segunda-feira, 25 de março de 2024

Domingo de Ramos, o dia da inefável contradição

 

A liturgia católica celebra, num só dia, a evocação jubilosa da triunfal entrada de Jesus em Jerusalém, mas, logo a seguir, pinta de negro a celebração com o tema da Paixão e da Morte do Messias Senhor. Efetivamente, o Senhor entra, não a comandar um poderoso exército de cavaleiros, de infantes e de engenheiros, mas na sobriedade da caminhada sobre um pobre animal de carga e de trabalho, acompanhado por um pequeno grupo de discípulos. Não vem revestido do poder humano, mas ornado da mais requintada humildade. Não obstante, a multidão, empunhando ramos de oliveira e folhas de palmeira, aclamava-O com o “hossana” ao “bendito o que vem em nome do Senhor” (cf Mc 11,1-10; Jo 12,12-16).

Este episódio ocupa um pequeno momento da celebração deste dia. Quanto ao mais, a liturgia tem como escopo que nós percebamos e aceitemos o Deus que, por amor, “desceu” ao nosso encontro, partilhou a nossa humanidade, Se fez servo dos homens ao ponto de Se deixar matar para que fossem vencidos o egoísmo, a maldade e o pecado e nós tivéssemos a Vida nova.

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primeira leitura (Is 50, 4-7) releva a o drama de um profeta anónimo, chamado por Deus a testemunhar, no meio das nações, a Palavra da salvação. Apesar do sofrimento e da perseguição, confiou em Deus e concretizou, com teimosa fidelidade, o desígnio de Deus. Este “servo de Deus” é figura de Jesus. O profeta fala do seu chamamento por Deus para a missão. Não se designa a si próprio como servo, mas assemelha-se ao servo do primeiro “cântico do servo de Javé” (cf Is 42,1-9). Também não se intitula profeta, mas narra a sua vocação com os elementos típicos dos relatos proféticos de vocação.

A missão deste profeta/servo tem a ver com o anúncio da Palavra, já que o profeta é o homem da Palavra, o homem através de quem Deus fala. Por isso, a redenção de Deus para todos os que necessitam de salvação/libertação ecoa na palavra profética. O profeta é totalmente modelado por Deus e não resiste ao chamamento, nem à Palavra que Deus lhe confia; antes está, continuamente, na atitude de escuta de Deus, para apresentar, com fidelidade, a Palavra de Deus para os homens. A missão do profeta/servo consiste em dizer a palavra de alento a todos os que estão cansados e abatidos, os que são magoados e injustiçados, os que perderam a esperança.

A sua missão, não fácil, concretiza-se no sofrimento e na dor. A palavra de Deus incomoda e cria resistências que, para o profeta, se consubstanciam em dor e em perseguição. Porém, ele não resiste às agressões e torna o seu rosto “duro como pedra”, face aos que o agridem e magoam, porque está decidido a suportar tudo, a fim de levar até ao fim a missão que Deus lhe confiou. O verdadeiro profeta não desiste nem se demite: a paixão pela Palavra sobrepõe-se ao sofrimento e faz com que ponha à frente de tudo a missão.

O que leva o profeta/servo a resistir corajosamente aos que o agridem e o querem silenciar é a confiança no Senhor, que não abandona aqueles a quem chama. A certeza de que não está só, mas de que tem a força de Deus, torna-o mais forte do que a dor, do que o sofrimento, do que a perseguição, do que o ódio dos inimigos. O profeta/servo tem absoluta confiança em Deus e sabe que Deus nunca o desiludirá.

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segunda leitura (Fl 2,6-11) é um belo hino onde ecoa a catequese primitiva sobre Jesus. Fiel ao plano do Pai, desceu ao encontro dos homens, viveu a vida deles e sofreu morte atroz por amor a eles. Porém, a sua vida não foi malbaratada: Deus exaltou-O, mostrando que a via que Ele seguiu conduz à Vida. É essa via que somos desafiados a trilhar. Cristo Jesus – nomeado no princípio, no meio e no fim – é o móbil do hino. Os Filipenses, como discípulos de Cristo, são convidados a olharem para Ele e a conformarem as suas vidas com o seu exemplo.

