domingo, 31 de julho de 2016

Contra a idolatria dos bens materiais

O livro de Qohélet, logo no versículo 2 do capítulo 1 lança o mote da vida gizada e construída exclusivamente com base na confiança nos bens terrenos: “Desilusão (em grego, ματαιότης) das desilusões, tudo é desilusão”. A versão latina da Bíblia exprime-se pela “vanitas” (vaidade, índole vã e vazia das coisas), que não consiste apenas no sentido de preponderância pessoal e no acúmulo de adornos corporais, mas no caráter fugaz e inconstante das coisas do mundo.
E Qohélet (cf Ecl 2,21ss) pressupõe que as riquezas provêm do trabalho com sabedoria, ciência e êxito. Depois, quem assim procede nada leva consigo; deixa para outro que eventualmente nenhum esforço fez, muito menos para conseguir aquilo que lhe foi legado. Por isso, o hagiógrafo pergunta “qual o proveito que o homem colhe do seu trabalho, do seu esforço, da sua azáfama”. Toda a gente sabe que as coisas deste mundo são vãs e passageiras, vãs como a flor do feno que se desfaz ao mais pequeno sopro ou e passageiras e insaciantes como os rios que passam e desaguam no mar sem que este alguma vez venha a encher-se (cf Ecl 1,7).
Por isso, há que tomar em linha de conta que os bens materiais, se forem assumidos como adequados servidores do homem e de todos os homens, serão bem-vindos e mesmo necessários para assegurar o seu sustento, conforto e vida condigna. Mas não podem ser assumidos como donos nem mestres – porquanto deixar-nos-ão inanes, vazios, insatisfeitos e escravos – nem podem estar ao serviço só de uns poucos. O seu destino, segundo o querer de Deus, é universal.
E a acumulação da riqueza nas mãos de uns poucos – e cada vez mais ricos – gera a injustiça social. Também a procura do domínio dos recursos naturais, do capital e do trabalho gera o conflito e a guerra. Hoje a situação é “particularmente preocupante” no Iémen, Síria, Sudão do Sul, Burundi e bacia do lago Chad. Os conflitos são as principais causas da fome porque destroem campos em cultivo, gado e infraestruturas agrícolas; bloqueiam mercados, forçam ao deslocamento das populações, contribuem para a propagação de doenças e dificultam o acesso de Governos e organizações humanitárias a determinadas zonas.
São graves os problemas que afligem a humanidade e colocam em risco a sua sobrevivência e a do Planeta. Morrem violentamente milhares de pessoas por via dos assassinatos e guerras. E morrem lentamente milhões de irmãos subalimentados. Agudizam-se as discriminações sociais, raciais, geracionais religiosas e de género. A guerra não desaparece dum país sem que primeiro se instale noutro. Tudo isto nos leva a inferir da enorme dificuldade em os homens conviverem em paz e cooperação.
Por sua vez, a perícopa do 3.º evangelho que se proclama e medita na missa do XVIII domingo do tempo comum do Ano C (Lc 12, 13-21) não diz que o rico da parábola tenha necessariamente prejudicado outras pessoas. Cristo censura a avareza do homem cujo campo “tinha produzido excelente colheita” e o seu apego à riqueza. Perante a abundância optou, não por distribuir, repartir e disponibilizar, mas acumular, enceleirar. E, como os celeiros não eram capazes de comportar todo o resultado da colheita, decidiu deitá-los abaixo e construir outros maiores “onde guardarei todo o meu trigo e os meus bens”.
Aquilo que parece um ato normal de gestão torna-se um ato de hedonismo equivalente a idolatria: “Minha alma, tens muitos bens em armazém para longos anos. Descansa, come, regala-te”. Este homem esqueceu-se do espírito, de Deus e do próximo. Mesmo a expressão “minha alma”, entre os hebreus não significava a parte espiritual do homem, mas a pessoa com as suas possibilidades, limitações, circunstâncias e ambições. Ainda hoje quando rezamos a Cristo que guarde a nossa “alma” para a vida eterna, não nos referimos exclusivamente à alma.
A parábola vem na sequência da atitude dum homem que, do meio da multidão, pedira a Jesus que ordenasse ao irmão que repartisse a herança consigo. Jesus recusou-se a ser juiz ou árbitro das partilhas. Entretanto, sentiu a necessidade de advertir os presentes para a tentação e o perigo da avareza, dado que a vida da pessoa não depende da abundância dos seus bens. E assim, o término da parábola enuncia a sentença de Deus em réplica à postura daquele supino avarento excessivamente confiante na sua riqueza: “Insensato, esta noite entregarás a alma a Deus. Para quem será o que preparaste?”. E Jesus conclui: “Assim acontece a quem acumula para si em vez de se tornar rico aso olhos de Deus”.
Como se vê, Lucas não deixa de escalpelizar as desigualdades, injustas e censuráveis em tantos e tantos casos no mundo greco-romano como no de hoje. Para o rico e avarento, o grande motor da vida é o dinheiro, que deixa de ser um meio para uma vida desafogada, para se transformar num fim. Se o dinheiro é um fim, trabalha-se para ele, anseia-se por ele, calcula-se por ele; adora-se o dinheiro e ama-se o dinheiro sobre todas as coisas, mas não ao próximo como a nós mesmos. O deus-dinheiro pontifica numa economia que mata. Por isso, Jesus adverte:
“Ninguém pode servir a dois senhores: ou não gostará de um deles e estimará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro.”
Noutro passo do Evangelho Jesus exclamou: Como é difícil para os que têm riquezas entrar no Reino de Deus!” (Lc 18,24).
E Lucas, em contraposição às bem-aventuranças, transcreve as imprecações de Cristo, nas quais são fortemente invectivados os ricos:
“Mas ai de vós, os ricos, porque recebestes a vossa consolação! Ai de vós, os que estais agora fartos, porque haveis de ter fome! Ai de vós, os que agora rides, porque gemereis e chorareis! Ai de vós, quando todos disserem bem de vós! Era precisamente assim que os pais deles tratavam os falsos profetas.” (Lc 6,24-26).
