sábado, 4 de outubro de 2014

Por novas formas de organização laboral

Em muitos dos países europeus, dada a invasão social do neoliberalismo, mais explícito ou mais larvado, os poderes políticos lograram alterar as leis do trabalho, como era de esperar, em desfavor dos trabalhadores. Invocou-se a necessidade da promoção da produtividade e a garantia da competitividade. E a flexibilização da legislação laboral originou o ambiente social de precariedade no trabalho e insegurança no emprego, secundadas pela ambiguidade da noção de justa causa para despedimento, pelo emagrecimento das indemnizações por despedimento ou cessação contratual em caso de reestruturação da empresa ou extinção do posto de trabalho, pela criação de piores condições de apoio à situação de desemprego e pela facilidade com que as empresas obtêm a declaração de falência / insolvência.
Por outro lado, o regime de trabalho ganhou, nas últimas décadas, novos contornos e performances, que se espelham, por exemplo, em sistemas e mecanismos de teletrabalho, trabalho à peça ou à tarefa, autoemprego, empreendedorismo (carregado de tanta ambiguidade), autoestabelecimento e estatuto de trabalhador independente para a satisfação das necessidades permanentes da empresa ou serviço (mesmo no setor público).
Face a tais situações, que, em muitos casos, configuram verdadeiro atentado ao regime laboral, trabalhadores foram apontados como causadores do descalabro empresarial por denegação das suas responsabilidades e consciência de observância dos deveres laborais (superlativando as regalias, incluindo o recurso frequente à greve e às reuniões sindicais), os gestores são acusados de desempenho deficitário e displicente (às vezes, mesmo gestão danosa e excessivamente paga), os governos de falta de assunção do poder de regulação e de mediação, as associações de empresários e gestores cristãos de diminuta intervenção e os sindicatos (que deverão zelar pela resolução dos problemas laborais e pela participação efetiva na definição de políticas públicas de emprego e das condições de trabalho) ou ficaram distraídos ou sem capacidade de mobilização e intervenção eficazes. Tanto assim é que, sobretudo nalguns setores profissionais, cresceram os movimentos de profissionais não enquadrados institucionalmente, ao menos em termos convencionalmente laborais.
Em face deste panorama generalizado das condições da prestação do trabalho a raiar, em muitos casos, as malhas da indignidade, por vezes, até da escravização, a CSI (Confederação Sindical Internacional) promoveu a realização, no dia 7 de outubro de há uns anos a esta parte (penso que desde 1999), a “Jornada Mundial pelo Trabalho Digno”.  A Jornada persegue como objetivos centrais: o combate às medidas de austeridade, pelo crescimento e postos de trabalho dignos, enquanto condições essenciais para ultrapassar a crise e pôr fim à pobreza; a defesa de serviços públicos de qualidade para uma vida digna e contra a sua destruição em nome da consolidação fiscal; e o pagamento, pelo setor financeiro, dos danos que causou, bem como a sua obrigação de servir a economia real e as reais necessidades humanas.
No âmbito desta iniciativa e assumindo a importância da cooperação e da unidade na ação com as várias componentes do movimento sindical, nomeadamente com as confederações sindicais mundiais, a CGTP-IN associa-se à Jornada Mundial e aos seus objetivos fundamentais. Trata-se de um contributo explícito para o reforço da luta dos trabalhadores que, em Portugal, na Europa e no mundo, rejeitam pagar a crise pela qual não são responsáveis e exigem novo rumo e novas políticas económicas e sociais, ao serviço dos trabalhadores e das populações.
Também a UGT mobiliza os seus associados para o evento na convicção de que “a crise económica ameaça os empregos e o futuro das pessoas em todo o mundo” e que “décadas de desregulamentação, de ganância e de excessos por parte de uma pequena minoria, empurraram o mundo para a pior recessão desde 1930”. E afirma que “o trabalho digno deve ser o centro das ações dos governos com vista à retoma do crescimento económico e da construção de uma nova economia global, que coloque as pessoas em primeiro lugar.
Por seu turno, a LOC/MTC (Liga Operária Católica/Movimento de Trabalhadores Cristãos) e a sua congénere espanhola HOAC (Hermandad Obrera Accion Católica) associam-se à Jornada, propondo transformações na forma de “entender e organizar o trabalho humano”.
Segundo o comunicado referenciado na Agência Ecclesia, a 3 de outubro, estas organizações católicas estão cientes de que “estamos imersos numa realidade que sofreu e está a sofrer profundas transformações em todos os âmbitos da vida das pessoas”. E ousam declarar que “a forma como hoje se organiza o trabalho não é compatível com a vida digna à qual fomos chamados”. Verificam, na Europa, o flagelo do desemprego, “também dos jovens”, que alcança níveis “alarmantes em muitos países do sul”, bem como a crescente perda dos direitos laborais. E referem que, a nível mundial, “mais de duzentos milhões de mulheres e homens estão desempregados” ou “quase mil milhões” trabalham, mas vivem abaixo do “limiar da pobreza de 2 dólares por dia”. Por isso, defendem que “ter trabalho, ter salários suficientes para poder viver, realizar o trabalho em condições dignas” são situações que possibilitam “o crescimento e a construção da pessoa”.