O hino começa alude ao contraste entre Adão e Cristo: o primeiro homem, reivindicando ser como Deus, assumiu a atitude de arrogância e de autossuficiência e virou as costas às indicações de Deus; Cristo, o Homem Novo, assumiu a atitude de humildade e de obediência diante de Deus. A atitude de Adão trouxe sofrimento e morte; a atitude de Jesus trouxe exaltação e vida.

A atitude de Cristo é caraterizada no hino como aniquilação ou despojamento (“kénôsis”). Cristo era de condição divina. Porém, sem reivindicar, em razão do seu estatuto, quaisquer poderes ou privilégios, pôs-se totalmente ao serviço do desígnio salvador do Pai. Aceitou vestir a fragilidade dos seres humanos e tornou-Se homem: experimentou as dores e os limites dos homens, conviveu com os dramas dos homens e caminhou com os homens para lhes indicar a rota da salvação, fez-se servo dos homens, lavou-lhes os pés. Como se isso não bastasse, desceu mais: foi contestado, preso, condenado e sofreu morte infame na cruz, reservada aos malditos e abandonados por Deus. Esta história de despojamento parece história de fracasso e de morte, “pouco recomendável”.

Contudo, não é assim que termina a história de quem obedece a Deus e põe a vida ao serviço do plano de Deus. Porque deu pleno cumprimento ao plano do Pai, Deus ressuscitou-O e exaltou-O. Fê-lo vencer a injustiça, o egoísmo e a violência que o condenado a morte maldita. Apresentou-O como modelo para todos os homens. Deus fez d’Ele o “Jesus” (este nome significa “Deus salva”) e o “Kýrios” (“Senhor” – que, no Antigo Testamento, substituía o impronunciável nome de Deus); e a Humanidade inteira (céus, terra e infernos) reconhece o Cristo que Se despojou de tudo para obedecer ao Pai como “o Senhor” que reina em toda a terra e que preside à História.

Aos Filipenses e aos crentes de sempre e de toda a parte Paulo exorta a que se libertem do orgulho, da autossuficiência, da arrogância, do fechamento a Deus e às suas propostas; a que aprendam com Cristo a pôr a vossa vida ao serviço do plano de Deus; a que se tornem humildes e simples servos de todos; a que amem sem medida, até ao dom total. E Deus garante-lhes que essa via – a que Jesus percorreu – não conduz ao aniquilamento, mas à glória, à Vida plena.

Agora, o Senhor é Jesus!

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Evangelho (Mc 14, 1 – 15,47) relata-nos o drama redentor da Paixão e Morte de Jesus. É o momento culminante de uma vida gasta a concretizar o plano de Deus: libertar os homens de tudo o que gera egoísmo, escravidão, sofrimento e morte. Na cruz onde Jesus ofereceu a vida até à última gota de sangue, revela-se o incomensurável amor de Deus por nós; na cruz, Jesus disse-nos que o amor até ao extremo gera Vida nova e eterna.

O relato da Paixão e Morte de Jesus é história de inaudita violência, perpetrada contra o homem que, na ótica dos que O conheceram bem e que O acompanharam desde a Galileia até Jerusalém, não fez nada para merecer a condenação decretada contra Ele.

A morte de Jesus tem de ser entendida no contexto da sua vida. Cedo, Jesus apercebeu-Se de que o Pai O chamava à missão de anunciar o mundo novo, de justiça, de paz e de amor para todos. É “o Reino de Deus”. Para concretizar este projeto, Jesus passou pelas vias da Palestina “fazendo o bem” e anunciando a proximidade do Reino de Deus. Ensinou que Deus é amor e que não exclui ninguém, nem mesmo os pecadores; ensinou que os leprosos, os paralíticos, os cegos não podem ser marginalizados, pois não são amaldiçoados por Deus; ensinou que são os pobres e os excluídos os preferidos de Deus e os que têm um coração mais disponível para acolher o Reino; e avisou os ricos (os poderosos, os prepotentes, os instalados) de que o egoísmo, o orgulho, a autossuficiência e o fechamento só conduzem à morte.

