domingo, 31 de março de 2024

A Páscoa de 2024 é um pouco o espelho do nosso Mundo

 

 

Incomoda-nos uma Páscoa de tempo fora do tempo. Na verdade, depois de vários surtos de tempo excecionalmente quente, em janeiro, em fevereiro e, mesmo, em alguns dias da segunda quinzena de março, a Semana Santa e a Páscoa surgiram com chuvas fortes, desajeitadas ventanias, trovoadas, mares bravos, enfim tempestade e depressão. Isto, mais do que primavera, é invernia da graúda.

Assim, a maior parte os espetáculos de pendor cristão, que usualmente se desenrolam a céu aberto (desfiles, procissões, cortejos, vias-sacras, etc.), ou foram suprimidos ou encastelaram-se no interior dos templos. Porém, até aí os participantes foram em menor número, por causa do frio e das chuvas. O que não faltou foram as amêndoas, os folares, as prendas, as viagens, as refeições melhoradas, as miniférias.  

Também na Páscoa, era expectável que as guerras conhecessem tréguas, houvesse esforços de paz, a criminalidade diminuísse, o terrorismo se ofuscasse, a paz social reinasse nos países. Contudo, as notícias dão conta do impasse nas guerras, acolitado, aqui e ali, por danos diretos infligidos por drones, por mísseis e por outros bombardeamentos. As baixas militares continuam a pontuar, as mortes de civis são constantes, mais fatias de património são destruídas; navios são atacados nos mares, nos golfos; praticam-se crimes de guerra e genocídios até à eliminação do último inimigo, em nome da animalização dos seus componentes humanos; a ajuda humanitária (em termos de alimentação, assistência médica, vestuário, etc.) é negada, impedida ou diminuída; e movimentos orgânicos ou inorgânicos reivindicam por motivos sérios ou em medidas desproporcionadas. Por isso, a Páscoa, com tempo fora de tempo, espelha o mundo que temos.

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A nível internacional, as notícias de conflito são mais do que abundantes em elementos trágicos. Atente-se na guerra na Ucrânia, sem fim à vista, por causa de uma paz que ninguém quer, e fruto de uma ambição inconfessada do Ocidente, que tentou alargar a sua área de influência para lá dos tratados, assim como da Federação Russa, que tenta “recuperar” territórios que alega serem seus.

Considere-se o conflito entre Israel e o Hamas, que pode passar de localizado a regional e com repercussões mundiais. Ironicamente, o cenário dessa caça bélica ao homem ocorre no território onde nasceu, por onde passou e onde morreu o homem que está na génese e no sentido da Páscoa dos cristãos e que pregou a fraternidade universal.

A compor a tragicidade deste ambiente, é de registar, além de vários atentados e tiroteios, um pouco por toda a parte, a recente perda de, pelo menos, 134 pessoas numa sala de espetáculos russa, em atentado cuja autoria é reivindicada por organizações do Estado Islâmico.      

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A nível nacional, fico-me por dois registos atinentes à criminalidade.

O número de crimes registados pelas autoridades policiais, em 2023, foi de 371995, mais 28150 do que em 2022, quando se verificaram 343845 crimes. Assim, o seu aumento foi de 8%, tendo atingiram os valores mais elevados em 10 anos.

O destaque estatístico anual, publicado na página da Internet da Direção-Geral de Política de Justiça (DGPJ), mostra, igualmente, que desde 2013, quando ocorreram 376403, que não se registavam em Portugal tantos crimes como em 2023.

Os dados indicam também que, só em 2020, ano marcado por confinamentos, devido à pandemia de covid-19, é que a criminalidade ficou abaixo dos 300 mil crimes, com 298787.

Os crimes contra o património representaram cerca de 51,0% do total (189657 crimes), seguidos pelos crimes contra as pessoas que corresponderam a cerca de 24,4% do total (90840 crimes) e dos crimes contra a vida em sociedade, que representaram 11,9% do total (44439 crimes).

Segundo a DGPJ, apenas os crimes contra animais de companhia não subiram, em 2023, face a 2022, passando de 2022 para 1729.

Os tipos de crimes que mais subiram, em 2023, foram os cometidos contra o Estado (mais 16,9%), que passaram de 6559, em 2022, para 7713, em 2023, seguido dos crimes contra a identidade cultural/integridade pessoal (mais 9,6%), que totalizaram 367, enquanto, em 2022, foram 289.

As estatísticas da justiça revelam também que os crimes contra as pessoas aumentaram 5,8% e os crimes contra o património subiram 7,6%. Já as polícias registam mais 424 crimes contra vida em sociedade, num total de 44439, em 2023.

Os crimes mais frequentes, em 2023, foram os de “violência doméstica contra cônjuges ou análogos” (26041), seguido da condução sob efeito de álcool (24133), de ofensas à integridade física (24111), de furto em veículo motorizado (20180), de burla informática e nas comunicações (20259), de ameaça e de coação (16676) e de condução sem habilitação legal (15579).

Outros dos crimes mais registados foram o furto de oportunidade/de objetos não guardados (11234), de abuso de cartão de garantia ou de cartão, de dispositivo ou de dados de pagamento (10386), de furto em edifício comercial ou industrial, sem arrombamento, escalamento ou chaves falsas (8279), de furto em residência, de escalamento ou de chaves falsas (8237) e de furto de veículo motorizado (8189).

A criminalidade violenta aumentou 5,5%, em relação a 2022, tendo as polícias registado um total de 1 022 crimes violentos, em 2023, como revelam as estatísticas da DGPJ.

As estatísticas mostram que os crimes violentos baixaram em 2020 (12469) e 2021 (11014), anos marcados pelos confinamentos da pandemia de covid-19, para registarem um aumento, em 2022 (13281), e nova subida, em 2023 (14022). Em 2019, os crimes violentos totalizaram 14389.

Segundo a DGPJ, as comarcas onde se registaram mais crimes foram a de Lisboa (3835), a do Porto (2010), a de Lisboa Oeste (1668), a do Algarve (901) e a de Lisboa Norte (858).

Os crimes registados pelas polícias aumentaram cerca de 8%, em 2023, face a 2022, e atingiram os valores mais elevados em 10 anos, totalizando 371995, em 2023.

Entre os crimes que subiram, em 2023, e mencionados na página da DGPJ constam o abuso sexual de menores, 976, em 2023, mais 12 do que em 2022, o branqueamento de capitais, 104 (mais 55 do que em 2022), e 72 de corrupção (mais 16).

Em 2023, as polícias detetaram 452 crimes conexos com o desporto, mais 98 do que em 2022, tendo também registado 39712 crimes rodoviários em 2023 (mais 3376). E os crimes que baixaram, em 2023, foram de incêndio florestal, 5325 (menos 1842) e de violência doméstica, com ligeira diminuição, passando de 30488, em 2022, para 30461, em 2023 (menos 27).

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Outra situação que está na praça é a conexa com importadores de gasóleo vindo de Espanha fogem ao imposto sobre o valor acrescentado (IVA), ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos (ISP) e à incorporação de biodiesel fixada por lei. Garantem preços mais baixos, mas lesam o Estado e o ambiente. A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) e a Entidade Nacional para o Setor Energético, EPE (ENSE, EPE) dizem estar a agir. Mas, por falhas na fiscalização e na lei, os prevaricadores continuam a operar.

O Estado estará, neste caso, a ser prejudicado em mais de 200 milhões de euros por fraudes fiscais, ou seja, algo como 50 milhões de euros por ano, nos últimos quatro. Está em causa a fuga a impostos como o IVA e o ISP, bem como às compensações que são devidas sempre que uma operadora não incorpora a quantidade de biocombustível prevista na lei, para reduzir as emissões de dióxido de carbono (CO2). Não estão a ser cumpridas, por todos os operadores, as metas para os biocombustíveis e há falhas na fiscalização da incorporação e lacunas legais que dão margem de manobra aos prevaricadores. A AT garantiu que tem o setor sinalizado e que está a atuar a nível inspetivo e a nível penal.

A perda de 200 milhões em receita fiscal é uma estimativa, por baixo, da Associação Portuguesa das Empresas Petrolíferas (APETRO), avançada pelo seu secretário-geral, António Comprido, tendo em conta o crescente peso que os pequenos operadores estão a ganhar no mercado. E, embora não se comparem, em dimensão, com as gigantes petrolíferas, tais empresas movimentam valores de largos milhões de euros, num mercado já bastante lucrativo, “sobretudo se as regras fiscais e ambientais não forem cumpridas”, como enfatiza António Comprido.

