Como é que uma
assembleia extraordinária do Sínodo dos Bispos, um órgão de simples consulta do
Sumo Pontífice, criou tantas expectativas?
A
resposta à questão tem a ver com pelo menos três ordens de razões: a magnitude
do tema e os desafios que se levantam hodiernamente; o carisma de que é
portador este Papa e como tal reconhecido por todos; e a metodologia adotada e
assumida.
Quanto
à magnitude do tema, a novidade não seria considerável se o mundo não se
encontrasse perante uma problemática de família altamente controversa, mas cuja
realidade existencial tem de ser encarada sem eufemismos nem catastrofismos.
Desde a plurivocidade da noção, da plurissignificação e da concretização do
conceito de família até aos inúmeros desafios que se lhe vêm levantando, muito
há que refletir, doutrinar, rezar, reperspetivar e acompanhar.
A
família biparental, constituída à face da Igreja e mantida estavelmente sob a
sua égide, tornada igreja doméstica, escola de vida e virtudes e testemunho da
entrega de Cristo pela Sua Igreja, é cada vez mais um tesouro precioso, mas nada
fácil de encontrar. As contrafações da família resultam de vários fatores: a negligente
preparação para o matrimónio, tantas vezes celebrado sem a noção das
responsabilidades, por conveniência, impulso primário ou fenómeno
circunstancial; a falta de proteção da sociedade à instituição matrimonial e de
apreço pela mesma; a perceção de uma rigidez doutrinal e pragmática por parte
da Igreja Católica sobre a vida matrimonial e da dificuldade em resolver os
casos de presumível nulidade dos matrimónios; o mercantilismo agregado ao
matrimónio e à geração e manutenção da prole; o medo do compromisso; a tentação
supina do experimentalismo da vida a dois; a escalada da violência doméstica e
paradoméstica; a facilidade com que a sociedade e o ordenamento jurídico dos
povos facultam a partida de um matrimónio para outro, o casamento de pessoas do
mesmo sexo ou a união de facto (hétero e monossexual); os casos de adoção de
crianças nem sempre pelo superior interesse das mesmas; a proliferação de
famílias desestruturaras e monoparentais.
É
por tudo isto que o propósito de a Santa Sé provocar o aninhamento de uma
assembleia sinodal para “debater os desafios
pastorais da família, no quadro da evangelização e analisar a doutrina da
Igreja Católica no contexto atual” criou fundadas expectativas. Tal é a crise,
tais são os problemas, como tantos e tais são os germes de bem que a família,
mesmo desfigurada e cheia de problemas, pode oferecer à sociedade e à
humanidade, como a temática da família pode ser campo privilegiado da ação
pastoral da Igreja para a promoção dos valores familiares de amor, vida,
serviço, doação, solidariedade.
Terão resposta de sucesso todas estas expectativas? É o que
veremos provavelmente só em 2016, segundo os prognósticos, o que me parece
tempo demasiado. Mas também se me afigura terem-se colocado demasiadas
esperanças nalgumas modalidades de solução. Não creio que o Sínodo aconselhe o
Papa a distribuir algumas facilidades que alguns esperam. Refiro-me, por
exemplo, ao casamento de pessoas do mesmo sexo, às praticas abortivas ou que de
algum modo se mostrem clara e diretamente equivalentes, bem como à concessão de
nulidade ou ao menos declaração de nulidade de matrimónios com a mesma
simplicidade que os departamentos dos Estados. O que se pede e exige é a
atitude de respeito, acompanhamento, tolerância, aceitação das pessoas em
situação. Mais: não se vê por que motivo não possa aceitar-se e suscitar-se
maior colaboração em atividade doutrinal e eclesial da parte das pessoas e
grupos hoje considerados em situação irregular e o seu ganho de fé (sem que se
dê lugar a pretensiosismos ou tom reivindicativo), seja pelo lado da exigência
doutrinal seja pelo lado do gradualismo. Não é verdade que todos apregoam que
“o ótimo é inimigo do bom”? E fácil de obter será o abandono de uma linguagem rotulante
com laivos de anatematização, do tipo “pecador público”, “vida em pecado
permanente”, “indignidade de aproximação dos sacramentos”, etc. – abandono aliás
já em perspetiva na aula sinodal.
