segunda-feira, 11 de julho de 2016

O tesouro da Igreja são os pobres

A frase que espelha a palavra e atitude do diácono Lourenço (século III), num dos tempos das perseguições do Império Romano, foi retomada pelo Papa Francisco no discurso que proferiu, a 6 de julho, ao receber os participantes na peregrinação das dioceses da província eclesiástica francesa de Lião, peregrinação dos pobres.
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Lourenço de Huesca ou São Lourenço nasceu em Huesca ou Valência, na Hispânia, cerca do ano 225, e foi martirizado em Roma a 10 de agosto de 258. Foi um dos sete primeiros diáconos (com a função de guardiões do tesouro eclesial) da Igreja de Roma.
Na verdade, a função do diácono era de grande responsabilidade eclesial, dado que ente os seus misteres se incluía o cuidado dos bens da Igreja e a distribuição de esmolas pelos pobres. Como arquidiácono selecionado pelo Papa Sisto II, Lourenço tinha o encargo de assistir o Papa nas celebrações, administrar os bens da Igreja, dirigir a construção dos cemitérios, olhar pelos necessitados, órfãos e viúvas.
No ano 257, o imperador Valeriano decretou a perseguição aos cristãos. E, a 6 de agosto do ano seguinte, o Papa Sisto II foi detido e decapitado, juntamente com quatro dos seus companheiros diáconos, com exceção de Lourenço. De acordo com a tradição, quando Sisto era conduzido ao local da execução, Lourenço ia junto a ele e chorava, clamando:  “Aonde vai sem o seu diácono, pai?”. O Pontífice respondeu-lhe que não o abandonava e que, dentro de três dias, o diácono teria igual sorte. Após a execução de Sisto, o imperador intimou, através do prefeito Cornelius Saecularis, a Igreja a declarar as suas riquezas. Chamado à presença do prefeito, Lourenço solicitou um prazo, passado o qual tudo entregaria, mas adiantando que a Igreja era muito rica e que a sua riqueza ultrapassava a do imperador. O prefeito concedeu um prazo de 3 dias. E Lourenço reuniu os cegos, coxos, aleijados, toda a sorte de enfermos, as crianças e os idosos – enfim, as pessoas que eram auxiliadas pela Igreja e os fiéis cristãos – e anotou-lhes os nomes.
Passado o prazo imperialmente prescrito, Lourenço levou ao imperador aqueles nomes e um conjunto significativo daquela ordem de pessoas e gritou a frase que lhe valeu a morte: “Estes são o tesouro da Igreja”. Furioso e indignado, o imperador mandou prendê-lo para ser queimado vivo em cima de uma grelha sobre um braseiro ardente. A tradição diz que o mártir conservou o seu bom humor, mesmo durante a execução, dizendo aos verdugos: “podeis virar-me agora, pois este lado já está bem assado”.
Diz Santo Agostinho que o grande desejo que Lourenço tinha de se unir a Cristo fez com que esquecesse os tormentos da tortura e que Deus operou muitos milagres em Roma por sua intercessão.
O santo foi, desde o século IV, um dos mártires mais venerados e seu nome aparece no cânone romano da missa (Anáfora I). Foi sepultado no cemitério de Ciriaca, em Agro Verão, sobre a Via Tiburtina. Constantino ergueu a primeira capela no local onde repousam os seus restos mortais e que ocupa atualmente a Basílica de São Lourenço Extramuros, a quinta basílica patriarcal de Roma. E, em todo o mundo cristão, existem muitas igrejas dedicadas a São Lourenço. Geralmente, as estátuas que o representam dele ostentam uma grelha, o instrumento do martírio, e uma bíblia nas mãos, a Palavra de Deus feita norma de vida. Roma cristã venera o hispano Lourenço com o mesmo culto com que honra os primeiros apóstolos. Depois de Pedro e Paulo, a festa de Lourenço foi a maior da antiga Liturgia Romana. O que foi Santo Estêvão para a Igreja de Jerusalém foi São Lourenço para a Igreja de Roma. O Papa S. Dâmaso (+ 384) escreveu na inscrição que mandou colocar na basílica que lhe é dedicada:
“Só a fé de Lourenço conseguiu vencer os flagelos do algoz, as chamas, os tormentos, as cadeias. Dâmaso suplicante enche de dons estes altares, admirando os méritos do glorioso mártir”.