O seu projeto libertador entrou em choque – era inevitável (ainda hoje sucede assim) – com a atmosfera de egoísmo, de má vontade, de opressão que dominava o Mundo. As autoridades políticas e religiosas judaicas sentiram-se incomodadas com a denúncia: não estavam dispostas a renunciar aos mecanismos que lhes garantiam poder, influência, domínio, privilégios; não estavam dispostas a arriscar, a desinstalar-se e a aceitar a conversão pregada por Jesus. Por isso, decidiram calá-Lo: prenderam-No, julgaram-No, condenaram-No e pregaram-No na cruz.

A sua morte é a consequência do anúncio do Reino: resultou das tensões e das resistências que a pregação do Reino criou nos que dominavam o Mundo. É o culminar da sua vida, a afirmação última, mais radical e mais verdadeira (marcada com sangue) do que Jesus pregou com palavras e com gestos: o amor, o dom total, o serviço simples e humilde. Foi por amor que Ele lutou contra a injustiça, a prepotência, a opressão e a maldade nas suas mil e uma formas. Foi por amor que Se deixou prender, condenar e matar. Quem olha a cruz erguida na colina fora das muralhas de Jerusalém e vê o testemunho de Jesus percebe como deve a vida ser vivida. A cruz ostenta o Homem Novo, o protótipo de quem, amando radicalmente, faz da vida o dom para todos. A cruz encerra e propõe o dinamismo do Mundo novo, transformado pelo amor – o dinamismo do Reino de Deus. A cruz, instrumento vil de sofrimento e de morte, torna-se fonte de Vida e de esperança.

O relato da Paixão segundo Marcos, não difere muito das versões de Mateus e de Lucas. Porém, há vertentes que Marcos sublinha.

Ao longo do processo, Jesus manifesta serenidade, dignidade e total conformação com o que se está a passar. Não é passividade ou inconsciência, mas serena aceitação do caminho que Ele sabe que passa pela cruz. Marcos sugere que Jesus está perfeitamente conformado com o plano do Pai e que a sua vontade é cumpri-lo fiel e integralmente, sem objeções ou resistências. Esta dignidade de Jesus, face ao processo que as autoridades religiosas e políticas lhe movem é atestada em várias cenas: Mateus e Lucas põem Jesus a interpelar diretamente Judas, quando este O entrega no monte das Oliveiras, mas, na narração de Marcos, Jesus mantém-se silencioso e cheio de dignidade ante a traição do discípulo, sem observações ou recriminações. Em Mateus, Jesus desautoriza Pedro, que fere um servo do sumo-sacerdote cortando-lhe uma orelha, e, segundo Lucas, Jesus pede aos discípulos que deixem atuar os sequestradores. Ao invés, Marcos não apresenta, neste episódio, qualquer reação de Jesus, apenas acrescenta que a prisão de Jesus acontece para que se cumpram as Escrituras. E, no tribunal judaico, interrogado pelo sumo-sacerdote acerca das acusações feitas, manteve digno e solene silêncio, recusando defender-Se das acusações dos detratores.

Uma das teses fundamentais de Marcos é que Jesus é o Filho de Deus – ideia presente, sublinhada, desenvolvida, no relato da Paixão. No jardim das Oliveiras, pouco antes de ser preso, Jesus dirige-Se a Deus e chama-Lhe “Abba” (paizinho, papá). Esta apalavra não era usada nas orações hebraicas como invocação de Deus, mas na intimidade familiar, para exprimir a grande proximidade entre o filho e o pai. Para os Judeus, teria sido um sinal de irreverência usar uma palavra tão familiar para se dirigir a Deus. O facto de Jesus usar esta palavra revela a comunhão que havia entre Ele e o Pai, relação de simplicidade, de intimidade, de total confiança.

Apesar do silêncio de Jesus, durante o interrogatório, no palácio do sumo-sacerdote, há um momento em que Jesus não hesita em esclarecer as coisas e em deixar clara a sua divindade. Quando o sumo-sacerdote Lhe pergunta se é “o Messias, o Filho de Deus bendito”, Jesus respondeu, sem subterfúgios: “Eu sou. E vereis o Filho do Homem sentado à direita do Todo-poderoso e vir sobre as nuvens do céu”. A expressão “eu sou” (“egô eimi”) leva-nos ao nome veterotestamentário de Deus (“eu sou aquele que sou”). É, na ótica do evangelista, a afirmação inequívoca da dignidade divina de Jesus. A referência a “sentar-se à direita do Todo-poderoso” e a “vir sobre as nuvens” vinca a dignidade divina de Jesus, que aparecerá no lugar de Deus, como juiz soberano da Humanidade inteira. O sumo-sacerdote percebe o alcance da afirmação (está a arrogar-Se a condição de Filho de Deus e a prerrogativa de juiz universal), pelo que manifesta a sua indignação, rasgando as vestes e condenando Jesus como blasfemo.