Por sua vez, a carta de Tiago contém uma forte advertência aos ricos, mas acusando a conexão da riqueza com a exploração dos trabalhadores e o espezinhamento e morte de inocentes:
E agora vós, ó ricos, chorai em altos gritos por causa das desgraças que virão sobre vós. As vossas riquezas estão podres e as vossas vestes comidas pela traça. O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se e a sua ferrugem servirá de testemunho contra vós e devorará a vossa carne como o fogo. Entesourastes, afinal, para os vossos últimos dias! Olhai que o salário que não pagastes aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos está a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo! Tendes vivido na terra, entregues ao luxo e aos prazeres, cevando assim os vossos apetites… para o dia da matança! Condenastes e destes a morte ao inocente, e Deus não vai opor-se?” (Tg 5,1-6).
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Hoje falamos, não só da riqueza pura e simplesmente aceite por herança, da riqueza merecida e da riqueza procurada e acumulada, mas da riqueza disputada por processos ilícitos, ou à custa do suor, da ignorância, da distração e da boa fé dos outros. Todos conhecemos ora a arrogância ora a hipocrisia dissimulada das pessoas que enriquecem desmedidamente. E, se o poderio económico lhes dá visibilidade, tornam-se insuportáveis ou porque a crítica os incomoda ou porque as coisas não lhes correm com aquela feição que desejavam.
Depois que a economia passou a resultar de esquemas de consecução de dinheiro fácil e o dinheiro se muniu de asas invisíveis, os pobres começaram ou a ser um estorvo ou a constituir um modo de oferta de oportunidade aos mais ricos de exercerem a sua filantropia a facultar a fuga aos impostos, a distrair os incautos dos métodos cada vez mais sofisticados em uso para anafar a carteira própria e possivelmente a dos amigos de ocasião que aceitem entrar no jogo. E, como polvo insaciável estendem os tentáculos a tudo o que cheire a poder. E pasme-se: quanto mais ricos, mais dificuldade têm em arranjar dinheiro para pagar as contas: o dinheiro não lhes basta. Até ficam com dinheiro dos trabalhadores (segurança social e fisco), provocam a fuga de capitais… Mas os dividendos das sociedades que gerem, ou em que participam, não deixam de ser oportuna e opiparamente distribuídos; os dinheiros de todos os outros, sobretudo dos que amealharam putativamente para poupar, esvaem-se naqueles esquemas do feroz capitalismo financeiro como manteiga em focinho de cão; bancos e empresas onde conseguem meter a mão ou são liquidados, comprados, alienados a fundos mobiliários, resolvidos ou dispersos em bolsa. E, na maior parte dos casos, os enganados e lesados esperam e os contribuintes pagam direta ou indiretamente, nem que seja sob o regime de programas de ajustamento, que implicam cortes salariais e de pensões, rarefação de produtos ou aumento dos seus preços e aumento brutal de impostos. Em contraponto, as remunerações, salários, gratificações, reformas e outras mordomias dos grandes empresários, administradores e gestores de topo não param e crescem assustadoramente. Entram em insolvência milhares de empresas e os seus titulares – que por gestão displicente ou mesmo danosa criaram desemprego, miséria e crise – distraem-se na boa, mantendo os seus sinais exteriores de riqueza, gozando férias suavemente hedonísticas, fogem a impostos, iludem a segurança social, continuam as negociatas. Porém, aos outros pregam a ética e a moral. E, sobretudo, de olhos hipocritamente piedosos e caras de santo, escutam o Papa, o Bispo ou o Padre a citar São Paulo, na carta aso Colossenses:
“Já que fostes ressuscitados com Cristo, procurai as coisas do alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus. Aspirai às coisas do alto e não às coisas da terra. […]. Crucificai os vossos membros no que toca à prática de coisas da terra: fornicação, impureza, paixão, maus desejos e a ganância, que é uma idolatria. Estas coisas provocam a ira de Deus sobre os que lhe resistem. Rejeitai vós tudo isso: ira, raiva, maldade, injúria, palavras grosseiras saídas da vossa boca. Não mintais uns aos outros, já que vos despistes do homem velho, com as suas ações, e vos revestistes do homem novo, aquele que, para chegar ao conhecimento, não cessa de ser renovado à imagem do seu Criador. Aí não há grego nem judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro, cita, escravo, livre, mas Cristo, que é tudo e está em todos.” (Cl 3,1-2.5-6.7-11).
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Belas Palavras… mas não só para ouvir, mas para levar à prática! (cf Tg 1,22).
O Deus de Jesus Cristo é o Deus da vida e da equidade, a paz e da abundância, da liberdade e da dignidade. E, confiando ao homem a missão de se governar e de governar os seus irmãos, cuidando deles, Deus espera e exige dos cristãos, reais conhecedores do Seu desígnio e da Sua vontade, que se empenhem incondicionalmente na instauração da justiça, da segurança e da paz nas comunidades e entre os povos.

2014.07.31 – Louro de Carvalho

sábado, 30 de julho de 2016

“Escritores viventes do Evangelho” – postulado dos discípulos de hoje

A expressão vertida em epígrafe foi proferida hoje, dia 30, por Francisco na homilia da Missa a cuja celebração presidiu no Santuário de São João Paulo II, em Łagiewniki (Cracóvia), com sacerdotes, religiosas e religiosos, leigos consagrados e seminaristas da Polónia.
O Bispo de Roma inspirou-se na menção ao livro, a “este livro” que não contém “muitos outros sinais miraculosos” que Jesus realizou na presença dos discípulos (cf Jo 20,30), garantindo o apóstolo evangelista que os sinais que foram registados no livro cumprem a sua finalidade: “para credes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e, crendo, tenhais a vida Nele” (Jo 20,31). E o grande orador homilético pretende que os discípulos de hoje, fiéis à chamada do Senhor para se colocarem em saída porque “enviados”, sejam “escritores viventes do Evangelho”. Não estão em causa as palavras, mesmo que sejam de ouro, mas as obras, as obras de misericórdia que tornam viva a fé (cf Tg 2,14-26).
