A
recente leitura que fiz do livro Relações
entre a Igreja e o Estado: no Estado Novo e no pós-25 de abril de 1974, de António
Teixeira Fernandes, suscitou-me reflexão sobre o tema em epígrafe. É certo que
o escopo do livro não era propriamente este, mas enquadrar criticamente a problemática suscitada
em torno da ação de D. António Ferreira Gomes no âmbito das relações entre Igreja
e Estado, mormente no tempo do Estado Novo. No entanto, o autor faz referências
um tanto críticas à homilia do prelado portuense no Dia Mundial da Paz de 1972,
não tanto na matéria que se refere à teoria da guerra, mas no juízo sobre as “virtudes”
dos capelães militares.
É
claro que, a partir da segunda metade do século XX começa a crescer, nos
diversos círculos cristãos, a ideia de que nada justifica a guerra, sobretudo aquela
que é feita em nome duma religião, duma fé – que implica a invocação do santo
nome de Deus em vão – ou em nome de uma civilização, por mais ocidental e
cristã que se afirme, porque significará a intolerância em vez do encontro de
culturas e diálogo civilizacional, uma forma de racismo pela minoração da
identidade de outros povos.
No
caso português, o Estado via-se, a partir de 1961, envolvido numa guerra – que
alguns não chamavam guerra, mas luta contra os terroristas – de manutenção a
todo o custo do império ultramarino, em nome duma pátria dita plurirracial e pluricontinental.
O conceito de “raça”, elaborado no quadro da Primeira República para definir a
identidade da totalidade da nação portuguesa, ganha uma nova semântica no tempo
do Estado Novo e, em especial, no quadro da guerra colonial. O 10 de junho
passava por ser o Dia de Portugal, também cognominado como o Dia da Raça (Recordo
que, há uns anos, o Venerando Chefe de Estado Cavaco Silva falou do Dia da Raça
sem se explicar e foi acoimado de saudosista de tempos salazaristo-caetanistas!).
Hoje
especula-se se os líderes do Estado Novo tinham efetivamente a ideia da manutenção,
contra o cerco das nações, do Império ou se estavam a preparar, a prazo, uma
descolonização à Brasil. Por verdadeira, a 2.ª hipótese, nada abona a nível da
sinceridade e da transparência; porém, no caso da primeira hipótese, tínhamos a
onda da temeridade a dominar o espectro ideológico dos governantes, a pairar
sobre um povo que se estava a esvair em população válida numa guerra inglória, acompanhada
pela sangria emigratória. Em qualquer dos casos, era, no ambiente psicossocial
do “orgulhosamente só”, a negação da autodeterminação dos povos, a menorização das
gentes e a preparação em lume brando para a guerra interna nas colónias.
O
professor de Economia Social e Política no Seminário Maior dizia abertamente
que a guerra ultramarina levaria, mais dia, menos dia, à independência dos povos
que estavam sob a tutela portuguesa, fazendo o paralelo com o que se passa com
a emancipação e habitual casamento dos filhos na família, que é um fenómeno problemático
em muitos casos, mas inevitável. E defendia que era obrigação do Estado, tal
como na família, cuidar do crescimento rumo à independência.
***
Lembro-me
de que, ao tempo, alguns eclesiásticos discorriam sobre a diferença entre a
guerra justa e a guerra injusta. Claro, a portuguesa, nesta ótica, era justa,
como convinha.
Hoje,
constitucionalmente entende-se como papel das Forças Armadas – subordinadas ao
poder político – a prevenção contra eventual invasão externa e o apoio das
populações em situação de calamidade. Resta saber como se legitima, à luz deste
papel redutor, o ato de golpe de Estado ou como se resistiria a um eventual
invasor com forças armadas tão exíguas.
Por
outro lado, hoje multiplicam-se as operações militares internacionais de
promoção ou de manutenção da paz ou as operações de caráter humanitário. Que hipocrisia!
Outras vezes, mobilizam-se forças militares multinacionais, no quadro da Nato
ou sob a égide da ONU, contra regimes ditatoriais, ou apoiam-se movimentos
oposicionistas que chegam a derrubar governos tirânicos (às vezes, legítima e democraticamente
eleitos) e as consequências são mais ditadura, mais morticínio, mais
desalojamento!
No
entanto, o Papa Francisco retoma claramente o princípio tomista da legitimação
da sublevação popular contra o tirano (não propriamente o usurpador do poder),
o que exerce o poder com o esmagamento do povo, a repressão sistemática e dura
opressão. Veja-se o que disse o Papa aos jornalistas no voo de regresso da
Coreia do Sul, em 18 de agosto:
“Nestes casos, em que há uma agressão injusta,
posso apenas dizer que é lícito fazer parar o agressor injusto. Sublinho o
verbo: fazer parar. Não digo bombardear, fazer a guerra, mas fazê-lo parar. Os meios, pelos quais se pode fazê-lo parar, deverão ser
avaliados. Parar o agressor injusto é lícito. Mas devemos também usar a
memória! Quantas vezes, com esta desculpa de parar o agressor injusto, as
potências se apoderaram dos povos e fizeram uma verdadeira guerra de conquista!
Uma nação sozinha não pode julgar como se para um agressor injusto. Depois da
II Guerra Mundial, afirmou-se a ideia das Nações Unidas: é lá que se deve
discutir, interrogar-se: ‘É um agressor injusto? Parece que sim. Como é que o
fazemos parar?’. Digo apenas isto, nada mais.”.
No
entanto, o Papa insiste no termos “fazer parar” e denuncia o oportunismo bélico
como rampa de lançamento para a guerra de conquista, de dominação. Mais: retira
da alçada de uma só nação a capacidade de julgar do método de travar o agressor
injusto.
