sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Mau o plagiato, pior a difamação!

A edição de hoje, dia 17 de outubro, do Público dá relevo de 1.ª página e de página inteira no interior, ao facto de o Secretário de Estado do Ensino Básico e Secundário João Grancho, ora demitido, ter plagiado parte de textos sobre a “dimensão moral” do professor. Segundo as palavras de Nuno Sá Lourenço, o ex-governante terá copiado, sem citar, partes de dois textos sobre educação numa comunicação que apresentou num seminário espanhol em 2007, quando era presidente da ANP (Associação Nacional de Professores).
João Grancho recusa a acusação: “Pretender associar um mero documento de trabalho, não académico, nem de autor, nas circunstâncias descritas, a um plágio é totalmente inapropriado e sem qualquer sentido” – defende.
Na verdade, o visado participou, em 2007, num seminário académico espanhol, mais propriamente numas Jornadas Europeias sobre “Convivência Escolar”, em Múrcia, com uma conferência em torno do tema “A dimensão moral da profissão docente”.
Soube-se agora, sete anos depois, pela publicação das dez páginas da sua participação no site das ditas Jornadas, que o ex-presidente da ANP e ex-governante copiou partes de documentos anteriores, da autoria de outros académicos, sem fazer qualquer referência aos seus autores. O visado, ao sentir a vergonha do peso da acusação, reagiu hipocritamente nos termos já referidos e com a apresentação intempestiva do pedido de demissão, já aceite pelo Ministro Nuno Crato, que mostrou maior espírito de aceitação que Passos Coelho em relação ao Ministro da Educação e Ciência.
Em causa estão, segundo o jornalista do Público, antes de mais, sete parágrafos no capítulo sobre “Profissionalidade e Deontologia Docente”. Em mais de uma página, Grancho reproduz segmentos continuados de uma comunicação proferida e assinada por Agostinho Reis Monteiro, professor do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa – trabalho que este apresentou, subordinado ao tema “Para Uma Deontologia Pedagógica”, em outubro de 2001, em Lisboa, no seminário “Modelos e Práticas de Formação Inicial de Professores”. João Grancho reproduziu, quase íntegra, a introdução de Reis Monteiro, além dum parágrafo de outra parte desse trabalho sobre a “questão deontológica”. Os conteúdos replicados glosam o tema da deontologia na profissão de docente, sublinhando a índole “crucial” da deontologia para o “maior prestígio social” da “profissão do professor” e ainda a necessidade da criação de uma comissão deontológica.
Por outro lado, no capítulo final da sua comunicação, o notável comunicante replica outros três parágrafos (mais de uma página) dum documento de trabalho, de abril de 2000, da Comissão Ad Hoc do CRUP (Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas) para a formação de professores, sob o título “Por uma formação inicial de qualidade”.
Os extratos do predito documento de trabalho incidiam sobre o “Estatuto do Docente Europeu”. Aí se faz – tanto no paper de Grancho como no João Pedro de Ponte (então líder do departamento de Educação da Universidade de Lisboa) e Isabel Cruz (ao tempo, vice-reitora da Universidade do Algarve), a defesa da escola enquanto “missão intelectual e social no seio da sociedade” no sentido da “garantia dos valores universais e do património cultural”.
Grancho comete o duplo erro de apresentar os excertos em causa sem os enquadrar como citação e sem fazer qualquer referência aos seus autores, mesmo que de forma vaga. Ainda por cima, a comunicação do ex-secretário de Estado inclui uma bibliografia onde são citados cinco autores, sem que nenhum destes seja Reis Monteiro ou João Pedro da Ponte.
As aludidas Jornadas Europeias sobre “Convivência Escolar” configuraram uma ação de formação contínua organizada pela Dirección General de Ordenación Académica, em colaboração com a Dirección General de Formación Professional e Innovación Educativa. A primeira das entidades regula os títulos académicos na Comunidade de Múrcia (Espanha). Os destinatários-alvo das jornadas eram o pessoal docente e outro, e a ação de formação conferia o direito a um certificado “equivalente a três créditos de formação”, emitido pelo “Centro de Professores e Recursos” daquela comunidade.