Diz o Santo Padre que, depois do grande sinal da misericórdia Cristo, poderia supor-se que “já não foi necessário acrescentar mais”. Porém, na sua perspetiva de Igreja, persiste o desafio de preenchermos o espaço reservado para os sinais que nós temos de realizar, porque recebemos o Espírito Santo, como os apóstolos dos primórdios, e somos instados à difusão da misericórdia.
De facto, “o Evangelho, livro vivo da misericórdia de Deus” que devemos reler continuamente, “tem páginas em branco no final”. É, pois, “um livro aberto, que somos chamados a escrever com o mesmo estilo”, no cumprimento das obras de misericórdia, corporais e espirituais.
Tal como a Mãe de Jesus conservava todas aquelas coisas ponderando-as em seu coração (cf Lc 2,19.51), cada um dos presentes “guarda no coração uma página muito pessoal do livro da misericórdia de Deus”, “a história da nossa chamada, a voz do amor que fascinou e transformou a nossa vida, fazendo com que, à sua Palavra, largássemos tudo para O seguir”. E a Celebração Eucarística, centro da nossa vida, remédio para as fadigas e impulso para o afã evangélico, permite agradecer ao Senhor a sua entrada com a sua misericórdia “nas nossas portas fechadas” pois, como a Tomé, Ele “nos chamou pelo nome e nos “dá a graça de continuar a escrever o seu Evangelho de amor”.
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O Senhor, na tarde do primeiro dia da semana, o da Ressurreição, foi encontrar os discípulos num lugar com as portas fechadas. E, apesar da alegria que sentiram ao vê-Lo e de receberem o mandato de saírem, animados pelo Espírito Santo a perdoar os pecados, os discípulos, oito dias depois, ainda estavam na mesma casa, com as portas fechadas. Faltava qualquer coisa. A casa tinha as portas fechadas, porque o livro ainda não estava aberto e não o estava porque faltava integrar Tomé na economia comunitária do apostolado da Ressurreição. E é Tomé, na sua declarada incredulidade, porque queria ver, que faculta a abertura do livro.
Jesus entra novamente, coloca-Se no meio deles, leva misericórdia de Deus manifesta na sua paz, no Espírito Santo e no perdão dos pecados. E frisa o envio: “Assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós” (Jo 20,21). Entende o Papa que, “desde o início”, Jesus “deseja que a Igreja esteja em saída, vá pelo mundo”, como sucedeu com Ele, ou seja, “como Ele foi enviado ao mundo pelo Pai: não como o Senhor poderoso mas na condição de servo” (cf Fl 2,7), não “para ser servido, mas para servir” (Mc 10,45) e para levar a Boa-Nova (cf Lc 4,18). “Assim são enviados os seus em todos os tempos” e com a urgência de hoje, na paciência de Deus.
E, contra “a tentação de permanecer um pouco fechados”, é preciso deixar ressoar o convite de São João Paulo: “Abri as portas”. Com efeito, a direção indicada por Jesus é de sentido único: “sair de nós mesmos”. Por outro lado – adverte Francisco – Jesus não gosta das vias percorridas a metade, das portas entreabertas, das vidas com via dupla. Quer que nos metamos a caminho “renunciando às próprias seguranças, firmes apenas n'Ele” e reescrevendo o Livro da Vida.
É em movimento de saída – e de paragem onde e sempre que for necessário para recarregar baterias ou acudir a quem precisa – que as páginas em branco do livro se escrevem, resultando páginas trabalhadas e suadas em “amor concreto”, feito de “serviço e disponibilidade”. Depois, é preciso considerar que aquele ou aquela que
“Escolheu configurar com Jesus toda a existência não escolhe os próprios locais, mas vai para onde é enviado, pronto a responder a quem o chama; não escolhe sequer os tempos próprios. A casa onde habita não lhe pertence, porque a Igreja e o mundo são os espaços abertos da sua missão.”
O seguidor de Cristo tem o seu tesouro em “colocar o Senhor no meio da vida, sem nada mais procurar para si”, mas fugindo das “situações gratificantes que o colocariam no centro”, não se erguendo “sobre os trémulos pedestais dos poderes do mundo”, nem se reclinando “nas comodidades que enfraquecem a evangelização”: “alegra-se por evangelizar”.
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Como é que Tomé facilita a abertura de portas e do livro?
Tomé surge como o único discípulo chamado pelo nome naquela aparição do Ressuscitado. “Na sua dúvida e ânsia de querer entender” – diz Bergoglio – “este discípulo bastante teimoso assemelha-se-nos um pouco e até aparece simpático a nossos olhos”. Sem o pretender, “dá-nos um grande presente: deixa-nos mais perto de Deus, porque Deus não Se esconde de quem O procura”. O Senhor mostra-lhe as suas chagas gloriosas e o lugar dos cravos, convida-o a tocar com os dedos e com a mão “a ternura infinita de Deus, os sinais vivos de quanto sofreu por amor”. Também para o discípulo de hoje “é muito importante pôr a nossa humanidade em contacto com a carne do Senhor”. Jesus “fica contente” por Lhe falarmos “de tudo, não Se cansa das nossas vidas que já conhece, espera a nossa partilha, até mesmo a descrição das nossas jornadas”. O coração de Jesus deixa-Se conquistar na oração transparente, “pela abertura sincera, por corações que sabem reconhecer e chorar as suas fraquezas, confiantes em que precisamente nelas agirá a misericórdia divina”.
