição económica que permite o encontro entre as pessoas, na sua dimensão de operadores económicos que usam o contrato como regra das suas relações e que trocam bens e serviços entre si fungíveis, para satisfazer as suas carências e desejos. O mercado está sujeito aos princípios da chamada justiça comutativa, que regula precisamente as relações do dar e receber entre sujeitos iguais. Mas a doutrina social nunca deixou de pôr em evidência a importância que tem a justiça distributiva e a justiça social para a própria economia de mercado, não só porque integrada nas malhas de um contexto social e político mais vasto, mas também pela teia das relações em que se realiza. De facto, deixado unicamente ao princípio da equivalência de valor dos bens trocados, o mercado não consegue gerar a coesão social de que necessita para bem funcionar. Sem formas internas de solidariedade e de confiança recíproca, o mercado não pode cumprir plenamente a própria função económica. E, hoje, foi precisamente esta confiança que veio a faltar; e a perda da confiança é uma perda grave (CV 35).
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Há, no entanto, algo que o artigo em causa escalpeliza, o encantamento de uma certa esquerda anticlerical e pouco praticante (e de uma certa direita neoliberal) pelo novo discurso pontifício, augurando que, no seu fervor anticatólico, consigam ver em Francisco aquilo que possa tornar a Igreja mais fragilizada e criticável. Em relação ao Papa, o articulista acha bem a porta aberta a divorciados e homossexuais, mas desejava o mesmo espírito de abertura aos liberais, já que entende que o capitalismo, por si, “não é incompatível com a solidariedade, a caridade (sublinhei) e a benevolência”.
Ora, o que Suas Santidades condenam não é o liberalismo e o capitalismo em si nem outras formas de organização económica. O que é condenável são: os meios ilícitos de construção de fortunas, designadamente a fraude, a exploração, o espezinhamento, a opressão; o excesso de lucro, contra tudo e contra todos; a denegação dos direitos dos outros, nomeadamente à vida, à educação, ao trabalho (e ao salário e apoio social), à saúde, à segurança, à proteção, à cultura; a concorrência desenfreada; a falta da justiça comutativa e distributiva; a veleidade de dar por caridade aquilo que é devido por justiça; os arremedos de liberdade e participação social e política; e os totalitarismos, sejam eles de que género forem.
De resto, sempre a Igreja Católica defendeu duas coisas complementares: o destino universal dos bens (o que, em caso de necessidade, postula a não apropriação daquilo que faz falta aos indigentes e pobres; e o direito à propriedade privada, para afirmação identitária do indivíduo e do grupo e para a rendibilização da sua exploração, desejavelmente em termos de economia de escala. Porém, sobretudo nos últimos tempos, é usual afirmar o princípio da função social da propriedade. Nestes termos, pode tornar-se legítima a apropriação por parte do Estado dos meios considerados estratégicos para a organização social e económica e para o bem-estar das populações, como por exemplo, um banco central, alguns meios de comunicação social e de telecomunicações, (alguns) estabelecimentos de saúde, (algumas) escolas, vias públicas e outras infraestruturas públicas. Também o Estado e o empresário têm de garantir trabalho e justo salário aos cidadãos, que provejam ao seu próprio sustento e da família, bem como à situação de velhice, doença e outras situações imprevistas. É, ainda, no âmbito da função social da propriedade e do destino universal dos bens que é legítimo ao Estado proceder à determinação de impostos e de contribuições e à respetiva cobrança.
Se é necessário pugnar pela criação de riqueza e, para este fim, rendibilizar a propriedade privada (ou pública dos bens, que nunca podem ser negligenciados), nunca será legítimo destruí-la, deixá-la degradar ou guardá-la ciosa e avaramente. É preciso promover a sua distribuição justa por quem a procure e possa compensar a sua receção, mas também disponibilizá-la a quem não tem recursos para oferecer em troca.
É por isso que a produção e a distribuição se tornam complementares e subsidiárias. A produção sem distribuição torna-se inútil; e a distribuição sem produção é impossível. Sendo assim, os sistemas de produção de riqueza e os de distribuição, longe de serem considerados inimigos, deverão encontrar caminhos de encontro e cooperação. E para a justa distribuição, é necessário estabelecer a circulação eficaz de bens e recursos. Ademais, é conveniente conjugar outros fatores de bem-estar: trabalho e administração, posse e orientação. E, bem assim, é importante cuidar que a produção não se torne fonte de acumulação que não redunde em justa circulação e distribuição e esta não leve à obsessão consumista.
O enriquecimento próprio é legítimo, mas não à custa do empobrecimento dos demais; o enriquecimento próprio é legítimo, mas não sustentado em desequilíbrios sociais e económicos devastadores nem como gerador dos mesmos.

Há que ter em conta que em primeiro lugar está o homem e sua dignidade!

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O Papa Francisco e a Ciência – rutura, inovação, conciliação?