Marcos põe um centurião romano a dizer, junto da cruz: “Na verdade, este homem era Filho de Deus.”. Mais do que asserção histórica, a frase é a “profissão de fé” que Marcos convida os crentes a fazer. Depois de tudo o que foi testemunhado no Evangelho, em geral, e no relato da Paixão, em particular, a conclusão é: Jesus é o Filho de Deus que veio ao encontro dos homens para lhes apresentar a salvação.

Apesar de Filho de Deus, o Jesus de Marcos é homem e partilha da fragilidade da natureza humana. No jardim das Oliveiras, pouco antes de ser preso, Jesus sentiu “pavor” e “angústia”, como sucede com qualquer pessoa, ante a morte violenta (Mateus, mais moderado, fala da tristeza e da angústia de Jesus; e Lucas evita fazer referência a estes sentimentos que, sublinhando a dimensão humana de Jesus, podiam lançar dúvidas sobre a sua divindade). No momento da morte, Jesus reza: “Meu Deus, meu Deus, para me abandonaste”. A oração de Jesus é a de um homem que, como qualquer outro ser humano, experimenta a solidão, o abandono, o sentimento de impotência, a sensação de falhanço… e do fundo do seu drama, não compreende a ausência e a indiferença de Deus.

Não há dúvida: o Jesus de Marcos é também o homem/Jesus que Se solidariza com os homens, que os acompanha nos sofrimentos, que experimenta os seus dramas, fragilidades e debilidades.

Em todos os relatos da Paixão, Jesus enfrenta sozinho (abandonado pelas multidões e pelos discípulos) o seu destino de morte. Todavia, Marcos sublinha, especialmente, a solidão de Jesus, nesses momentos dramáticos. Lucas põe um anjo a confortar Jesus, no jardim das Oliveiras; e Marcos não faz referência a esse momento de consolação. Mateus conta que a mulher de Pilatos intercedeu por Jesus, pedindo ao marido que não se intrometesse “no caso desse justo”. Marcos não refere nenhuma interferência deste tipo no processo. João refere, além de Pedro, a presença de “outro discípulo conhecido do sumo-sacerdote” no palácio de Anás; Marcos, para lá de Pedro (que negou Jesus três vezes), nunca refere a presença de qualquer outro discípulo.

Lucas assinala a presença de mulheres, ao longo da via do calvário, que “batiam no peito e se lamentavam por Ele”. Marcos não conhece ninguém que se lamentasse durante o caminho percorrido por Jesus em direção ao lugar da execução (só após a morte de Jesus, Marcos observa que algumas mulheres que O seguiam e serviam, quando estava na Galileia, estavam ali a “contemplar de longe”. Enfim, abandonado pelos discípulos, escarnecido pela multidão, condenado pelos líderes, torturado pelos soldados, Jesus percorre, na solidão, no abandono, na indiferença de todos, o caminho de morte. O grito final de Jesus na cruz (“Meu Deus, meu Deus, para que me abandonaste”) é o início do Salmo 22 e a expressão dramática da solidão de Jesus.

Só Marcos relata o episódio do jovem não identificado que seguia Jesus envolto num lençol e que fugiu nu, quando os guardas o tentaram agarrar. Alguns sustentam que esse jovem poderia ser o próprio evangelista. Contudo, é mais provável que Marcos tenha introduzido o episódio, para representar, plasticamente, a atitude dos discípulos que, desiludidos e amedrontados ante o falhanço do projeto em que acreditaram, largam tudo, quando veem o líder preso, e fogem. 

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Ante a Paixão do Redentor, não é lícito aos crentes fugirem, vestidos ou nus, mas devem acolher o apelo à reflexão, à espera da vitória da Ressurreição e à capacitação para o apostolado do Ressuscitado. Cristo é o verdadeiro ressuscitado, mas os cristãos também o são com Ele.

2024.03.24 – Louro de Carvalho

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