A frase que espelha a palavra e atitude do
diácono Lourenço (século
III), num dos tempos das perseguições do Império Romano, foi retomada pelo
Papa Francisco no discurso que proferiu, a 6 de julho, ao receber os
participantes na peregrinação das dioceses da província eclesiástica francesa
de Lião, peregrinação dos pobres.
***
Lourenço de Huesca ou São Lourenço nasceu em Huesca ou
Valência, na Hispânia, cerca do ano 225, e foi martirizado em Roma a 10 de
agosto de 258. Foi um dos sete primeiros diáconos (com a função
de guardiões do tesouro eclesial) da Igreja
de Roma.
Na verdade,
a função do diácono era de grande responsabilidade eclesial, dado que ente os
seus misteres se incluía o cuidado dos bens da Igreja e a distribuição de
esmolas pelos pobres. Como arquidiácono selecionado pelo Papa Sisto II,
Lourenço tinha o encargo de assistir o Papa nas celebrações, administrar os
bens da Igreja, dirigir a construção dos cemitérios, olhar pelos necessitados,
órfãos e viúvas.
No ano 257,
o imperador Valeriano decretou a perseguição aos cristãos. E, a 6 de agosto do
ano seguinte, o Papa Sisto II foi detido e decapitado, juntamente com quatro
dos seus companheiros diáconos, com exceção de Lourenço. De acordo com a
tradição, quando Sisto era conduzido ao local da execução, Lourenço ia junto a
ele e chorava, clamando: “Aonde vai sem o seu diácono, pai?”. O Pontífice respondeu-lhe que não
o abandonava e que, dentro de três dias, o diácono teria igual sorte. Após a
execução de Sisto, o imperador intimou, através do prefeito Cornelius Saecularis, a Igreja a
declarar as suas riquezas. Chamado à presença do prefeito, Lourenço solicitou
um prazo, passado o qual tudo entregaria, mas adiantando que a Igreja era muito
rica e que a sua riqueza ultrapassava a do imperador. O prefeito concedeu um
prazo de 3 dias. E Lourenço reuniu os cegos, coxos, aleijados, toda a sorte de
enfermos, as crianças e os idosos – enfim, as pessoas que eram auxiliadas pela
Igreja e os fiéis cristãos – e anotou-lhes os nomes.
Passado o
prazo imperialmente prescrito, Lourenço levou ao imperador aqueles nomes e um
conjunto significativo daquela ordem de pessoas e gritou a frase que lhe valeu
a morte: “Estes são o tesouro
da Igreja”. Furioso e indignado, o imperador mandou prendê-lo para
ser queimado vivo em cima de uma grelha sobre um braseiro ardente. A tradição
diz que o mártir conservou o seu bom humor, mesmo durante a execução, dizendo
aos verdugos: “podeis virar-me
agora, pois este lado já está bem assado”.
Diz Santo
Agostinho que o grande desejo que Lourenço tinha de se unir a Cristo fez com
que esquecesse os tormentos da tortura e que Deus operou muitos milagres em
Roma por sua intercessão.
O santo foi,
desde o século IV, um dos mártires mais venerados e seu nome aparece no cânone
romano da missa (Anáfora I). Foi sepultado no cemitério de Ciriaca, em Agro
Verão, sobre a Via Tiburtina. Constantino ergueu a primeira capela no local onde
repousam os seus restos mortais e que ocupa atualmente a Basílica de São
Lourenço Extramuros, a quinta basílica patriarcal de Roma. E, em todo o mundo
cristão, existem muitas igrejas dedicadas a São Lourenço. Geralmente, as
estátuas que o representam dele ostentam uma grelha, o instrumento do martírio,
e uma bíblia nas mãos, a Palavra de Deus feita norma de vida. Roma cristã
venera o hispano Lourenço com o mesmo culto com que honra os primeiros
apóstolos. Depois de Pedro e Paulo, a festa de Lourenço foi a maior da antiga
Liturgia Romana. O que foi Santo Estêvão para a Igreja de Jerusalém foi São
Lourenço para a Igreja de Roma. O Papa S. Dâmaso (+ 384) escreveu na inscrição que mandou colocar na basílica
que lhe é dedicada:
“Só a fé de Lourenço conseguiu vencer os flagelos do algoz, as chamas, os
tormentos, as cadeias. Dâmaso suplicante enche de dons estes altares, admirando
os méritos do glorioso mártir”.
