quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O Papa Francisco e a Ciência – rutura, inovação, conciliação?

A propósito das palavras dirigidas pelo Papa à sessão plenária da Pontifícia Academia das Ciências, a 27 de outubro passado, em torno da inauguração dum busto que aquela entidade pretendeu que figurasse na sede, a Casina Pio IV, em honra de Bento XVI, que fora seu membro proeminente, foram entendidas por muitos como sinal de rutura com a doutrina tradicional da Igreja ou como atitude de conciliação entre religião e ciência ou entre a Bíblia e os textos científicos.
Quanto à pretensa rutura, será de recordar que, mesmo aqueles que entendiam que a criação do mundo fora obra de Deus em seis dias (o hexámeron), tentavam não se opor radicalmente à complexidade científica, explicando a índole popularizante do antropomorfismo divino – por exemplo, na criação do homem a partir do boneco de barro a que inalou o sopro vital e de cujo lado adormecido extraiu a mulher como ser semelhante ao homem (vd Gn 2,4-7.18-25) – e afirmando que aqueles seis dias não eram de 24 horas como os de hoje.
O primeiro relato da criação da Bíblia, menos antigo que o segundo (Gn 1 – 2,4) é de origem sacerdotal e constitui um hino de glorificação ao Deus Criador, que tudo fez em boa ordem, ficando a coroar a sua obra o homem, imagem e semelhança de Deus.
Porém, o facto de se descobrir que Deus é o Criador não implica dizer-se que tenha feito tudo logo de uma vez ou deixado tudo completo. Um político da nossa praça (não o menciono para não criar equívocos), olhando para os vales e montes do país profundo, em 1993, dizia a quem o quis ouvir que Deus criou o mundo tão bom e perfeito feito, mas, no seu desígnio, deixou aos homens e mulheres de cada época a capacidade e a obrigação de completar a sua obra.
A tese de Santo Agostinho sobre a criação do mundo e do homem, sublinhando que importa destacar a diferença entre o Criador (absoluto, imutável, eterno) e a criatura finita, contingente, transitória, consigna a criação do mundo de uma só vez, mas em três etapas – já que o tempo começara a existir com a criação do mundo. Em primeiro lugar, fez ex nihilo a matéria informe de que fala o livro do Génesis; depois, deu-lhe forma, porque sem forma o mundo não subsistiria (veja-se a luz, os luzeiros, a boa ordem e separação dos elementos, as plantas, os animais e, por fim, o homem); por fim, as rationes seminales, peças quais se explicaria a evolução, o devir, o aparecimento de novos seres. (cf M. Costa e R. Brandão (2007). A Teoria da Criação, segundo Santo Agostinho. Universidade Católica de Pernambuco).
O primeiro embate pretensamente consistente contra a formulação bíblica nesta matéria, terá sido a teoria da evolução/transformação das espécies com Charles Darwin, há 150 anos. E os estudiosos dividiram-se: em nome da ciência, estabeleceu-se a teoria do evolucionismo; em nome da fé bíblica, o criacionismo fixista. Nada de pior poderia ter sido inventado, a meu ver.
A própria escolástica confessava que natura non facit saltus, o que parece pressupor a evolução da matéria, mas a passagem do animal superior para o homem não era aceite por não se conhecerem as chamadas “espécies intermédias”. Os escolásticos da contemporaneidade não punham em causa a teoria da evolução, desde que não se rejeitasse a necessidade da intervenção criadora e providente de Deus. Porém, este é um dado da religião, que não da ciência. Os cientistas da evolução, extrapolando a área da ciência parecem ter-se comprazido numa afirmação ateísta do ordenamento da matéria e da evolução do mundo – o que não era necessário.
Já com a teoria do heliocentrismo se gerou um diferendo dispensável: Copérnico e Kepler avançaram com a hipótese contrária ao geocentrismo e Galiliu Galilei, antes recebido com júbilo no Vaticano, acaba por ser condenado. Os cardeais argumentavam com o discurso bíblico, nomeadamente o de Josué, que pediu que o Sol parasse, para que tivesse tempo de travar a batalha de cuja vitória se lhe afigurava ter necessidade (cf Js 10,13-14).
Ora o equívoco surgiu do desprezo de dois pressupostos, hoje claros. A Bíblia não é um livro de História ou de Ciência, pelo menos no sentido em que se entendem desde meados do século XIX. É um livro de fé. E a pregação dos conteúdos da fé faz-se com a linguagem em uso na comunidade e não sobre conteúdos em processo no mundo da ciência. Tanto assim é que ninguém põe em causa a validade religiosa, social, política, pedagógica e literária do Sermão de Santo António, de António Vieira, pelo facto de o conceito de “peixe” em que se sustenta o discurso ser errado do ponto de vista da zoologia/ictiologia. Por outro lado, não se pede à ciência que dê lições de fé e de religião, mas que siga livremente o seu caminho de investigação e formulação, sem se preocupar se encontrará Deus na ponta do bisturi ou na mira telescópica. Porém, não lhe será legítimo arvorar-se em militante ateísta ou antiespiritualista.
