terça-feira, 28 de outubro de 2014

A Igreja e as Forças Armadas

A recente leitura que fiz do livro Relações entre a Igreja e o Estado: no Estado Novo e no pós-25 de abril de 1974, de António Teixeira Fernandes, suscitou-me reflexão sobre o tema em epígrafe. É certo que o escopo do livro não era propriamente este, mas enquadrar criticamente a problemática suscitada em torno da ação de D. António Ferreira Gomes no âmbito das relações entre Igreja e Estado, mormente no tempo do Estado Novo. No entanto, o autor faz referências um tanto críticas à homilia do prelado portuense no Dia Mundial da Paz de 1972, não tanto na matéria que se refere à teoria da guerra, mas no juízo sobre as “virtudes” dos capelães militares.
É claro que, a partir da segunda metade do século XX começa a crescer, nos diversos círculos cristãos, a ideia de que nada justifica a guerra, sobretudo aquela que é feita em nome duma religião, duma fé – que implica a invocação do santo nome de Deus em vão – ou em nome de uma civilização, por mais ocidental e cristã que se afirme, porque significará a intolerância em vez do encontro de culturas e diálogo civilizacional, uma forma de racismo pela minoração da identidade de outros povos.
No caso português, o Estado via-se, a partir de 1961, envolvido numa guerra – que alguns não chamavam guerra, mas luta contra os terroristas – de manutenção a todo o custo do império ultramarino, em nome duma pátria dita plurirracial e pluricontinental. O conceito de “raça”, elaborado no quadro da Primeira República para definir a identidade da totalidade da nação portuguesa, ganha uma nova semântica no tempo do Estado Novo e, em especial, no quadro da guerra colonial. O 10 de junho passava por ser o Dia de Portugal, também cognominado como o Dia da Raça (Recordo que, há uns anos, o Venerando Chefe de Estado Cavaco Silva falou do Dia da Raça sem se explicar e foi acoimado de saudosista de tempos salazaristo-caetanistas!).
Hoje especula-se se os líderes do Estado Novo tinham efetivamente a ideia da manutenção, contra o cerco das nações, do Império ou se estavam a preparar, a prazo, uma descolonização à Brasil. Por verdadeira, a 2.ª hipótese, nada abona a nível da sinceridade e da transparência; porém, no caso da primeira hipótese, tínhamos a onda da temeridade a dominar o espectro ideológico dos governantes, a pairar sobre um povo que se estava a esvair em população válida numa guerra inglória, acompanhada pela sangria emigratória. Em qualquer dos casos, era, no ambiente psicossocial do “orgulhosamente só”, a negação da autodeterminação dos povos, a menorização das gentes e a preparação em lume brando para a guerra interna nas colónias.
O professor de Economia Social e Política no Seminário Maior dizia abertamente que a guerra ultramarina levaria, mais dia, menos dia, à independência dos povos que estavam sob a tutela portuguesa, fazendo o paralelo com o que se passa com a emancipação e habitual casamento dos filhos na família, que é um fenómeno problemático em muitos casos, mas inevitável. E defendia que era obrigação do Estado, tal como na família, cuidar do crescimento rumo à independência.
***
Lembro-me de que, ao tempo, alguns eclesiásticos discorriam sobre a diferença entre a guerra justa e a guerra injusta. Claro, a portuguesa, nesta ótica, era justa, como convinha.
Hoje, constitucionalmente entende-se como papel das Forças Armadas – subordinadas ao poder político – a prevenção contra eventual invasão externa e o apoio das populações em situação de calamidade. Resta saber como se legitima, à luz deste papel redutor, o ato de golpe de Estado ou como se resistiria a um eventual invasor com forças armadas tão exíguas.
Por outro lado, hoje multiplicam-se as operações militares internacionais de promoção ou de manutenção da paz ou as operações de caráter humanitário. Que hipocrisia! Outras vezes, mobilizam-se forças militares multinacionais, no quadro da Nato ou sob a égide da ONU, contra regimes ditatoriais, ou apoiam-se movimentos oposicionistas que chegam a derrubar governos tirânicos (às vezes, legítima e democraticamente eleitos) e as consequências são mais ditadura, mais morticínio, mais desalojamento!
No entanto, o Papa Francisco retoma claramente o princípio tomista da legitimação da sublevação popular contra o tirano (não propriamente o usurpador do poder), o que exerce o poder com o esmagamento do povo, a repressão sistemática e dura opressão. Veja-se o que disse o Papa aos jornalistas no voo de regresso da Coreia do Sul, em 18 de agosto:
“Nestes casos, em que há uma agressão injusta, posso apenas dizer que é lícito fazer parar o agressor injusto. Sublinho o verbo: fazer parar. Não digo bombardear, fazer a guerra, mas fazê-lo parar. Os meios, pelos quais se pode fazê-lo parar, deverão ser avaliados. Parar o agressor injusto é lícito. Mas devemos também usar a memória! Quantas vezes, com esta desculpa de parar o agressor injusto, as potências se apoderaram dos povos e fizeram uma verdadeira guerra de conquista! Uma nação sozinha não pode julgar como se para um agressor injusto. Depois da II Guerra Mundial, afirmou-se a ideia das Nações Unidas: é lá que se deve discutir, interrogar-se: ‘É um agressor injusto? Parece que sim. Como é que o fazemos parar?’. Digo apenas isto, nada mais.”.
No entanto, o Papa insiste no termos “fazer parar” e denuncia o oportunismo bélico como rampa de lançamento para a guerra de conquista, de dominação. Mais: retira da alçada de uma só nação a capacidade de julgar do método de travar o agressor injusto.