E que nos pede Jesus? A escrita vivente e vivenciada das páginas em branco do Evangelho que enriquecem não apenas a tradição literária, mas sobretudo a tradição viva da Igreja com letras e palavras da nossa história pessoal e comunitária, resultante da palpitação: de “corações verdadeiramente consagrados, que vivam do perdão recebido d’Ele para o derramarem com compaixão sobre os irmãos”; de “corações abertos e ternos para com os fracos”; de “corações dóceis e transparentes, que não dissimulam perante quem tem na Igreja a tarefa de orientar o caminho”. Para tanto, o discípulo fiel “não hesita em questionar-se, tem a coragem de viver a dúvida e de a levar ao Senhor, aos formadores e aos superiores, sem cálculos nem reticências”; “realiza um discernimento atento e constante, sabendo que o coração há de ser educado diariamente, a partir dos afetos, para escapar de toda a duplicidade nas atitudes e na vida”.
E, como Tomé – que, ao repto do Senhor: “não sejas incrédulo, mas crente!”, não só acreditou como “encontrou em Jesus o tudo da vida” – também hoje ao discípulo fará bem que repita diariamente aquelas palavras esplêndidas “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20,28), “como que a dizer-Lhe: Sois o meu único bem, o caminho da minha viagem, o coração da minha vida, o meu tudo”.
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Neste contexto da escrita pessoal e vivente do Evangelho, o Pontífice questiona:
“Como são as páginas do livro de cada um de vós? Estão escritas todos os dias? Estão escritas a meias? Estão em branco?”
Depois, solicita a ajuda da Mãe de Deus, aquela que “acolheu plenamente a Palavra de Deus na vida (cf Lc 8,20-21), a Mãe da Misericórdia que ensina “a cuidar concretamente das chagas de Jesus nos nossos irmãos e irmãs que passam necessidade, tanto dos vizinhos como dos distantes, tanto do doente como do migrante, porque, servindo quem sofre honra-se a carne de Cristo”.
E pede à Virgem Maria que “ajude a gastarmo-nos completamente pelo bem dos fiéis que nos estão confiados” e – algo tão próprio de Francisco – “a cuidarmos uns dos outros como verdadeiros irmãos e irmãs na comunhão da Igreja, a nossa santa Mãe”.
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Numa homilia plena de teologia bíblica e de espiritualidade da Ressurreição, ficam espelhados os fundamentos do apostolado, os frutos da Páscoa e a missão evangélico-histórica da Igreja e de cada um dos seus filhos. Também este Papa assume fundamentada a dimensão materna da Igreja e a fraternidade de todos, especialmente para com aqueles e aquelas que mostram na carne ou na alma as chagas do Redentor e necessitam da ternura de Deus e do cuidado da Mãe.
Se os votos de Francisco forem realizados por todos os que se entregaram incondicionalmente ao apostolado, será cada vez mais palpável a realidade testemunha e profetizada pelo Apóstolo Evangelista:
“Este é o discípulo que dá testemunho destas coisas e que as escreveu. E nós sabemos bem que o seu testemunho é verdadeiro. Há ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se elas fossem escritas, uma por uma, penso que o mundo não teria espaço para os livros que se deveriam escrever.” (Jo 21,24-25).
Jesus continua-Se nos seus seguidores nos seus servidores, nos seus missionários, bem como nos que precisam de beneficiar da missão: os pobres, os excluídos, os explorados, os que não têm terra, teto e trabalho – o próximo.

2016.07.30 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Os dois pulmões de respiração da Europa

Francisco chegou, no dia 27, à Polónia para a XXXI Jornada Mundial da Juventude. Porém, não deixou de fazer jus àquilo que marca a história da Europa e em particular a da sua região centro-oriental e concretamente a da Polónia, onde marcam pontos nevrálgicos a Divina Misericórdia, peculiarmente cuidada por São João Paulo II e por Santa Faustina, os campos de concentração quais testemunhos da sanha feroz do nazismo e o cultivo da memória nacional, ora plasmado na celebração dos 1050 anos do Batismo desta nação.
O Papa, no encontro que teve com os jornalistas no voo de Roma para Cracóvia, não se deteve a olhar para o mundo com paninhos quentes. E emendou o discurso do Padre Lombardi que insistia no vocábulo “insegurança” para declarar:
 “Mas a palavra verdadeira é guerra. Desde há tempos que vimos dizendo: ‘o mundo está em guerra aos pedaços’. Esta é guerra. Havia a de '14, com os seus métodos; depois a de 39 a 45, outra grande guerra no mundo; e agora é esta. Talvez não seja tão orgânica (organizada, sim; digo… orgânica), mas é guerra. Este santo sacerdote, que foi morto mesmo no momento em que oferecia a oração por toda a Igreja, é um; mas quantos cristãos, quantos inocentes, quantas crianças... Pensemos na Nigéria, por exemplo. ‘Mas aquela é África...’ É guerra. Não tenhamos medo de dizer esta verdade: o mundo está em guerra, porque perdeu a paz.”
E, já depois de Lombardi como que querer mencionar o término do encontro, Francisco esclareceu:
 “Quando falo de guerra, falo de guerra a sério, não de guerra de religião. Há guerra de interesses, há guerra por dinheiro, há guerra pelos recursos da natureza, há guerra pelo domínio dos povos: esta é a guerra. Alguém poderia pensar: ‘Está a falar de guerra de religião’. Não. Nós de todas as religiões queremos a paz. A guerra, querem-na os outros.”
Entretanto, havia referido que “a juventude sempre nos fala de esperança” e mostrara o desejo de que “os jovens nos digam algo que nos dê um pouco mais de esperança, neste momento”. Era o momento ensombrado pela decapitação do Padre Jacques Hamel na celebração da Eucaristia numa Igreja em Saint-Etienne-du-Rouvray. E o Pontífice agradeceu a quem lhe fez chegar as suas condolências, de modo especial ao Presidente da França que lhe quis telefonar.
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Após a cerimónia de boas-vindas na Área Militar do Aeroporto Internacional “São João Paulo II” de Balice-Cracóvia, o Papa, a sua comitiva e as entidades que participaram nesta cerimónia dirigiram-se ao Castelo de Wawel para o “Encontro com as autoridades, a sociedade civil e o corpo diplomático”.
