Sejamos
republicanos ou não, o 5 de outubro marca a História do Portugal do século XX, passando
renovada e reforçada essa marca para o século XXI, na mudança de milénio.
Por
mais desmandos que se registem (de qualquer ordem que eles sejam) durante o
regime republicano, eles não excedem em nada os desmandos que ensombram
períodos significativos do regime monárquico português.
Recordem-se,
a título de exemplo, atos intencionados e muitos deles consumados de alguns dos
reis: Afonso I ameaçou cortar com a sua espada a cabeça do cardeal Guido de
Vico, legado do Papa; Pedro I teve tanto de gago como de justiçoso, tendo o
segundo predicativo levado o monarca a castrar o escudeiro Afonso Madeira e a
arrancar o coração a dois dos executores da sua querida Inês de Castro; o Príncipe
Perfeito mandou executar o Duque de Bragança, por cuja alma pediu, depois, que
se rezasse; e José I deu cobertura ao processo dos Távoras, ideia e ação de
Sebastião José.
Tudo
isto e o mais que se poderia aduzir não podem fazer obnubilar os excessos da
República, a ponto de ela ter perdido a face em alguns momentos, embora sempre
os corifeus do regime tivessem mantido o rótulo republicano, mesmo quando
adoravam o presidente-rei (de pouca dura) ou quando instituíram a Ditadura
Militar ou Ditadura Nacional, que deu origem à “República unitária e corporativa”
do Estado Novo. Mas os excessos não podem cavar o menosprezo dos valores
republicanos, como a igualdade perante a lei, o acesso aos cargos públicos, a não
discriminação por qualquer ordem de razões, o exercício de todos os direitos
fundamentais (pessoais, económicos, sociais, culturais e políticos), a fruição
das liberdades e a certeza das garantias.
O
complexo valor da República é tão respeitável que – já o referi algures – Bento
XVI, quando visitou Portugal em 2010, felicitou o país pelo centenário da República.
***
Estes
considerandos servem de pano de fundo ao respigo de algo do que se disse neste
5 de outubro de 2014.
De
rasgados encómios à República, cujo regime fora proclamado há 114 anos da
varanda dos Paços do Município da capital, o Presidente da Câmara Municipal de
Lisboa passa às vantagens da descentralização de poderes para os municípios,
sem grandes despesas, a exemplo do que ele promovera no âmbito da transferência
de competências do município para as suas freguesias e almeja a recuperação do
feriado de outubro e do de dezembro, recentemente desaparecidos.
Entretanto,
o Presidente da República, embora oportunamente, denuncia desabridamente a
possibilidade de o sistema político implodir, putativamente sob a responsabilidade
dos partidos políticos. Se é certo que os candidatos à governança vêm, nos últimos
tempos, prometendo soluções políticas de governo, que esquecem e contradizem totalmente
após a tomada de posse, não será esse o único motivo por que os portugueses se
divorciaram da matéria política por desencanto ou náusea. Há também outros
motivos, como: o salto dos governantes para lugares de extremo conforto pessoal
e profissional em Portugal ou no estrangeiro; a influência na colocação de familiares
e amigos; a miscigenação entre negócios e política; o clientelismo partidário;
o aparelhismo dos partidos; e o viciamento da escolha dos candidatos a
deputado, por habitual “dictat” do aparelho partidário.
Por
outro lado, não é menos fortemente negativa a atitude de quem sabe aquilo que
quer e para onde vai, mas, por trás do estilo austero inspirador de seriedade,
origina ou sanciona a desertificação da agricultura com os subsídios à não
produção ou ao abate de culturas, a sobrelotação quase monocultural da mancha
florestal, o desmantelamento das marinhas (pesqueira, mercante e bélica), o
eclipse das principais vias ferroviárias e a rarefação das grandes empresas.