Como se proclama a cada passo a autonomia da política frente à Igreja e à religião (a César o que é de César e a Deus o que é de Deus), consignada na separação Estado / Igreja, também se deverá formular o princípio da autonomia da ciência e da religião, deixando à religião o que é da religião e à ciência o que é da ciência, na linha da autonomia das realidades terrestres, assumida pelo Vaticano II, nomeadamente na Gaudium et Spes, n.º 36.
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Será neste contexto – religião / ciência – que deve situar-se o discurso papal. A linguagem da criação bíblica – alegórica, demiúrgica e antropomórfica – não permite atribuir-se a Deus a feição do mago, mas acentuar a visão de que o mundo “não foi produto do caos” e que o mundo criado é diferente de Deus em essência e existência. Este é o dado da religião e da Bíblia. Já a explicação de como tudo terá acontecido pertence à ciência que de hipótese em hipótese tem o direito e o dever de construir as diversas teorias e de procurar a verificação das hipóteses aventadas e a confirmação das teorias formuladas.
Aí, o Papa tem razão. Não há contradição entre os dados da fé e os dados da ciência (mesmo que se confirme cientificamente a teoria do Big Bang, a determinar o momento em que o Universo começou a existir e o modo da sua evolução), a menos que os homens a queiram implantar. “O Big Bang, que é designado como a origem do mundo, não contradiz o ato divino da criação. Em vez disso, exige-o”, diz o Papa. “A evolução da natureza não contrasta com a ideia de criação, pois a evolução pressupõe a criação de seres que evoluem.” – cf J. Haught (2001). Cristianismo e evolucionismo – em 101 perguntas e respostas. Edições Gradiva.
A afirmação clara desta tomada de posição é importante, porque há pessoas, organizações e Igrejas que defendem a veracidade literal do texto bíblico, opondo-a acirradamente à ciência.
 “O que na verdade o Papa Francisco fez” – diz-nos Clara Barata, no Público, de 29 de outubro – “foi sublinhar a posição da Igreja Católica, já expressa há mais de seis décadas pelo Papa Pio XII, na encíclica Humani Generis” e por João Paulo II em discurso à Academia em 10-11-1979.
Todavia, a articulista dá conta de outra forma de paraciência religiosa (que ela designa de “fundamentalismo religioso”) que se coloca como uma explicação do mundo alternativa à da ciência — a chamada “conceção inteligente”, que F. Collins comenta em A Linguagem de Deus (2007), da Editorial Presença. Esta teoria deduz, a partir da observação da natureza, a existência de uma potência criadora que guia a evolução. Recusa-se a aceitar o acaso e a adaptação dos seres vivos às condições do meio como constrangimentos suficientes para forçar a evolução, exigindo, por isso, que haja Alguém a timonar os acontecimentos.
Ora, o Papa afirma claramente que Deus “criou os seres vivos e permitiu que se desenvolvessem de acordo com as leis internas que deu a cada um, de forma que se desenvolvessem e atingissem a sua plenitude”. Assim, longe de situarmos o Pontífice numa linha de rutura, temos de o aproximar da conceção inteligente e das discussões sobre o transformismo e a seleção natural, que assinalaram polemicamente o pontificado do seu predecessor imediato.
Clara barata refere – e bem – que, em 2005, um artigo, no jornal New York Times, do arcebispo de Viena, Cristoph Schönborn, próximo de Ratzinger, gerou grande discussão. Sob o título À descoberta do desígnio na natureza, declarava que a Igreja Católica não abraçara a evolução “no sentido neodarwinista: um processo não guiado, não planeado, de variações ao acaso e seleção natural”. É claro que a Igreja, muito embora respeite e aceite as conclusões da ciência na sua real autonomia, não pode acolher o que a ultrapassa – aceitação ou a negação da invisível e efetiva intervenção de Deus. Ora, neste aspeto, Francisco enuncia, à maneira de Schönborn: “O princípio do mundo não foi produto do caos, deriva diretamente de um Princípio Supremo que cria por amor.” Ora esta formulação não é do foro da ciência. (vd também Pedro Sousa Tavares em Diário de noticias de 29 de outubro).
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E o Papa não se limitou à clarificação da posição sobre a ciência, mas proclamou um rasgado elogio ao pontífice emérito – o que pouca imprensa referiu:
Este busto evoca aos olhos de todos a pessoa e o rosto do amado Papa Ratzinger. Evoca também o seu espírito: o dos seus ensinamentos, dos seus exemplos, das suas obras e da sua devoção à Igreja, da sua presente vida “monástica”. Longe de se fragmentar com o passar do tempo, este espírito manifestar-se-á de geração em geração cada vez maior e mais poderoso. Bento XVI: um grande Papa! Grande pela força e perspicácia da sua inteligência, grande pela sua contribuição relevante para a teologia, grande pelo seu amor à Igreja e aos seres humanos, grande pela sua virtude e religiosidade. Como bem sabeis, o seu amor pela verdade não se limita à teologia e à filosofia, mas abre-se às ciências. O seu amor pela ciência leva à solicitude pelos cientistas, sem distinção de raça, nacionalidade, civilização e religião (Sublinhei).