***
A Liturgia celebra a Festa de São Lourenço,
diácono e mártir, no dia 10 de agosto e mobiliza para a Liturgia da Palavra da
missa as perícopas da 2.ª epístola de São Paulo aos Coríntios, sobre as boas
obras, enquanto fruto da fé, do amor e da justiça (2Cor 9,6-10) e do Evangelho de
São João, sobre o martírio, à semelhança do martírio de Jesus no Gólgota (Jo 12,24-26).
De facto, os cristãos devem doar generosamente
dos seus bens a quem deles careça. Não basta pretender dar apenas do que sobra,
já que a tentação de fazer contas, para que nada sobre, se torna tantas vezes
um imperativo da cobiça e da avareza. É preciso compartilhar de tal modo que os
outros não se tornem mendigos, dependentes, mas sejam induzidos à estruturação
da vida com base na capacidade de encontrarem meios de subsistência condigna. Quem
ama dá com alegria – diz o apóstolo. E a generosidade leva a doar (mais do que dar) sem esperar retorno,
a não ser o da criação de mais uma vida autónoma, sempre que possível, acolhendo
o pobre para que a sua pobreza não persista, mas ele cresça e se firme perante
Deus e os homens. É Deus quem dá tudo e dá de graça para todos e cada um. “Deus,
que fornece a quem semeia a semente e o pão que o alimenta, multiplicará os
frutos da justiça” (2Cor,
6,10). Ora, quem fica com o que é do outro está a apropriar-se
indevidamente de tudo o que não é seu. Só para quem não tem vergonha todo o
mundo é seu. Ao invés, o justo será eternamente lembrado porque “repartiu com
largueza, deu aos pobres; a sua justiça permanece para sempre” (Sl 112/111,9; 2Cor 9,9).
Procedendo neste espírito, os cristãos
enveredam pelas sãs vias da solidariedade humana e exprimem a Deus, da melhor
maneira, o reconhecimento pelos benefícios recebidos; e, distribuindo, não
perdem, pois preparam as verdadeiras riquezas. Quem se dá ao próximo, ganha-lhe
o coração e encontrará Deus no mesmo próximo, semelhante a Ele e a nós.
Mas
há que ter em conta que há muitas formas de
pobreza humana: a espiritual, a material, a cultural, a moral. E qualquer uma
delas é ultrapassada pela caridade, mas na justiça. E a Caridade é Deus, o
dador de todos os bens, sendo as criaturas instrumentos de Deus. Assim, quanto
mais generosos os homens, enquanto instrumentos de Deus, forem para com os
outros, maiores favores receberão de Deus. Ou seja, quem repartir generosamente
mais generosamente recolherá.
Por
seu turno, o Evangelho de São João ensina que o discípulo deve seguir o Mestre,
o servo, o Senhor. Na verdade, se o grão de trigo cair na terra e não morrer,
fica sozinho; porém, se aceitar morrer dará muito fruto. Ora, quem vive em união com Cristo, entra no dinamismo do
seu amor, e torna-se um só com o Pai. Servir o Filho é reinar com Ele no
coração do Pai; é associar-se a Ele na obra redentora. O amor pelo Pai e pelo
homem levaram Jesus à entrega até à morte, ao dom da própria vida, para que
todos tivéssemos vida. O grão de trigo, morto na terra, gera vida e torna-se
fecundo. O discípulo de Jesus é chamado a viver o mesmo mistério de morte para
gerar a vida e ser fecundo em prol dos irmãos.
À semelhança
do diácono Lourenço, os cristãos devem levar a vida na disposição de dar o seu
sangue por Cristo ou de dar a vida minuto a minuto por Cristo.
***
O Papa
Francisco, na alocução que proferiu na aludida peregrinação de Lião, a
peregrinação dos pobres, assegurou:
“Qualquer que seja a vossa condição, a vossa história, o peso que
carregais, é Jesus que nos reúne ao seu redor. De uma coisa Jesus tem muita
capacidade: acolher. Ele acolhe cada um tal como é. N’Ele somos irmãos, e gostaria
que sentísseis quanto sois bem-vindos; a vossa presença é importante para mim, e
também é importante que vos sintais em casa.”.
Depois, dirigindo-se
em especial aos responsáveis pela caminhada, salientou o bom testemunho de
fraternidade evangélica deste caminhar conjunto de/e com os peregrinos, expresso
no acompanhamento recíproco, na ajuda generosa, na oferta de recursos, na disponibilidade
de tempo, na doação sem reservas.