O esquema tem várias componentes, sendo a mais visível “aproveitar ilicitamente o diferencial de IVA e de ISP entre Portugal e Espanha, comprando o combustível no mercado espanhol, como sendo para operar localmente, e vendê-lo, depois, em Portugal, sem declarar e pagar o IVA remanescente. Por outro lado, face à dificuldade assumida pela ENSE, EPE, em controlar o cumprimento das percentagens das “matérias avançadas” no biodiesel, quando importado, este pode ser comercializado como biodiesel, mesmo não o sendo. Como o biodiesel tem preço mais alto, a falsificação resulta em ganhos importantes, se os volumes forem grandes. Graças a este e a outros expedientes, estas empresas, apresentando preços mais baixos, ganham bastante dinheiro.

Outro expediente, já detetado em Espanha, que se admite que possa estar a ocorrer em Portugal, é simular vendas de combustíveis a sociedades fictícias, sem pagamento de IVA, vendendo, depois, às gasolineiras a baixo preço, conseguindo lucrar, porque não pagam IVA, na compra, nem declaram o que vendem e não fazem a liquidação. Entretanto, as sociedades de fachada desaparecem ou entram em falência. Só em Espanha, no último mês, descobriu-se que mil, em 12 mil operadores, vendiam gasóleo a preço abaixo de custo, o que alertou as autoridades para investigar estas redes, que terão como origem operadores que compram combustível por atacado nos mercados internacionais. E, segundo os dados oficiais da AT, tais esquemas causaram um prejuízo da ordem dos 700 milhões de euros ao Estado espanhol, em 2022, a que há a acrescentar mais de 90 milhões pelas compensações não pagas, por falta de incorporação de biodiesel.

Em Portugal, haverá, pelo menos, seis empresas com procedimentos suspeitos, algumas com ações em tribunal, por dívidas ao Fisco. Para lá do prejuízo ao erário público, há também “uma distorção das regras de concorrência”, como aponta o secretário-geral da Associação Portuguesa de Produtores de Biocombustíveis (APPB), Jaime Braga, considerando que é fundamental saber se há empresas a fazer mistura de biocombustível, em Portugal, sem ser num entreposto fiscal, não declarando o produto. E os produtores portugueses de biocombustíveis, não importadores, são prejudicados, porque são altamente fiscalizados para fazerem a mistura das “matérias avançadas” no biodiesel, enquanto não há essa garantia no produto importado.

Esta situação aliada ao método administrativo de obtenção de “títulos de sustentabilidade”– que podem ser comprados em leilão oficial da Direção-Geral de Energia (DGD), para as operadoras compensarem as falhas de incorporação real de matérias mais ecológicas no biodiesel –, faz com que Portugal não esteja a cumprir as metas europeias que estipulam a incorporação de 11,5%.

No entanto, a AT rejeita confirmar os nomes das empresas envolvidas em atuações suspeitas, invocando o sigilo fiscal a que está legalmente obrigada. E nada está em vias de mudar.

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Enfim, guerras, terrorismo, catástrofes naturais, fenómenos de revolta da Natureza por causa da ação humana, criminalidade esporádica, organizada, mediana ou violenta, fraude fiscal, danos vários são fatores que permitem dizer que esta Páscoa com tempo fora de tempo é espelho da aldeia global que os homens ocupam. Esperemos que isto mude. Porém, façamos a nossa parte.

2024.03.31 – Louro de Carvalho

sábado, 30 de março de 2024

Enfim, temos parlamento e teremos governo!

 

É a coisa mais natural em democracia. Realizaram-se eleições para a Assembleia da República (AR) com uma das mais amplas participações de eleitores. Os votos convertidos em mandatos, nos termos constitucionais e da respetiva lei eleitoral, ditaram nova composição parlamentar, de modo que, tendo-a em conta, o Presidente da República (PR), ouvidos os partidos com assento parlamentar, indigitou um novo primeiro-ministro (PM).

Como a campanha eleitoral perdeu imenso tempo a abordar a questão dos cenários pós-eleitorais e, consequentemente, os problemas da governabilidade ou da ingovernabilidade, também agora os pretensos modeladores da opinião pública tentam fazer-nos a cabeça sobre o comportamento dos deputados na AR e sobre a suposta curta duração do governo, indo ao ponto de fornecer diretrizes e orientações aos novos detentores do poder executivo.

Penso que, antes de mais, será prudente deixar que os deputados tomem os seus lugares e que o novo PM seja formalmente nomeado e empossado, assim como os seus ministros e secretários de Estado (eventualmente também os subsecretários de Estado). Só depois de os membros do governo cessante deixarem as suas funções e depois de o novo governo tomar posse, é que a AR ficará com uma composição mais estável, porque governantes do elenco de António Costa foram eleitos deputados e deputados da Aliança Democrática (AD), porque integram o governo, serão substituídos na AR por novos deputados oriundos dos respetivos círculos eleitorais.

Correu, do meu ponto de vista, demasiada tinta a propósito da eleição do presidente da Assembleia da República (PAR), a manifestar o furor especulativo, como se alguns operadores da comunicação social, mormente os que fizeram campanha para que vingasse a solução eleitoral encontrada, não tivessem mais assuntos de interesse a abordar.

Não havendo, na AR, uma força política maioritária (a esquerda não tem maioria, a direita moderada também não e a direita radical também não), era óbvio que propor um candidato à eleição de PAR, sem negociar com outra força política de feição ideológica ou pragmática mais afim, só por milagre teria sucesso, sobretudo se nos lembrarmos de que o voto, nestas circunstâncias, é secreto, podendo o votante desviar-se, sem penalização, da diretriz partidária.

Também é natural que um partido que tenha 50 deputados na AR barafuste, porque o líder da AD manteve, para já, o aforismo que gizou, “o não é não”, para se eximir de negociar com um partido que, pelos vistos, não agrada à maioria do eleitorado.   

Num segundo momento, cada uma das três maiores forças partidárias apresentou o seu candidato a PAR e, como nenhum obteve a maioria absoluta dos votos dos deputados em efetividade de funções (116 votos em 230 deputados), realizou-se a segunda volta, em que o candidato do Partido Socialista (PS) obteve o maior número de votos (90), mas longe da maioria necessária. Por isso, o processo eleitoral foi reaberto. E o PS tomou a iniciativa de propor à AD uma solução para o impasse: um acordo institucional de presidência rotativa, sendo a presidência da AR confiada, nas primeiras duas sessões legislativas, ao Partido Social Democrata (PSD) e, nas outras duas, ao PS, o que foi aceite, tendo sido eleito, por voto secreto, o deputado José Pedro Aguiar branco, do PSD, que fez o discurso de equidistância e de promessa de respeito por todos os deputados, em nome dos princípios da dignidade de todos e da igualdade dos deputados, assim como em nome do prestígio da casa da democracia.

Sem qualquer problema, os deputados votaram, a seguir, os nomes iniciados pelas quatro maiores forças partidárias para vice-presidentes, para secretários e para vice-secretários.

O líder do Chega veio a terreiro dizer que a AD fez a sua escolha (referindo-se ao PS) e o vice-presidente da AR proposto por aquele partido esclareceu que o seu partido é contra o sistema, mas não contra o regime. Era o que faltava ser contra o regime e alinhar nas suas estruturas!   

Vieram alguns comentadores colocar em dúvida a posição do PS, o qual aproveitou o ensejo para reafirmar o seu estatuto de líder da oposição, responsável e aguerrida, às políticas da AD, mas garantindo que não fará oposição ao país, nem à Assembleia da República. Paralelamente, recordou que não alinharia em coligações negativas contra o programa do governo e que viabilizaria um orçamento retificativo, se o governo o julgar necessário para responder às reivindicações dos professores e das polícias, com a condição de que esse instrumento de gestão seja elaborado até ao início do próximo verão. Também reiterou que não se comprometia, a esta distância, a viabilizar qualquer outro orçamento do Estado.

Uma coisa é certa: é mais difícil ao PR ver contrariado um veto a um decreto da AR. Com efeito, será difícil conseguir-se, na AR, uma maioria que reconfirme um seu diploma vetado, ficando o chefe de Estado a ganhar pontos. Resta saber se irá vetar leis, como até agora, com base na aprovação por uma diminuta (ou, no caso, instável) maioria.

Outra questão que tem estado em discussão na praça pública é a do excedente orçamental. Alguns sustentam que o excedente orçamental, enaltecido por Fernando Medina, ou resulta de habilidade do titular da pasta das Finanças ou foi construído à custa do sacrifício e das lágrimas da pessoas (“o país está melhor, mas as pessoas estão pior”); outros estão a minimizá-lo, provavelmente para criar o ambiente favorável à prometida descida de impostos e a outros itens que integraram o leilão de promessas. A propósito, lembro-me da promessa de choque fiscal em 2022, contrariada pelo aumento de impostos, por o novo governo, alegadamente, ver o país de tanga.

