sábado, 31 de julho de 2021

Leem porque têm de ler, não tanto por prazer como é desejável

 

De acordo com Roland Barthes, in “O Prazer do Texto”, se lemos com prazer uma história, texto, frase ou palavra, é porque tal foi escrito no prazer. Porém, escrever no prazer não assegura ao escritor o prazer do leitor. O escrevente, que procura o leitor sem saber onde ele está, cria “um espaço de fruição”, lança a “possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do desfrute”. E diz o sociólogo e semiólogo que “a tagarelice do texto é apenas essa espuma de linguagem que se forma sob o efeito de uma simples necessidade de escritura”, nunca da ótica da perversão, mas na linha da procura. Com efeito, “escrevendo o seu texto, o escrevente adota uma linguagem de criança de peito: imperativa, automática, sem afeto, pequena debandada de cliques (esses fonemas lácteos que o jesuíta maravilhoso, van Ginneken, colocava entre a escritura e a linguagem), que “são os movimentos de uma sucção sem objeto, de uma oralidade indiferenciada, separada da que produz os prazeres da gastrosofia e da linguagem”.

Como o escritor, também o editor tem relevante papel na promoção do gosto da leitura por parte do potencial leitor. Assim, Maria do Rosário Pedreira, num pequeno artigo intitulado “O prazer de ler”, refere que, se lhe perguntam na qualidade de editora, como frequentemente sucede, “o que precisa de ter um livro para ser publicado ou o que é que um bom livro tem que não se encontre num mau livro”, não tem resposta imediata para nenhuma destas duas questões e não consegue avançar “apenas com o feeling de que aquele autor vai acabar por vingar ou o simples faro, a intuição” de estar perante “um livro que vai dar que falar”. Todavia, segundo diz, uma editora australiana, a Text Publishing, “sem oferecer definições ou propostas, apresenta uma formulação para o gesto de publicar”: “Publicamos livros para dar prazer, para mudar o tema da conversa e para pôr algo novo no mundo”. Assim se conclui que, tal como o escrevente, o editor de grande fôlego gosta de que os livros que publica gerem um espaço de prazer afetivo e efetivo para o leitor, ou seja, “dar prazer acima de tudo”. Resta saber se os leitores também procuram isso. Afigura-se que o maior problema esteja em que muita gente não associa a leitura ao prazer, mas a um frete e a posse do livro a uma obrigação ou mostra exibicionista de estatuto económico e social. Quantos livros são apenas adorno nas prateleiras de estantes das bibliotecas particulares! Ler queima as pestanas…

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Ora, os últimos 10 anos têm mostrado que os alunos gostam menos de ler. Leem menos livros de ficção, revistas ou jornais por quererem. Como aponta a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), “os alunos leem mais para satisfazer necessidades práticas e leem mais online na forma de chats, notícias online ou sites com informações práticas”.

Tal como em anos anteriores, o questionário contextual do PISA 2018 (Programme for International Students Assessment 2018) perguntava aos alunos de 15 anos (que participam nos testes do PISA) quanto tempo costumam passar a ler livros, revistas, jornais, sites, blogues e emails para se divertirem.

Os dados mostram que, entre 2000 e 2009, o tempo passado a ler por prazer diminuiu, mas aumentou o tempo de leitura, embora lentamente, entre 2009 e 2018 – o que contrasta com a diminuição do prazer da leitura, entre 2009 e 2018. Na Áustria, Hungria, Portugal, Sérvia e Tailândia – bem como em média na OCDE – os alunos mostraram menos prazer a ler, mas mais horas de leitura em 2018 por comparação a 2009. Para os autores do relatório 21st-Century Readers: Developing Literacy Skills in a Digital World, divulgado em junho passado, “esses resultados sugerem que menos horas de leitura estão associadas a menos prazer, ou nenhuma mudança, enquanto longas horas de leitura nem sempre se traduzem em mais prazer”. E os alunos relataram ler menos por lazer e também ler menos livros de ficção, revistas ou jornais porque quererem, por oposição a terem que ler. Leem mais para satisfazer necessidades práticas e leem mais online na forma de chats, notícias online ou sites com informações práticas” – realidade “provavelmente associada a mais tempo gasto a ler e à estagnação do prazer”.