A propósito das palavras dirigidas pelo Papa à sessão plenária da Pontifícia Academia das Ciências, a 27 de outubro passado, em torno da inauguração dum busto que aquela entidade pretendeu que figurasse na sede, a Casina Pio IV, em honra de Bento XVI, que fora seu membro proeminente, foram entendidas por muitos como sinal de rutura com a doutrina tradicional da Igreja ou como atitude de conciliação entre religião e ciência ou entre a Bíblia e os textos científicos.
Quanto à pretensa rutura, será de recordar que, mesmo aqueles que entendiam que a criação do mundo fora obra de Deus em seis dias (o hexámeron), tentavam não se opor radicalmente à complexidade científica, explicando a índole popularizante do antropomorfismo divino – por exemplo, na criação do homem a partir do boneco de barro a que inalou o sopro vital e de cujo lado adormecido extraiu a mulher como ser semelhante ao homem (vd Gn 2,4-7.18-25) – e afirmando que aqueles seis dias não eram de 24 horas como os de hoje.
O primeiro relato da criação da Bíblia, menos antigo que o segundo (Gn 1 – 2,4) é de origem sacerdotal e constitui um hino de glorificação ao Deus Criador, que tudo fez em boa ordem, ficando a coroar a sua obra o homem, imagem e semelhança de Deus.
Porém, o facto de se descobrir que Deus é o Criador não implica dizer-se que tenha feito tudo logo de uma vez ou deixado tudo completo. Um político da nossa praça (não o menciono para não criar equívocos), olhando para os vales e montes do país profundo, em 1993, dizia a quem o quis ouvir que Deus criou o mundo tão bom e perfeito feito, mas, no seu desígnio, deixou aos homens e mulheres de cada época a capacidade e a obrigação de completar a sua obra.
A tese de Santo Agostinho sobre a criação do mundo e do homem, sublinhando que importa destacar a diferença entre o Criador (absoluto, imutável, eterno) e a criatura finita, contingente, transitória, consigna a criação do mundo de uma só vez, mas em três etapas – já que o tempo começara a existir com a criação do mundo. Em primeiro lugar, fez ex nihilo a matéria informe de que fala o livro do Génesis; depois, deu-lhe forma, porque sem forma o mundo não subsistiria (veja-se a luz, os luzeiros, a boa ordem e separação dos elementos, as plantas, os animais e, por fim, o homem); por fim, as rationes seminales, peças quais se explicaria a evolução, o devir, o aparecimento de novos seres. (cf M. Costa e R. Brandão (2007). A Teoria da Criação, segundo Santo Agostinho. Universidade Católica de Pernambuco).
O primeiro embate pretensamente consistente contra a formulação bíblica nesta matéria, terá sido a teoria da evolução/transformação das espécies com Charles Darwin, há 150 anos. E os estudiosos dividiram-se: em nome da ciência, estabeleceu-se a teoria do evolucionismo; em nome da fé bíblica, o criacionismo fixista. Nada de pior poderia ter sido inventado, a meu ver.
A própria escolástica confessava que natura non facit saltus, o que parece pressupor a evolução da matéria, mas a passagem do animal superior para o homem não era aceite por não se conhecerem as chamadas “espécies intermédias”. Os escolásticos da contemporaneidade não punham em causa a teoria da evolução, desde que não se rejeitasse a necessidade da intervenção criadora e providente de Deus. Porém, este é um dado da religião, que não da ciência. Os cientistas da evolução, extrapolando a área da ciência parecem ter-se comprazido numa afirmação ateísta do ordenamento da matéria e da evolução do mundo – o que não era necessário.
Já com a teoria do heliocentrismo se gerou um diferendo dispensável: Copérnico e Kepler avançaram com a hipótese contrária ao geocentrismo e Galiliu Galilei, antes recebido com júbilo no Vaticano, acaba por ser condenado. Os cardeais argumentavam com o discurso bíblico, nomeadamente o de Josué, que pediu que o Sol parasse, para que tivesse tempo de travar a batalha de cuja vitória se lhe afigurava ter necessidade (cf Js 10,13-14).
Ora o equívoco surgiu do desprezo de dois pressupostos, hoje claros. A Bíblia não é um livro de História ou de Ciência, pelo menos no sentido em que se entendem desde meados do século XIX. É um livro de fé. E a pregação dos conteúdos da fé faz-se com a linguagem em uso na comunidade e não sobre conteúdos em processo no mundo da ciência. Tanto assim é que ninguém põe em causa a validade religiosa, social, política, pedagógica e literária do Sermão de Santo António, de António Vieira, pelo facto de o conceito de “peixe” em que se sustenta o discurso ser errado do ponto de vista da zoologia/ictiologia. Por outro lado, não se pede à ciência que dê lições de fé e de religião, mas que siga livremente o seu caminho de investigação e formulação, sem se preocupar se encontrará Deus na ponta do bisturi ou na mira telescópica. Porém, não lhe será legítimo arvorar-se em militante ateísta ou antiespiritualista.
Como se proclama a cada passo a autonomia da política frente à Igreja e à religião (a César o que é de César e a Deus o que é de Deus), consignada na separação Estado / Igreja, também se deverá formular o princípio da autonomia da ciência e da religião, deixando à religião o que é da religião e à ciência o que é da ciência, na linha da autonomia das realidades terrestres, assumida pelo Vaticano II, nomeadamente na Gaudium et Spes, n.º 36.
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Será neste contexto – religião / ciência – que deve situar-se o discurso papal. A linguagem da criação bíblica – alegórica, demiúrgica e antropomórfica – não permite atribuir-se a Deus a feição do mago, mas acentuar a visão de que o mundo “não foi produto do caos” e que o mundo criado é diferente de Deus em essência e existência. Este é o dado da religião e da Bíblia. Já a explicação de como tudo terá acontecido pertence à ciência que de hipótese em hipótese tem o direito e o dever de construir as diversas teorias e de procurar a verificação das hipóteses aventadas e a confirmação das teorias formuladas.
Aí, o Papa tem razão. Não há contradição entre os dados da fé e os dados da ciência (mesmo que se confirme cientificamente a teoria do Big Bang, a determinar o momento em que o Universo começou a existir e o modo da sua evolução), a menos que os homens a queiram implantar. “O Big Bang, que é designado como a origem do mundo, não contradiz o ato divino da criação. Em vez disso, exige-o”, diz o Papa. “A evolução da natureza não contrasta com a ideia de criação, pois a evolução pressupõe a criação de seres que evoluem.” – cf J. Haught (2001). Cristianismo e evolucionismo – em 101 perguntas e respostas. Edições Gradiva.
A afirmação clara desta tomada de posição é importante, porque há pessoas, organizações e Igrejas que defendem a veracidade literal do texto bíblico, opondo-a acirradamente à ciência.
 “O que na verdade o Papa Francisco fez” – diz-nos Clara Barata, no Público, de 29 de outubro – “foi sublinhar a posição da Igreja Católica, já expressa há mais de seis décadas pelo Papa Pio XII, na encíclica Humani Generis” e por João Paulo II em discurso à Academia em 10-11-1979.
