quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A exposição "Cem Anos de Presidência"

Os representantes do Povo – a quem o Povo paga o que pode, mais do que aquilo que eles merecem e menos do que aquilo que eles “deviam merecer” – descuram os temas de importância para um país que tem dificuldade em libertar-se da tutela europeia da mordaça e entretêm-se com questões de lana caprina.
Vêm estas asserções a propósito da exposição Cem Anos de Presidência. Esta iniciativa da Câmara Municipal de Barcelos (liderada pelo PS) já percorreu várias localidades.
Colocada a hipótese de figurar temporariamente nos corredores da Assembleia da República, os promotores fizeram as diligências necessárias para que o seu alojamento na Casa da Democracia fosse viabilizado e a exposição tivesse um tratamento condigno.
Assim, em junho, a Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura, discutiu a matéria e deliberou no sentido positivo, devendo a exposição ser inaugurada a 2 de outubro. Comunicada a deliberação à Presidente da Assembleia da República, ela terá despachado em consonância e determinado que os serviços procedessem à montagem da exposição dos bustos e fotografias dos 18 Presidentes da República desde 1911 até aos nossos dias. E, até ao dia 1 de outubro, parece que ninguém tinha levantado qualquer objeção.
Ora, foi precisamente na véspera da inauguração que a realização de uma simples e insuspeita exposição com os bustos e fotografias de Presidentes da República — incluindo os da Ditadura Militar (também denominada Ditadura Nacional) e do Estado Novo (todos militares) – foi contestada pela esquerda: primeiro nos corredores da Assembleia da República, depois em Comissão, no Plenário e em Comissão, tendo acabado por marcar a agenda parlamentar do dia. Começou com o protesto do PCP na Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias; seguiu-se um debate em plenário e acabou com uma reunião de emergência da Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura. Depois, obteve, em definitivo, luz verde da Presidente da Assembleia da República.
A par dos bustos (em barro) dos Chefes de Estado das eras democráticas (como se essa era não tivesse sido palco de desmandos, excessos, atropelos às liberdades e cenário de lutas intestinas), figuram outros do tempo do Estado Novo, como Carmona, Américo Tomás ou Craveiro Lopes. António Filipe, do PCP, não gostou e logo de manhã protestou na 1.ª Comissão: “É um enxovalho para a democracia”. E foi seguido, no protesto, pelo PS e pelo BE. Por seu turno, os deputados da maioria tentaram sempre desvalorizar a polémica e acusam a esquerda de estar a fazer censura.
Na abertura do Plenário, ao início da tarde, a bancada comunista fez uma interpelação à mesa. Comunistas e bloquistas pretendiam suspender a exposição cuja inauguração estava prevista para o dia seguinte. Entendiam que “a mera referência cronológica [aos Presidentes no tempo do Estado Novo] é contribuir para o branqueamento do fascismo e aqueles que a defendem contribuem para esse branqueamento”, apesar de os concretizadores do protesto reconhecerem que “não se pode apagar a História nem o que significou o fascismo e o papel dos seus dirigentes”. Já o líder parlamentar do BE vociferou que o evento “não está à altura da História nem da casa da democracia do século XXI”. Por isso o bloquista propôs que “se retire a exposição neste momento, se suspenda a inauguração de amanhã e se convoque uma conferência de líderes e que se impeça que uma lavagem da ditadura vá por diante”.
A bancada do PSD contrapôs com a sua oposição a estes protestos, que revelam uma leitura enviesada da exposição, declarando que “não se trata de nenhuma exaltação, de nenhum branqueamento, mas apenas de uma exposição histórica”. E veio à liça a recordação de que, na recente exposição comemorativa dos 40 anos da revolução abrilina, com cartazes do pós-revolução e do PREC, uma das palavras de ordem “exigia a execução pública dos fascistas”. Do seu lado, o líder da bancada centrista sublinhou que a exposição pura e simplesmente “visa assinalar os 100 anos da República”. E argumentou a pari com outros símbolos que se mantêm no Parlamento, não sendo, por exemplo, “por termos figuras da monarquia na sala do Senado que o Estado se torna numa monarquia”.
O PS, no Plenário, usou de inusitada parcimónia discursiva, remetendo a decisão sobre a matéria para a conferência de líderes alvitrada por outrem.
Todavia, o autor das peças, Joaquim Esteves, não ficou surpreendido com a polémica: “Não me espanta, vindo de pessoas com défice democrático”. Vai mesmo ao ponto de gostar de saber a opinião desses deputados de esquerda, por exemplo, sobre o derrube de estátuas de Lenine na Ucrânia, acentuando analogicamente que “renegar a família, onde muitas vezes há gente de quem não gostamos, é renegar-se a si próprio”. Este barrista barcelense, já famoso pelas suas caricaturas ousadas à maneira de Bordalo Pinheiro – crítico de clérigos, desportistas e políticos – assegura que o trabalho em exposição sai do seu estilo habitual, pois, no seguimento da encomenda, tentou ser o mais fiel possível às fotografias dos estadistas, embora sem lhes retirar o cariz caricatural.
***
Aceito perfeitamente que os deputados e o público em geral não gostem dos bonecos, os achem feios ou não correspondentes às personalidades que representam e até que vão proferindo os seus doestos contra cada uma das figuras expostas. Todavia, a Casa da Democracia do Século XXI não pode asir o bisturi dissecador do cirurgião e armar-se em selecionador dos bons, para expor como exemplo, e dos maus, para esconder detrás de um qualquer armário do passado, como ser abjeto. Para mais, não havendo perigo de o regime descambar para a ditadura, não se vê motivo para anatematizar alguns dos falecidos. Fica muito mal a um democrata apostar numa cruzada exclusivista, quando o país está semeado com a cultura da inclusão, devendo o democrata aproveitar, pelo contraste, todos os elementos que vêm à tona para fazer a pedagogia e a propedêutica da democracia.
Que olhar para uma figura ou para um regime não significa apoio, concordância ou adesão. Por exemplo, quando Paulo VI visitou o Santuário de Fátima em 13 de maio de 1967, Salazar não encarou o facto como apoio ao regime (no dizer de Franco Nogueira, terá sido difícil demovê-lo de abandonar a comitiva governamental e seguir logo pela manhã para Lisboa, para não receber o Pontífice). E Bento XVI, quando em 11 de maio de 2010 visitou o Palácio de Belém, assinalou no Livro de Visitas o 100.º aniversário da Implantação da República – o que não creio significar a concordância do Papa com o levantamento da questão religiosa e o modo como ele se desenrolou, sobretudo no atinente à perseguição ao clero e à religião, ao direito de família, à instabilidade ou às lutas ferozes pelo poder.
Julgo que a História deve ser assumida criticamente, mas, para isso, tem de ser encarada na totalidade; caso contrário, não consegue ser crítica. Ademais, se quisermos ir pelo lado do défice democrático, pergunto-me se qualquer uma daquelas personalidades representadas pelos bustos e pelas fotografias não terá nada de negativo por onde se lhe possa pegar.
Nos tempos de hoje, a mediocridade política, o caciquismo quase institucionalizado, o assalto corrutor às instituições e este sistema económico-financeiro que enchinela a maior parte dos cidadãos e das famílias também não serão aceitável exemplo de democracia.
Talvez seja possível e útil aprender com os erros que a História alberga por culpa dos homens!

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