Anotou que “Jesus
quis partilhar a vossa [dos pobres] condição,
fez-Se, por amor, um de vós: desprezado pelos homens, esquecido, alguém que
nada contava”. Por isso, os pobres são preciosos aos seus olhos, sentem a
proximidade d’Ele, estão “no coração da Igreja”, pois, como dizia o padre José
Wresinski, Jesus sempre deu a prioridade às pessoas que vivem situações de
pobreza e abandono do mundo. E a Igreja que, na pegada de Cristo, “ama e
prefere o que Jesus amou e preferiu, não pode estar tranquila enquanto não
alcançar todos quantos experimentam a rejeição, a exclusão e que não contam
para ninguém”. É este estar dos pobres “no coração da Igreja”, que permite o encontro com Jesus,
porque os pobres falam de Jesus “não tanto com as palavras”, mas com toda a
vida. Por outro lado, eles testemunham “a importância dos pequenos gestos, ao
alcance de cada um, que contribuem para construir a paz, recordando-nos que
somos irmãos e que Deus é Pai de todos nós”.
O Papa
refere que Maria, José e Jesus, ao passarem pelas estradas, fugindo para o – e do
– Egito, sentiam-se “pobres, atormentados pela perseguição: mas ali estava Deus”.
Elogiando
José Wresinski, que desejava tirar partido “da vida partilhada e
não de teorias abstratas”, Francisco recorda que as teorias abstratas nos levam
“às ideologias” e as ideologias nos levam “a negar que Deus se fez carne, um de
nós” e que “é a vida partilhada com os pobres que nos
transforma e converte”. Não basta ir ao encontro deles (também
daqueles que escondem a sua pobreza), mas
caminhar com eles, tentando “compreender o seu sofrimento”, entrar “na sua
disposição de espírito” e mesmo “entrar no seu desespero”. Além disso, o Papa espera que o Ano da
Misericórdia seja “ocasião para redescobrir e viver esta dimensão de
solidariedade, fraternidade, ajuda e apoio recíproco” suscitando em volta dos
pobres “a comunidade”,
restituindo-lhes a existência, a identidade, a dignidade.
Relembrando,
a pedido destes responsáveis, à Igreja na França que Jesus sofre à porta das
nossas igrejas se os pobres não forem tidos em conta, retoma a frase de Lourenço:
“o tesouro da Igreja são os pobres”.
E, pede um favor, confia uma missão, uma missão que só eles, na sua pobreza,
serão “capazes de cumprir”. E explicou:
“Às vezes, Jesus era muito severo e repreendia vigorosamente pessoas que
não acolhiam a mensagem do Pai. Assim, como Ele pronunciou aquela linda
expressão ‘bem-aventurados’ os pobres, os famintos, quantos choram, quantos são
odiados e perseguidos, disse outra que, pronunciada por ele, dá medo! Disse: ‘Ai
de vós!’, dirigindo-se aos ricos, aos saciados, a quantos agora riem, a quantos
sentiam prazer em ser adulados, aos hipócritas.” (cf Lc 6,20-26).
Por isso, o
Papa confiou “a missão de rezar por eles, para que o Senhor mude o seu coração”,
de “rezar pelos culpados da vossa pobreza, a fim de que se convertam”, de “rezar
por tantos ricos que se vestem de púrpura e de bisso e fazem festa com grandes
banquetes, sem se dar conta de que à sua porta estão tantos Lázaros,
ansiosos por comer dos restos da sua mesa” (cf Lc 16,19-31).
Finalmente pediu:
“Rezai também pelos sacerdotes, pelos levitas, que – vendo aquele homem
espancado e meio morto – passavam longe, olhando para o outro lado, porque não
tinham compaixão. A todas estas pessoas, e também certamente a outras que estão
unidas negativamente à vossa pobreza e a tantas dores, sorri-lhes de coração,
desejai-lhes o bem e pedi a Jesus que se convertam” (cf Lc 10,39-37).
E, se
fizerem isto, haverá grande alegria na Igreja, no coração e também na França.
***
Não podemos
esquecer que os sinais do Messias são:
“Os cegos veem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos
ressuscitam, a Boa-Nova é anunciada aos pobres; e feliz de quem não tiver em
mim [em Cristo] ocasião de queda” (Lc 7,22-23; Mt 11, 5-6).
E a missão do Messias é:
“Anunciar a Boa-Nova aos
pobres; a proclamar a libertação aos cativos e, aos
cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a
proclamar um ano favorável da parte do Senhor” (Lc 4,18-19; cf Is 61,1-2).
2016.07.11 –
Louro de Carvalho
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