Alguns comentadores minimizam a descida da dívida e do défice, pelo facto de isso resultar do aumento do produto interno bruto (PIB), bem como da subida da inflação. Com efeito, segundo eles, a dívida não baixou em valores absolutos, mas apenas em relação ao PIB.

Também os especialistas se dividem sobre a aplicação do excedente orçamental, se deve ser feita na resposta às reivindicações dos diversos grupos profissionais ou se deve ser feita na amortização da dívida. O próprio secretário-geral do PS e o seu correligionário Fernando Medina, responsável pelo apuramento do excedente, vêm advertindo para a evolução dos acontecimentos e para o facto de as regras orçamentais da União Europeia (UE), desde a pandemia, serem retomadas em 2025. Além disso, a guerra na Ucrânia está sem fim à vista e subsiste o compromisso de investir 2% na Defesa, nos termos do compromisso com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO).

 

Quanto ao governo, também há comentários desajustados e presságios pouco políticos.

Ainda não se tinha ideia sobre quem integraria o executivo, já se aventava, como certo, o propósito de a AD governar por decreto. Quis fazê-lo um presidente francês, quando eleições parciais lhe deram maioria desfavorável na Assembleia Nacional, o que mereceu a crítica de tique ditatorial.

Ora, no nosso sistema politico-constitucional, de forte pendor parlamentar (o sistema francês é semipresidencialista quase a raiar, em alguns aspetos, o sistema presidencialista), o governo pode legislar (por decreto-lei) em matérias da sua “exclusiva competência”, nomeadamente, em “matéria respeitante à sua organização e funcionamento”, em matérias não reservadas à AR, e em matérias de reserva relativa da AR, “mediante autorização desta”, bem como em matérias de “desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevem” (ver artigo 198.º da CRP – Constituição da República Portuguesa). Todavia, qualquer decreto-lei pode ser objeto de apreciação parlamentar, podendo constituir-se uma maioria que dite a sua revogação ou a alteração de algumas das suas normas. Por isso, governar por decreto não é opção.

Conhecido o elenco ministerial, mas ainda sem tomar posse (agendada para 2 de abril quanto ao PM e aos ministros, e para 5 de abril, quanto aos secretários de Estado), já se discutia a curta longevidade do governo e até veio a público, por supostos pseudónimos do PR, que este dava ao governo seis meses para mostrar o que vale. Basta! Deixem que tomem conta das respetivas pastas, que elaborem o programa do XXIV Governo Constitucional, que este seja discutido na AR, que tenham tempo de executar ou não, faseadamente, o leilão de promessas eleitorais e que mostrem a capacidade de elaborar orçamentos, de os executar e de negociar medida a medida. E vamos fazendo, à medida que passa o tempo, o nosso juízo de valor.

Não obstante, a longevidade do governo depende da capacidade de negociar o Orçamento do Estado para 2025 (OE 25) e da crença nas sondagens. Se o OE 25 passar, dificilmente o PR terá condições para dissolver a AR, a menos que o pendor dissolvente prevaleça (a partir de setembro de 2025, o PR não tem o poder de dissolução). Por outro lado, se o PM quiser governar à vista, se se fiar nos estudos de opinião e se quiser arranjar pretexto para fazer cair o governo, pode ter sorte e conseguir maioria absoluta em novas eleições ou ver uma subida vertiginosa da extrema-direita, de modo a engolir um dos dois grandes partidos. Às vezes, a ambição trama o artista.

Posso não gostar do atual elenco ministerial e ter baixas expectativas, mas não me é lícito condenar o governo ao fracasso ou salvá-lo. Ele que se salve pelas boas medidas ou se afunde na sua eventual inépcia. Respeito o recato do silêncio que resguardou os nomes do elenco, tal como respeito as luzes da transparência, mas sem exageros. O silêncio tanto pode ser a alma do negócio como pode ser a negação da prestação de contas atempada. E a excessiva transparência pode redundar em devassa ou em descaramento.

Não conheço alguns dos ministros, pelo que não faço juízos apressados; e sei do valor académico e/ou profissional de outros, mas nem sempre valor académico e profissional é mais-valia em liderança política. Só espero que boas medidas não regridam, que medidas nitidamente perversas sejam revertidas e que medidas cuja validade se desconhece tenham espaço e tempo para mostrarem o que valem.    

O governo fundiu pastas, reagrupou algumas e criou uma pasta nova. É uma questão de orgânica a gerir pelo PM. Tem muitos elementos do PSD – pesos políticos –, pouca abertura à sociedade civil. É natural que o partido que governa se escude na prata da casa e não na sociedade dita civil, que não quer ser política.

Será governo de combate, como dizem? Espero que não seja de combate à oposição, aos grupos socioprofissionais, ao povo. Espero que seja de combate à conflitualidade, à pobreza, às desigualdades, à insegurança e ao atraso.

Veremos se quem provocou a atual situação não virá a arrepender-se. A política é feita de opções.

2024.03.30 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 29 de março de 2024

Serviço militar obrigatório ou voluntário garantido

 

As Forças Armadas (FA), como braço armado do povo, garantem a defesa militar do Estado, necessária para prevenir eventual invasão externa e para apoiar a população em caso de catástrofe natural ou provocada por mão humana. Servem também para dar cumprimento aos desígnios do poder político no quadro dos compromissos internacionais, na linha da promoção e manutenção da paz, em atos humanitários de grande envergadura e em operações de salvamento.

Até 2004, Portugal contemplava o serviço militar obrigatório (SMO) para os cidadãos do sexo masculino, com base no seu recenseamento militar obrigatório, a par do serviço voluntário para indivíduos de ambos os sexos (para o sexo feminino, a partir de 1975).

Não foi devidamente explicado o real motivo para a abolição do SMO, o que levou alguns a pensar que o fim da guerra colonial e do império não justificava a manutenção da obrigatoriedade deste serviço. Porém, outros opinam que a ideia da sua abolição surgiu nas juventudes partidárias, não por não justificação, mas por hedonismo.  

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Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, a questão voltou ao debate. E, apesar de a então ministra da Defesa Nacional entender que o problema não se coloca no país e de o ex-secretário de Estado da Defesa Nacional dizer que isso é ideia do passado, um estudo feito, em julho de 2022, por investigadores da Universidade Lusófona, citado pela CNN Portugal, mostra que mais de metade dos inquiridos é a favor do regresso do SMO, em Portugal, e de um exército único europeu.

De acordo com os dados, 52,35% dos inquiridos “concorda” ou “concorda totalmente” com o regresso do SMO, enquanto, 32,75% referiu “discordar” ou “discordar totalmente”. E 55.83% dos inquiridos “concorda” ou “concorda totalmente” com a criação do exército único europeu. Os Portugueses pensam que isto ajudará a União Europeia (UE) a reduzir a dependência face aos Estados Unidos da América (EUA). Aliás, 73.94% dos Portugueses pensa que esse exército contribuiria para uma maior afirmação da UE no Mundo.

A análise das respostas revela que as gerações mais velhas têm maior predisposição para concordar com o regresso do SMO e com a criação do exército único europeu.

José Carochinho, investigador do Centro de Investigação em Ciência Política, Relações Internacionais e Segurança da Universidade Lusófona, realça que os indivíduos de esquerda e de direita são contra o SMO, sendo os  do centro que são “manifestamente a favor”.

Já a ideia de criação do exército único europeu acentuou-se com o início da guerra na Ucrânia. “Naturalmente, que a guerra teve a sua influência”, refere o coautor da análise.

O estudo contou com a participação de Portugueses de várias faixas etárias (dos 18 aos 72 anos). A maioria é residente em meio urbano (88,1%) e tem licenciatura ou grau académico superior.

Em maio, a ministra da Defesa Nacional defendeu que “não tem sentido reinstituir um serviço militar obrigatório”, defendendo que esse sistema “não responde às necessidades estratégicas” das FA, que precisam de “militares qualificados”, com “tecnicidade”.

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Entretanto, recentemente, o chefe Estado-Maior da Armada (CEMA), almirante Henrique Gouveia e Melo, veio a terreiro, no Expresso, repropor o debate, considerando que o cansaço ocidental com a guerra na Ucrânia, a reconfirmação da liderança da Rússia, as próximas eleições nos EUA e a emergência de um novo ator global a ensaiar a alteração à ordem internacional nos fazem sentir “a brisa quente e abafada, prenunciadora das tempestades”.