Foi no discurso que aí proferiu que deixou a mensagem mais política da visita. É a primeira vez que em encontros desta natureza com Francisco são mencionados os Reitores das universidades.
O Bispo de Roma salientou ser esta a 1.ª vez que visita a Europa Centro-Oriental e sublinhou o seu contentamento por começar da Polónia, fazendo elogiosa referência ao “inesquecível São João Paulo II, idealizador e promotor das Jornadas Mundiais da Juventude”. Depois, apontou o facto de o Papa polaco gostar de falar da Europa que respira com os seus dois pulmões, que Francisco não especificou, mas que se consubstanciam na tradição cristã-ocidental e na tradição eslavo-ortodoxa. Com estas, na ótica do Papa polaco, teria de se formar a grande Europa, que se estende do Atlântico aos Urais. E, segundo Francisco, “o sonho dum novo humanismo europeu é animado pela respiração criativa e harmónica destes dois pulmões”, bem como “pela civilização comum que tem no cristianismo as suas raízes mais sólidas”.
E o Papa argentino frisando que “a memória carateriza o povo polaco”, enalteceu “o sentido vivo da história do Papa João Paulo II”, o qual, sempre que falava dum povo, “partia da sua história” evidenciando “os seus tesouros de humanidade e espiritualidade”.
Evocando a recente celebração dos 1050 anos do Batismo da Polónia – “momento forte de unidade nacional”, a confirmar a concórdia (na diversidade das opiniões) como “estrada segura” para “o bem comum de todo o povo – declarou:
“A consciência da identidade, livre de complexos de superioridade, é indispensável para organizar uma comunidade nacional com base no seu património humano, social, político, económico e religioso, para inspirar a sociedade e a cultura, mantendo-as simultaneamente fiéis à tradição e abertas à renovação e ao futuro”.
Depois de enunciar, mais que sumariamente, as linhas-força do diálogo genuíno – dizendo que “não pode haver diálogo, se cada qual não parte da sua própria identidade” e que a “profícua cooperação internacional e a mútua consideração maturam através da consciência e do respeito pela identidade própria e alheia”, retomou o tema da memória e vincou:
“Na vida diária de cada indivíduo como de cada sociedade, há dois tipos de memória: a boa e a má, a positiva e a negativa. A memória boa é a que a Bíblia nos mostra no Magnificat, o cântico de Maria, que louva o Senhor e a sua obra de salvação. Ao invés, a memória negativa é a que mantém o olhar da mente e do coração fixo obsessivamente no mal, a começar pelo mal cometido pelos outros.”.  
A este propósito, reconhecendo que os polacos souberam “fazer prevalecer a memória boa”, elencou dois exemplos: a celebração dos 50 anos do perdão permutado entre os episcopados polaco e alemão, depois da II Guerra Mundial; e a Declaração Conjunta entre a Igreja Católica da Polónia e a Igreja Ortodoxa de Moscovo. Envolvendo estes atos as comunidades eclesiais, tiveram consequências que os transcendem. O primeiro “desencadeou um processo social, político, cultural e religioso irreversível, mudando a história das relações entre os dois povos” (polaco e alemão); e o segundo “deu início a um processo de aproximação e fraternidade” entre as duas Igrejas e entre os povos polaco e russo.
A Polónia mostra como se faz “crescer a memória boa e deixar para trás a má”, com base na “esperança e confiança firmes n’Aquele que guia os destinos dos povos”, abre portas e das dificuldades cria oportunidades e novos cenários tidos como impossíveis. Assim, as vicissitudes históricas do país revelam que, após tempestades e trevas, o povo refeito na sua dignidade canta como os judeus no regresso do cativeiro babilónico: “Parecia-nos viver um sonho. A nossa boca encheu-se de sorrisos e a nossa língua de canções” (Sl 126/125,1-2). O caminho percorrido e o alcance das metas dão força e serenidade para enfrentar os desafios que “requerem a coragem da verdade” e o “compromisso ético constante” com vista ao respeito pela dignidade da pessoa humana nos processos decisórios e operativos e nas relações humanas.
E é desde este campo de análise que o Pontífice giza toda a atividade, nomeadamente a economia, a relação com o meio ambiente e a forma de gerir o complexo fenómeno migratório.
Para este o Papa reclama “um suplemento de sabedoria e misericórdia”, para a superação dos medos e a obtenção dum bem maior, sentenciando:
“É preciso identificar as causas da emigração da Polónia, facilitando o regresso de quantos o queiram fazer. Simultaneamente é precisa a disponibilidade para acolher as pessoas que fogem das guerras e da fome; a solidariedade para com os que estão privados dos seus direitos fundamentais, designadamente o de professar com liberdade e segurança a sua fé.”.
Mas não basta a ação de um país: “devem ser estimuladas colaborações e sinergias a nível internacional” na busca do encontro de soluções para os conflitos e guerras, que forçam tantos a deixar casa e pátria; há que aliviar o sofrimento, sem deixar de trabalhar ininterruptamente e com inteligência pela justiça e paz, testemunhando factualmente os valores humanos e cristãos.
É à luz desta história milenária que o Papa apela à Polónia a que olhe com esperança o futuro e as questões que enfrenta, num “clima de respeito entre todas as componentes da sociedade” e num “diálogo construtivo entre as diferentes posições”. E Francisco aborda os problemas que ora se põem ante os olhos das famílias e dos povos: a criação das melhores condições de crescimento civil, económico e demográfico, alimentando a confiança de oferecer uma vida boa aos filhos; a educação com vista ao enfrentamento dos problemas e à usufruição da beleza da criação, “do bem que soubermos fazer e difundir, da esperança que lhes soubermos dar”; a definição de políticas sociais em prol das famílias (núcleo primário e fundamental da sociedade), visando socorrer as mais frágeis e pobres e apoiá-las no acolhimento responsável da vida; a postura do acolhimento e proteção da vida, desde a conceção até à morte natural (obrigação de todos quanto ao seu respeito e cuidado); e o reconhecimento de que ao Estado, à Igreja e à sociedade compete “acompanhar e ajudar concretamente quem está em situação de grave dificuldade”, para que o filho nunca seja sentido como fardo mas como dom e os mais frágeis e pobres não se vejam abandonados.