Resta
ainda dizer que muitas das intervenções militares se fazem por motivos economicistas,
nomeadamente o petróleo, e para testar os equipamentos cada vez mais
sofisticados e mais mortíferos.
***
Porém,
há que saber o que deve fazer a Igreja quando o Estado em que se move entra
numa guerra, mesmo que injusta. Se vai à guerra, parece abençoá-la; se a
anatematiza, se a condena sem mais, pode estar a afastar-se de quem mais
precisa – aqueles que têm de ir à guerra em nome do compromisso que assumem com
o Estado que juraram servir, seja no regime de serviço militar obrigatório,
seja no regime de contratação voluntária –; e, se não se pronuncia ou não
acompanha os militares, resta a ambiguidade, num caso, e o abandono, no outro.
A
Cruz Vermelha Internacional foi criada exatamente para cuidar das vítimas da
guerra, independentemente do seu caráter justo ou injusto e da proveniência dos
beligerantes. Idêntica postura toma o Alto Comissariado das Nações Unidas para
os Refugiados (ACNUR).
Quanto
à Igreja Católica, ela deve tomar posição pastoral. Ninguém no seu bom juízo
pensa que a Igreja – cristãos e hierarcas – queiram que haja mortos, doentes,
acidentados, criminosos e reclusos. E há cemitérios, hospitais e prisões. Ninguém
de fé católica deixa de acolher a presença eclesial no cemitério ou em torno do
agonizante ou do defunto (desgraçadamente o Governo suprimiu um feriado que os
portugueses, à semelhança de tantos outros povos, aproveitavam para honrar os
seus defuntos. Do alto da sua piedade pelos antepassados os velhos romanos devem
lançar ruidosas imprecações contra os seus lusos vindouros!). Ninguém de fé
católica deixa de acolher a presença eclesial no hospital junto do doente ou do
acidentado (É certo que aqui e ali surgem conflitos com o Estado. É a força da separação
separadora!). Ninguém de fé católica deixa de acolher a presença eclesial junto
dos reclusos, cuja pena tem de mostrar também a vertente redentora. Que bem faz
a pastoral dos reclusos sob a orientação do padre Dâmaso Lambers e a sua
associação “O Companheiro”!
Ao
nível militar, a postura tem de ser similar. Na retaguarda, os bispos têm a
obrigação de questionar os poderes políticos sobre a legitimidade da guerra e
sobre o papel das forças armadas, tal como os governantes têm o dever de definir
e atualizar o conceito estratégico de defesa nacional, saber, a nível superior,
planear e avaliar toda a ação militar. Porém, os militares que o desejem devem
ter acesso à assistência religiosa em ambiente militar, tanto em tempo de
guerra como em tempo de paz. Por isso, devem ser celebrados os protocolos
necessários. O que digo da Igreja Católica, digo-o para as outras confissões
religiosas. A secularização impõe a incorporação das diversas valências sociais
e não a exclusão dumas ou de todas (se não forem do estrito âmbito das funções
do Estado). No teatro de guerra, não se discute a sua bondade ou injustiça, mas
a moderação a imprimir em comportamentos e atitudes e a prevenção de excessos. Nem
vale aduzir, para argumentar em contrário, as razões que levavam alguns
sacerdotes a apresentarem-se voluntariamente para a guerra colonial (o espírito
de aventura, o mal-estar com os prelados, o desafogo de vida, etc. – ou o espírito
apostólico).
Sobre
esta matéria é conveniente escutar o que referiu D. Manuel Linda, bispo das Forças Armadas e das Forças
de Segurança, que presidiu, no passado dia 26 de outubro, em Beja, à celebração
eucarística evocativa do Dia do Exército. O prelado castrense afirmou para quem
quis ouvir que “a Igreja acompanha os militares em qualquer circunstância” (vd Ecclesia, 26).
Falando dos capelães militares e seus colaboradores, afiançou:
“ É verdade que, em tempos
de paz, este serviço é mais fácil e simpático. Mas também é certo que, mesmo em
situações de guerra, os que prestam assistência espiritual sabem compartilhar
os mesmos riscos”.
Embora de forma arejada, recupera a postura pastoral
assumida por D. António dos Reis Rodrigues, bispo de Madarsuma, antigo vigário geral
castrense, na sua dura carta a D. António Ferreira Gomes, bem como a condenação
da guerra por este assumida em 1 de janeiro de 1972.
Sendo habitualmente muito duro na denúncia das situações
decorrentes da prepotência do poder financeiro que apouca o poder político, asfixia
a economia e humilha a vida dos mais pobres, quando aponta o dedo à governança
interna é suficientemente claro, embora contido. Assim, frisa que a Igreja
acompanha o povo “esteja ele onde estiver” e permanece “até ao fim”, mesmo que “os serviços, as estruturas e os
equipamentos públicos se retirem” (Sublinhei).
Falando da estrutura pastoral que lidera, D. Manuel valoriza
o “acompanhamento espiritual aos militares” em Portugal, enquadrado pela
“estrutura máxima da sua forma de organização”, o “Ordinariato Castrense”, uma
“verdadeira Diocese pessoal, em tudo igual às outras, com a mesma dignidade e
exigências das territoriais”.
Vai ao ponto de dissipar dúvidas, comparando-nos com
outros países:
“Assim acontece em todos os países que
pertencem à NATO, onde o catolicismo é significativo, e assim acontece também
em muitos outros países do mundo, mesmo naqueles cujo regime não prima pela
simpatia para com a Igreja”.
E deixa a sua frase lapidar em comemorações do Dia do
Exército:
“O Exército está com o povo, o povo está
com o Exército e a Igreja está com um e com outro”.
Sem comentários:
Enviar um comentário