Ora
o atual inquilino de Belém não pode esquecer-se de que foi Ministro das Finanças
e valorizou a moeda; exerceu o cargo de Primeiro-Ministro durante uma década; a
seguir, durante a década de pousio, escreveu o demolidor artigo da “má moeda” e
declarou que a vida política ativa era de momento pouco interessante; e agora,
como Supremo Magistrado da Nação, tem caucionado habitualmente, com muito raras
exceções, toda a política de desmando e de excesso, que tarde e a más horas
anatematizou, e a política de austeridade, de empobrecimento generalizado e de
emprateleiramento da economia, bem como agora a “política da troika sem troika”
(como refere Luís fazenda). E, como lamenta Ferro Rodrigues, devia ter feito a
sua própria autocrítica, o que não fez.
Porém, se o Governo, o Parlamento,
os Partidos e a Justiça (tudo instituições democráticas!) se deixaram invadir
pelo populismo (que potenciará exponencialmente a abstenção), se praticam “a
repulsa dos cidadãos mais qualificados para o exercício de funções públicas”,
se são enormes os prejuízos pelo facto de o país não ter “as competências
certas” nos altos cargos da função pública – então resta ao Presidente demitir
o Governo com fundamento no n.º 2 do art.º 195.º da CRP (“O Presidente da República só pode demitir o Governo
quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das
instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado”). Importa impedir que o sistema
político sofra a implosão, que Sua Excelência vislumbra como iminente. Em último
caso, porque os homens são para as ocasiões, o Presidente pode optar pela atitude
republicana da renúncia ou pelo republicano murro na mesa público que dê
resultados (a dissolução do Parlamento, com marcação de eleições e participação
ativa do cidadão presidente na campanha). Salus
reipublicae lex suprema esto!
***
Por seu turno, Marcelo Rebelo de
Sousa, um dos comentadores da República, não gostou de que os deputados da
esquerda pretendessem apagar a história com a retirada de alguns dos bustos da
exposição Cem Anos de Presidência,
porque não é lícito não assumir a história na sua totalidade, no que estamos de
acordo.
Todavia, Marcelo cortaria o mal
pela raiz: não concorda com a exposição. E aduz dois motivos, a falta de
qualidade, e a falta de sentido da mesma exposição. Quanto à falta de qualidade,
todos os juízos de valor são possíveis, mas não podemos esquecer que se trata de
uma exposição caricatural, que detém o seu valor estético e crítico. Nesse caso,
talvez pudéssemos anatematizar as produções do Rafael Bordalo Pinheiro ou os cartoons de António.
Quanto ao facto de fazer sentido
ou não a exposição, Marcelo aduz ter já transcorrido o centenário. É certo que
a República tem 114 anos, mas a presidência tem um pouco menos. Por outro lado,
o comentador acha que o Presidente da República nada tem a ver com o Parlamento.
Aqui, Deus lhe perdoe: está mesmo distraído. É certo que o Presidente da República
é um órgão de soberania diferente dos demais. No entanto, no sistema parlamentarista,
por que já passámos, o Presidente era eleito e destituído pelos deputados. Ainda
hoje os deputados o podem destituir em determinada circunstância (cf
n.os 1 e 3 do art.º 129.º da CRP). Porém, toma posse perante a Assembleia da
República (cf n.º 1 do art.º 127.º da CRP); e a sua renúncia
materializa-se em mensagem dirigida à mesma Assembleia da República (cf
n.os 1 e 3 do art.º 129.º da CRP). Por outro lado, promulga ou veta os decretos do Parlamento
e dirige-lhe mensagens. E, quando lá é recebido, não fica em bancada parlamentar
nem em galerias: ocupa a mesa da Presidência ao lado direito do Presidente da
Assembleia da República (fica a mesa com presidência bicéfala).
Marcelo faz bem em frisar a separação
dos poderes, mas não pode esquecer a sua interdependência e cooperação. E a
casa parlamentar é consensualmente reconhecida como a “Casa da Democracia”, a
qual, além da sua missão essencialmente política, pode e deve ter concomitantemente
objetivos culturais.
É a globalidade ou dimensão
holística (ou “católica”, no sentido originário do termo) da democracia em
República!
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