O CEMA lança a hipótese de estarmos ante o fim da Ordem Ocidental, não no confronto ideológico entre o capitalismo e o comunismo, mas “entre dois blocos que se vão agregando entre democracias e autocracias”. Seja como for, não é opção ignorar que “viveremos tempos perigosos. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e a UE, pilares da segurança da e prosperidade ocidentais, podem ser submetidos às maiores provações e testes de stresse. Além disso, Portugal, na sua posição geoestratégica, apesar de afastado da frente de batalha, não pode ignorar as tempestades que se aproximam. É “falsa a segurança que a distância à Ucrânia nos dá”, acentua o almirante, explanando: “Só em 2023 a Marinha Portuguesa efetuou o seguimento e controlo de mais de 40 passagens de navios de guerra russos ou afins, nas águas sob soberania ou jurisdição nacional. A maior parte dos mísseis de cruzeiro russos podem atingir diretamente o nosso território, sem sequer termos de equacionar os mísseis balísticos. Poderão ser disparados da Federação Russa, ou de qualquer seu aliado, ou proxy em África, ou mesmo de navios e submarinos nas nossas águas.”

A seguir, chama a atenção para o facto de, no mar, a fronteira com a Rússia estar “ao alcance da nossa vista”. Basta, para nos atacarem, haver um alvo remunerador, militar, psicológico ou comunicacional, e estarem criadas as condições políticas de confronto. Ora, pertencendo Portugal à NATO e à UE, se o conflito se alastrar à Europa seremos envolvidos. Entretanto, podemos ser alvo de outras ações em fases cinzentas do conflito, como a destruição de cabos submarinos ou ações híbridas de difícil atribuição, por estarmos em “zona de elevado valor geoestratégico para a coligação ocidental” e, igualmente, para a Rússia. Portanto, segundo o CEMA, temos de “reagir enquanto sociedade, sair do estado do comodismo e indiferença”, pois, “a defesa dos nossos interesses, das nossas vidas”, exige “uma atitude prospetiva, proativa e vigilante”.

O confronto na Ucrânia, onde o futuro da Europa pode ser decidido, leva a refletir que o produto interno bruto (PIB) da Rússia é de cerca de 1,5 triliões de dólares; e deste, cerca de 9% são despesa militar. Este esforço excessivo para uma sociedade carenciada de tudo, só possível em autocracia, corresponde à despesa previsível, em 2024, de cerca de 132 mil milhões de dólares. Se a UE quisesse igualar o esforço económico da Rússia com a Defesa, bastar-lhe-ia despender cerca de 0,7% do seu PIB conjunto para esta área. Porém, a média atual é superior, situando-se perto dos 1,8% e, em Portugal, nos 1,4%.

Por isso, nada indicia a necessidade do aumento na despesa militar da UE, em percentagem do PIB. Todavia, esta conclusão tem fragilidades a considerar, usando a fórmula de Ray S. Cline, analista dos serviços de inteligência dos EUA – que operou na II Guerra Mundial e, depois, na Ásia – e académico reconhecido de Harvard, que quantifica o poder (P) relativo das nações como a multiplicação de dois fatores, o conexo com a capacidade (C) de um país e o conexo com fatores associados à vontade (V), ou seja: P=CxV. Assim, a fórmula expandida é: poder = (massa crítica + economia + capacidade militar) x (estratégia + vontade). A massa crítica seria a soma da dimensão do território com a da população.

Esta formulação mostra que só o pilar europeu da NATO terá mais capacidade do que a Rússia, mas que o poder efetivo pode ser muito diminuído e reduzido, se for multiplicada por uma vontade pequena, correspondente à segunda parte da equação simplificada.

Mesmo numa análise puramente quantitativa é de ter em conta que a despesa militar se subdivide em três megarubricas: pessoal, material e infraestruturas. Nos Estados ocidentais, com exércitos profissionais, o peso da componente humana ronda os 50% a 70% do investimento na Defesa. Embora o modelo seja vantajoso para a Armada e para a Força Aérea, é desvantajoso em custos e capacidade humana para forças terrestres, num cenário idêntico ao ucraniano, de carnificina em baixas diárias. Outra desvantagem é o serviço militar profissionalizado reduzir o conhecimento na população dos assuntos militares a um núcleo pequeno de cidadãos, retirando capacidade de mobilização em larga escala, em curto espaço de tempo. Um Estado autocrático com salários baixos e com um modelo de conscrição alargada gera, para o mesmo orçamento equivalente, uma capacidade humana mais significativa e disponível, em caso de necessidade.

Os exércitos requerem elevada especialização, mas não são homogéneos nessa necessidade. Por exemplo, a Infantaria continua a ser uma parte em que massa humana e números têm importância crucial. Se Vladimir Putin mobilizar um exército de 500 mil militares adicionais rapidamente e a Europa não o fizer, pode criar-se um desequilíbrio perigoso. Estando a UE e a NATO em estratégia de contenção na Ucrânia, suportando a Defesa desse país contra a invasão contrária à lei internacional da parte da Rússia, deve-se ter em conta que a melhor opção será dissuadir, com elevada credibilidade, Moscovo de crer que pode agredir, com sucesso, outros países europeus.

Tendo indústria tecnologicamente capaz, com acesso a fontes energéticas, a matérias-primas e a tecnologia, com baixos salários e reduzidos direitos sociais, produzirá muito mais para os orçamentos equivalentes no Ocidente. Por isso, estima-se que, num conflito prolongado, a UE tenha de despender (considerando o apoio necessário ao conflito tampão da Ucrânia) entre 2% e 3% do respetivo PIB, para manter equilibrada a balança do poder.

Assim, é de reequacionar o SMO ou outra variante adequada para equilibrar o rácio despesa-resultados e para gerar maior disponibilidade da população para a Defesa, pela capacidade de mobilizar, rapidamente, os recursos humanos necessários e pelo efeito que este tipo de serviço criará, no Ethos nacional e na consciencialização do coletivo, do seu interesse superior.

Devem ser as posições extremadas e preocupantes de Donald Trump lidas num contexto mais alargado às administrações americanas. Os EUA precisam de que os aliados partilhem mais o fardo da segurança coletiva do Ocidente, pois a liderança global destes e, indiretamente, do Mundo ocidental, está perante um desafio decisivo da parte da China e, futuramente, da Índia. A China já alcançou um PIB da dimensão europeia e dos EUA.

O facto de Trump expor, enfaticamente e truculentamente, as fragilidades militares da UE, criando pressão para rearmamento, corresponderá a inteligente estratégia de reforço do complexo militar-industrial dos EUA, o único disponível para garantir resposta em breve tempo. Não financiar a Ucrânia pode ser uma faceta dessa estratégia, que obrigará a UE a adquirir material militar americano em larga escala, tornando esta economia ainda mais diferenciada e pujante.

É urgente que a UE reative uma indústria militar, sob pena de vulnerabilizar a segurança europeia e ocidental. A Rússia tem a sua máquina industrial a “todo o vapor”, com três turnos diários, a contribuir para o crescimento económico e para o desenvolvimento tecnológico desta. É lei da sobrevivência, onde se inserem a guerra na Ucrânia e o regime de Putin.

Se a Europa não reforçar depressa um complexo industrial-militar sólido que reponha stocks e crie forte efeito dissuasor, podem ocorrer três situações: insuficiência militar; incapacidade de competir tecnologicamente à escala global; e significativa vulnerabilidade geoestratégica a curto e médio prazo. Desde 1998, a Rússia, então com uma despesa militar de cerca de 20 mil milhões de dólares, vem desenvolvendo a sua capacidade militar, tendo, agora, um investimento seis vezes superior a esse período, o que significa, em conjugação com os eventos de 2014, claro sinal ignorado pela UE adormecida e confiante na proteção dos EUA.

A Rússia não terá de atacar todo o Ocidente de uma vez, só precisa de uma estratégia progressiva, começando por anexar as franjas, paralisando a resposta pela conjugação do medo nuclear, do comodismo dos ‘civilizados’, do egoísmo e das divisões interaliadas, da perturbação periférica em África e no Médio Oriente e pela junção de uma grande coligação antissistema.

Após a queda do Muro de Berlim, o Ocidente negligenciou a Rússia. Não se faz isso a potência nuclear da dimensão da Rússia, a população com fortes tradições nacionalistas e numerosa, a um território euro-asiático de dimensão quase continental e repleto de recursos. Putin é só a resposta ao desleixo coletivo e ao complexo de superioridade que ditaram políticas erradas. A paz na Europa, segundo Gouveia e Melo, só se realizará com a futura integração da Rússia na economia e na estratégia ocidental.

