A edição de hoje, dia 17 de
outubro, do Público dá relevo de 1.ª
página e de página inteira no interior, ao facto de o Secretário de Estado do
Ensino Básico e Secundário João Grancho, ora demitido, ter plagiado parte de textos
sobre a “dimensão moral” do professor. Segundo as palavras de Nuno Sá Lourenço,
o ex-governante terá copiado, sem citar, partes de dois textos sobre educação
numa comunicação que apresentou num seminário espanhol em 2007, quando era
presidente da ANP (Associação Nacional de Professores).
João Grancho recusa a acusação: “Pretender associar um mero documento
de trabalho, não académico, nem de autor, nas circunstâncias descritas, a um
plágio é totalmente inapropriado e sem qualquer sentido” – defende.
Na verdade, o visado participou,
em 2007, num seminário académico espanhol, mais propriamente numas Jornadas
Europeias sobre “Convivência Escolar”, em Múrcia, com uma conferência em torno
do tema “A dimensão moral da profissão docente”.
Soube-se agora, sete anos depois,
pela publicação das dez páginas da sua participação no site das ditas Jornadas,
que o ex-presidente da ANP e ex-governante copiou partes de documentos
anteriores, da autoria de outros académicos, sem fazer qualquer referência aos seus
autores. O visado, ao sentir a vergonha do peso da acusação, reagiu hipocritamente
nos termos já referidos e com a apresentação intempestiva do pedido de
demissão, já aceite pelo Ministro Nuno Crato, que mostrou maior espírito de
aceitação que Passos Coelho em relação ao Ministro da Educação e Ciência.
Em causa estão, segundo o
jornalista do Público, antes de mais,
sete parágrafos no capítulo sobre “Profissionalidade e Deontologia Docente”. Em
mais de uma página, Grancho reproduz segmentos continuados de uma comunicação
proferida e assinada por Agostinho Reis Monteiro, professor do Instituto de Educação
da Universidade de Lisboa – trabalho que este apresentou, subordinado ao tema “Para
Uma Deontologia Pedagógica”, em outubro de 2001, em Lisboa, no seminário
“Modelos e Práticas de Formação Inicial de Professores”. João Grancho
reproduziu, quase íntegra, a introdução de Reis Monteiro, além dum parágrafo de
outra parte desse trabalho sobre a “questão deontológica”. Os conteúdos
replicados glosam o tema da deontologia na
profissão de docente, sublinhando a índole “crucial” da deontologia para o
“maior prestígio social” da “profissão do professor” e ainda a necessidade da
criação de uma comissão deontológica.
Por outro lado, no capítulo final
da sua comunicação, o notável comunicante replica outros três parágrafos (mais
de uma página) dum documento de trabalho, de abril de 2000, da Comissão Ad Hoc do CRUP (Conselho de Reitores das
Universidades Portuguesas) para a formação de professores, sob o título “Por
uma formação inicial de qualidade”.
Os extratos do predito documento
de trabalho incidiam sobre o “Estatuto do Docente Europeu”. Aí se faz – tanto
no paper de Grancho como no João Pedro de Ponte (então líder do departamento
de Educação da Universidade de Lisboa) e Isabel Cruz (ao tempo, vice-reitora da
Universidade do Algarve), a defesa da escola enquanto “missão intelectual e
social no seio da sociedade” no sentido da “garantia dos valores universais e
do património cultural”.
Grancho comete o duplo erro de
apresentar os excertos em causa sem os enquadrar como citação e sem fazer qualquer
referência aos seus autores, mesmo que de forma vaga. Ainda por cima, a
comunicação do ex-secretário de Estado inclui uma bibliografia onde são citados
cinco autores, sem que nenhum destes seja Reis Monteiro ou João Pedro da Ponte.
As aludidas Jornadas Europeias
sobre “Convivência Escolar” configuraram uma ação de formação contínua
organizada pela Dirección General de Ordenación Académica, em colaboração com a
Dirección General de Formación Professional e Innovación Educativa. A primeira das
entidades regula os títulos académicos na Comunidade de Múrcia (Espanha). Os
destinatários-alvo das jornadas eram o pessoal docente e outro, e a ação de
formação conferia o direito a um certificado “equivalente a três créditos de
formação”, emitido pelo “Centro de Professores e Recursos” daquela comunidade.