Ao Presidente da República o líder da Igreja Católica garante que “a nação polaca pode – como sucedeu em todo o seu longo percurso histórico – contar com a colaboração da Igreja Católica”, de modo que, à luz dos princípios cristãos que forjaram a história e a identidade da nação, saiba também hoje “avançar no seu caminho, fiel às suas melhores tradições e repleta de confiança e esperança, mesmo nos momentos difíceis”.
Finalmente, augurou “a cada um dos presentes um sereno e frutuoso serviço ao bem comum” e implorou para a Polónia a bênção e proteção de Nossa Senhora de Częstochowa.
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Não se pode dizer que Francisco não siga o jeito dos seus antecessores mais próximos de falar a partir da realidade histórica e social do seu auditório; não pode dizer-se que este Papa não mete as mãos na massa da política quando os problemas urgem, as situações de injustiça clamam e o grito dos pobres, explorados e enjeitados nos interpela. Mas o que ninguém pode dizer é que Francisco não mergulha aqui e ali, agora e logo, no fundamental da espiritualidade, seja entre jovens ou entre idosos e crianças, seja entre políticos e detentores do poder económico: Deus, Misericórdia, Esperança, Proximidade, Jesus Cristo como a grande e única referência.
E foi espiritual, político e psicologicamente chocante o seu eloquente discurso ante a memória do holocausto, hoje dia 29. Enquanto os seus predecessores João Paulo e Bento se justificaram pelas suas raízes e falaram com história e alma, Francisco fez o sermão mais eloquente porque tremendamente sintético e não pronunciado (escreveu-o no livro e honra):
Signore, abbi pietà del tuo popolo! Signore, perdono per tanta crudeltà!
Franciscus – 29.7.2016
Quanto ao mais falam o silêncio, a oração, a entrada na cela 18 do Bloco 11, onde Maximiliano Kolbe foi martirizado, a deambulação pelas lápides e a deposição da vela. Não esqueço que assinou e datou, legando à memória a marca da personalidade, o Papa, e a do tempo (kairós).

2016.07.29 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Da plenitude do tempo: sentido e implicações

O tema foi desenvolvido pelo Santo Padre na Homilia da missa votiva de Nossa Senhora de Jasna Góra celebrada no seu Santuário em Częstochowa evocando os 1050 anos do Batismo da Polónia, hoje dia 28 de julho.
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A expressão “plenitude do tempo” (τò πλήρωμα τοΰ χρόνου) integra o versículo 4 do capítulo 4 da carta de Paulo aos Gálatas: “Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a Lei”. Contrapõe-se ao tempo do homem, “o tempo em que o herdeiro é criança” (Gl 4,1). E é o tempo de Deus feito homem, portanto, o tempo de Deus e do homem tornado filho de Deus: Ele, “nascido duma mulher, nascido sujeito à Lei”, veio “para resgatar os que se encontravam sob o domínio da Lei, a fim de recebermos a adoção de filhos” (cf Gl 4,4-5). Dito de outro modo, esta expressão “plenitude do tempo” assume a índole histórico-escatológica da encarnação do Verbo de Deus, que acontece num ponto preciso da História dos homens e coloca em evidência o valor messiânico da vinda do Filho de Deus. Ele veio para fazer a vontade do Pai e para isso é que Ele foi enviado. A plenitude do tempo “chegou” (ηλθον-aoristo) e Deus enviou (εξαπέστειλεν – enviou, expediu, despediu, despachou). Assim, a plenitude do tempo implica a descrição da missão de Jesus, o Filho enviado pelo Pai. O verbo grego “εξαποστέλλω”que significa “enviar” – é de uso comum no helenismo e muito usado na versão bíblica dos LXX. Aparece em G1 4,4 e 4,6. Entretanto, no Novo Testamento é raro o seu uso, apenas se encontrando em Lucas e nos Atos dos Apóstolos (também atribuído a Lucas). A “plenitude do tempo” confirma a espera da humanidade pela salvação e a concretização desta obra por Jesus, o filho de Deus, no momento designado por Deus.
O versículo começa pelo advérbio conectivo “porém”, de valor adversativo, que retoma os versículos anteriores. O aoristo do indicativo do verbo grego que significa “chegou” (ηλθον) dá a ideia duma ação realizada no passado como um evento único. Este é o momento da “plenitude do tempo” (cf At 1,7). O verbo é usado por Paulo para pré-anunciar a chegada daquilo que foi anunciado na Escritura, isto é, o tempo novo, o tempo messiânico, a chegada do Filho de Deus, Jesus. É o tempo escatológico ou messiânico, o do Reino de Deus (cf Mc 1,15; Rm 13,11), que encerra um longo período de séculos de espera da humanidade (cf 2Cor 6,2; Ef 1,10; 1Pe 1,20). O termo “plenitude” de Gl 4,4 mostra-nos o sentido de cumprimento (cf Mc 1,15; 1Cor 10,11). O seu significado teológico resulta do contexto que o envolve.
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Encontra-se um texto paralelo a este na carta de Paulo aos Efésios (1,10), que ajuda a entender o significado de “plenitude do tempo”. Na carta aos Efésios, Paulo usa o segmento “para levar o tempo à sua plenitude”. Nas duas expressões paulinas – Gl 4,4 e Ef 1,10 – sobressai a diferença de tradução da palavra “tempo” vinda do grego como “cronos” (χρόνος) e “kaipós” (καιρός) e com a tradução no plural por “tempos” (καιρων) que em seu significado coincidem indicando a “plenitude do tempo”. A expressão de Gl 4,4 significa o “fim do tempo”. Na verdade, no tempo pré-determinado, Deus enviou o seu Filho Jesus Cristo, o verdadeiro “eschaton”, a emergir na humanidade para trazer a liberdade; já a expressão “os tempos significa os momentos designados por Deus para completar o seu plano salvação, os quais, sucedendo-se uns após outros completam a medida estabelecida por Deus, atingindo a plenitude, a etapa prefixada, a de Cristo. Também o tempo “Cronos” se desenvolve e se vai completando até atingir a plenitude.