Resta ainda dizer que muitas das intervenções militares se fazem por motivos economicistas, nomeadamente o petróleo, e para testar os equipamentos cada vez mais sofisticados e mais mortíferos.
***
Porém, há que saber o que deve fazer a Igreja quando o Estado em que se move entra numa guerra, mesmo que injusta. Se vai à guerra, parece abençoá-la; se a anatematiza, se a condena sem mais, pode estar a afastar-se de quem mais precisa – aqueles que têm de ir à guerra em nome do compromisso que assumem com o Estado que juraram servir, seja no regime de serviço militar obrigatório, seja no regime de contratação voluntária –; e, se não se pronuncia ou não acompanha os militares, resta a ambiguidade, num caso, e o abandono, no outro.
A Cruz Vermelha Internacional foi criada exatamente para cuidar das vítimas da guerra, independentemente do seu caráter justo ou injusto e da proveniência dos beligerantes. Idêntica postura toma o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).
Quanto à Igreja Católica, ela deve tomar posição pastoral. Ninguém no seu bom juízo pensa que a Igreja – cristãos e hierarcas – queiram que haja mortos, doentes, acidentados, criminosos e reclusos. E há cemitérios, hospitais e prisões. Ninguém de fé católica deixa de acolher a presença eclesial no cemitério ou em torno do agonizante ou do defunto (desgraçadamente o Governo suprimiu um feriado que os portugueses, à semelhança de tantos outros povos, aproveitavam para honrar os seus defuntos. Do alto da sua piedade pelos antepassados os velhos romanos devem lançar ruidosas imprecações contra os seus lusos vindouros!). Ninguém de fé católica deixa de acolher a presença eclesial no hospital junto do doente ou do acidentado (É certo que aqui e ali surgem conflitos com o Estado. É a força da separação separadora!). Ninguém de fé católica deixa de acolher a presença eclesial junto dos reclusos, cuja pena tem de mostrar também a vertente redentora. Que bem faz a pastoral dos reclusos sob a orientação do padre Dâmaso Lambers e a sua associação “O Companheiro”!
Ao nível militar, a postura tem de ser similar. Na retaguarda, os bispos têm a obrigação de questionar os poderes políticos sobre a legitimidade da guerra e sobre o papel das forças armadas, tal como os governantes têm o dever de definir e atualizar o conceito estratégico de defesa nacional, saber, a nível superior, planear e avaliar toda a ação militar. Porém, os militares que o desejem devem ter acesso à assistência religiosa em ambiente militar, tanto em tempo de guerra como em tempo de paz. Por isso, devem ser celebrados os protocolos necessários. O que digo da Igreja Católica, digo-o para as outras confissões religiosas. A secularização impõe a incorporação das diversas valências sociais e não a exclusão dumas ou de todas (se não forem do estrito âmbito das funções do Estado). No teatro de guerra, não se discute a sua bondade ou injustiça, mas a moderação a imprimir em comportamentos e atitudes e a prevenção de excessos. Nem vale aduzir, para argumentar em contrário, as razões que levavam alguns sacerdotes a apresentarem-se voluntariamente para a guerra colonial (o espírito de aventura, o mal-estar com os prelados, o desafogo de vida, etc.  – ou  o espírito apostólico).
Sobre esta matéria é conveniente escutar o que referiu D. Manuel Linda, bispo das Forças Armadas e das Forças de Segurança, que presidiu, no passado dia 26 de outubro, em Beja, à celebração eucarística evocativa do Dia do Exército. O prelado castrense afirmou para quem quis ouvir que “a Igreja acompanha os militares em qualquer circunstância” (vd Ecclesia, 26).
Falando dos capelães militares e seus colaboradores, afiançou:
É verdade que, em tempos de paz, este serviço é mais fácil e simpático. Mas também é certo que, mesmo em situações de guerra, os que prestam assistência espiritual sabem compartilhar os mesmos riscos”.
Embora de forma arejada, recupera a postura pastoral assumida por D. António dos Reis Rodrigues, bispo de Madarsuma, antigo vigário geral castrense, na sua dura carta a D. António Ferreira Gomes, bem como a condenação da guerra por este assumida em 1 de janeiro de 1972.
Sendo habitualmente muito duro na denúncia das situações decorrentes da prepotência do poder financeiro que apouca o poder político, asfixia a economia e humilha a vida dos mais pobres, quando aponta o dedo à governança interna é suficientemente claro, embora contido. Assim, frisa que a Igreja acompanha o povo “esteja ele onde estiver” e permanece “até ao fim”, mesmo que “os serviços, as estruturas e os equipamentos públicos se retirem” (Sublinhei).
Falando da estrutura pastoral que lidera, D. Manuel valoriza o “acompanhamento espiritual aos militares” em Portugal, enquadrado pela “estrutura máxima da sua forma de organização”, o “Ordinariato Castrense”, uma “verdadeira Diocese pessoal, em tudo igual às outras, com a mesma dignidade e exigências das territoriais”.
Vai ao ponto de dissipar dúvidas, comparando-nos com outros países:
“Assim acontece em todos os países que pertencem à NATO, onde o catolicismo é significativo, e assim acontece também em muitos outros países do mundo, mesmo naqueles cujo regime não prima pela simpatia para com a Igreja”.
E deixa a sua frase lapidar em comemorações do Dia do Exército:
“O Exército está com o povo, o povo está com o Exército e a Igreja está com um e com outro”.

Sem comentários:

Enviar um comentário