As respostas mostram que não só o prazer de ler, como o formato de leitura (em papel ou em suporte digital) pode influenciar o gosto de ler. Porém, além destes, há mais fatores, como “a experiência anterior de leitura e os ambientes de aprendizagem em casa e na escola”, que “também afetam o prazer de leitura”. E sabe-se que estão intimamente dependentes o envolvimento e desempenho na leitura, como assegura a OCDE, que cita vários estudos que reforçam esta ideia. Assim, os autores do relatório em causa afirmam que “os alunos que leem regularmente para se divertirem têm mais oportunidades de melhorar as suas competências de leitura por meio da prática”. Todavia, advertem que, se ler por prazer melhora a leitura, “alunos com dificuldades sentem-se menos competentes e ficam menos motivados a ler por prazer”.

No PISA 2018, um em cada 4 (28%) alunos “concordou” ou “concordou fortemente” que “ler é um desperdício de tempo”.  No entanto, “o índice de prazer de leitura pode ser particularmente sensível a diferenças culturais no estilo de resposta”. Portanto, “as comparações dentro dos países são mais aconselháveis do que a comparação entre os países”.  

Em todos os países e economias que participaram no PISA em 2018, as raparigas relatam níveis muito mais elevados de prazer na leitura que os rapazes. Todavia, o género, não é o único fator de diferenças no índice de prazer de leitura dentro dos países. Outro fator é a origem socioeconómica é: os alunos mais favorecidos leem mais por prazer.

Os alunos que leem com mais livros em papel que em suporte digital têm melhor desempenho na leitura e passam mais tempo a ler por prazer. Comparados com os alunos que raramente ou nunca leem livros, os leitores de livros digitais nos países da OCDE leem por prazer cerca de 3 horas a mais por semana. Os leitores de livros impressos leem cerca de quatro horas. E os que equilibram os dois formatos cerca de 5 horas ou mais por semana. Os dados foram obtidos depois de controladas as variáveis relativas ao contexto socioeconómico e ao género.

Apenas 8,7% dos alunos nos países da OCDE conseguem desempenhos elevados (níveis 5 ou 6) no teste de leitura do PISA. Ou seja, compreendem textos extensos, lidam com conceitos abstratos ou contraintuitivos e estabelecem distinções entre facto e opinião com base em pistas implícitas no conteúdo ou relacionadas com a fonte da informação. Cerca de 49% dos alunos “leem apenas se for necessário”. No PISA de 2000 eram 36%. Um em cada 3 alunos “raramente ou nunca” lê livros. Também um em cada 3 lê com mais frequência em papel que em formato digital. Cerca de 15% afirma o inverso: lê mais em dispositivos digitais. Leem nos dois formatos, de forma igual, cerca de 13% dos alunos inquiridos.

Ora, comparados aos alunos que raramente ou nunca leem livros, os alunos que leem com mais frequência livros em papel pontuam mais 49 pontos nos testes de leitura; os alunos que leem com mais frequência livros em dispositivos digitais pontuaram apenas 15 pontos a mais. E os alunos que leem livros em dispositivos digitais com mais frequência têm o mais das vezes origem imigrante e condição socioeconómica desfavorecida. Assim acontece em 20% dos alunos imigrantes em comparação com 14% dos não imigrantes e a 16% dos desfavorecidos, por comparação a 13% dos alunos favorecidos. O formato digital também é mais usado entre rapazes (15%) do que entre raparigas (14%).

Ler com prazer é importante para ajudar os alunos a desenvolver competências de leitura. Por isso, a OCDE está preocupada com a diminuição significativa do índice de prazer da leitura registada entre 2009 e 2018 em 1/3 dos 70 países e economias participantes no PISA, pois “essa queda na valorização da leitura pode afetar as competências de leitura e a equidade, visto que o prazer da leitura medeia a relação entre contexto socioeconómico e desempenho em leitura”. Ora, contrariar esta tendência passa por dar às crianças e jovens o exemplo do que é ser leitor. E isto implica, segundo relatório em causa não apenas os professores como também os pais nesta tarefa, pois uns e outros são “modelos importantes para os hábitos de leitura”.