Fazendo jus ao modo como Ratzinger soube honrar a Academia, Francisco sublinhou o facto de o seu predecessor ter convidado o seu presidente “para participar no Sínodo sobre a nova evangelização, consciente da importância da ciência na cultura moderna”.
Por seu turno, a Pontifícia Academia das Ciências, fundada em 1603 por Fredrico Cesi sob a designação de Academia dos Linces (a primeira academia científica do mundo) – e o Papa não o pode olvidar – é, sobretudo partir de 1936, de âmbito internacional, multirracial na composição, e não-sectária na escolha dos membros. O trabalho da Academia compreende seis grandes áreas: ciência fundamental, ciência e tecnologia de problemas globais; ciência para os problemas do mundo em desenvolvimento, política científica; bioética, epistemologia.
Galileu Galilei foi um dos seus membros. Hoje conta cerca de 80 membros, nomeados pelo Papa, sob indicação do corpo académico, sem nenhum tipo de discriminação. Muitos dos cientistas-membros, provenientes de todo o mundo, não são católicos.
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Não ficaria, entretanto, satisfeito comigo se não respigasse alguns pontos do corpo do discurso papal não evidenciados supra. São demasiado importantes para que a imprensa os omita.
Francisco exprime “profunda estima” e “caloroso encorajamento” a que a Academia leve por diante “o progresso científico e a melhoria das condições de vida das pessoas, especialmente dos mais pobres”. Os notáveis académicos enfrentam “o tema altamente complexo da evolução do conceito de natureza” – questão relevante e decisiva de grande complexidade científica. Porém, frisou “que Deus e Cristo caminham ao nosso lado e estão presentes também na natureza, como afirmou o Apóstolo Paulo no discurso no Areópago: ‘Em Deus temos a vida, o movimento e o nosso ser’ (At 17,28)”.
E o ponto fulcral da sua peroração vem a seguir:
Ele criou os seres e deixou que se desenvolvessem segundo as leis internas que Ele mesmo inscreveu em cada um, para que progredissem e chegassem à própria plenitude. E deu a autonomia aos seres do universo, assegurando ao mesmo tempo a sua presença contínua, dando o ser a todas as realidades. E assim a criação foi em frente por séculos e milénios, até se tornar aquela que hoje conhecemos, precisamente porque Deus não é um demiurgo nem um mago, mas o Criador que dá a existência a todos os seres.
E chama a atenção para o caso específico do homem, mantendo acomodaticiamente o sentido alegórico do texto bíblico:
Ao contrário, no que se refere ao homem, nele há uma mudança e uma novidade. Quando, no sexto dia da narração do Génesis, chega a criação do homem, Deus confere ao ser humano outra autonomia, uma autonomia diferente daquela da natureza, que é a liberdade. E diz ao homem que dê um nome a todas as criaturas e progrida ao longo da história. Torna-o responsável da criação, também para que domine a Criação e a desenvolva, e assim até ao fim dos tempos.
Em conformidade com aquela missão do homem, define a genuína atitude do cientista, mormente do cientista cristão:
A atitude de se interrogar sobre o porvir da humanidade e da terra e, como ser livre e responsável, de concorrer para o preparar e preservar, eliminando os riscos do ambiente, tanto natural como humano; (…) a confiança de que, nos seus mecanismos evolutivos, a natureza esconde potencialidades que compete à inteligência e à liberdade descobrir e pôr em prática para alcançar o desenvolvimento que se encontra no desígnio do Criador.
Daqui decorre que
Por mais limitada que seja, a obra do homem participa no poder de Deus e é capaz de construir um mundo adequado à sua dúplice vida corpórea e espiritual; edificar um mundo humano para todos os seres humanos, e não para um grupo ou classe de privilegiados. Esta esperança e confiança em Deus, Autor da natureza, e na capacidade do espírito humano são capazes de conferir ao investigador uma nova energia e uma profunda tranquilidade.
Mas o Papa adverte para o risco tentador inerente à autonomia do homem, que pode levar ao pecado contra o Criador:
É também verdade que a obra do homem, quando a sua liberdade se torna autonomia – que não é liberdade, mas autonomia – aniquila a criação e o homem toma o lugar do Criador. Eis o grave pecado contra Deus Criador!

Grande Papa Francisco, que não se arredando um passo da doutrina, a torna mais clara, quiçá mais atraente, mais humana! E longe de romper com a Tradição a revaloriza com as sementes que ela contém de inovação e transformação do homem e das coisas.

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