O gabinete de imprensa do Ministério da Educação e Ciência (GIMEC) esclarece que a comunicação feita na ocasião pelo ex-secretário de Estado era um “mero documento elaborado pela ANP”, servindo apenas de “suporte prévio a uma intervenção oral do seu presidente”, acrescentando que “intervenções com referência aos escritos do professor Reis Monteiro eram recorrentes em várias circunstâncias e com o conhecimento do próprio”. Sobre o segundo documento, o predito gabinete garantiu que o texto de Grancho “não foi produzido para difusão pública, tão-pouco como obra original do então presidente ou da própria ANP.
Por seu turno, Reis Monteiro, após cotejar os trabalhos em causa, admitiu a “reprodução”, mas (Saiba-se lá porquê!) escusou-se a fazer um juízo de valor sobre o sucedido. Porém, João Pedro da Ponte, ora diretor do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, foi mais explícito: “Isto é uma cópia integral, nem sequer houve trabalho de disfarçar”. E encarece o protesto: “É um tipo de prática que deve ser condenado na nossa sociedade e é de assinalar que tenha sido feito por uma pessoa com responsabilidades na Educação”. Sobre a gravidade do sucedido, o académico acrescenta: “Nós no Instituto da Educação consideramos que – e explicamos isso aos nossos alunos – é intelectualmente desonesto copiar um texto como se fosse feito por nós, seja um texto científico ou qualquer outro texto”.
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Ora o sucedido merece um múltiplo comentário.
Tanto Grancho com o GIMEC, ligados umbilicalmente à educação, deviam saber que a seriedade, a honestidade, a competência legal e técnica e o rigor (o rigor de Crato) não se exigem somente aos outros, sobretudo se estamos a tratar de convivência escolar, de moral, de ética, de deontologia, de profissionalismo. Por outro lado, não podem atirar com uns grãos de poeira para os olhos dos portugueses e dos europeus. A proibição do plágio não se circunscreve à publicação editorial ou jornalística e ao trabalho académico. Ademais, um seminário, maxime se internacional, tem uma dimensão pública: não é um grupo de amigos, um café-concerto, uma caserna, uma barbearia. E, dada a índole das entidades que organizaram o mencionado seminário ou jornadas e o perfil do público-alvo, não podemos dizer que não se tratasse de um trabalho académico. Por último, no atinente a esta dupla de atores ministeriais, os trabalhos até estão “publicados” no site oficial das referidas jornadas, a que o público acede.
Quanto aos professores universitários referidos, sobretudo aquele que mais se terá melindrado, eu gostaria de perguntar se nunca apresentaram como “seus” nenhuns trabalhos académicos, comunicações, artigos científicos e livros – baseados em trabalho de colaboradores e/ou alunos sem a necessária, pelo menos vaga, referência a essa colaboração tão anónima como preciosa. Mais: terão sempre feito as citações com mestria técnica e as necessárias referências bibliográficas e legislativas?
Poderemos outrossim acusar de plagiato o legislador (Parlamento e/ou Governo), autor do texto normativo, que tantas vezes transcreve ipsis verbis conteúdos originariamente alheios, sem referir os autores materiais dos respetivos segmentos discursivos, como, por exemplo: sociedades de advogados, sindicatos, ordens e associações profissionais, direções-gerais, cidadãos anónimos, etc.? Poderemos ainda acusar de plagiato o discurso de detentor de cargo público / político que se limite à leitura de escrito elaborado por outrem – adjunto, assessor ou avençado – a quem pagou ou ficou a dever favor?
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Não posso deixar-me ficar sem explícito reparo e veemente protesto sobre algum conteúdo dos textos replicados, seja a culpa de Grancho ou dos académicos que estão alapados por trás dos textos. Atente-se no teor do excerto seguinte:
“A Deontologia é cada vez mais crucial para a distinção profissional dos professores, por duas razões: porque é um atributo maior do prestígio social de uma profissão e porque a função docente não tem tradição deontológica” Página 1 de “Para Uma Deontologia Pedagógica”, de A. Reis Monteiro, copiado por Grancho

A deontologia é cada vez mais “crucial” para a distinção profissional dos professores. É certo que a deontologia é crucial, ou seja fundamental, importante, relevante. Mas, se a sua índole crucial é para distinguir os professores de outros profissionais, sê-lo-á se, a par de uma deontologia de base, comum a todos os profissionais, definir uma deontologia específica dos docentes e se articular com os deveres de outrem (pais, alunos, funcionários, administração educativa, parceiros…). E será uma deontologia “referencial” e emblemática como o é a cruz para algumas religiões. Contudo, se for para distinguir os professores uns dos outros, será crucial, no sentido de “cruciante”, tormentosa, tirânica, porque, ao invés de premiar o mérito e penalizar (ou antes, induzir a melhoria de desempenho), cava a discórdia, a emulação, a competitividade de fachada, a mascaração da competência, o amiguismo e a preterição.