Na verdade, os alunos cujos pais gostam de ler têm um índice mais alto de gosto de leitura. Um aumento de uma unidade no índice de prazer de leitura dos pais está associado, em média, a um aumento de 0,05 no prazer de leitura dos rapazes e 0,11 das raparigas. Em média, nos países da OCDE, os alunos que falam com os pais sobre o que leem ou vão com eles à livraria ou à biblioteca pelo menos uma vez por semana têm um índice de prazer de leitura mais alto em 0,13 e 0,10, respetivamente. Efetivamente lê-se no relatório:

Os pais desempenham um papel crucial na transmissão de atitudes positivas em relação à leitura em casa desde a infância. As atividades do dia a dia que os pais realizam estão altamente correlacionadas com a aprendizagem inicial e o desenvolvimento socioemocional das crianças”.

Exemplos de tais atividades são ler para as crianças quase todos os dias e fornecer-lhes livros. E, segundo as evidências do PISA, “os pais que são observados a ler ou que endossam a visão de que a leitura é prazerosa estão associados às atividades de leitura das crianças em casa, à motivação e ao desempenho da leitura”.

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Rogério Araújo, num artículo “O prazer de ler um bom livro”, admite que muita gente tem aversão à leitura. E aventa a hipótese de a razão estar em não ter aprendido a decifrar bem as letrinhas e ter má relação com a leitura, pois não compreende pelo pouco vocabulário que tem.

Entretanto, considera “um prazer inigualável” gostar de “abrir um livro, passar suas páginas uma a uma e ler, envolvendo-se com a história, viajando pela imaginação, reportando-se às personagens, interagindo com elas”. Para tanto, há inúmeros géneros de texto e para todos os gostos: poesia, conto, crónica, novela, romance e, para relativamente poucos, o ensaio. Também o mix de géneros, um dentro do outro, tem o seu valor e os seus admiradores.

Hoje há todo o tipo de livro que se imagina. E sobressaem as biografias, com exemplos de vidas contados para nosso crescimento; as memórias, enquanto mostra de prazer em contar o que se supõe os outros não saberem ou, para alguns, como ajuste de contas sobre comportamentos desconhecidos; a autoajuda, a dar a mão à vida das pessoas e que vende milhões de exemplares como se resolvessem os problemas dos leitores; ficção ou romance, para quem deseja viajar, sonhar, dar asas à imaginação; e a dissertação, que leva o leitor à reflexão de temas relevantes e que servem de alerta para a vida. Uns gostam dum determinado género que outros odeiam. O que realmente importa é ler e de verdade, não apenas passar os olhos nas palavras, folhear páginas, sem se dar conta do poder que tem entre mãos, mas voar como águia rumo ao infinito. Muitos livros infantis, mesmo dirigidos a crianças que já devem saber ler, anestesiam os pequenos leitores com muitas figuras, desenhos, imagens, mas quase nada de leitura, como se não se soubesse do gosto que a criança tem ao descobrir pela leitura a história que as imagens sugerem. Serão pretensamente coisas da idade, mas que, segundo Araújo, podem e devem ser um pouco substituídas por “imagens” na forma escrita que “transcendem as letras e levam à fantasia, ao fazer a mente criar situações como se estivesse na história”.

Pegar um livro de ficção com mais de 500 páginas para ler, sendo um best seller é algo raro, mas muito saboroso e realizador, pois a vida não pode ser feita só de realidade, a invenção do real é necessária. Para os antigos, a ciência do inútil, a perda de tempo, o ócio, o poder ter nada para fazer é, como deseja André Rosa (vd “Evasões”, de 30 de julho), “um bem enorme para arejar a cabeça, esquecendo momentaneamente dos problemas” e é “um lazer bem interessante”.

Ler por ler não interessa. Quando alguém quer armar-se em intelectual, culto ou amigo de ler, não cumpre o papel primordial do livro, que é “envolver o leitor e fazê-lo pensar e assimilar o que ali está escrito”. E, em tempos de modernidade, sendo o papel substituído por equipamentos como, entre outros, o tablet, o ipad, o smartphones, o livro não fica “ameaçado” de acabar como muitos predizem, tende, antes, a ser ampliado e existir em formatos diferentes, mas de grande valia, como os e-books. Bill Gates, dono da Microsoft, que programou alta tecnologia no computador que mudou o rumo do mundo, disse que os seus filhos terão computadores, mas antes terão livros, pois “sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever – inclusive a sua própria história”.

