sexta-feira, 29 de julho de 2016

Os dois pulmões de respiração da Europa

Francisco chegou, no dia 27, à Polónia para a XXXI Jornada Mundial da Juventude. Porém, não deixou de fazer jus àquilo que marca a história da Europa e em particular a da sua região centro-oriental e concretamente a da Polónia, onde marcam pontos nevrálgicos a Divina Misericórdia, peculiarmente cuidada por São João Paulo II e por Santa Faustina, os campos de concentração quais testemunhos da sanha feroz do nazismo e o cultivo da memória nacional, ora plasmado na celebração dos 1050 anos do Batismo desta nação.
O Papa, no encontro que teve com os jornalistas no voo de Roma para Cracóvia, não se deteve a olhar para o mundo com paninhos quentes. E emendou o discurso do Padre Lombardi que insistia no vocábulo “insegurança” para declarar:
 “Mas a palavra verdadeira é guerra. Desde há tempos que vimos dizendo: ‘o mundo está em guerra aos pedaços’. Esta é guerra. Havia a de '14, com os seus métodos; depois a de 39 a 45, outra grande guerra no mundo; e agora é esta. Talvez não seja tão orgânica (organizada, sim; digo… orgânica), mas é guerra. Este santo sacerdote, que foi morto mesmo no momento em que oferecia a oração por toda a Igreja, é um; mas quantos cristãos, quantos inocentes, quantas crianças... Pensemos na Nigéria, por exemplo. ‘Mas aquela é África...’ É guerra. Não tenhamos medo de dizer esta verdade: o mundo está em guerra, porque perdeu a paz.”
E, já depois de Lombardi como que querer mencionar o término do encontro, Francisco esclareceu:
 “Quando falo de guerra, falo de guerra a sério, não de guerra de religião. Há guerra de interesses, há guerra por dinheiro, há guerra pelos recursos da natureza, há guerra pelo domínio dos povos: esta é a guerra. Alguém poderia pensar: ‘Está a falar de guerra de religião’. Não. Nós de todas as religiões queremos a paz. A guerra, querem-na os outros.”
Entretanto, havia referido que “a juventude sempre nos fala de esperança” e mostrara o desejo de que “os jovens nos digam algo que nos dê um pouco mais de esperança, neste momento”. Era o momento ensombrado pela decapitação do Padre Jacques Hamel na celebração da Eucaristia numa Igreja em Saint-Etienne-du-Rouvray. E o Pontífice agradeceu a quem lhe fez chegar as suas condolências, de modo especial ao Presidente da França que lhe quis telefonar.
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Após a cerimónia de boas-vindas na Área Militar do Aeroporto Internacional “São João Paulo II” de Balice-Cracóvia, o Papa, a sua comitiva e as entidades que participaram nesta cerimónia dirigiram-se ao Castelo de Wawel para o “Encontro com as autoridades, a sociedade civil e o corpo diplomático”.
Foi no discurso que aí proferiu que deixou a mensagem mais política da visita. É a primeira vez que em encontros desta natureza com Francisco são mencionados os Reitores das universidades.
O Bispo de Roma salientou ser esta a 1.ª vez que visita a Europa Centro-Oriental e sublinhou o seu contentamento por começar da Polónia, fazendo elogiosa referência ao “inesquecível São João Paulo II, idealizador e promotor das Jornadas Mundiais da Juventude”. Depois, apontou o facto de o Papa polaco gostar de falar da Europa que respira com os seus dois pulmões, que Francisco não especificou, mas que se consubstanciam na tradição cristã-ocidental e na tradição eslavo-ortodoxa. Com estas, na ótica do Papa polaco, teria de se formar a grande Europa, que se estende do Atlântico aos Urais. E, segundo Francisco, “o sonho dum novo humanismo europeu é animado pela respiração criativa e harmónica destes dois pulmões”, bem como “pela civilização comum que tem no cristianismo as suas raízes mais sólidas”.
E o Papa argentino frisando que “a memória carateriza o povo polaco”, enalteceu “o sentido vivo da história do Papa João Paulo II”, o qual, sempre que falava dum povo, “partia da sua história” evidenciando “os seus tesouros de humanidade e espiritualidade”.
Evocando a recente celebração dos 1050 anos do Batismo da Polónia – “momento forte de unidade nacional”, a confirmar a concórdia (na diversidade das opiniões) como “estrada segura” para “o bem comum de todo o povo – declarou:
“A consciência da identidade, livre de complexos de superioridade, é indispensável para organizar uma comunidade nacional com base no seu património humano, social, político, económico e religioso, para inspirar a sociedade e a cultura, mantendo-as simultaneamente fiéis à tradição e abertas à renovação e ao futuro”.
Depois de enunciar, mais que sumariamente, as linhas-força do diálogo genuíno – dizendo que “não pode haver diálogo, se cada qual não parte da sua própria identidade” e que a “profícua cooperação internacional e a mútua consideração maturam através da consciência e do respeito pela identidade própria e alheia”, retomou o tema da memória e vincou:
“Na vida diária de cada indivíduo como de cada sociedade, há dois tipos de memória: a boa e a má, a positiva e a negativa. A memória boa é a que a Bíblia nos mostra no Magnificat, o cântico de Maria, que louva o Senhor e a sua obra de salvação. Ao invés, a memória negativa é a que mantém o olhar da mente e do coração fixo obsessivamente no mal, a começar pelo mal cometido pelos outros.”.  