A UE e nós, à dimensão dos nossos interesses, temos de perscrutar o horizonte com realismo, pondo em ação um plano efetivo de defesa coletiva, percebendo que o conflito-tampão da Ucrânia é decisivo para a segurança europeia, que importa desenvolver um forte complexo militar-industrial europeu, que é preciso reequacionar o sistema de recrutamento e que o reforço do pilar europeu da NATO é urgente. Com efeito o chapéu protetor dos EUA, que funcionou nos últimos 78 anos, não será posto em causa por Trump, mas pelos desafios que os EUA enfrentarão. Ora, não havendo espaço para cooperar, dissuadir será melhor e mais económico do que combater.

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À reflexão do CEMA veio justapor-se a do general Eduardo Ferrão chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), a defender que deve ser avaliada a rein­trodução do SMO.

Efetivamente, em declarações ao Expresso, um dia depois de o CEMA ter defendido, em artigo de opinião no mesmo jornal, que “reequacionar o serviço militar obrigatório ou outra variante mais adequada poderá ser uma medida necessária”, o CEME sustenta que “uma reintrodução do SMO justifica-se ser estudada e avaliada sob várias perspetivas”, e considera que “a passagem pelas fileiras equivale à frequência de uma escola de cidadania”. O SMO contribui “para o desenvolvimento de uma cultura de Defesa Nacional e de sensibilização dos jovens”, observa.

O general recorda que, até 2004, ano da eliminação do SMO, “os recursos humanos nas Forças Armadas estavam ajustados à realidade”, mas o país, agora, confronta-se com “outra realidade, e com a necessidade de recrutar e reter efetivos que garantam os níveis de prontidão definidos”.

Porém, o general assume que o SMO “não iria solucionar a falta de efetivos num exército moderno e tecnológico”, onde se exige que os militares, de todas as categorias “disponham de competências mais complexas”, num quadro que “não se coaduna com o recrutamento obrigatório”.

Por fim, é de considerar que a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, já no seu terceiro ano, e a ameaça de que Putin a estenda a países da NATO (o que ele desmente) abriram, nos últimos meses, o debate em vários países da UE sobre a necessidade de recuperar o SMO. Assim, a Dinamarca, estabeleceu o SMO também para as raparigas e o presidente da Letónia, Edgars Rinkēvičs, apelou à Europa para que faça um debate sério sobre a reintrodução do SMO. “Ninguém quer lutar no exército. Mas ninguém quer ser invadido como aconteceu na Ucrânia”, enfatizou o líder letão.

A NATO quer que os países-membros invistam 2% do PIB na Defesa. Ora, do meu ponto de vista, se se quer manter umas FA eficazes, não basta atirar dinheiro para cima delas: é preciso qualificá-las, dar-lhes equipamento e efetivos com formação adequada. Não pode haver mais comandantes do que comandados. Por isso, é preciso apostar no SMO e/ou num amplo quadro permanente de praças, mas este no enquadramento de uma carreira militar longa e bem paga. Caso contrário, teremos umas FA exíguas, pouco mais do que simbólicas. E Portugal não é o Vaticano!

2024.03.29 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 28 de março de 2024

Páscoa na primavera e primavera na Páscoa

 

Neste ano de 2024, o tempo atmosférico não se mostra quase nada primaveril. O frio parece que se atrasou, a chuva persiste e o vento atira-nos com os agasalhos. Surgem as inundações, os estragos urbanos e campesinos. Até parece que a primavera, que se antecipou em fevereiro, agora entrou em desistência e em negação.   

Porém, não é tudo como parece. As sementes e os demais elementos primaveris estão em germinação na Natureza ou em fase de projeto já em desenvolvimento. Com efeito, os sinos badalam como crianças, ora tristes, ora alegres; as nascentes rebentaram nas montanhas; os passarinhos cantam e os insetos zumbem, a cruzar os ares; uma grande variedade de jovens animais corre ou salta; as árvores ganham novo vigor natural ou o que lhes é induzido pela poda; e, embora a neve tenha coberto as montanhas, as encostas, os vales e as planícies já se enfeitam de verdura e de flores. Assim, logo que o céu deixe de ventar, as cataratas aéreas se desfaçam e os raios solares entendam aquecer um pouco a Terra, estaremos em condições de apreciar o espetáculo que todos os anos nos faz esquecer os rigores invernais.   

Além disso, os peregrinos, a pé ou autotransportados, ganham novo fôlego; os turistas não desistem das suas visitas e dos seus tempos de hotel; os centros de diversão não esmorecem; caros particulares, autocarros, metropolitanos, comboios, cruzeiros e aeronaves não param, antes redobram o tráfego; até a política ganha outro rumo e nova esperança, para muitos, seja o país mais governável ou menos governável.     

É natural que as diversas culturas tenham, ao longo da História, encontrado fortes motivos para festejar a renovação da mãe Natureza, sempre fértil, para celebrar a vida e usufruir das primeiras colheitas, nomeadamente daquelas que o outono fez hibernar, para que surgissem agora.

É compreensível que os povos em festa descubram os objetos que se tornem os melhores símbolos da festa que não se esgota num dia, mas que se prolonga por toda uma quadra, com festividades, romarias, festivais, exposições, viagens de férias.   

A Páscoa traz os folares, as prendas, os banquetes, a intensificação das relações humanas. É assinalada nas famílias, nas escolas, nas igrejas, nos clubes, nas empresas, nas associações, na comunicação social. Vêm as amêndoas, os ovos, os bolos, etc. Temos as visitas pascais ou compassos. Queima-se o Judas.

A primavera traz às Igrejas cristãs a festividade móvel da Páscoa, a celebrar, em cada ano, segundo o ciclo lunar, em vez do ciclo solar. E o seu conteúdo, segundo os crentes, culmina todo um tempo de reflexão e de alguma sobriedade em torno da escuta da Palavra de Deus e numa especial atenção ao próximo, com a Semana Santa ou Semana Maior.

Abrindo com o Domingo de Ramos, que evoca a entra de Jesus em Jerusalém e aponta para a Paixão do Senhor, vivencia o teologicamente denominado Mistério Pascal. Na quinta-feira, evocando a Páscoa judaica, celebra-se a entrega de Jesus na Eucaristia aos discípulos e a sua detenção para julgamento e condenação; na sexta-feira, a sua condenação à morte, crucifixão e sepultura; no sábado, é o silêncio; e, a partir das Vésperas de domingo, é a solenidade da Ressurreição, que se prolonga pela oitava e, passando pela Ascensão, termina no Pentecostes.

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Como já se deixou entender, antes da Páscoa dos cristãos (os cristãos do Oriente – católicos e ortodoxos – celebram a Páscoa com outras datas, por seguirem o calendário juliano, em vez do gregoriano), os Judeus celebravam a sua Páscoa, a evocar a saída do Egito para a Terra da Promissão – festa memorável, porque assinalava o dom da libertação, semelhante ao que, para nós, significa o 25 de Abril-                       

Todavia, é de recordar que a Páscoa já existia, nesta época do ano, ou seja, os povos já faziam festa e trocavam ovos (de galinha e de outras aves), muito antes mesmo de os Judeus existirem.

Antes do Cristianismo, a entrada da primavera era comemorada em rituais que têm muito em comum com a Páscoa dos cristãos. Praticamente, todos os povos têm a sua versão da festa. Entre os Romanos, era a festa da deusa Reia ou Cibele. Entre os Egípcios, a comemoração era para Osíris – que também ressuscitava. Até mesmo o Pessach, a páscoa judaica que deu origem à cristã, surgiu dos rituais da primavera dos pastores e dos agricultores hebreus, com os seus pães sem fermento e com o sacrifício de animais, nomeadamente o cordeiro ou o cabrito. Por isso, é que Jesus Cristo é considerado pelos cristãos como o cordeiro pascal.

A partir do século IX, com a conversão dos povos germânicos ao Cristianismo, houve uma grande mistura entre as tradições. Como na Antiguidade, os símbolos das festividades pagãs acabaram por ser incorporados na celebração cristã. É o caso do coelhinho, por exemplo: o animal era nada menos que a representação da deusa da primavera entre povos bárbaros. Ainda hoje, Páscoa é dita “Ostern”, em Alemão, e “Easter”, em Inglês – derivações do nome da deusa Eostre (ou Ostara, como também é conhecida).

Antes, os ovos dados de presente eram de galinha e não de chocolate. Simbolizam o início da vida. Por isso, não serviam para serem comidos. Eram decorados e celebravam Eostre, representada por uma mulher que segurava um ovo na sua mão e observava um coelho: alegoria da fertilidade.