O “cronos”, do fluir dos dias, transforma-se em “kaipós”, tempo de graça e misericórdia. Com efeito, o Verbo, que veio ao que era Seu e os Seus não receberam (Jo 1,11), fez-Se homem e veio habitar connosco (Jo 1,14). E a quantos O receberam e Nele creram deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus (Jo 1,12); e nós participamos da Sua plenitude recebendo graça sobre graça (Jo 1,17). Ora Deus-connosco e entre nós fala-nos mais cara a cara. Ele, que “muitas vezes e de muitos modos falou aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas” (Heb 1,1), agora, “nestes dias, que são os últimos”, passou a falar-nos “por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas e por meio de quem fez o mundo – Filho que é resplendor da sua glória e imagem fiel da sua substância, que tudo sustenta com a sua palavra poderosa depois de ter realizado a purificação dos pecados e que está sentado à direita da Majestade nas alturas” (cf Heb 1,2-3). Já, no Antigo Testamento, Daniel (2,24-29) divisa o mistério escatológico, o anúncio misterioso dum acontecimento futuro determinado por Deus e cuja revelação cabe somente a Ele:
Enquanto estavas no teu leito, ó rei, acorriam os pensamentos sobre o que deveria acontecer no futuro, e aquele que revela os mistérios te deu conhecer o que deve acontecer”(Dn 2,29).
Ora, em Gl 4,4ss Paulo precisa muito bem as expressões: “o seu Filho”, entendendo-O como o Filho do Pai; “nascido de uma mulher nascido sob a Lei”, entendendo-O como homem sujeito às vicissitudes da vida e à pedagogia da Lei que leva ao tempo novo. As duas expressões “nascido” e “uma mulher” e “nascido segundo a lei”, em termos da “gramática dependencial” ou da “gramática das valências”, são complementos do verbo “enviou” (εξαπέστειλεν). E aquele particípio “nascido” (γεγόμενον) repetido – formando um conjunto modal, circunstancial – indica realmente o modo pelo qual Deus Se realizou em concreto no meio dos homens. Sendo “Deus” o sujeito da ação e “o seu filho” o agente que realiza a obra de Deus.
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O sentido escatológico da “plenitude do tempo” é muito forte e pode interpretar-se assim: Deus Pai envia o seu Filho Jesus para salvar a humanidade incursa no pecado. Por esta iniciativa divina, chega o tempo à sua plenitude. Não se considera aqui o tempo no seu aspeto durativo, mas no seu conteúdo. O tempo não para, não se suspende, não é cancelado, mas evidencia-se o lado escatológico da teologia de Paulo. Deus intervém diretamente na história da humanidade com o evento Jesus, o verdadeiro “eschaton”, o santo. Com este modo de agir, realiza-se a ação escatológica na e com a humanidade. O plano divino completa uma nova etapa da história da humanidade iniciando a etapa a que chamamos o “último tempo”. A mensagem de Gl 4,4 torna-se clarividente em Ef 1,10: “para levar o tempo à sua plenitude: o projeto de Cristo recapitular todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra”.
- (cf Odalberto Domingos Casonatto, “Uma janela sobre o mundo bíblico”, http://www.abiblia.org/index.php?a=2&id=66).
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Na predita liturgia de Jasna Góra, o Papa surpreende o emergir de “um fio divino que passa para a história humana e tece a história da salvação”, aproximando-o da história polaca.
E, referindo-se ao enunciado paulino do grande desígnio de Deus – “Quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher” (Gl 4,4) – entende que, ao chegar esta “plenitude do tempo”, a humanidade não estava particularmente preparada e o período que atravessava não era “de estabilidade e de paz”. Em si, a cena deste mundo não merecia a vinda de Deus; pelo contrário, “os seus não O receberam” (Jo 1,11). Assim, a plenitude do tempo foi um dom inteiramente gratuito de Deus: “Deus encheu o nosso tempo com a abundância da sua misericórdia”; ou seja, foi por “puro amor” que Deus inaugurou a plenitude do tempo”.
O modo como Deus se faz entrar na história é aparentemente banal: “nascido de uma mulher”. Nada de entrada triunfal, de manifestação imponente do Todo-Poderoso. Não vem como o sol ofuscante, mas entra da forma mais simples, como criança através da mãe, com o estilo de que fala a Escritura, “como a chuva sobre a terra” (cf Is 55,10), como a menor das sementes que germina e cresce (cf Mc 4,31-32). Ao contrário do que alguns esperariam, o Reino de Deus “não vem de maneira ostensiva” (Lc 17,20), mas na pequenez, na humildade.
Por seu turno, o Evangelho de João (Jo 2,1-11) capta este fio condutor salvífico, que atravessa delicadamente a história: da plenitude do tempo passamos ao “terceiro dia” do ministério de Jesus (cf Jo 2,1) e ao anúncio da “hora” da salvação, a hora de Jesus (cf Jo 2,4). O tempo contrai-se e Deus manifesta-Se na pequenez: “Jesus realizou o primeiro dos seus sinais miraculosos” (Jo 2,11) em Caná da Galileia, sem gesto estrondoso, sem multidão, sem revolução da natureza. Não é uma intervenção que resolva um problema político flagrante, mas um milagre simples, numa pequena aldeia, a alegrar o casamento duma anónima jovem família. Todavia, a água transformada em vinho na festa é um grande sinal, porque revela o rosto esponsal de Deus, “que Se põe à mesa connosco, que sonha e realiza a comunhão connosco”.