Se alguém quer ler uma obra em edição digital ao invés de impressa, que leia. O que não pode é ficar sem ler nada por preguiça e deixar de crescer e usufruir do prazer e ler um bom livro.

Ler por obrigação ou para dar conta do recado leva à leitura em diagonal e leitura de resumos.

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O Plano Nacional de Leitura 2027 (PLN 2027) referia, em setembro de 2020, que “ler é um prazer”, mas só para alguns, ou seja, por exemplo para quem cresceu entre livros, conquistou o gosto pela leitura e descobriu que o livro guarda dentro de si outros mundos, pessoas, lugares, tempos, memórias e outras formas de ser, de estar, de sentir, de comunicar, de rir... – descoberta intimamente ligada à preservação da capacidade de espanto que carateriza a infância e alimenta a vontade de continuar a ler por prazer, não por obrigação.

É como sucede com outras atividades do nosso quotidiano, por exemplo comer ou fazer exercício físico. Comer é prazer para quem desde cedo aprendeu a distinguir o sabor dos alimentos; fazer exercício físico é prazer para quem cresceu a fazer cambalhotas e pinos, a jogar à bola e a correr atrás dos amigos. Estas atividades, à partida naturais, implicam uma decisão e uma prática. Na leitura, tal decisão e prática dependem muito de quem nos rodeia: família, amigos, professores... Se quem nos rodeia tem a capacidade de nos contaminar com leituras que nos alimentem a curiosidade e estimulem a imaginação, de certeza que cresceremos leitores.

A isto vem o PNL Plano Nacional de Leitura fornecer coordenadas para a leitura se tornar um prazer, sugerindo livros capazes de entusiasmar não só os já leitores, mas também os que ainda não o são. É um mapa, útil em qualquer viagem, mas sobretudo por territórios desconhecidos, que pode ser usado para orientar leitores de todas as gerações e dar pistas para que famílias e professores saibam o que partilhar com os leitores mais novos e até entre si.

Essa orientação – troca de experiência de leitura entre professores, famílias, alunos, amigos – é essencial para formar leitores e para, no meio dos milhares de livros publicados em Portugal, distinguir os melhores. A leitura implica essa prática e essa conquista.

2021.07.31 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Contra o Tráfico de Seres Humanos, uma economia do cuidado

 

Neste dia 30 de julho, celebra-se o Dia Mundial Contra o Tráfico Humano, um tema no coração do Papa Francisco e que remonta ao ano de 2013, em que se assinalou pela primeira vez, uma vez que as Nações Unidas o estabeleceram com o objetivo de aumentar a consciência sobre o tráfico e ajudar as vítimas e o público em geral a informar-se sobre os seus direitos.

Da magnitude do tema – um crime atroz que afeta todas as regiões do mundo – falam os números e os casos hediondos que vão acontecendo no mundo, ora clandestinamente, ora à vista de todos, sob a assustadora indiferença de tantas entidades que podiam e deviam intervir. Cerca de 72% das vítimas de tráfico humano detetadas são mulheres e meninas e, de acordo com o Departamento das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), a percentagem de crianças vítimas deste crime duplicou entre 2004 e 2016. A maior parte das vítimas é traficada para a exploração sexual, seguindo-se o tráfico de pessoas para trabalho forçado, o recrutamento de menores para servirem como crianças-soldados e outras formas de exploração e abuso.

Udekwe Kennedy Obinna, sobrevivente, revela:

Quem morre é atirado dos camiões, sem funeral. Continuámos a viagem. Após uma semana e dois dias no deserto, chegámos a uma cidade chamada Sabha, na Líbia, cidade conhecida pelo tráfico de seres humanos e pelos raptos.”.

As vítimas acabam frequentemente em bordéis ou a trabalhar como empregadas domésticas ou trabalhadores explorados. Algumas pessoas são comercializadas em todo o mundo.