Os cristãos apropriaram-se da imagem do ovo para festejar a Páscoa, que celebra a ressurreição de Jesus – o Concílio de Niceia, realizado em 325, estabeleceu este culto e a sua data. Na época, pintavam os ovos (geralmente de galinha, de gansa ou de codorniz) com imagens de figuras religiosas, como o próprio Jesus e a sua mãe, Maria.

A cultura do chocolate foi inserida pelos Franceses no século XVIII. Confeiteiros da França resolveram testar o uso de uma iguaria que tinha chegado à Europa vinda da América, descoberta dois séculos antes. É claro que a novidade fez o maior sucesso. Na verdade, é muito mais prático distribuir ovos de chocolate do que ovos de galinha.

À semelhança dos ovos de chocolate, também se distribuem os pequenos ovinhos de Páscoa de várias cores que, vulgarmente, dão pelo nome de amêndoas (ovos em miniatura), mas que não passam de pequenos aglomerados de açúcar compacto. Nada têm a ver com as amêndoas, frutos das amendoeiras algarvias ou alto-durienses, que encantam o olhar e perfumam o olfato dos visitantes. Quem viu, como eu, a forma como se tratam as amendoeiras ou participou nas sessões de descasca da amêndoa – em Vila Nova de Foz Coa, a capital da amendoeira em flor, ou em Figueira de Castelo Rodrigo, a rainha da amendoeira – percebe bem a diferença.

Não obstante, oferecer amêndoas resulta de um ritual antigo semelhante ao do ovo e associado às festas da primavera. Mais tarde foi incorporado na tradição cristã, e as amêndoas (hoje, de vários tipos e recheios) são vistas como um símbolo de ressurreição e de prosperidade.  

Enfim, como a primavera, a Páscoa é tempo de criação, fertilidade, alegria, dinamismo em termos humanos, sociais e, para os crentes, também religiosos.

Seja como for, a primavera, embora tenha os seus caprichos, não conhece fronteiras. E a Páscoa, embora tenha ancestrais origens, não deixa de atribuir novos significados aos símbolos que vem assumindo ao longo do tempo. Assim, mesmo os não crentes, tal como sentem a primavera, também sentem a Páscoa no que ela tem de humano, social e cultural. A Páscoa é tempo de privilegiar as relações interpessoais e intergrupais.

Por isso, a todas as pessoas e instituições com quem tive e tenho o privilégio de partilhar o pensar, o sentir, enfim, o viver, os mais sinceros votos de boa Páscoa e, para quem o desejar e assumir, votos de Santa Páscoa.

2024.03.28 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 27 de março de 2024

O Regulamento dos Mercados de Criptoativos europeu (MiCA)

 

A União Europeia (UE) estabeleceu, em junho de 2022, um quadro regulamentar para os criptoativos, para os emitentes de criptoativos e para os prestadores de serviços de criptoativos.

Os recentes desenvolvimentos neste setor, em rápida evolução, confirmaram a necessidade urgente de regulamentação à escala da UE. O Regulamento dos Mercados de Criptoativos (MiCA) protege melhor os europeus que investem nestes ativos e evita a utilização abusiva de criptoativos, mas deixa espaço à inovação, para manter a atratividade da UE.

Por conseguinte, sob proposta da Comissão Europeia, o Conselho Europeu adotou o seu mandato de negociação MiCA, a 24 de novembro de 2021. Os trílogos entre os colegisladores tiveram início em 31 de março de 2022 e concluíram-se com um acordo provisório entre a Presidência do Conselho e o Parlamento Europeu (PE), sobre a proposta de regulamento relativo aos mercados de criptoativos (MiCA), que abrange os emitentes de criptoativos não apoiados e das “criptomoedas estáveis”, bem como as plataformas de negociação e as carteiras em que são mantidos os criptoativos. Este quadro visa proteger os investidores e preservar a estabilidade financeira, assim como permitir a inovação e promover a atratividade do setor dos criptoativos. Ao mesmo tempo, proporciona uma maior clareza na UE, já que alguns Estados-membros já dispunham de legislação nacional em matéria de criptoativos, mas ainda não existia um quadro regulamentar específico, a nível da UE.

“Este regulamento histórico trava a utilização desregrada de criptoativos e confirma o papel da UE como definidora de normas para as questões digitais”, dizia Bruno Le Maire, então ministro francês da Economia, das Finanças e da Soberania Industrial e Digital.

É uma peça do MiCA a regulamentação dos riscos relacionados com os criptoativos. Com efeito, o MiCA protege os consumidores contra riscos associados ao investimento em criptoativos e ajuda-os a evitar esquemas fraudulentos. Os consumidores tinham direitos de proteção e de reparação muito limitados, especialmente quando as transações ocorriam fora da UE. Com estas novas regras, os prestadores de serviços de criptoativos têm de observar requisitos rigorosos de proteção das carteiras dos consumidores e de assumir a responsabilidade, caso percam os criptoativos dos investidores. O MiCA abrange também qualquer tipo de abuso de mercado relacionado com qualquer tipo de transação ou serviço, nomeadamente a manipulação do mercado e o abuso de informação privilegiada.

Os intervenientes no mercado de criptoativos são obrigados a declarar as informações sobre a sua pegada ambiental e climática. A Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ESMA) elabora projetos de normas técnicas de regulamentação relativas ao conteúdo, às metodologias e à apresentação de informações relacionadas com os principais impactos ambientais e climáticos adversos. No prazo de dois anos, a Comissão Europeia teve de apresentar um relatório sobre o impacto ambiental dos criptoativos e a introdução de normas mínimas de sustentabilidade obrigatórias para os mecanismos de consenso, incluindo a prova de trabalho.

A fim de evitar sobreposições com a legislação atualizada em matéria de luta contra o branqueamento de capitais, que abrange os criptoativos, o MiCA não duplica as disposições em matéria de luta contra o branqueamento de capitais previstas nas regras, recentemente atualizadas, aplicáveis às transferências de fundos que foram acordadas em 29 de junho. No entanto, exigiu que a Autoridade Bancária Europeia (EBA) fosse incumbida de manter um registo público dos prestadores de serviços de criptoativos não conformes. Os prestadores de serviços de criptoativos cuja empresa-mãe esteja situada em países que constem da lista da UE de países terceiros considerados de risco elevado de atividades de branqueamento de capitais, bem como da lista da UE de jurisdições não cooperantes para efeitos fiscais, são obrigados a aplicar controlos reforçados em conformidade com o quadro da UE em matéria de luta contra o branqueamento de capitais. Podem ser também aplicados requisitos mais rigorosos aos acionistas e à gestão dos prestadores de serviços de criptoativos, nomeadamente no atinente à sua localização.

Também integra o MiCA um quadro sólido aplicável às “criptomoedas estáveis”, para proteger os consumidores. Na verdade, os recentes acontecimentos nos mercados das “criptomoedas estáveis” mostraram, mais uma vez, os riscos em que incorrem os seus detentores na ausência de regulamentação, bem como o impacto dessa ausência de regulamentação noutros criptoativos.

Por isso, o MiCA protege os consumidores, pois exige aos emitentes de criptomoedas estáveis que constituam uma reserva suficientemente líquida, com um rácio de 1:1 e, em parte, sob a forma de depósitos. A cada detentor das “criptomoedas estáveis” é oferecido um crédito, em qualquer momento e de forma gratuita, pelo emitente, e as regras que regem o funcionamento da reserva também proporcionam uma liquidez mínima adequada. Além disso, todas as “criptomoedas estáveis” são supervisionadas pela EBA, sendo a presença do emitente na UE uma condição prévia para qualquer emissão.

O desenvolvimento de criptofichas referenciadas a ativos baseadas numa moeda não europeia, enquanto meio de pagamento amplamente utilizado, é limitado, a fim de preservar a soberania monetária da UE. Os emitentes de criptofichas referenciadas a ativos têm de possuir uma sede oficial na UE, para assegurar a supervisão e o acompanhamento adequados das ofertas públicas de criptofichas referenciadas a ativos.

Este quadro proporciona a segurança jurídica esperada e permite que a inovação prospere na UE.

Enfim, passou a haver regras à escala da UE aplicáveis aos prestadores de serviços de criptoativos e aos diferentes criptoativos. Com efeito, nos termos do acordo, os prestadores de serviços de criptoativos necessitam de uma autorização para operar na UE. As autoridades nacionais têm de emitir a autorização no prazo de três meses. Relativamente aos prestadores de serviços de criptoativos de maior dimensão, as autoridades nacionais transmitirão regularmente informações pertinentes à ESMA.