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Sendo assim, a LOC/MTC e a HOAC apelam a todas as pessoas a que celebrem esta Jornada Mundial, a 7 de outubro, “refletindo” sobre o mundo laboral e a que descubram e denunciem as causas que originam o sofrimento dos trabalhadores, das famílias e dos povos.
“Como Igreja não podemos permanecer calados e passivos enquanto as condições sociais dificultem o ser humano de viver tranquilamente a sua dignidade de filhos de Deus”, frisam no aludido comunicado, sustentando a sua postura na ação da Igreja, que, através da sua Doutrina Social, apela ao trabalho digno e à sua promoção. É com base nessa doutrina que também o MMTC (Movimento Mundial de Trabalhadores Cristãos) faz a sua “reivindicação” e o seu combate ao “desemprego, à subocupação e à precariedade laboral”.
O aludido comunicado assinala também que a OIT (Organização Internacional do Trabalho), desde 1999, se debate por conseguir um trabalho digno que combata o “empobrecimento” e seja fator de uma “sociedade digna, mais justa e humana”.
A esta mobilizadora iniciativa aderem também outros movimentos e organizações em Portugal e em Espanha, como a Comissão Nacional Justiça e Paz, a Juventude Operária Católica, a Cáritas Portuguesa e a Juventud Obrera Cristiana de España.
A Liga Operária Católica/Movimento de Trabalhadores Cristãos e a Hermandad Obrera Accion Católica citam, em apoio do seu posicionamento nesta matéria, as palavras do Papa Francisco que aqui “atingem maior significado e são um apelo a toda a Igreja e a toda a sociedade”, como a defesa da dignidade dos trabalhadores, no encontro com os dirigentes e operários das fábricas de aço de Terni, 20 de março de 2014, ou em defesa de uma nova economia mais humana, no encontro com os trabalhadores e estudantes em Molise, Itália, a 5 de julho de 2014.
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Sendo certo que as empresas e serviços têm de conviver num contexto socioeconómico renovado, em que a competitividade postula um posicionamento diferente do convencional, tem necessariamente de se optar por novas formas de produção e organização do trabalho e das empresas e serviços. Esta opção tem de se inscrever numa perspetiva antropocêntrica e direcionar-se para a mudança não só da lógica empresarial e de serviço, bem como na lógica do contexto. Deve efetivamente deve dar-se, na relação laboral, atenção ao que, de facto, se passa na empresa ou serviço, desenvolvendo um clima favorável às melhores condições de trabalho, mas também criar um ambiente facilitador do desenvolvimento das condições úteis ao fortalecimento da competitividade. Importa agir assim ao nível da empresa ou serviço e ao nível nacional.
Torna-se, pois, necessário integrar os trabalhadores na estratégia da empresa ou serviço, isto é, construir espaço para a sua participação quer individual quer através das suas organizações representativas. Esta participação deve orientar-se pelos princípios do diálogo democrático – uma forma de promover a participação de todos os trabalhadores através da negociação interna entre os vários intervenientes no processo produtivo, que vai além da simples consulta e informação. Só deste modo se pode criar uma plataforma que insira as linhas gerais de orientação do sistema de relações laborais, de modo a estabelecer as condições de igualdade, justiça e autonomia para os trabalhadores, e de garantia de competitividade para a empresa ou serviço. Esta constitui, na verdade, uma das caraterísticas mais peculiares dos países onde os trabalhadores assumem uma preponderância maior nas questões da empresa ou serviço, como é o caso dos países escandinavos. Aqui, o Estado terá um papel fundamental, o de regulador e sobretudo o de facilitador do diálogo e concertação entre os parceiros sociais; e não o de simples árbitro ou de enervante interventor. Tudo isto acarreta a necessária e profunda mudança de mentalidades, que induz o abandono das estratégias defensivas, de confronto e antagonismo, em prol das posturas pró-ativas, em que, em vez da resolução de problemas, se procure prevê-los e evitá-los. Este posicionamento implica a expansão dos temas de negociação para lá das questões convencionais, como o salário ou o tempo de trabalho.
Um sistema de relação destes proporcionará a adoção de novos modelos de produção, que permitem manter ou aumentar a competitividade da empresa ou serviço, bem como a criação de novo espaço de diálogo social, que abre espaço à iniciativa do trabalhador, o qual, no quadro da maior participação de todos, poderá questionar e debater as opções organizacionais. Cessa, assim, a tradicional postura da intransigência ou da condescendência, caraterística da aceitação, sem discussão, da condição de indivíduos (trabalhadores) sem opinião.

É óbvio que a lei terá um papel determinante, mas não dispensa a lucidez e vontade de quem lidera a unidade orgânica, na atenção ao contexto, bem como a autonomia e empenho de quem trabalha. E os trabalhadores por conta própria são também credores do respeito de todos (incluindo o Estado, que não os deve explorar), parceiros das negociações sociais e devedores do empenho e ética da prestação do serviço que lhes incumbe.

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