terça-feira, 5 de março de 2024

A guerra também se faz com declarações e com operações secretas

 

Moscovo qualificou, a 1 de março, de “extremamente irresponsáveis” as declarações do secretário de Estado norte-americano, Lloyd Austin, que sustentou que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) será arrastada para um conflito com a Rússia, se a Ucrânia capitular.

“Estamos a ouvir declarações extremamente irresponsáveis vindas de várias capitais europeias, e agora do outro lado do mar”, disse Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin, observando que as palavras de Austin levam a “um novo aumento da tensão”.

Peskov considerou que as declarações de Austin demonstram a visão da NATO a olhar para “a Ucrânia como parte do seu território”. E, ao mesmo tempo, sublinha que tais declarações mostram que o que a Rússia está a fazer [a guerra na Ucrânia] é totalmente correto”.

“Putin continuará a tomar medidas mais agressivas na região. Se a Ucrânia cair, acredito realmente que a NATO entrará em guerra com a Rússia”, disse o secretário de Estado, numa sessão perante o Comité de Serviços Armados da Câmara dos Representantes dos EUA, ao invés do que tem dito o secretário-geral da NATO.

“Se a Ucrânia cair, Putin não irá parar ali. Continuará a avançar e a atacar os territórios soberanos dos seus vizinhos. Se forem um país báltico, têm razões para estar preocupados, porque poderão ser o próximo alvo”, disse Austin, vincando a importância de manter o apoio militar a Kiev.

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Entretanto, a 29 de fevereiro, no discurso anual às duas câmaras da Assembleia Federal, a Duma e o Conselho, o presidente russo, em vez de acenar com mais uma fonte de instabilidade, a Transnístria, usou a cartada da ameaça nuclear, enalteceu a economia e as capacidades científicas, tecnológicas e militares do país, fez promessas eleitorais e insistiu nas críticas ao Ocidente, tendo como pano de fundo as eleições presidenciais a breve trecho.

Não é a primeira vez que Vladimir Putin recorre à ameaça nuclear. Fê-lo em setembro de 2022, ao ter de anunciar uma mobilização militar parcial. “Se a integridade territorial do nosso país for ameaçada, utilizaremos, sem dúvida, todos os meios disponíveis para proteger a Rússia e o nosso povo”, garantiu num discurso ao país transmitido pela TV. Além disso, fez-se de vítima, ao aduzir que o Ocidente conspirava para destruir o país, envolvendo-se em “chantagem nuclear” ao, alegadamente, discutir a utilização de armas nucleares contra Moscovo.

Moscovo tem acusado os aliados ocidentais da Ucrânia de estarem a fornecer armas a Kiev, capazes de atingir alvos no interior da Federação Russa. E, no discurso, o presidente russo acusou ainda o Ocidente de fazer ameaças contra a Rússia que estão a criar um risco real de um conflito nuclear. “Tudo o que estão a inventar, neste momento, tudo o que estão a dizer para assustar o Mundo, é uma ameaça real de um conflito que envolve o uso de armas nucleares, o que significaria a destruição da civilização”, declarou, assegurando: “Nós também temos armas capazes de atingir alvos no vosso território.”

 

Ao falar da hipótese de forças da NATO serem enviadas para a Ucrânia, o líder russo advertiu para as “trágicas consequências” da decisão. Tal advertência é resposta à recusa do presidente francês, Emmanuel Macron, de excluir qualquer possibilidade na ajuda à Ucrânia, incluindo o envio de tropas, o que foi rejeitado pelos restantes líderes europeus – com exceção da primeira-ministra da Estónia, Kaja Kallas. Porém, Stéphane Séjourné, ministro dos Negócios Estrangeiros francês, explicou, mais tarde, que o putativo envio de militares de aliados não seria para combate, mas para missões específicas, como a desminagem ou a ajuda na guerra cibernética, e fontes diplomáticas explicaram que, acima de tudo, é importante manter a ambiguidade estratégica.

Putin frisou o destino das tropas de Napoleão e de Hitler e acusou os líderes ocidentais de pensarem que a guerra “é um desenho animado”. Em contraste, avisou que as forças nucleares estratégicas da Rússia estão em “estado de prontidão total” e que as armas mais modernas da Rússia, como os mísseis hipersónicos Kinzhal e Zircon, já foram utilizadas na Ucrânia, enquanto outras, o míssil de cruzeiro nuclear Burevestnik e o drone nuclear Poseidon, estão na fase final de testes, e o míssil balístico intercontinental Sarmat entrou ao serviço das forças nucleares.