Todavia, a articulista dá conta de outra forma de paraciência religiosa (que ela designa de “fundamentalismo religioso”) que se coloca como uma explicação do mundo alternativa à da ciência — a chamada “conceção inteligente”, que F. Collins comenta em A Linguagem de Deus (2007), da Editorial Presença. Esta teoria deduz, a partir da observação da natureza, a existência de uma potência criadora que guia a evolução. Recusa-se a aceitar o acaso e a adaptação dos seres vivos às condições do meio como constrangimentos suficientes para forçar a evolução, exigindo, por isso, que haja Alguém a timonar os acontecimentos.
Ora, o Papa afirma claramente que Deus “criou os seres vivos e permitiu que se desenvolvessem de acordo com as leis internas que deu a cada um, de forma que se desenvolvessem e atingissem a sua plenitude”. Assim, longe de situarmos o Pontífice numa linha de rutura, temos de o aproximar da conceção inteligente e das discussões sobre o transformismo e a seleção natural, que assinalaram polemicamente o pontificado do seu predecessor imediato.
Clara barata refere – e bem – que, em 2005, um artigo, no jornal New York Times, do arcebispo de Viena, Cristoph Schönborn, próximo de Ratzinger, gerou grande discussão. Sob o título À descoberta do desígnio na natureza, declarava que a Igreja Católica não abraçara a evolução “no sentido neodarwinista: um processo não guiado, não planeado, de variações ao acaso e seleção natural”. É claro que a Igreja, muito embora respeite e aceite as conclusões da ciência na sua real autonomia, não pode acolher o que a ultrapassa – aceitação ou a negação da invisível e efetiva intervenção de Deus. Ora, neste aspeto, Francisco enuncia, à maneira de Schönborn: “O princípio do mundo não foi produto do caos, deriva diretamente de um Princípio Supremo que cria por amor.” Ora esta formulação não é do foro da ciência. (vd também Pedro Sousa Tavares em Diário de noticias de 29 de outubro).
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E o Papa não se limitou à clarificação da posição sobre a ciência, mas proclamou um rasgado elogio ao pontífice emérito – o que pouca imprensa referiu:
Este busto evoca aos olhos de todos a pessoa e o rosto do amado Papa Ratzinger. Evoca também o seu espírito: o dos seus ensinamentos, dos seus exemplos, das suas obras e da sua devoção à Igreja, da sua presente vida “monástica”. Longe de se fragmentar com o passar do tempo, este espírito manifestar-se-á de geração em geração cada vez maior e mais poderoso. Bento XVI: um grande Papa! Grande pela força e perspicácia da sua inteligência, grande pela sua contribuição relevante para a teologia, grande pelo seu amor à Igreja e aos seres humanos, grande pela sua virtude e religiosidade. Como bem sabeis, o seu amor pela verdade não se limita à teologia e à filosofia, mas abre-se às ciências. O seu amor pela ciência leva à solicitude pelos cientistas, sem distinção de raça, nacionalidade, civilização e religião (Sublinhei).
Fazendo jus ao modo como Ratzinger soube honrar a Academia, Francisco sublinhou o facto de o seu predecessor ter convidado o seu presidente “para participar no Sínodo sobre a nova evangelização, consciente da importância da ciência na cultura moderna”.
Por seu turno, a Pontifícia Academia das Ciências, fundada em 1603 por Fredrico Cesi sob a designação de Academia dos Linces (a primeira academia científica do mundo) – e o Papa não o pode olvidar – é, sobretudo partir de 1936, de âmbito internacional, multirracial na composição, e não-sectária na escolha dos membros. O trabalho da Academia compreende seis grandes áreas: ciência fundamental, ciência e tecnologia de problemas globais; ciência para os problemas do mundo em desenvolvimento, política científica; bioética, epistemologia.
Galileu Galilei foi um dos seus membros. Hoje conta cerca de 80 membros, nomeados pelo Papa, sob indicação do corpo académico, sem nenhum tipo de discriminação. Muitos dos cientistas-membros, provenientes de todo o mundo, não são católicos.
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Não ficaria, entretanto, satisfeito comigo se não respigasse alguns pontos do corpo do discurso papal não evidenciados supra. São demasiado importantes para que a imprensa os omita.
Francisco exprime “profunda estima” e “caloroso encorajamento” a que a Academia leve por diante “o progresso científico e a melhoria das condições de vida das pessoas, especialmente dos mais pobres”. Os notáveis académicos enfrentam “o tema altamente complexo da evolução do conceito de natureza” – questão relevante e decisiva de grande complexidade científica. Porém, frisou “que Deus e Cristo caminham ao nosso lado e estão presentes também na natureza, como afirmou o Apóstolo Paulo no discurso no Areópago: ‘Em Deus temos a vida, o movimento e o nosso ser’ (At 17,28)”.
E o ponto fulcral da sua peroração vem a seguir:
Ele criou os seres e deixou que se desenvolvessem segundo as leis internas que Ele mesmo inscreveu em cada um, para que progredissem e chegassem à própria plenitude. E deu a autonomia aos seres do universo, assegurando ao mesmo tempo a sua presença contínua, dando o ser a todas as realidades. E assim a criação foi em frente por séculos e milénios, até se tornar aquela que hoje conhecemos, precisamente porque Deus não é um demiurgo nem um mago, mas o Criador que dá a existência a todos os seres.
E chama a atenção para o caso específico do homem, mantendo acomodaticiamente o sentido alegórico do texto bíblico:
Ao contrário, no que se refere ao homem, nele há uma mudança e uma novidade. Quando, no sexto dia da narração do Génesis, chega a criação do homem, Deus confere ao ser humano outra autonomia, uma autonomia diferente daquela da natureza, que é a liberdade. E diz ao homem que dê um nome a todas as criaturas e progrida ao longo da história. Torna-o responsável da criação, também para que domine a Criação e a desenvolva, e assim até ao fim dos tempos.
Em conformidade com aquela missão do homem, define a genuína atitude do cientista, mormente do cientista cristão:
A atitude de se interrogar sobre o porvir da humanidade e da terra e, como ser livre e responsável, de concorrer para o preparar e preservar, eliminando os riscos do ambiente, tanto natural como humano; (…) a confiança de que, nos seus mecanismos evolutivos, a natureza esconde potencialidades que compete à inteligência e à liberdade descobrir e pôr em prática para alcançar o desenvolvimento que se encontra no desígnio do Criador.
Daqui decorre que
Por mais limitada que seja, a obra do homem participa no poder de Deus e é capaz de construir um mundo adequado à sua dúplice vida corpórea e espiritual; edificar um mundo humano para todos os seres humanos, e não para um grupo ou classe de privilegiados. Esta esperança e confiança em Deus, Autor da natureza, e na capacidade do espírito humano são capazes de conferir ao investigador uma nova energia e uma profunda tranquilidade.
Mas o Papa adverte para o risco tentador inerente à autonomia do homem, que pode levar ao pecado contra o Criador:
É também verdade que a obra do homem, quando a sua liberdade se torna autonomia – que não é liberdade, mas autonomia – aniquila a criação e o homem toma o lugar do Criador. Eis o grave pecado contra Deus Criador!