As criptofichas não fungíveis (NFT), isto é, os ativos digitais que representam objetos reais como arte, música e vídeos, são excluídos deste âmbito de aplicação, exceto se forem abrangidos pelas categorias de criptoativos existentes. No prazo de 18 meses, a Comissão Europeia teve de elaborar uma avaliação exaustiva e a proposta legislativa específica, proporcionada e horizontal para criar um regime para as NFT e para fazer face aos riscos emergentes desse novo mercado.

Ao acordo provisório, seguiram-se as etapas seguintes, desde logo a sujeição à aprovação do Conselho e do PE, antes de seguir o processo de adoção formal, até à formulação e aprovação final do regulamento e a sua publicação no jornal oficial da UE.

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A Comissão Europeia apresentou a proposta do MiCA em 24 de setembro de 2020. Esta proposta faz parte do vasto pacote Finança Digital, que visa desenvolver uma abordagem europeia que promova o desenvolvimento tecnológico e assegure a estabilidade financeira e a proteção dos consumidores. Além da proposta do MiCA, o pacote inclui uma estratégia de finança digital, um Regulamento Resiliência Operacional Digital (DORA) – que abrange também os prestadores de serviços de criptoativos – e a proposta relativa ao regime-piloto para a tecnologia de registo distribuído para utilizações em grosso.

Este pacote colmata uma lacuna na legislação da UE, assegurando que o atual quadro jurídico não obstaculiza a utilização de novos instrumentos financeiros digitais e garantindo que essas novas tecnologias e produtos são abrangidos pelo âmbito de aplicação da regulamentação financeira e dos mecanismos de gestão dos riscos operacionais das empresas que operam na UE. Assim, o pacote visa apoiar a inovação e a aceitação de novas tecnologias financeiras, proporcionando, em simultâneo, um nível adequado de proteção dos consumidores e dos investidores.

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Assim, a 9 de junho de 2023, foi publicado, no Jornal Oficial da União Europeia, o Regulamento (UE) 2023/1114 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de maio de 2023, relativo aos mercados de criptoativos (Regulamento MiCA – markets in crypto assets, em inglês), tendo entrado em vigor em 29 de junho do mesmo ano de 2023.

A este respeito, o advogado José A. Nogueira, a 22 de março deste ano, lamentava que a entrada em vigor do MiCA ainda não tenha atraído a atenção devida naquilo que se impõe como uma área de vanguarda numa realidade cada vez mais presente, especialmente junto dos mais jovens.

Efetivamente, como sustenta o renomado advogado da RSN Advogados, a existência de um conjunto de direitos, de serviços ou de ativos digitais “impõe-se, cada vez mais, no quotidiano e o Direito terá, inexoravelmente, que lhe dar enquadramento”. Neste sentido, o equilíbrio da segurança jurídica com o dinamismo da inovação é o desafio a que o MiCA “procura, de forma pioneira, dar respostas”.

Cumprir requisitos regulatórios traz às empresas, especialmente às mais pequenas, “obrigações que se revelam dispendiosas, dificultando a livre participação no mercado, com impacto negativo na inovação”. E o especialista aponta a índole paradoxal da questão. De facto, o instrumento jurídico que visa dinamizar a indústria digital na UE colide com os princípios fundadores das “criptomoedas”, como a descentralização e o anonimato, o que desagradará aos mais dogmáticos do setor. Porém, como já ficou dito e agora se sintetiza, o objetivo final do pacote legislativo em causa é proteger os consumidores, regulando as empresas que emitem, negoceiam ou custodiam de criptoativos fungíveis.

Assim, destaca-se: a exigência de procedimentos adequados de diligência prévia (due dilligence) e de verificação da identidade dos clientes; a obrigação de, para funcionarem, as empresas que emitem, negoceiam ou custodiam criptoativos de solicitarem autorização junto das autoridades competentes de cada Estado-membro da UE; a criação de um registo centralizado de prestadores de serviços de ativos criptográficos (crypto-asset service providers – CASP); e a imposição da regulação pelas mesmas regras às empresas que operam em diferentes países da UE, aumentando a concorrência de serviços em diferentes países.

O receio de que o MiCA desencoraje a inovação é válido. Todavia, nenhum mercado é sustentável e “fair”, sem o devido enquadramento legal. Este é o dado positivo que importa vincar. E o desafio é a devida implementação do novo regime, nomeadamente através da correta transposição dos termos e dos conceitos utilizados pelos profissionais do setor e pelas autoridades regulatórias; da implementação prática do MiCA, com respostas técnicas capazes no respeitante à supervisão e à autorização das empresas; da consciencialização e da capacitação das partes interessadas, incluindo empresas, investidores e autoridades supervisoras; e da cooperação internacional.

Seja como for, o MiCA constitui um marco relevante na regulamentação do mercado digital na UE, pois estabelece padrões mais rigorosos para a segurança dos produtos, para a transparência das plataformas online e para a proteção dos consumidores. E, ao promover a confiança dos consumidores e uma concorrência mais justa, oferece oportunidades para o crescimento e para a inovação no mercado digital em Portugal e em toda a UE, que importa não desperdiçar.

O futuro está muito próximo e é já daqui a pouco. Por isso, convém acautelá-lo.

2024.02.27 – Louro de Carvalho

terça-feira, 26 de março de 2024

Ponte em Baltimore desabou, após colisão de navio

 

Colisão de navio de carga com a ponte Francis Scott Key de Baltimore, nos Estados Unidos da América (EUA), provocou a queda de vários veículos na água. A Guarda Costeira recebeu um aviso sobre o impacto às 01h27 (ou seja, 5h27 de Portugal Continental), no dia 26 de março.

De madrugada, o navio, de cerca de 289 metros e com bandeira de Singapura, incendiou-se, afundou-se e provocou a queda de vários veículos na água. Há, pelo menos, 20 pessoas desaparecidas, que as equipas de emergência acreditam terem caído no rio Patapsco, avançou a agência noticiosa ‘Associated Press’ (AP).

“Sabemos que há até 20 pessoas no rio Patapsco neste momento, bem como vários veículos”, declarou Kevin Cartwright, do Corpo de Bombeiros de Baltimore, à televisão CNN.

Duas pessoas foram resgatadas com vida das águas do rio. Segundo o chefe dos bombeiros da cidade, James Wallace, uma das pessoas resgatadas saiu ilesa e recusou tratamento, enquanto a outra foi levada para um hospital em estado grave. Os desaparecidos são supostamente passageiros de veículos que atravessavam a ponte, quando o cargueiro colidiu com um dos pilares centrais, destruindo-o completamente.

As baixas temperaturas, na ordem dos nove graus centígrados (9ºC), estão a fazer as autoridades temerem pela vida das pessoas que caíram, devido ao risco de hipotermia.

“Todas as faixas de rodagem de acesso estão fechadas em ambas as direções, devido a um acidente na ponte Francis Scott Key. O tráfego está a ser desviado”, publicou a Autoridade de Transportes do estado de Maryland, na rede social X.

O presidente da Câmara, Brandon M. Scott, e o responsável da região de Baltimore, Johnny Olszewski Jr., disseram que o pessoal de emergência estava a responder e que os esforços de socorro estavam em curso.

O navio de carga possuía uma bandeira da Singapura e tinha cerca de 289 metros, segundo um suboficial da Guarda Costeira, Matthew West, em declarações ao jornal “The New York Times” (NYT). O navio tinha como destino Colombo, no Sri Lanka.

Nenhum membro da tripulação ficou ferido, segundo o comunicado da empresa Grace Ocean, que é proprietária da embarcação, citado pelo NYT.

A colisão foi classificada como um acidente – “evento de vítimas em massa em desenvolvimento” –, tendo Richard Worley, comissário da polícia de Baltimore, adiantado não haver indícios de terrorismo ou de ataque propositado à ponte. Porém, as autoridades estaduais e federais estão a investigar as causas do acidente em conjunto com a empresa dona do navio.


Na altura, estavam vários veículos na ponte, incluindo um do tamanho de um trator-reboque.

“O nosso objetivo, neste momento, é tentar resgatar e recuperar estas pessoas”, disse Kevin Cartwright, antecipando que é muito cedo para se saber quantas pessoas foram afetadas, mas referindo que parecia haver “alguma carga ou retentores pendurados na ponte”, que geraram condições inseguras e instáveis, pelo que as equipas de emergência estavam a operar com prudência. “Esta é uma emergência terrível”, considerou.

A ponte, com 1,6 quilómetros de comprimento, foi inaugurada em 1977.

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João Frade, vice-presidente da Escola Superior Náutica Infante D. Henrique e professor de segurança marítima e manobra e governo de navio, e Pedro Pacheco, professor da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto e Presidente da BERD – Projeto, Investigação e Engenharia de Pontes, apontam as causas prováveis do acidente.