Vladimir Putin aproveitou o momento para elogiar os militares, cujas “capacidades de combate aumentaram consideravelmente” e, agora, “mantêm firmemente a iniciativa”.

Perante deputados, militares, oligarcas e apoiantes conhecidos e anónimos, Putin acusou o Ocidente de tentar travar o desenvolvimento do país, com o objetivo de arrastar a Rússia para a decadência, tal como para arrastar” o país para uma “corrida ao armamento”. Todavia, falhou.

O presidente russo elogiou os “séculos de unidade” do seu povo que criaram uma força invencível de modo que, hoje, a Rússia é um “pilar da democracia”, democracia que, sob o seu comando, não permitirá ninguém a interferir nos seus assuntos internos. O seu maior adversário dos últimos anos, Alexei Navalny, morreu numa colónia penal, no Ártico e nenhum dos adversários admitidos às eleições presidenciais está contra a guerra na Ucrânia nem é, realmente, um opositor político.

Aproveitando o estado de crescimento da economia, para prever que o país se tornará na quarta maior mundial, Putin anunciou uma série de medidas para as famílias jovens (deve dar-se especial atenção às famílias jovens), a começar pela redução dos impostos, sobretudo para quem tenha um terceiro filho. E, para aumentar a esperança de vida da população, de 73 anos para 78, até 2030, recuperou um lema da era soviética: “Deixem de beber, comecem a esquiar.” 

Porém, a diplomacia da União Europeia (UE) defendeu, no mesmo dia do discurso presidencial russo, que as ameaças sobre eventual uso de armas nucleares pela Rússia, são “absolutamente inaceitáveis e inadequadas”, visando apenas a reeleição do presidente.

“Putin começou a guerra contra a Ucrânia, é responsável por todas as consequências internas na Rússia, regionais na Ucrânia, mas também globais na cena mundial e, por isso, é claro que todas estas ameaças com armas nucleares são absolutamente inaceitáveis e inadequadas”, reagiu Peter Stano, porta-voz da Comissão Europeia para os Negócios Estrangeiros, numa conferência de imprensa, na sede da UE, em Bruxelas.

Questionado, sobre as declarações de Putin perante a Assembleia Federal em Moscovo, o porta-voz ressalvou que “isto tem de ser visto no contexto das próximas eleições presidenciais, portanto, isto faz parte da sua tentativa de reeleição, mas este é também um dos muitos exemplos de como Putin está a tentar desviar as culpas da guerra”. “Putin começou a guerra contra a Ucrânia e, a partir da instabilidade que está a tentar criar em torno da Ucrânia e na região em geral, esta foi mais uma oportunidade para espalhar as bem conhecidas mentiras e enganos”, vincou Peter Stano.

Ainda reagindo ao discurso, comparou o Kremlin com o regime do ditador da União Soviética Josef Stalin: “Basicamente, ele diz que a nação está a viver sob a repressão de Stalin”. Com efeito, segundo Peter Stano e ao invés do que declarou Putin, “a economia do Estado está em ruínas, a credibilidade do país está totalmente destruída e os seus esforços para restaurar o velho orgulho não têm sido, até agora, senão um fracasso”.

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Os Ucranianos construíram um bunker subterrâneo numa base militar que parece abandonada e destruída, para centro de operações secreto do exército ucraniano. Equipas de militares ucranianos rastreiam satélites de espionagem da Rússia e intercetam conversas entre comandantes russos.

A base é quase inteiramente financiada e parcialmente equipada pela Agência Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos da América (EUA). Efetivamente, no início do terceiro ano de uma guerra que ceifou centenas de milhares de vidas, a parceria de partilha de informação entre os EUA e a Ucrânia é fundamental para a Ucrânia conseguir defender-se. A CIA e outros serviços de informações dos EUA providenciam informações sobre mísseis direcionados, rastreiam as movimentações das tropas russas e ajudam no apoio das redes de espionagem.

A parceria não é criação da guerra, mas enraizou-se, há uma década, ganhando forma pelos passos de três presidentes norte-americanos distintos, impulsionada por indivíduos proeminentes que correram vários riscos ousados. Transformou a Ucrânia, cujos serviços de informações se julgavam estar, há muito tempo, completamente comprometidos pela Rússia, num dos principais parceiros de informação de Washington contra o Kremlin.