Grande Papa Francisco, que não se arredando um passo da doutrina, a torna mais clara, quiçá mais atraente, mais humana! E longe de romper com a Tradição a revaloriza com as sementes que ela contém de inovação e transformação do homem e das coisas.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Em maré de tal confusão, nem sei bem o que dizer: por isso digo!

Em maré de erros dos serviços do Ministério da Educação e Ciência (MEC) atinentes à colocação de professores muita coisa tem acontecido, muito se tem falado e nem sempre da melhor maneira. O Diretor-Geral da Administração Escolar demitiu-se, logo outra pessoa foi designada para ocupar o cargo; um secretário de Estado pôs o lugar à disposição e outro ascendeu ao cargo saindo do posto de Diretor-Geral da Educação. Não sei mesmo se esta movimentação tem somente a ver com erros dos serviços, plagiatos, cortes de financiamento ou com a situação pandémica que se instalou no setor e que deixa a sociedade um pouco à nora.
Ouvi hoje, 29 de outubro o programa “Opinião Pública”, da SIC Notícias, e tenho a séria impressão de que Jorge Coelho tinha completa razão ao referir, em tempos, à entrada para o “Quadratura do Círculo”, que em Portugal não há memória.
Gostei de ver Maria do Carmo Vieira, professora do ensino secundário aposentada, a enaltecer o papel dos professores e a denunciar, alto e bom som, a desconsideração que largos setores da população nutrem pela função docente induzidos por gente do poder, que lançou a onda da mentira e do descrédito com o objetivo claro de fomentar a privatização da educação. Mais: acusou ousadamente o toque das ideias pedagógicas peregrinas que não levam a nenhum termo e apenas servem para sobrecarregar o docente, funcionalizando o professor e desviando-o da sua missão essencial: ensinar. E acompanhou as críticas veementes de telespectadores interativos que se atiraram ao chorrilho de critérios e subcritérios que ensarilham o procedimento concursal dos candidatos à contratação de escola. Falou mesmo da tentativa de estupidificar a escola.
Fez alguns reparos a algumas das estruturas sindicais, nomeadamente as mais próximas dos partidos do arco do poder. Defendeu, com alguns participantes no programa, o regresso a normas de maior simplificação como as existentes até não há muito tempo. E respondeu com fulgor às afirmações de que os professores só fazem barulho e que não querem ser avaliados nem têm feito nada para mudar o ensino. Pormenorizou com o seu próprio exemplo e o de muitos outros, que têm dado ao MEC informações, sugestões e propostas de melhoria, que são lançadas no rol do esquecimento porque não interessa efetivamente a melhoria, mas a desvalorização da escola pública e a sua entrega a privados.
Por outro lado, diga-se que a avaliação que se desenha no panorama das políticas públicas de educação – como a do ingresso na carreira, a avaliação do desempenho ou a famigerada avaliação curricular, prevista nos decretos-lei que regulam os concursos (DL n.º 132/2012, de 27 de junho, alterado pelo DL n.º 143/2013, de 22 de outubro, e pelo DL n.º 83-A/2014, de 23 de maio) – não são totalmente revestidas de seriedade, não levam a lado nenhum (exceto quando se estribam na observação de aulas e na análise de documentos e ações prévias e posteriores à aula), a menos que se intervenha na formação inicial e se incuta a formação contínua regular, obrigatória e gratuita. Por isso, os docentes não rejeitam a avaliação, mas uma certa avaliação.
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Porém, o “Opinião Pública” apontava como desejável que os currículos e programas das diversas disciplinas não andassem a mudar tão frequentemente e que os concursos fossem lançados mais cedo, já que é possível hoje, com os meios de informação disponíveis, haver uma estimativa muito aproximada do número de alunos que vão frequentar a escola, no ano letivo seguinte e do número de professores necessários. Isso já aconteceu e com sucesso. O concurso para os professores dos quadros abria anualmente em janeiro/fevereiro, eram publicadas as vagas existentes nas diversas escolas e os docentes eram colocados com a devida antecedência. Depois, vinham os concursos para os professores profissionalizados e para os provisórios. As necessidades supervenientes eram objeto dos chamados miniconcursos, a nível de escola ou a nível dos CAE (centros de área educativa), já não existentes.
Algumas falhas havia naturalmente, mas não como agora. O sistema era mais aberto e os resultados mais previsíveis e controláveis. Hoje, a abertura de vagas nos quadros é residual; o concurso para os docentes dos quadros é plurianual; e, anualmente, temos o concurso para destacamento de docentes do quadro por ausência da componente letiva (DACL), para docentes do quadro a destacar por condições específicas (DCE), para docentes profissionalizados para contratação inicial e para docentes para bolsas de contratação a nível de escola (BCE).
Em que sentido é que há, do meu ponto de vista, falta de memória? Em vários aspetos, como é de explicar.
Em primeiro lugar, não corresponde à verdade dizer-se que dantes as escolas tinham um grande grupo de professores estável e, depois, eram colocados os outros a tempo e horas. Não é verdade de todo. Nas décadas de 70 e 80, a maior parte das escolas (a não ser algumas das dos grandes centros) dispunham de muito poucos professores efetivos (algumas, nenhum), sendo a maior parte provisórios. O número de efetivos cresceu com o lançamento, sucessivamente, da profissionalização em exercício, formação em serviço e profissionalização em serviço (neste último esquema, os docentes que no fim do 1.º ano de profissionalização tivessem completado 6 anos de serviço eram dispensados do 2.º ano). Entretanto, vieram os docentes profissionalizados das licenciaturas em ensino (das universidades novas e, mais tarde, também das outras), além dos que já vinham do ramo educacional, nalgumas áreas. Eram professores que vinham já profissionalizados das universidades, vindo mais tarde o mesmo a acontecer com as escolas superiores de educação. Acresce que o DL n.º 18/88, de 21 de janeiro, dispensou da profissionalização os docentes detentores de habilitação própria que, ao tempo, estivessem ao serviço e tivessem lecionado durante 15 anos letivos completos.
Como o Ministério da Educação (ME) fazia depender a declaração de vaga da média de lugares necessários nos últimos três anos, os quadros foram-se compondo. Mas é de acrescentar que o DL n.º 342/78, de 16 de novembro, que – através de contrato anual ou por menos tempo, “estabelece normas sobre a formalização das nomeações do pessoal docente não profissionalizado dos ensinos preparatório, secundário e médio” – prevê no n.º 2 do seu artigo 11.º, a possibilidade da contratação plurianual de docentes não profissionalizados. Tal previsão ficou estabelecida no DL n.º 519-T1/79, de 29 de dezembro, que instituiu o sistema de profissionalização em exercício, a que se sucedeu o DL n.º 580/80, de 31 de dezembro, que, através algumas alterações, procedeu à consolidação do sistema de contratação plurianual e ao sistema de profissionalização em exercício. Depois, o DL n.º 150-A/85, de 8 de maio, na redação dada pela Lei n.º 8/86, de 15 de abril, vem permitir o ingresso nos quadros, embora a título não definitivo, de professores detentores de habilitação própria, desde que observadas algumas condições, por exemplo estarem colocados em contrato plurianual ou estarem em sistema de profissionalização em exercício, que passou a ser o da formação em serviço.
Não obstante, o ano de 2004 fica na história do sistema educativo português como o ano da maior balbúrdia e do maior atraso da colocação de professores. O ME quis no mesmo momento mobilizar a candidatura de todos os educadores de infância e professores de todos os ciclos do ensino básico e do ensino secundário (concurso interno, professores dos quadros; e concurso externo, profissionalizados com vista a contrato – estes com vista a horários completos, horários de 18 horas e de 11 horas). A empresa informática, sem experiência no ramo e perturbada pelas sucessivas indicações da equipa de procedimentos do ME, e o volume de candidatos em ação deram azo à descredibilização do sistema central de colocações. O sistema não saía do inêxito. Muito fora de tempo foi resolvido o problema, mas com ministros do governo seguinte.
O que se passa agora, por mais que se diga em contrário, não tem a dimensão de 2004. A maior parte dos professores estão a lecionar e a maior parte dos alunos está com aulas. Todavia, a situação é extremamente grave, porque a experiência acumulada não permitia admitir este género de erros. Coisas que já funcionaram bem não podiam ter regredido. Não havia motivo para introduzir uma fórmula matemática insuficientemente testada, de efeito perverso. Nunca se pagaram tantos impostos como agora, o que exige melhores serviços e não a confusão setorial.
É imoral brincar com a sorte de cerca de 800 candidatos à docência, prejudicar e fazer balançar de localidade para localidade perto de 200 docentes (um colocado em 104 horários!). É antissocial, antipedagógico e imoral deixar 35 mil alunos sem aulas durante quase dois meses. Isto, pelos critérios e subcritérios, plataformas e aplicações informáticas. Reduziram os alunos, as escolas e os alunos a uns bits, bytes e megabytes. Apetecia-me falar à Porto, mas quem ler merece respeito.
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Porém, valerá a pena pensar em aulas suplementares, acabar com exames do ensino básico, adiá-los ou suspendê-los? E os alunos do ensino secundário não têm exames?
Primeiro, o ano letivo e programado para a lecionação e seu reforço, sujeito a imprevistos. Depois, nem os alunos devem ser formados “por atacado” nem o trabalho de professor pode ser de escravo.
Não sou um apóstolo dos exames (provas finais) nem um seu opositor. Em todo o caso, considero que é vantajoso habituar desde cedo (4.º e 6.º ano) os alunos a ambiente de exame (que a vida no futuro lhes exige de forma cruel). Contudo, as provas finais deveriam ser no fim e não perto do fim e considerar as vicissitudes do ano. Nem o peso que elas têm (30%) justifica o pânico instalado nem a obsessão preparatória para elas. Se se puder investir na ação pedagógica segundo metas e programas e respeitando o ritmo dos alunos (não os caprichos), não há medo de exame. Ter exame final/prova final no fim de ciclo é opção meramente política, com vantagens (criar habituação, à vontade e seriedade) e desvantagens (desvalorizar o sistema de aprendizagens, fazendo-as gravitar em torno do exame, como alguns fazem em torno dos testes). Demais, a criação de ambiente de exame pode ser feita de outra maneira. E a aferição do sistema de ensino pode ser feita por amostragem (desde que as amostras sejam significativas).