A este propósito, reconhecendo que os polacos souberam “fazer prevalecer a memória boa”, elencou dois exemplos: a celebração dos 50 anos do perdão permutado entre os episcopados polaco e alemão, depois da II Guerra Mundial; e a Declaração Conjunta entre a Igreja Católica da Polónia e a Igreja Ortodoxa de Moscovo. Envolvendo estes atos as comunidades eclesiais, tiveram consequências que os transcendem. O primeiro “desencadeou um processo social, político, cultural e religioso irreversível, mudando a história das relações entre os dois povos” (polaco e alemão); e o segundo “deu início a um processo de aproximação e fraternidade” entre as duas Igrejas e entre os povos polaco e russo.
A Polónia mostra como se faz “crescer a memória boa e deixar para trás a má”, com base na “esperança e confiança firmes n’Aquele que guia os destinos dos povos”, abre portas e das dificuldades cria oportunidades e novos cenários tidos como impossíveis. Assim, as vicissitudes históricas do país revelam que, após tempestades e trevas, o povo refeito na sua dignidade canta como os judeus no regresso do cativeiro babilónico: “Parecia-nos viver um sonho. A nossa boca encheu-se de sorrisos e a nossa língua de canções” (Sl 126/125,1-2). O caminho percorrido e o alcance das metas dão força e serenidade para enfrentar os desafios que “requerem a coragem da verdade” e o “compromisso ético constante” com vista ao respeito pela dignidade da pessoa humana nos processos decisórios e operativos e nas relações humanas.
E é desde este campo de análise que o Pontífice giza toda a atividade, nomeadamente a economia, a relação com o meio ambiente e a forma de gerir o complexo fenómeno migratório.
Para este o Papa reclama “um suplemento de sabedoria e misericórdia”, para a superação dos medos e a obtenção dum bem maior, sentenciando:
“É preciso identificar as causas da emigração da Polónia, facilitando o regresso de quantos o queiram fazer. Simultaneamente é precisa a disponibilidade para acolher as pessoas que fogem das guerras e da fome; a solidariedade para com os que estão privados dos seus direitos fundamentais, designadamente o de professar com liberdade e segurança a sua fé.”.
Mas não basta a ação de um país: “devem ser estimuladas colaborações e sinergias a nível internacional” na busca do encontro de soluções para os conflitos e guerras, que forçam tantos a deixar casa e pátria; há que aliviar o sofrimento, sem deixar de trabalhar ininterruptamente e com inteligência pela justiça e paz, testemunhando factualmente os valores humanos e cristãos.
É à luz desta história milenária que o Papa apela à Polónia a que olhe com esperança o futuro e as questões que enfrenta, num “clima de respeito entre todas as componentes da sociedade” e num “diálogo construtivo entre as diferentes posições”. E Francisco aborda os problemas que ora se põem ante os olhos das famílias e dos povos: a criação das melhores condições de crescimento civil, económico e demográfico, alimentando a confiança de oferecer uma vida boa aos filhos; a educação com vista ao enfrentamento dos problemas e à usufruição da beleza da criação, “do bem que soubermos fazer e difundir, da esperança que lhes soubermos dar”; a definição de políticas sociais em prol das famílias (núcleo primário e fundamental da sociedade), visando socorrer as mais frágeis e pobres e apoiá-las no acolhimento responsável da vida; a postura do acolhimento e proteção da vida, desde a conceção até à morte natural (obrigação de todos quanto ao seu respeito e cuidado); e o reconhecimento de que ao Estado, à Igreja e à sociedade compete “acompanhar e ajudar concretamente quem está em situação de grave dificuldade”, para que o filho nunca seja sentido como fardo mas como dom e os mais frágeis e pobres não se vejam abandonados.
Ao Presidente da República o líder da Igreja Católica garante que “a nação polaca pode – como sucedeu em todo o seu longo percurso histórico – contar com a colaboração da Igreja Católica”, de modo que, à luz dos princípios cristãos que forjaram a história e a identidade da nação, saiba também hoje “avançar no seu caminho, fiel às suas melhores tradições e repleta de confiança e esperança, mesmo nos momentos difíceis”.
Finalmente, augurou “a cada um dos presentes um sereno e frutuoso serviço ao bem comum” e implorou para a Polónia a bênção e proteção de Nossa Senhora de Częstochowa.
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Não se pode dizer que Francisco não siga o jeito dos seus antecessores mais próximos de falar a partir da realidade histórica e social do seu auditório; não pode dizer-se que este Papa não mete as mãos na massa da política quando os problemas urgem, as situações de injustiça clamam e o grito dos pobres, explorados e enjeitados nos interpela. Mas o que ninguém pode dizer é que Francisco não mergulha aqui e ali, agora e logo, no fundamental da espiritualidade, seja entre jovens ou entre idosos e crianças, seja entre políticos e detentores do poder económico: Deus, Misericórdia, Esperança, Proximidade, Jesus Cristo como a grande e única referência.
E foi espiritual, político e psicologicamente chocante o seu eloquente discurso ante a memória do holocausto, hoje dia 29. Enquanto os seus predecessores João Paulo e Bento se justificaram pelas suas raízes e falaram com história e alma, Francisco fez o sermão mais eloquente porque tremendamente sintético e não pronunciado (escreveu-o no livro e honra):
Signore, abbi pietà del tuo popolo! Signore, perdono per tanta crudeltà!
Franciscus – 29.7.2016
Quanto ao mais falam o silêncio, a oração, a entrada na cela 18 do Bloco 11, onde Maximiliano Kolbe foi martirizado, a deambulação pelas lápides e a deposição da vela. Não esqueço que assinou e datou, legando à memória a marca da personalidade, o Papa, e a do tempo (kairós).

2016.07.29 – Louro de Carvalho

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