O gabinete de
imprensa do Ministério da Educação e Ciência (GIMEC) esclarece que a comunicação
feita na ocasião pelo ex-secretário de Estado era um “mero documento elaborado
pela ANP”, servindo apenas de “suporte prévio a uma intervenção oral do seu
presidente”, acrescentando que “intervenções com referência aos escritos do
professor Reis Monteiro eram recorrentes em várias circunstâncias e com o conhecimento
do próprio”. Sobre o segundo documento, o predito gabinete garantiu que o texto
de Grancho “não foi produzido para difusão pública, tão-pouco como obra
original do então presidente ou da própria ANP.
Por seu turno, Reis Monteiro,
após cotejar os trabalhos em causa, admitiu a “reprodução”, mas (Saiba-se lá
porquê!) escusou-se a fazer um juízo de valor sobre o sucedido. Porém, João
Pedro da Ponte, ora diretor do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa,
foi mais explícito: “Isto é uma cópia integral, nem sequer houve trabalho de
disfarçar”. E encarece o protesto: “É um
tipo de prática que deve ser condenado na nossa sociedade e é de assinalar que
tenha sido feito por uma pessoa com responsabilidades na Educação”. Sobre a
gravidade do sucedido, o académico acrescenta: “Nós no Instituto da Educação consideramos que – e explicamos isso aos nossos
alunos – é intelectualmente desonesto copiar um texto como se fosse feito por
nós, seja um texto científico ou qualquer outro texto”.
***
Ora o sucedido merece um múltiplo
comentário.
Tanto Grancho com o GIMEC,
ligados umbilicalmente à educação, deviam saber que a seriedade, a honestidade,
a competência legal e técnica e o rigor (o rigor de Crato) não se exigem
somente aos outros, sobretudo se estamos a tratar de convivência escolar, de moral,
de ética, de deontologia, de profissionalismo. Por outro lado, não podem atirar
com uns grãos de poeira para os olhos dos portugueses e dos europeus. A
proibição do plágio não se circunscreve à publicação editorial ou jornalística
e ao trabalho académico. Ademais, um seminário, maxime se internacional, tem uma dimensão pública: não é um grupo
de amigos, um café-concerto, uma caserna, uma barbearia. E, dada a índole das
entidades que organizaram o mencionado seminário ou jornadas e o perfil do
público-alvo, não podemos dizer que não se tratasse de um trabalho académico.
Por último, no atinente a esta dupla de atores ministeriais, os trabalhos até
estão “publicados” no site oficial
das referidas jornadas, a que o público acede.
Quanto aos professores
universitários referidos, sobretudo aquele que mais se terá melindrado, eu
gostaria de perguntar se nunca apresentaram como “seus” nenhuns trabalhos
académicos, comunicações, artigos científicos e livros – baseados em trabalho
de colaboradores e/ou alunos sem a necessária, pelo menos vaga, referência a
essa colaboração tão anónima como preciosa. Mais: terão sempre feito as
citações com mestria técnica e as necessárias referências bibliográficas e
legislativas?
Poderemos outrossim acusar de
plagiato o legislador (Parlamento e/ou Governo), autor do texto normativo, que
tantas vezes transcreve ipsis verbis
conteúdos originariamente alheios, sem referir os autores materiais dos
respetivos segmentos discursivos, como, por exemplo: sociedades de advogados,
sindicatos, ordens e associações profissionais, direções-gerais, cidadãos
anónimos, etc.? Poderemos ainda acusar de plagiato o discurso de detentor de
cargo público / político que se limite à leitura de escrito elaborado por outrem
– adjunto, assessor ou avençado – a quem pagou ou ficou a dever favor?
***
Não posso deixar-me ficar sem
explícito reparo e veemente protesto sobre algum conteúdo dos textos
replicados, seja a culpa de Grancho ou dos académicos que estão alapados por
trás dos textos. Atente-se no teor do excerto seguinte:
“A
Deontologia é cada vez mais crucial para a distinção profissional dos
professores, por duas razões: porque é um atributo maior do prestígio social de
uma profissão e porque a função docente não tem tradição deontológica” – Página
1 de “Para Uma Deontologia Pedagógica”, de A. Reis Monteiro, copiado por Grancho
A
deontologia é cada vez mais “crucial” para a distinção profissional dos
professores. É
certo que a deontologia é crucial, ou seja fundamental, importante, relevante.