Por tudo, há que exigir ao Governo que pare de cometer erros e de sobrecarregar a população escolar e solicitar às vozes críticas que façam mais esforço de memória e critiquem tudo, mas só o que é criticável. Enfim, que todos lutem por uma escola pública de qualidade!

terça-feira, 28 de outubro de 2014

A Igreja e as Forças Armadas

A recente leitura que fiz do livro Relações entre a Igreja e o Estado: no Estado Novo e no pós-25 de abril de 1974, de António Teixeira Fernandes, suscitou-me reflexão sobre o tema em epígrafe. É certo que o escopo do livro não era propriamente este, mas enquadrar criticamente a problemática suscitada em torno da ação de D. António Ferreira Gomes no âmbito das relações entre Igreja e Estado, mormente no tempo do Estado Novo. No entanto, o autor faz referências um tanto críticas à homilia do prelado portuense no Dia Mundial da Paz de 1972, não tanto na matéria que se refere à teoria da guerra, mas no juízo sobre as “virtudes” dos capelães militares.
É claro que, a partir da segunda metade do século XX começa a crescer, nos diversos círculos cristãos, a ideia de que nada justifica a guerra, sobretudo aquela que é feita em nome duma religião, duma fé – que implica a invocação do santo nome de Deus em vão – ou em nome de uma civilização, por mais ocidental e cristã que se afirme, porque significará a intolerância em vez do encontro de culturas e diálogo civilizacional, uma forma de racismo pela minoração da identidade de outros povos.
No caso português, o Estado via-se, a partir de 1961, envolvido numa guerra – que alguns não chamavam guerra, mas luta contra os terroristas – de manutenção a todo o custo do império ultramarino, em nome duma pátria dita plurirracial e pluricontinental. O conceito de “raça”, elaborado no quadro da Primeira República para definir a identidade da totalidade da nação portuguesa, ganha uma nova semântica no tempo do Estado Novo e, em especial, no quadro da guerra colonial. O 10 de junho passava por ser o Dia de Portugal, também cognominado como o Dia da Raça (Recordo que, há uns anos, o Venerando Chefe de Estado Cavaco Silva falou do Dia da Raça sem se explicar e foi acoimado de saudosista de tempos salazaristo-caetanistas!).
Hoje especula-se se os líderes do Estado Novo tinham efetivamente a ideia da manutenção, contra o cerco das nações, do Império ou se estavam a preparar, a prazo, uma descolonização à Brasil. Por verdadeira, a 2.ª hipótese, nada abona a nível da sinceridade e da transparência; porém, no caso da primeira hipótese, tínhamos a onda da temeridade a dominar o espectro ideológico dos governantes, a pairar sobre um povo que se estava a esvair em população válida numa guerra inglória, acompanhada pela sangria emigratória. Em qualquer dos casos, era, no ambiente psicossocial do “orgulhosamente só”, a negação da autodeterminação dos povos, a menorização das gentes e a preparação em lume brando para a guerra interna nas colónias.
O professor de Economia Social e Política no Seminário Maior dizia abertamente que a guerra ultramarina levaria, mais dia, menos dia, à independência dos povos que estavam sob a tutela portuguesa, fazendo o paralelo com o que se passa com a emancipação e habitual casamento dos filhos na família, que é um fenómeno problemático em muitos casos, mas inevitável. E defendia que era obrigação do Estado, tal como na família, cuidar do crescimento rumo à independência.
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Lembro-me de que, ao tempo, alguns eclesiásticos discorriam sobre a diferença entre a guerra justa e a guerra injusta. Claro, a portuguesa, nesta ótica, era justa, como convinha.
Hoje, constitucionalmente entende-se como papel das Forças Armadas – subordinadas ao poder político – a prevenção contra eventual invasão externa e o apoio das populações em situação de calamidade. Resta saber como se legitima, à luz deste papel redutor, o ato de golpe de Estado ou como se resistiria a um eventual invasor com forças armadas tão exíguas.
Por outro lado, hoje multiplicam-se as operações militares internacionais de promoção ou de manutenção da paz ou as operações de caráter humanitário. Que hipocrisia! Outras vezes, mobilizam-se forças militares multinacionais, no quadro da Nato ou sob a égide da ONU, contra regimes ditatoriais, ou apoiam-se movimentos oposicionistas que chegam a derrubar governos tirânicos (às vezes, legítima e democraticamente eleitos) e as consequências são mais ditadura, mais morticínio, mais desalojamento!
No entanto, o Papa Francisco retoma claramente o princípio tomista da legitimação da sublevação popular contra o tirano (não propriamente o usurpador do poder), o que exerce o poder com o esmagamento do povo, a repressão sistemática e dura opressão. Veja-se o que disse o Papa aos jornalistas no voo de regresso da Coreia do Sul, em 18 de agosto:
“Nestes casos, em que há uma agressão injusta, posso apenas dizer que é lícito fazer parar o agressor injusto. Sublinho o verbo: fazer parar. Não digo bombardear, fazer a guerra, mas fazê-lo parar. Os meios, pelos quais se pode fazê-lo parar, deverão ser avaliados. Parar o agressor injusto é lícito. Mas devemos também usar a memória! Quantas vezes, com esta desculpa de parar o agressor injusto, as potências se apoderaram dos povos e fizeram uma verdadeira guerra de conquista! Uma nação sozinha não pode julgar como se para um agressor injusto. Depois da II Guerra Mundial, afirmou-se a ideia das Nações Unidas: é lá que se deve discutir, interrogar-se: ‘É um agressor injusto? Parece que sim. Como é que o fazemos parar?’. Digo apenas isto, nada mais.”.