Na verdade, “o Senhor não Se mantém à distância”, mas “está no nosso meio e cuida de nós, sem decidir em nosso lugar nem Se ocupar de questões de poder”. E Francisco adverte:
“Deixar-se atrair pelo poder, pela grandeza e pela visibilidade é tragicamente humano, resultando numa grande tentação que procura insinuar-se por todo o lado, ao passo que é requintadamente divino dar-se aos outros, eliminando as distâncias, permanecendo na pequenez e habitando concretamente a quotidianidade”.
Porém, Deus salva-nos fazendo-Se “pequeno, vizinho e concreto”. Como pequeno, “manso e humilde de coração” (Mt 11,29), prefere os pequeninos, a quem o Pai revela os mistérios do Reino (cf Mt 11,25) e pousa sobre eles o seu olhar (cf Is 66,2). Prefere-os, porque se opõem ao “estilo de vida orgulhoso” que vem do mundo (cf 1 Jo 2,16), percebem e usam a linguagem de Deus. E o Papa, a este respeito evoca “tantos filhos e filhas” do povo polaco: os mártires, em quem resplandeceu a força desarmada do Evangelho; as pessoas simples, mas extraordinárias, em que refulgiu o testemunho do amor do Senhor no meio de grandes provações; os arautos mansos e fortes da Misericórdia, como os santos João Paulo II e Faustina, “canais” do amor de Deus por onde chegaram “dons inestimáveis a toda a Igreja e à humanidade inteira”.
Como vizinho, Deus torna próximo de nós o seu Reino (cf Mc 1,15). O Senhor “não quer ser temido como um soberano poderoso e distante,” mas “gosta de mergulhar nas nossas vicissitudes de cada dia, para caminhar connosco”. E é assim que temos de fazer como Igreja:
“Ouvir, envolver-se e tornar-se vizinho, partilhando as alegrias e as canseiras das pessoas, de modo que o Evangelho se comunique da forma mais coerente e frutuosa, ou seja, por irradiação positiva, através da transparência da vida”.
E, como concreto, Deus na sua sabedoria “age como arquiteto e brinca” (cf Prv 8,30). E voltando à carta aos Gálatas, o Papa repisa aproximando a economia salvífica da espiritualidade polaca:
“O Verbo faz-Se carne, nasce duma mãe, nasce sob o domínio da Lei (cf Gl 4,4), tem amigos e participa numa festa. O Eterno comunica-Se transcorrendo o tempo com pessoas e em situações concretas. Também a vossa história, permeada de Evangelho, Cruz e fidelidade à Igreja, regista o contágio positivo duma fé genuína, transmitida de família para família, de pai para filho e, sobretudo, pelas mães e as avós, a quem muito devemos agradecer. De modo particular, pudestes palpar a ternura concreta e providente da Mãe de todos, que vim aqui venerar como peregrino e que saudamos, no Salmo [no refrão], como a honra do nosso povo” (Jdt 15,9).
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Depois, o Santo Padre fala da mulher de quem nasceu o Filho de Deus ou da que intercedeu por que chegasse a hora do sinal messiânico e instou os servos a que fazerem o que Ele mandasse:
“Em Maria, encontramos a plena correspondência ao Senhor: e assim, na história, entrelaça-se com o fio divino um fio mariano. Se existe qualquer glória humana, qualquer mérito nosso na plenitude do tempo, é Ela: é Ela aquele espaço, preservado e liberto do mal, onde Deus Se espelhou; é Ela a escada que Deus percorreu para descer até nós e fazer-Se vizinho e concreto; é Ela o sinal mais claro da plenitude do tempo.”
É pela vida de Maria – tão sentida pela Polónia – que melhor admiramos a pequenez amada por Deus (“pôs os olhos na humildade da sua serva” e “exaltou os humildes” – Lc 1,48.52). Nela “tanto Se deleitou que d’Ela Se deixou tecer a carne” e “a Virgem Se tornou Progenitora de Deus”. Com efeito, para Francisco, em Jasna Góra como em Caná, Maria oferece-nos a sua proximidade para descobrirmos o que na nossa vida falta à plenitude do tempo. E “fá-lo com solicitude de Mãe, com a presença e bom conselho, ensinando-nos a evitar arbítrios e murmurações nas nossas comunidades”. Como Mãe de família – assegura o Papa – quer-nos guardar juntos. Como “a Mãe, forte junto da cruz e perseverante na oração com os discípulos à espera do Espírito Santo”, Maria acompanhou a rota do povo polaco, que “superou, na unidade, tantos momentos duros”. Assim, agora impõe-se que Lhe peçamos a infusão do desejo de vencer as injustiças e as feridas do passado e de criar comunhão com todos sem nunca ceder à tentação de se isolar e impor”. A Senhora de Caná mostrou-Se muito concreta: a “Mãe que leva a peito os problemas, que intervém, que sabe individuar os momentos difíceis e dar-lhes remédio com discrição, eficácia e determinação”. Porém, não é a patroa nem a protagonista: é a Mãe e a serva. Por isso, nós em Igreja precisamos de obter a graça de assumir a sua sensibilidade e imaginação ao servir quem passa necessidade, a beleza de gastar a vida pelos outros, sem preferências nem distinções”.
E o Bispo de Roma, enquanto implora que, pela intercessão da Senhora de Caná ou de Jasna Góra, “se renove também para nós a plenitude do tempo”, avisa e anseia:
“De pouco serve a passagem do antes ao depois de Cristo, se permanece uma data nos anais da história. Possa realizar-se, para todos e cada um, uma passagem interior, uma Páscoa do coração para o estilo divino encarnado por Maria: agir na pequenez e acompanhar de perto, com coração simples e aberto.”.
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Enfim, a plenitude do tempo é iniciativa do Pai, ação do Filho, superabundância vivificante do Espírito. E ao serviço da plenitude do tempo coloca-se Maria – pequenina, próxima, concreta, eficaz e discreta: é a Mãe!

2016.07.28 – Louro de Carvalho