Entretanto, quem é Grancho ou o académico para declararem que “a função docente não tem tradição deontológica”? Saberão eles o que é a “deontologia” e a “diciologia”?
Estou-me nas tintas para a existência ou não de algo escrito com o designativo de código deontológico. Porém, sei dizer que desde 1990 está em vigor o estatuto da carreira docente, aprovado pelo DL n.º 139-A/90, de 28 de abril, que sofreu várias alterações – sendo a mais profunda e cruciante a definida pelo DL n.º 15/2007, de 19 de janeiro – e estabilizado pelo DL n.º 41/2012, de 21 de fevereiro. O seu artigo 10.º – hoje aditado, desde 2007, com os artigos 10.º-A, 10.º-B e 10.º-C – configura os deveres do docente. E o artigo 35.º define o conteúdo funcional da função docente.
Mas, já antes, dispúnhamos do estatuto do ensino particular e cooperativo, dos estatutos do ensino liceal, do ensino técnico, do ciclo preparatório do ensino secundário (CPES) e do ensino primário. Desde que a República instituiu e generalizou o ensino, passou a haver deontologia da função docente, mais ou menos explícita. Não entrando em detalhes, aqui fica o elenco dos diplomas que o DL n.º 139-A/90 revogou (é óbvio, porque havia matéria legislativa em vigor):
Decreto n.º 36508, de 17 de setembro de 1947, Decreto n.º 37029, de 25 de agosto de 1948, Decreto n.º 48572, de 9 de setembro de 1968, Decreto-Lei n.º 559/70, de 16 de novembro, Decreto-Lei n.º 800/76, de 6 de novembro, Decreto-Lei n.º 266/77, de 1 de julho, Decreto-Lei n.º 373/77, de 5 de setembro, Decreto Regulamentar n.º 89/77, de 31 de dezembro, Decreto Regulamentar n.º 18/78, de 1 de julho, Decreto-Lei n.º 170/78, de 6 de julho, Decreto-Lei n.º 287/79, de 13 de agosto, Decreto-Lei n.º 422/79, de 22 de outubro, Decreto-Lei n.º 221/80, de 11 de julho, Decreto-Lei n.º 330/80, de 27 de agosto, Decreto-Lei n.º 300/81, de 5 de novembro, o Decreto-Lei n.º 135/82, de 23 de abril, Decreto-Lei n.º 235-C/83, de 1 de junho, Decreto-Lei n.º 287/85, de 22 de julho, Decreto-Lei n.º 31/87, de 15 de janeiro, Decreto-Lei n.º 400/87, de 31 de dezembro, e Lei n.º 103/88, de 27 de agosto.
Além disso, o normativo escrito pode não ser relevante. Pelos vistos, o Reino unido não dispõe de uma Constituição escrita e tem um departamento do Reino que supervisiona e examina a constitucionalidade das leis. Por outro lado, se a população portuguesa rodeava de carinho os professores e lhes reconhecia o prestígio social merecido, era porque via neles geralmente os detentores da referência deontológica e o espelho da dedicação na função docente.
Por isso tudo, só me resta amaldiçoar a difamação com que políticos e académicos se dão ao luxo de atirar contra os professores, até porque, por ironia da sorte esses também ostentam o título de professor (todos os académicos e a maior parte dos políticos). Talvez a ação de uns e de outros não tenha sido tão eficaz e tão pouco plagiante como apregoam: abstenção tomou-se cancro social e político; e a deontologia que é o atributo (não o “ ou acessório” na velha gramática) maior de uma profissão está bem ausente de muitos profissionais que saem das altas academias!

Deus dê bom senso a estes pobres de espírito, que tanto mal fazem ao próximo!

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