No entanto, o Papa insiste no termos “fazer parar” e denuncia o oportunismo bélico como rampa de lançamento para a guerra de conquista, de dominação. Mais: retira da alçada de uma só nação a capacidade de julgar do método de travar o agressor injusto.
Resta ainda dizer que muitas das intervenções militares se fazem por motivos economicistas, nomeadamente o petróleo, e para testar os equipamentos cada vez mais sofisticados e mais mortíferos.
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Porém, há que saber o que deve fazer a Igreja quando o Estado em que se move entra numa guerra, mesmo que injusta. Se vai à guerra, parece abençoá-la; se a anatematiza, se a condena sem mais, pode estar a afastar-se de quem mais precisa – aqueles que têm de ir à guerra em nome do compromisso que assumem com o Estado que juraram servir, seja no regime de serviço militar obrigatório, seja no regime de contratação voluntária –; e, se não se pronuncia ou não acompanha os militares, resta a ambiguidade, num caso, e o abandono, no outro.
A Cruz Vermelha Internacional foi criada exatamente para cuidar das vítimas da guerra, independentemente do seu caráter justo ou injusto e da proveniência dos beligerantes. Idêntica postura toma o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).
Quanto à Igreja Católica, ela deve tomar posição pastoral. Ninguém no seu bom juízo pensa que a Igreja – cristãos e hierarcas – queiram que haja mortos, doentes, acidentados, criminosos e reclusos. E há cemitérios, hospitais e prisões. Ninguém de fé católica deixa de acolher a presença eclesial no cemitério ou em torno do agonizante ou do defunto (desgraçadamente o Governo suprimiu um feriado que os portugueses, à semelhança de tantos outros povos, aproveitavam para honrar os seus defuntos. Do alto da sua piedade pelos antepassados os velhos romanos devem lançar ruidosas imprecações contra os seus lusos vindouros!). Ninguém de fé católica deixa de acolher a presença eclesial no hospital junto do doente ou do acidentado (É certo que aqui e ali surgem conflitos com o Estado. É a força da separação separadora!). Ninguém de fé católica deixa de acolher a presença eclesial junto dos reclusos, cuja pena tem de mostrar também a vertente redentora. Que bem faz a pastoral dos reclusos sob a orientação do padre Dâmaso Lambers e a sua associação “O Companheiro”!
Ao nível militar, a postura tem de ser similar. Na retaguarda, os bispos têm a obrigação de questionar os poderes políticos sobre a legitimidade da guerra e sobre o papel das forças armadas, tal como os governantes têm o dever de definir e atualizar o conceito estratégico de defesa nacional, saber, a nível superior, planear e avaliar toda a ação militar. Porém, os militares que o desejem devem ter acesso à assistência religiosa em ambiente militar, tanto em tempo de guerra como em tempo de paz. Por isso, devem ser celebrados os protocolos necessários. O que digo da Igreja Católica, digo-o para as outras confissões religiosas. A secularização impõe a incorporação das diversas valências sociais e não a exclusão dumas ou de todas (se não forem do estrito âmbito das funções do Estado). No teatro de guerra, não se discute a sua bondade ou injustiça, mas a moderação a imprimir em comportamentos e atitudes e a prevenção de excessos. Nem vale aduzir, para argumentar em contrário, as razões que levavam alguns sacerdotes a apresentarem-se voluntariamente para a guerra colonial (o espírito de aventura, o mal-estar com os prelados, o desafogo de vida, etc.  – ou  o espírito apostólico).
Sobre esta matéria é conveniente escutar o que referiu D. Manuel Linda, bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança, que presidiu, no passado dia 26 de outubro, em Beja, à celebração eucarística evocativa do Dia do Exército. O prelado castrense afirmou para quem quis ouvir que “a Igreja acompanha os militares em qualquer circunstância” (vd Ecclesia, 26).
Falando dos capelães militares e seus colaboradores, afiançou:
É verdade que, em tempos de paz, este serviço é mais fácil e simpático. Mas também é certo que, mesmo em situações de guerra, os que prestam assistência espiritual sabem compartilhar os mesmos riscos”.
Embora de forma arejada, recupera a postura pastoral assumida por D. António dos Reis Rodrigues, bispo de Madarsuma, antigo vigário geral castrense, na sua dura carta a D. António Ferreira Gomes, bem como a condenação da guerra por este assumida em 1 de janeiro de 1972.
Sendo habitualmente muito duro na denúncia das situações decorrentes da prepotência do poder financeiro que apouca o poder político, asfixia a economia e humilha a vida dos mais pobres, quando aponta o dedo à governança interna é suficientemente claro, embora contido. Assim, frisa que a Igreja acompanha o povo “esteja ele onde estiver” e permanece “até ao fim”, mesmo que “os serviços, as estruturas e os equipamentos públicos se retirem” (Sublinhei).
Falando da estrutura pastoral que lidera, D. Manuel valoriza o “acompanhamento espiritual aos militares” em Portugal, enquadrado pela “estrutura máxima da sua forma de organização”, o “Ordinariato Castrense”, uma “verdadeira Diocese pessoal, em tudo igual às outras, com a mesma dignidade e exigências das territoriais”.
Vai ao ponto de dissipar dúvidas, comparando-nos com outros países:
“Assim acontece em todos os países que pertencem à NATO, onde o catolicismo é significativo, e assim acontece também em muitos outros países do mundo, mesmo naqueles cujo regime não prima pela simpatia para com a Igreja”.
E deixa a sua frase lapidar em comemorações do Dia do Exército:
“O Exército está com o povo, o povo está com o Exército e a Igreja está com um e com outro”.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Sobre os erros dos políticos, o pranto, a desculpa e a justiça!