***
Convocada pelo papa
Francisco, a assembleia extraordinária – a primeira em 20 anos – foi
apresentada no passado dia 4 de outubro pelo secretário-geral do Sínodo, o
cardeal Lorenzo Baldisseri, que explicou que o encontro, que decorre de 5 a 19
de outubro, apostará numa metodologia nova e na mediatização, com o uso das
redes sociais, produzindo-se informação diária sobre os temas abordados.
Cá está a novidade
metodológica. Além do que para as outras assembleias sinodais se fez, esta foi
precedida de um questionário extensivo a quem pretendesse responder; e, só
depois de conhecidas as respostas, que algumas conferências episcopais optaram por
não publicar, é que foi elaborado o instrumentum
laboris. Depois, além dos peritos do sínodo, as congregações gerais (sessões)
contam com a presença de 13 casais de diversas partes do mundo; e as sessões
começam pela preleção de um ou mais dos 13 casais, que expõem abertamente o seu
pensamento e testemunho, e só depois é que os padres sinodais se debruçam sobre
as respetivas matérias do instrumentum
laboris. Por outro lado, diariamente são fornecidas abundantes informações,
não só do secretariado do sínodo, mas de cardeais, bispos, sacerdotes,
teólogos, observadores e casais – e por várias formas, incluindo a entrevista e
a conferência de imprensa.
O processo já começou
antes, como se disse, com o envio de um questionário às dioceses, sacerdotes e
leigos, que será agora reanalisado e cujo conteúdo pode ser incorporado num
documento comum para a próxima assembleia ordinária do Sínodo, prevista para
outubro do próximo ano.
Participam neste encontro,
precedido de uma vigília de oração presidida pelo Papa Francisco, 114
presidentes de Conferências Episcopais, incluindo o da Portuguesa, Dom Manuel
Clemente, 13 chefes de Igrejas Católicas Orientais, 25 chefes de Dicastérios da
Cúria Romana, 9 membros do Conselho Ordinário de Secretaria e o
secretário-geral e subsecretário e os 13 casais já referidos – num total de
mais de 250 participantes nos debates à porta fechada, a que assistirá o papa
Francisco e a quem dirigiu uma saudação especial.
Depois de uma semana de
debate será preparado um relatório de síntese que será trabalhado para servir
de base ao relatório final.
***
Quanto ao perfil e
carisma do Papa, é de registar a presença assídua nas sessões, mas sobretudo a
ousadia de solicitar que cada um dos intervenientes fale claro, sem receio do
que outrem possa pensar. É óbvio que falar claro só por falar não resulta, mas
é preciso falar claro ouvindo o Espírito para que Ele conduza o encontro e
ouvindo o mundo para que ele nos ouça. Nesse sentido, Baldisseri explicou que
haverá liberdade de expressão nos debates que querem olhar para “os desafios
globais” procurando sempre pontos de “convergência”, procurando “falar da
família, não do divórcio”.
Por isso, não
escandalizará ninguém a divergência emergente, de que fala alguma comunicação
social, entre o prefeito
da Congregação da Doutrina
da Fé, o cardeal Gerhard Müller, contra o teólogo Bruno Forte, arcebispo de Chieti, protagonistas na tarde do passado dia 7 de uma
sessão de perguntas e respostas de dureza inusitada.
Se é certo que o Sínodo é
uma assembleia consultiva (não deliberativa) dos responsáveis católicos de todo
mundo, para apoio ao Sumo Pontífice na sua gestão da Igreja, não é crível que
este Papa, que tanto encareceu a essência e o espírito da sinodalidade, enquanto
caminhada em comum (nem sempre em caminho aplanado), não siga ao máximo as
indicações que, em conclusão, os padres sinodais lhe vierem a fornecer. De resto,
o Papa nunca propôs o colapso da doutrina, mas um novo olhar sobre o mundo, um
novo estilo de apostolado, uma nova atitude pastoral.
Demais, embora se afigure
uma espera longa pela chegada das conclusões em 2016, não se pode passar em
silêncio que, em outubro de 2015, haverá outra assembleia sinodal de temática
afim, com reiteração da doutrina e perspetivação da ação pastoral. Aguardemos,
por isso, sem impaciências!
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