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A Liturgia celebra a Festa de São Lourenço, diácono e mártir, no dia 10 de agosto e mobiliza para a Liturgia da Palavra da missa as perícopas da 2.ª epístola de São Paulo aos Coríntios, sobre as boas obras, enquanto fruto da fé, do amor e da justiça (2Cor 9,6-10) e do Evangelho de São João, sobre o martírio, à semelhança do martírio de Jesus no Gólgota (Jo 12,24-26).
De facto, os cristãos devem doar generosamente dos seus bens a quem deles careça. Não basta pretender dar apenas do que sobra, já que a tentação de fazer contas, para que nada sobre, se torna tantas vezes um imperativo da cobiça e da avareza. É preciso compartilhar de tal modo que os outros não se tornem mendigos, dependentes, mas sejam induzidos à estruturação da vida com base na capacidade de encontrarem meios de subsistência condigna. Quem ama dá com alegria – diz o apóstolo. E a generosidade leva a doar (mais do que dar) sem esperar retorno, a não ser o da criação de mais uma vida autónoma, sempre que possível, acolhendo o pobre para que a sua pobreza não persista, mas ele cresça e se firme perante Deus e os homens. É Deus quem dá tudo e dá de graça para todos e cada um. “Deus, que fornece a quem semeia a semente e o pão que o alimenta, multiplicará os frutos da justiça” (2Cor, 6,10). Ora, quem fica com o que é do outro está a apropriar-se indevidamente de tudo o que não é seu. Só para quem não tem vergonha todo o mundo é seu. Ao invés, o justo será eternamente lembrado porque “repartiu com largueza, deu aos pobres; a sua justiça permanece para sempre” (Sl 112/111,9; 2Cor 9,9).  
Procedendo neste espírito, os cristãos enveredam pelas sãs vias da solidariedade humana e exprimem a Deus, da melhor maneira, o reconhecimento pelos benefícios recebidos; e, distribuindo, não perdem, pois preparam as verdadeiras riquezas. Quem se dá ao próximo, ganha-lhe o coração e encontrará Deus no mesmo próximo, semelhante a Ele e a nós.
Mas há que ter em conta que há muitas formas de pobreza humana: a espiritual, a material, a cultural, a moral. E qualquer uma delas é ultrapassada pela caridade, mas na justiça. E a Caridade é Deus, o dador de todos os bens, sendo as criaturas instrumentos de Deus. Assim, quanto mais generosos os homens, enquanto instrumentos de Deus, forem para com os outros, maiores favores receberão de Deus. Ou seja, quem repartir generosamente mais generosamente recolherá.
Por seu turno, o Evangelho de São João ensina que o discípulo deve seguir o Mestre, o servo, o Senhor. Na verdade, se o grão de trigo cair na terra e não morrer, fica sozinho; porém, se aceitar morrer dará muito fruto. Ora, quem vive em união com Cristo, entra no dinamismo do seu amor, e torna-se um só com o Pai. Servir o Filho é reinar com Ele no coração do Pai; é associar-se a Ele na obra redentora. O amor pelo Pai e pelo homem levaram Jesus à entrega até à morte, ao dom da própria vida, para que todos tivéssemos vida. O grão de trigo, morto na terra, gera vida e torna-se fecundo. O discípulo de Jesus é chamado a viver o mesmo mistério de morte para gerar a vida e ser fecundo em prol dos irmãos.
À semelhança do diácono Lourenço, os cristãos devem levar a vida na disposição de dar o seu sangue por Cristo ou de dar a vida minuto a minuto por Cristo.
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O Papa Francisco, na alocução que proferiu na aludida peregrinação de Lião, a peregrinação dos pobres, assegurou: 
“Qualquer que seja a vossa condição, a vossa história, o peso que carregais, é Jesus que nos reúne ao seu redor. De uma coisa Jesus tem muita capacidade: acolher. Ele acolhe cada um tal como é. N’Ele somos irmãos, e gostaria que sentísseis quanto sois bem-vindos; a vossa presença é importante para mim, e também é importante que vos sintais em casa.”.
Depois, dirigindo-se em especial aos responsáveis pela caminhada, salientou o bom testemunho de fraternidade evangélica deste caminhar conjunto de/e com os peregrinos, expresso no acompanhamento recíproco, na ajuda generosa, na oferta de recursos, na disponibilidade de tempo, na doação sem reservas.