O Expresso do dia 25 de outubro insere um artigo de Rui Gustavo sob o título interrogativo “Quando a Justiça condena políticos, isso é perseguição?”
O articulista cita, como é óbvio, os casos de Armando Vara e José Penedos, do caso mediático “face oculta”, que foram condenados a pena de prisão efetiva, e Maria de Lurdes Rodrigues, que foi condenada a pena de prisão, mas com o cumprimento de pena suspenso (e só não será presa se devolver 30 mil euros ao Estado), pelo crime de prevaricação, ou seja, por ter entregue mais de 200 mil euros ao advogado João Pedroso para fazer um estudo que, segundo o tribunal, era inútil.
Armando Vara (ex-secretário de Estado e ex-Ministro), José Penedos (ex-secretário de Estado) e Maria de Lurdes Rodrigues (ex-Ministra) apresentam a situação comum de terem sido ministros de governos da mesma área política, o PS. E esta última é condenada por atos praticados no estrito exercício das suas funções governativas e não por atos extra governamentais, embora eventualmente valendo-se do cargo.
É óbvio que os arguidos vão interpor recurso para os tribunais superiores, pelo que as preditas decisões judiciais ainda não transitaram em julgado, devendo, por isso, aguardarem-se as decisões definitivas.
Rui Gustavo tem razão ao questionar se estes políticos são ou não objeto de perseguição como se pode perguntar se efetivamente eles estão a ser discriminados ou se haverá uma má vontade da Justiça contra a Política.
É certo que Leonor Beleza, quando Ministra da Saúde, esteve quase à beira da barra do tribunal por causa do caso dos hemofílicos, mas, embora, não tenha chegado a ser julgada, não evitou o labéu que a Comunicação Social contra ela ostentou aos quatro ventos; e Costa Freire, Secretário de Estado da Saúde, foi condenado a pena de prisão efetiva, por burla ao Estado. O caso deste acabou por prescrever, graças aos sucessivos recursos até ao Supremo Tribunal de Justiça e ao Tribunal Constitucional.
Alguns detentores de cargos políticos de nível menos elevado – presidentes de câmara municipal e de junta de freguesia – lá se viram também condenados ou, pelo menos, presos preventivamente por atos cometidos no exercício das suas funções (recordo os casos de Castro Daire, Nazaré – condenação efetiva – e Guarda). Nesta perspetiva, não sei é mesmo verdade dizer-se que “nunca houve tantos políticos condenados em tribunal”.
Por trás disto estarão somente os atos praticados? Alguns dos envolvidos – diz Rui Gustavo – queixam-se de estarem a ser discriminados. Armando Vara, do seu ângulo de vista, desabafou dizendo “estar em choque” e com a sensação de que “a sentença não é sobre as acusações, não é sobre o que estava em causa”, mas antes “tem muito que ver com a minha circunstância”. E o seu advogado Tiago Bastos Rodrigues opina que “o tribunal, ao invés de ter julgado as condutas dos arguidos, está a julgar as personalidades dos arguidos, o que entende ser o seu perfil”.
Pode não ser essa a intenção dos tribunais. Mas os sintomas de discriminação parecem existir. Muitas falhas são apontadas na governação da República e das autarquias. Pelo que transvaza para a comunicação Social, muitos atos configuram abuso de poder, discricionariedade grave, negligência grosseira, atropelo de regras, etc. Uns poucos vão a tribunal, um número diminuto sofre condenação no âmbito administrativo, no âmbito civil e pouquíssimos no âmbito criminal. Que é dos outros? Falta a eficácia das inspeções, do Ministério Público, dos tribunais? São atropelados os formalismos judiciários? Será que alguns são objeto de “discriminação” positiva ou os seus atos serão descriminalizados ou objeto de “descriminação”?
Conta-se que Luís Filipe Menezes, ao debater-se com a Justiça no caso das viagens fantasmas de deputados, questionava a ausência dos outros, quando se tratava de prática comum (o deputado requisitava títulos de autorização de viagem por avião de classe executiva e viajava em classe turística: dava para mais viagens ou para levar acompanhante). Pergunta similar terá feito Oliveira e Costa quando se via só enquanto arguido no caso BPN.
Os arguidos da autarquia lisbonense foram todos absolvidos no caso da permuta de terrenos Feira Popular-Parque Mayer.
Que não se queira fazer discriminação, acredito; que ela existe, existe. Só Maria de Lurdes é que merece condenação? David Justino ocasionou o maior caos de colocação de professores no período dos governos constitucionais. Nem foi condenado, nem pediu desculpas públicas. Nuno Crato impôs uma fórmula matemática errada num setor da colocação dos professores e Paula Teixeira da Cruz criou a derrocada da reforma judiciária. Pediram desculpas públicas – atitude dita inédita e histórica. Paula, suplementarmente, participou à PGR por suspeita de crime de sabotagem no caso do CITIUS.
O Diretor-Geral da Administração Escolar deixou o cargo na sequência do pedido de desculpas apresentado pelo Ministro da Educação e Ciência, que sublinhou o erro dos serviços do MEC, que não dos diretores das escolas. Sucedeu-lhe no cargo a mestre Maria Luísa Gaspar do Pranto.
Se as situações não fossem sérias, seria caso para concluir: sobre os erros dos políticos o pranto, a desculpa, a discriminação e, eventualmente, uma condenaçãozinha (a justiça pequena)! 
É certo que há vários tipos de condenação – a civil, a administrativa, a criminal e a política – consoante o tipo de erros. Alguns nem a condenação política sofrem. A confiança do Chefe mantém-se e muitos conseguem a reeleição, a condecoração ou um lugar melhor.
***
Passo ao lado da situação de Duarte Lima, que está a braços com a justiça por motivos que só remotamente terão a ver com a política, por ter sido há bastantes anos líder do seu grupo parlamentar, mas o certo é que efetivamente eles decorrem mais do prestígio que deriva da sua prestação na advocacia.
Não devo, porém, deixar de colocar a hipótese da perseguição.
O advogado de José Penedos refuta a tese da perseguição. Não quer mesmo crer numa perseguição judicial aos políticos:
“Isso seria equivalente ao último garante da igualdade tratar uns como cidadãos de segunda e ir atrás do populismo que tem ganho campo na sociedade e nalguns meios de comunicação social. Passaríamos da alegada impunidade ao seu oposto, ou seja, uma presunção de culpabilidade ou de especial exigência à partida, já para não falar em tentações de punir os políticos por outras coisas que não as que estão em causa nos processos.” (vd Expresso, pg 21).
Já a ex-ministra da Educação, que vai recorrer da sentença, garante que foi “condenada sem provas”. Mais: confessa que, durante o julgamento, sentiu “preconceito contra os políticos”. E aduz um caso concreto que relata ao Expresso: “Depois de ter pedido para falar e de ter prestado declarações, ouvi o procurador a dizer, num aparte, que não havia pureza na política”.
Já nos esquecemos do caso de Paulo Pedroso, do PS, que foi objeto da justiça-espetáculo. O Juiz de instrução criminal foi pessoalmente à AR solicitar o levantamento da imunidade parlamentar daquele deputado, que sofreu a prisão preventiva como medida de coação. Depois, o PS festejou mediaticamente o regresso do deputado ao plenário da AR. Porém, apesar de profissionalmente bem colocado, ele confessou, há tempos, que a praça pública o julgou e condenou. Por isso, para não atrapalhar o percurso do seu partido, ter-se-á retirado de cena, embora tenha feito uma última tentativa quando se candidatou, sem êxito, à presidência de uma autarquia. E Ferro Rodrigues, também do PS, defendeu a tese da “cabala”, ao ser interceptado, embora sem sucesso judiciário, nas malhas do processo “Casa Pia”, processo de que, aliás, resultou um número residual de condenados e num contexto de contradições, em que a justiça se terá feito mais em nome das vítimas que em nome do direito.
Em termos factuais, se excetuarmos o tempo do consulado governativo de Cavaco Silva, os poucos políticos condenados por atos ligados à ação política pertencem a um determinado quadrante político.
Não creio que a mudança resida apenas no facto de antigamente os crimes prescreverem com o tempo passado nos sucessivos recursos, quando atualmente os prazos de prescrição ficam suspensos na pendência de recurso para os tribunais superiores.
Alguns dos próprios operadores da justiça vão dizendo eufemisticamente: “Talvez seja o subconsciente dos juízes que se manifesta quando têm à frente um político ou um empresário acusado de fuga ao fisco. É outro efeito da crise”, infere Germano Marques da Silva (vd artigo citado).
Dantes, os tribunais não condenavam os políticos e dizia-se que os defendiam. Agora que os condenam, já se diz que os perseguem”, raciocina Sá Fernandes (id et ib).
Será de acolher a sugestão da ex-governante na área da educação, em termos da necessidade de um debate público sobre esta matéria, não venha acontecer que uma pessoa seja condenada só por ter exercido um cargo público? Haverá mesmo um movimento da Justiça contra a Política? Ou vamos aceitando que sobre os erros dos políticos nos reste a resignação circunscrita ao pranto e ao pedido de desculpas?