Antes da guerra, os Ucranianos demonstraram o seu valor aos EUA, ao reunirem interceções que ajudaram a provar o envolvimento da Rússia no abate de um avião a jato comercial, o voo MH17 da Malaysia Airlines, em 2014, e auxiliaram os norte-americanos na perseguição dos agentes russos que interferiram na eleição presidencial norte-americana de 2016.

Em 2016, a CIA começou a treinar uma força de comando ucraniana de elite, conhecida como Unidade 2245, que capturava drones e equipamentos de comunicação russos, para que os técnicos da CIA pudessem reverter a engenharia e decifrar os sistemas de encriptação de Moscovo. E a CIA auxiliou o treino de uma nova geração de espiões ucranianos que operavam dentro da Rússia, por toda a Europa, em Cuba e noutros locais onde se verificasse uma presença russa significativa.

A relação estava tão enraizada, que os agentes da CIA permaneceram numa localização remota no oeste da Ucrânia, quando a administração Biden evacuou os funcionários dos EUA, nas semanas que antecederam a invasão russa, em fevereiro de 2022.

Durante a invasão, os agentes transmitiram informações cruciais, incluindo os locais que a Rússia estaria a planear atacar e os sistemas de armas que usariam.

Em mais de 200 entrevistas, agentes atuais e anteriores na Ucrânia, nos EUA e na Europa, descreveram uma parceria que esteve prestes a falhar, devido a desconfiança mútua, antes de se expandir progressivamente, transformando a Ucrânia num centro de recolha de informações que intercetava mais comunicações russas do que o posto da CIA em Kiev, na Ucrânia, conseguia inicialmente gerir. Atualmente, estas redes de informações são especialmente importantes, visto que a Rússia adotou uma atitude ofensiva e a Ucrânia está mais dependente da sabotagem e dos ataques de mísseis de longo-alcance que requerem a presença de espiões para lá das linhas inimigas. Correm cada vez mais riscos: se os republicanos no Congresso dos EUA cessarem o financiamento militar de Kiev, a CIA poderá ter de recuar.

Desde os primeiros momentos, o adversário comum – o presidente da Rússia – uniu a CIA e os parceiros ucranianos. Obcecado pela perda da Ucrânia para o Ocidente, Putin interferia no sistema político ucraniano, escolhendo a dedo líderes que acreditava serem capazes de manter a Ucrânia na órbita da Rússia. Contudo, o tiro saía pela culatra, empurrando manifestantes para as ruas.

Em finais de 2021, segundo um agente veterano europeu, Putin considerava lançar a sua primeira invasão de grande escala quando se encontrou com o chefe de um dos principais serviços secretos da Rússia, que relatou que a CIA, com o MI6 da Grã-Bretanha, estava a controlar a Ucrânia e a transformá-la numa testa-de-ponte (posição avançada) para operações contra Moscovo.

Contudo, uma a investigação do The New York Times averiguou que Putin e os seus conselheiros interpretaram mal uma dinâmica crítica. A CIA não forçou a sua entrada na Ucrânia. Os agentes dos EUA hesitavam em envolver-se, receosos de que os agentes ucranianos não fossem de confiança e preocupados com possíveis provocações ao Kremlin. Porém, um grupo de agentes de informações ucranianos procurou relacionar-se, assiduamente, com a CIA e foi-se tornando vital para os norte-americanos. Com o aprofundamento da parceria a partir de 2016, os Ucranianos impacientaram-se com a cautela de Washington e passaram a simular assassinatos e outras operações letais, violando os termos que pareciam ter acordado com a Casa Branca. E os agentes em Washington ameaçaram interromper o apoio, mas não o fizeram.

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Enfim, como habitualmente, a guerra atual, para lá das armas, também se faz com a informação oficial e com a contrainformação, com sabotagem, com ameaças, com persuasivas declarações de força e de riqueza e, obviamente, com muito dinheiro, com as redes de espionagem (catam informação e prestam informação veraz ou falsa, consoante a conveniência) e com secretas operações de guerra e de guerrilha. Faz-se a guerra de proximidade e a guerra à distância.

2024.03.05 – Louro de Carvalho

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