“Tudo indica que será uma falha técnica”, sustenta João Frade. Instantes antes de embater na ponte, vários vídeos publicados nas redes socias mostravam uma falha de energia no navio, batizado de ‘Dali’. Ora, sem energia é impossível controlar o rumo da embarcação. Mesmo assim, “existem algumas manobras que podem ser realizadas de emergência, como o fundear, que é largar a amarra para tentar imobilizar o navio, sem causar ali qualquer estrago”, observa o especialista.

“É um navio com uma dimensão já considerável, carregado, e, portanto, tem ali mais dificuldade” de manobra, em especial considerando que estava próximo da ponte e tinha acabado de sair do porto. “Um blackout [apagão] faz com que pare tudo, depois existem alguns geradores de emergência para garantir alguns equipamentos, mas quando há um blackout ficam sem capacidade de propulsão, ou seja, sem capacidade de governo”, explica o professor, rejeitando a hipótese de possível erro na navegação, ao afirmar que “todos os navios, de acordo com a legislação internacional e as boas práticas, têm de ter um plano de viagem que é elaborado de cais a cais”, para assegurar que o navio apenas atravessa zonas seguras. “Parto do princípio de que isso estava cumprido e não foi por uma falha de planeamento, até porque aparentemente a visibilidade era boa”, discorre.

O mesmo especialista considera improvável que o acidente se deva a uma corrente do rio que tenha desviado o curso da embarcação, em especial porque as correntes são determinadas antes de se iniciar a viagem e há manobras de navegação específicas para as compensar.

Quando se observa o momento em que o navio embate na ponte, o desabamento ocorre rapidamente. “Normalmente, quando há acidentes nos pilares e há uma rutura de um pilar, há um colapso dos vãos adjacentes. Isto é uma ponte de grande dimensão e os vãos adjacentes são uma parte importantíssima da ponte”. Por isso, “é normal haver um colapso desta dimensão”, explica Pedro Pacheco. E, sobre os possíveis motivos que levaram ao desabamento da ponte, afirma ser “precisa muita prudência a falar de um acidente”. O professor lembra que o possível embate de navios é contemplado nos regulamentos de vários países, mas o nível de carga que se considera para o embate pode ter desempenhado papel crucial. Nas últimas décadas, as pontes são construídas, considerando cargas maiores, como tal, “o navio podia ter uma carga muito superior aquilo que estava previsto”, admite.

A falta de recursos técnicos cada vez mais evidente no Mundo ocidental também pode ser fator a ter em consideração. “É expectável que ocorram mais acidentes do que ocorriam em várias áreas que dependem de técnicos qualificados. Isto pode ser na aviação, na engenharia de pontos, ou na engenharia de edifícios”, afirma o especialista.

Em março de 2001, a ponte Hintze-Ribeiro, que ligava Castelo de Paiva a Entre-os-Rios, em Portugal, colapsou, causando a morte de 59 pessoas. Em agosto de 2018, o desabamento da ponte Morandi, em Génova, no Norte da Itália, provocou a morte de 43 pessoas. Um ano depois, em 2019, duas pessoas morreram, quando uma ponte colapsou em Toulouse, na França. Em julho de 2023, uma ponte desabou parcialmente na cidade de Patras, na região Oeste da Grécia, o que vitimou duas pessoas.

Para prevenir a rutura de ponte, é preciso prever o embate, possuir larga zona de navegação, o que é impossível naquela zona em Baltimore, e evitar colocar pilares na zona de navegação, o que, segundo Pedro Pacheco seria impossível, devido à extensa dimensão da ponte em Baltimore.

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Fernando Branco – professor catedrático do Instituto Superior Técnico (IST), onde dirige a Secção de Construção, e presidente da IABSE-International Association for Bridge and Structural Engineering (Zurique), a mais antiga associação científica mundial de engenharia de estruturas, em que participam 100 países – sustentava, a 19 de agosto de 2018, que não há nenhuma ponte absolutamente segura.

Dizia que, em Génova, “houve claramente um problema de corrosão que não foi travado por falta de manutenção”. E sentenciava: “As pontes são feitas para cair, se não se fizer manutenção.”

O especialista admitia que a queda daquela ponte tenha tido origem na falta de manutenção e na tecnologia usada na sua construção em 1969, que a torna muito vulnerável, bastando partir-se um tirante para um dos três blocos (torres) da ponte desabar.

A ponte Morandi tem três blocos (torres) que a sustentavam e o maior caiu. Foi construída em 1969 e cada bloco tinha só um tirante (cabo em tração) para cada lado. Era uma estrutura pouco redundante: se falha um elemento, cai tudo. Basta que se parta um tirante para cada bloco se desequilibrar e desabar. Por isso, estas pontes evoluíram para pontes do tipo da Vasco da Gama, em que há uma série de tirantes. Se rebentar um, a ponte não cai, os outros aguentam a estrutura.

Achou estranho que, na comunicação sobre os trabalhos de manutenção da ponte, feitos em 2000, apresentada por um investigador do Departamento de Engenharia de Estruturas do Politécnico de Milão, numa conferência em 2010, se tenha referido que não foi feita qualquer intervenção no bloco n.º 9 da ponte – o que caiu –, porque os seus tirantes estavam menos degradados do que os dos outros blocos. Assim, houve um problema de corrosão não travado, por falta de manutenção.

Considerando que não temos a certeza de que uma ponte é segura, Fernando Branco disse: “As pontes são feitas para cair se não se fizer manutenção. No fundo, não há nenhuma ponte que seja segura.”

Sobre os materiais, referiu que todos se degradam, pela ação do ambiente. Assim, quando as pontes começaram a ser feitas em ferro, no século XIX, percebeu-se que o ferro tinha corrosão, ou seja, oxidava em contacto com o ar. Por isso, surgiram os sistemas de manutenção.

Quanto ao betão armado, que surgiu no final do século XIX, enfatizou que é uma pedra artificial com aço dentro. Os cientistas diziam que era o material ideal, porque o problema da corrosão do aço ficava resolvido: estando dentro do betão não ficava em contacto com o ar. Porém, enganaram-se. Os problemas surgiram nos anos 70/80 do século XX, cerca de 50 anos depois do uso se generalizar. Quando se fez a ponte de Génova, ainda não se conhecia o fenómeno.

Para a degradação do betão armado, o especialista aduz dois grandes fenómenos: a carbonatação e o relacionado com os cloretos. No atinente ao primeiro, revela que o betão, quando é fabricado, tem um pH básico – o pH uma escala numérica que determina o grau de acidez de uma solução aquosa, baseado na concentração de iões hidrónio (H3O+), ou seja, o cologaritmo da atividade de iões hidrónio – mas, em contacto com o dióxido de carbono (CO2) ambiental e com a humidade vai-se transformando de básico em ácido, gerando uma frente que avança pelo betão adentro. E quando esta frente ácida chega aos ferros, começam a corroer. O outro fenómeno está relacionado com os cloretos, nomeadamente com o sal marítimo, pelo que as estruturas de betão armado junto ao mar se degradam mais. O sal vai entrando pelos poros do betão e, ao atingir o aço, este começa a corroer e pode levar ao colapso das estruturas. Nos anos 70/80 do século XX, surgiram estruturas degradadas por todo o lado. Ora, desde que o aço esteja corroído, a única solução é “substituí-lo por betão armado novo”.

Por exemplo, a Ponte da Arrábida, no Porto, construída nos anos 60, foi toda reabilitada. A partir do desastre de Entre-os-Rios, em 2001, tudo mudou, em manutenção e em inspeção, ficando com mais rigor. O mais avançado foi na Ponte Vasco da Gama, em Lisboa (1998). A equipa que lançou o concurso para a construção impôs uma vida útil de 120 anos. Assim, a frente de degradação que vai avançando no betão não pode chegar ao aço em 120 anos. Isso obrigou a estudar betões especiais e medidas para evitar a corrosão, incluindo obras de manutenção.

As pontes eram projetadas para uma vida útil de 50 anos, que não tinham a ver com a degradação dos materiais mas com outra questão. Um projeto de ponte tem de prever, para a sua vida útil, as ações que podem ocorrer e para as quais tem de estar preparada, por exemplo, sismos de grande magnitude, ventos muito fortes. Porém, descobertos os problemas do betão, criou-se nova legislação, uma norma europeia que define as regras para garantir 50 anos de vida útil. Assim, projetar uma ponte para 50 anos é prepará-la para suportar sismos, ventos, etc., mas também para não ter corrosão durante 50 anos.

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Como em tudo, a vigilância e a manutenção constituem a alma do negócio.

2024.03.26 – Louro de Carvalho