Anotou que “Jesus quis partilhar a vossa [dos pobres] condição, fez-Se, por amor, um de vós: desprezado pelos homens, esquecido, alguém que nada contava”. Por isso, os pobres são preciosos aos seus olhos, sentem a proximidade d’Ele, estão “no coração da Igreja”, pois, como dizia o padre José Wresinski, Jesus sempre deu a prioridade às pessoas que vivem situações de pobreza e abandono do mundo. E a Igreja que, na pegada de Cristo, “ama e prefere o que Jesus amou e preferiu, não pode estar tranquila enquanto não alcançar todos quantos experimentam a rejeição, a exclusão e que não contam para ninguém”. É este estar dos pobres “no coração da Igreja”, que permite o encontro com Jesus, porque os pobres falam de Jesus “não tanto com as palavras”, mas com toda a vida. Por outro lado, eles testemunham “a importância dos pequenos gestos, ao alcance de cada um, que contribuem para construir a paz, recordando-nos que somos irmãos e que Deus é Pai de todos nós”.
O Papa refere que Maria, José e Jesus, ao passarem pelas estradas, fugindo para o – e do – Egito, sentiam-se “pobres, atormentados pela perseguição: mas ali estava Deus”.
Elogiando José Wresinski, que desejava tirar partido “da vida partilhada e não de teorias abstratas”, Francisco recorda que as teorias abstratas nos levam “às ideologias” e as ideologias nos levam “a negar que Deus se fez carne, um de nós” e que “é a vida partilhada com os pobres que nos transforma e converte”. Não basta ir ao encontro deles (também daqueles que escondem a sua pobreza), mas caminhar com eles, tentando “compreender o seu sofrimento”, entrar “na sua disposição de espírito” e mesmo “entrar no seu desespero”. Além disso, o Papa espera que o Ano da Misericórdia seja “ocasião para redescobrir e viver esta dimensão de solidariedade, fraternidade, ajuda e apoio recíproco” suscitando em volta dos pobres “a comunidade”, restituindo-lhes a existência, a identidade, a dignidade.
Relembrando, a pedido destes responsáveis, à Igreja na França que Jesus sofre à porta das nossas igrejas se os pobres não forem tidos em conta, retoma a frase de Lourenço: “o tesouro da Igreja são os pobres”. E, pede um favor, confia uma missão, uma missão que só eles, na sua pobreza, serão “capazes de cumprir”. E explicou:
“Às vezes, Jesus era muito severo e repreendia vigorosamente pessoas que não acolhiam a mensagem do Pai. Assim, como Ele pronunciou aquela linda expressão ‘bem-aventurados’ os pobres, os famintos, quantos choram, quantos são odiados e perseguidos, disse outra que, pronunciada por ele, dá medo! Disse: ‘Ai de vós!’, dirigindo-se aos ricos, aos saciados, a quantos agora riem, a quantos sentiam prazer em ser adulados, aos hipócritas.” (cf Lc 6,20-26).
Por isso, o Papa confiou “a missão de rezar por eles, para que o Senhor mude o seu coração”, de “rezar pelos culpados da vossa pobreza, a fim de que se convertam”, de “rezar por tantos ricos que se vestem de púrpura e de bisso e fazem festa com grandes banquetes, sem se dar conta de que à sua porta estão tantos Lázaros, ansiosos por comer dos restos da sua mesa” (cf Lc 16,19-31).
Finalmente pediu:
“Rezai também pelos sacerdotes, pelos levitas, que – vendo aquele homem espancado e meio morto – passavam longe, olhando para o outro lado, porque não tinham compaixão. A todas estas pessoas, e também certamente a outras que estão unidas negativamente à vossa pobreza e a tantas dores, sorri-lhes de coração, desejai-lhes o bem e pedi a Jesus que se convertam” (cf Lc 10,39-37).
E, se fizerem isto, haverá grande alegria na Igreja, no coração e também na França.
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Não podemos esquecer que os sinais do Messias são:
Os cegos veem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, a Boa-Nova é anunciada aos pobres; e feliz de quem não tiver em mim [em Cristo] ocasião de queda” (Lc 7,22-23; Mt 11, 5-6).
E a missão do Messias é:
Anunciar a Boa-Nova aos pobres; a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor” (Lc 4,18-19; cf Is 61,1-2).

2016.07.11 – Louro de Carvalho

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