Mas, se a sua índole crucial é para distinguir os professores de outros
profissionais, sê-lo-á se, a par de uma deontologia de base, comum a todos os
profissionais, definir uma deontologia específica dos docentes e se articular
com os deveres de outrem (pais, alunos, funcionários, administração educativa,
parceiros…). E será uma deontologia “referencial” e emblemática como o é a cruz
para algumas religiões. Contudo, se for para distinguir os professores uns dos
outros, será crucial, no sentido de “cruciante”, tormentosa, tirânica, porque,
ao invés de premiar o mérito e penalizar (ou antes, induzir a melhoria de
desempenho), cava a discórdia, a emulação, a competitividade de fachada, a
mascaração da competência, o amiguismo e a preterição.
Entretanto, quem é Grancho ou o
académico para declararem que “a função docente não tem tradição deontológica”? Saberão eles o que é a “deontologia” e a “diciologia”?
Estou-me nas tintas para a
existência ou não de algo escrito com o designativo de código deontológico.
Porém, sei dizer que desde 1990 está em vigor o estatuto da carreira docente, aprovado
pelo DL n.º 139-A/90, de 28 de abril, que sofreu várias alterações – sendo a mais
profunda e cruciante a definida pelo DL n.º 15/2007, de 19 de janeiro – e
estabilizado pelo DL n.º 41/2012, de 21 de fevereiro. O seu artigo 10.º – hoje
aditado, desde 2007, com os artigos 10.º-A, 10.º-B e 10.º-C – configura os
deveres do docente. E o artigo 35.º define o conteúdo funcional da função
docente.
Mas, já antes, dispúnhamos do
estatuto do ensino particular e cooperativo, dos estatutos do ensino liceal, do
ensino técnico, do ciclo preparatório do ensino secundário (CPES) e do ensino
primário. Desde que a República instituiu e generalizou o ensino, passou a
haver deontologia da função docente, mais ou menos explícita. Não entrando em
detalhes, aqui fica o elenco dos diplomas que o DL n.º 139-A/90 revogou (é
óbvio, porque havia matéria legislativa em vigor):
Decreto n.º 36508, de
17 de setembro de 1947, Decreto n.º 37029, de 25 de agosto de 1948, Decreto n.º
48572, de 9 de setembro de 1968, Decreto-Lei n.º 559/70, de 16 de novembro, Decreto-Lei
n.º 800/76, de 6 de novembro, Decreto-Lei n.º 266/77, de 1 de julho, Decreto-Lei
n.º 373/77, de 5 de setembro, Decreto Regulamentar n.º 89/77, de 31 de dezembro,
Decreto Regulamentar n.º 18/78, de 1 de julho, Decreto-Lei n.º 170/78, de 6 de
julho, Decreto-Lei n.º 287/79, de 13 de agosto, Decreto-Lei n.º 422/79, de 22
de outubro, Decreto-Lei n.º 221/80, de 11 de julho, Decreto-Lei n.º 330/80, de
27 de agosto, Decreto-Lei n.º 300/81, de 5 de novembro, o Decreto-Lei n.º
135/82, de 23 de abril, Decreto-Lei n.º 235-C/83, de 1 de junho, Decreto-Lei
n.º 287/85, de 22 de julho, Decreto-Lei n.º 31/87, de 15 de janeiro, Decreto-Lei
n.º 400/87, de 31 de dezembro, e Lei n.º 103/88, de 27 de agosto.
Além disso, o normativo escrito
pode não ser relevante. Pelos vistos, o Reino unido não dispõe de uma
Constituição escrita e tem um departamento do Reino que supervisiona e examina
a constitucionalidade das leis. Por outro lado, se a população portuguesa rodeava
de carinho os professores e lhes reconhecia o prestígio social merecido, era
porque via neles geralmente os detentores da referência deontológica e o
espelho da dedicação na função docente.
Por isso tudo, só me resta
amaldiçoar a difamação com que políticos e académicos se dão ao luxo de atirar
contra os professores, até porque, por ironia da sorte esses também ostentam o
título de professor (todos os académicos e a maior parte dos políticos). Talvez
a ação de uns e de outros não tenha sido tão eficaz e tão pouco plagiante como
apregoam: abstenção tomou-se cancro social e político; e a deontologia que é o
atributo (não o “ ou acessório” na velha gramática) maior de uma profissão está
bem ausente de muitos profissionais que saem das altas academias!
Deus dê bom senso a estes pobres
de espírito, que tanto mal fazem ao próximo!
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