A política e a justiça só lucrariam com a clarificação, já que muitas vezes “o que parece é”.

domingo, 26 de outubro de 2014

26 de outubro de 2014: um centenário e um 890.º aniversário

É verdade. E já que gostamos de celebrar efemérides – e fazemos bem – ocorre-me evocar a celebração do Batismo do cónego José Cardoso de Almeida, precisamente a 26 de outubro de 1914, na igreja românica de Sernancelhe, e que nascera a 8 de agosto daquele ano na paróquia de Nossa Senhora do Amial, freguesia de Vila da Ponte, do concelho de Sernancelhe. Esta memória do seu batismo foi bem frisada em 25 de outubro de 1992, justamente na igreja matriz de Sernancelhe, pelo pároco e então arcipreste, hoje Monsenhor Cândido Azevedo, no âmbito de homenagem que a diocese de Lamego, por iniciativa do concelho, prestou àquele que ficou para memória como o “Catequista dos Catequistas”, o inefável amigo das crianças da catequese.
Em centenário do começo da I Grande Guerra, quero lembrar um homem de paz a conseguir-se pela educação e educação cristã.
 Por outro lado, o 890.º aniversário referenciado na epígrafe diz respeito à outorga do foral velho de Sernancelhe, que ocorreu no 7.º dia antes das calendas de novembro, era de mil cento e sessenta e dois, como reza o texto latino do foral, transcrito pelo Abade Vasco Moreira na sua monografia do concelho de Sernancelhe, em 1929, sob o título Terras da Beira – Cernancelhe e seu Alfoz, de que mais adiante farei pequeno comentário a partir da tentativa de tradução que fiz em 2002 no meu Da Varanda do Távora – Sernancelhe na Marcha da Torrente. Para já, devo explicitar que aquela datação corresponde à era de César, que grosso modo se transfere para a nossa era cristã ou gregoriana subtraindo ao ano em causa a parcela de 38 (1162-38=1124). Por outro lado, a datação romana, expressa pelo numeral ordinal (hoje adjetivo numeral), reporta-se habitualmente ao marco mensal seguinte (Calendas, Nonas e Idus), neste caso, as calendas de novembro. Ora o 7.º dia antes das calendas de novembro, porque outubro é mês de 31 dias, contando-se o terminus a quo e o terminus ad quem, equivale ao nosso dia 26 de outubro, neste caso de 1124.
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Quem foi o cónego José Cardoso de Almeida – primeira evocação do dia, apontada supra?
Nascido, como se indicou já, em 8 de agosto de 1914 na freguesia de Vila da Ponte, após a conclusão do ensino primário, fez os seus estudos no seminário diocesano e foi ordenado sacerdote a 26 de julho de 1942, na igreja paroquial da sua terra natal, por Dom Agostinho de Jesus e Sousa. Ao longo do seu percurso pastoral foi nomeado cónego honorário da Sé Catedral de Lamego, passando mais tarde a integral o cabido da catedral como cónego capitular.
Fica na memória eclesial da diocese de Lamego e em várias outras do país como sacerdote zeloso e prestigiado. Desenvolveu notável ação pedagógica inovadora nos campos da pregação e das catequeses. Caldeava muito bem a humildade colaborante em todos os setores da atividade pastoral com a crítica atempada, clara e vigorosa.
Bem cedo o pároco de Vila da Rua – qualidade em que iniciou o labor apostólico – graças ao seu poder inovador em catequese, foi chamado a dirigir o Secretariado Diocesano da Catequese e a visitar as catequeses paroquiais. O homem eminentemente prático, mercê da intuição, estudo e contacto com outras realidades, transmutou-se no teórico-prático. Não obstante, não olvidou o tempo de pároco e recusou utopias ou teorias que não pudesse demonstrar ou não pudesse levar à prática. Mobilizou em torno da catequese, nos diversos níveis etários, uma plêiade colaboradores em quem inalou fulgor evangélico-apostólico, criando esquemas e meios de sensibilização, formação e celebração. Encabeçava a organização de cursos ou ajudava a constituir equipas formadoras. Organizou, a nível concelhio e diocesano, concentrações, certames catequísticos e congressos eucarísticos, planos e jornadas de formação e pastoral familiar. Criava empatia e inspirava boa disposição. Suas palavras e expressões revelavam saber e bonomia, ciência e sentido prático.
Convicto dos inusitados desafios que se colocavam às famílias, propôs a criação do respetivo secretariado diocesano, de que foi o primeiro diretor. Não se entregando somente a iniciativas de que fosse o autor, servia. Assim, também dirigiu a Obra das Vocações e Seminários e assumiu interinamente a direção do Secretariado Diocesano da Educação Cristã da Juventude.
No seu justo saber, entendeu que a educação de crianças e jovens pastava necessariamente pela formação dos pais. Por isso, multiplicou as palestras e cursos de formação para os pais.
Foi ainda, durante largos anos, professor de Pedagogia Catequística no Seminário Maior e de Moral na Escola do Magistério Primário de Lamego, desde o momento da sua criação.
Veio a finar-se, em Lamego, a 30 de janeiro de 1984 (já lá vão 30 anos), sem que alguém contasse. As exéquias em Lamego e Vila da Ponte constituíram celebração de saudade e apoteose ao homem, ao sacerdote, ao pedagogo – que ensinava a ensinar, ensinava a aprender e aprendia ensinando.
Resta a lembrança das suas palestras e pregações e o rol extenso de publicações como repositório de produção intelectual de caráter metódico, exposição fácil e simpática de conteúdos, afirmação convincente de ideias, jeito de provocar a resposta, habilidade de estabelecer diálogo.
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Quanto ao foral de há 890 anos, há que dizer que não é de outorga real nem condal. Foi outorgado por dois ricos-homens de Entre Douro e Minho, Egas Gosendes e João Viegas.
O texto é encimado pelo formulário de invocação trinitária, em voga em documentos congéneres de interesse público e nas crónicas, revelador da ordem político-jurídica sob o signo da religião e fé cristãs.
A João Viegas apõe-se o designativo de supranominato, quando não consta de qualquer outro documento, o que supõe que lhe é feita especial menção pelo seu cargo em Sernancelhe.
A carta de foral não supõe que Sernancelhe estivesse despovoado. Pelo contrário, até refere, no fim, como um dos destinatários o povoador. Visa, antes, o aumento da população. A carta não parece institutiva do concelho, que se supõe pré-existente, mas dá-lhe um estatuto autonómico (regime do foro: autonomia, forma de administração e ocupação do território, direitos e deveres) à luz do qual se procederá e julgará.
O regime foraleiro consigna rendas e foros por haveres, tempos e trabalho; estabelece as penas pelos crimes, que se especificam: homicídio, homicídio com fuga, rapto, furto, amputação de membros, agressões, apreensões e invasões, destruição de igrejas e enxovalhamento, colocação de lama ou “merda” na boca ou na face, adultério e fornicação. Prevê também o desafio por juízo de Deus ou ordálio
Determina-se o zelo pelo estatuto e direitos e a obrigação de defesa e proteção; o zelo pelo bem da alma, o casamento e a constituição de herdeiro. Preveem-se penas por crimes políticos, nomeadamente a agressão especial, o litígio ou contenda contra vizinhos ou contra o senhor, bem como a traição; e estabelece-se a obrigação de o senhor responder aos apelos de socorro da parte dos moradores contra os inimigos externos.
Define-se o regime de instituição dos magistrados e seus direitos, privilegiando-se a eleição, preceitua-se a obrigação de julgar antes de aplicar a pena, consignam-se os direitos do senhor, prevê-se a mudança de estatuto dos moradores e estabelecem-se penas e encargos adicionais.
São definidos os limites do município e elencam-se penas para qualquer senhor que não os reconheça ou os queira alterar.
Por fim, vem a aposição da data, a assinatura e autenticação, a cláusula de salvaguarda para o alcaide que povoou a vila, filho e neto (manterão a sua “honra”) bem como a nomeação das testemunhas.
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Um documento tão meticuloso e regulador parece não querer deixar nada no olvido, pelo que se torna um pouco repetitivo, que não exaustivo. Também não remete para documentos de similar feição. No entanto, contém virtualidades ainda hoje pertinentes, de que destaco uma boa dúzia:
1) A possível, se não a desejável, igualdade entre homem e mulher – no crime, na pena, na vitimação e na intervenção;
2) A tipificação dos crimes, já que “nullum crimen sine lege”, para obstar ao julgamento arbitrário, bem como a obrigação de julgar antes da aplicação da pena, como forma de estabelecer um tipo de “habeas corpus”;
3) A gradação e proporcionalidade da pena, de acordo com o crime, o sujeito e o lesado, o lugar e o tempo e a assunção da responsabilidade;
4) O caráter redentor da pena, pois que, satisfeita a obrigação e a justiça, nada mais se deverá exigir;
5) A não previsão da pena de morte, talvez por esta ser prerrogativa exclusiva de el-rei (estamos a falar da morte decretada por tribunal como pena pela prática de um crime, não da morte consequente à defesa);
6) A proibição da acumulação de rendas ou das penas e a determinação de algumas isenções;
7) A definição de direitos civis e políticos e o regime de escolha, por eleição, dos magistrados municipais;
8) A delimitação do território, mais confirmada que instituída, e a índole não exaustiva da definição do foro;
9) A declaração da obrigação da defesa e proteção a quem trabalha e de serviço ao senhor contra os inimigos deste, bem como a obrigação de o senhor responder ao pedido de socorro dos moradores contra os inimigos externos;
10) O respeito pelas legítimas determinações tanto de ordem material como espiritual;
11) A precaução contra os abusos senhoriais;
12) A não indicação de um descendente como senhor para Sernancelhe, o que levou os moradores a acordar posteriormente como o rei a dispensa de um senhor que tutelasse a vila e a substituição dos foros senhoriais por rendas a cobrar para el-rei.

Para quem eventualmente refira a Idade Média como cenário do mais caótico e generalizado obscurantismo aqui se deixa um espécime de alguma lucidez, mesmo que a prática a tenha vindo a desmentir algumas vezes.