Josiah Emerole, Diretor da NAPTIP, relata:

As pessoas são recrutadas de vários locais e transportadas para locais onde são obrigadas a acreditar que estão em dívida para com alguém. Fizeram-nas assinar um compromisso de cerca de 70 mil dólares, 80 mil euros – e tudo isso para dizer ‘foi a quantia de dinheiro que utilizámos para vos transportar e até pagarem tudo não podem ser livres’.”.

Os números exatos dos traficados todos os anos não são claros, mas a Europa continua a ser um dos destinos principais e muitas das vítimas acabam no comércio sexual.

Os traficantes e os grupos terroristas exploram pessoas vulneráveis, confinadas à guerra, que vivem na pobreza e sofrem de discriminação. Nádia Murad foi a primeira vítima de tráfico humano a ser Embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas e recebeu o Prémio Nobel da Paz em 2018 por catalisar a ação internacional para acabar com o tráfico e a violência sexual em conflitos armados.

Os conflitos, as deslocações forçadas, as alterações climáticas, os desastres naturais e a pobreza acentuam a vulnerabilidade e o desespero das vítimas e constituem espaço para a perpetuação do crime atroz que é o tráfico humano. Os migrantes estão, pois, no centro das atenções. Milhares de pessoas perderam a vida nos mares, nos desertos, em centros de detenção nas mãos de traficantes que exercem este monstruoso e impiedoso negócio. Assim, um dia de indiferença ao abuso e à exploração corresponde a um dia que custa a vida a muitas vítimas. São várias as empresas que beneficiam da miséria destas pessoas, desde o setor da construção até ao da produção de alimentos ou bens de consumo.

A cooperação internacional, traduzida na ação multilateral, deu azo a progressos, sobretudo com instrumentos como a “Convenção de Palermo” com o “Protocolo para Prevenir, Reprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente de Mulheres e Crianças” e levou a um aumento das detenções de traficantes de pessoas nos últimos anos, sendo que, para os ativistas, muito mais poderia ter sido feito. Na maioria dos países há legislação para sancionar este crime e já houve condenações por tráfico humano. Porém, ainda há muito por fazer para levar à justiça as redes transnacionais de tráfico. Urge assegurar a deteção e identificação das vítimas e possibilitar a sua proteção e o acesso aos serviços de que precisam.

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) incluem metas claras para prevenir o abuso e a exploração, eliminar todas as formas de violência contra mulheres e meninas e erradicar o trabalho forçado e a mão-de-obra infantil, o que é pouco se não houver a reafirmação e reforço do compromisso e empenho em impedir os criminosos de explorarem pessoas vulneráveis para benefício próprio e em ajudar as vítimas a reconstruir as suas vidas. Efetivamente os lucros dos traficantes são estimados em 29,4 mil milhões de euros por ano, em todo o mundo.

É de relevar que um levantamento da ONU alertou para os impactos duma “pandemia de tráfico humano”, tendo a pesquisa identificado um aumento no número de vítimas de tráfico humano durante a pandemia de covid-19, especialmente na exploração de crianças.

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Como refere o “Vatican News”, a Save the Children” publicou, em vésperas deste dia 30 de julho, o relatório “Little Invisible Slaves(pequenos escravos invisíveis), sobre a situação do Tráfico de Seres Humanos, em que afirma que com a pandemia as vítimas são menos visíveis e mais difíceis de serem rastreadas, pois as redes criminosas deslocaram o seu trabalho para dentro das casas e sobretudo online. E muitas pessoas continuam a estar nas mãos de traficantes sem escrúpulos, exploradas em trabalho humilhante ou exploradas sexualmente, sem qualquer esperança de resgate ou salvação. 

Antes da pandemia havia 50.000 vítimas confirmadas de tráfico humano em 2018 em todo o mundo, número que terá aumentado com a crise da covid-19 que levou mais 142 milhões de crianças e adolescentes para a pobreza. Na verdade, nas fases agudas da pandemia, as medidas de isolamento deixaram 1,6 bilhões de meninos e meninas fora da escola, expostos a forte aumento do abandono escolar e a maior risco de tráfico e exploração no trabalho ou sexual, a casamentos forçados ou a gravidez precoce, particularmente nos países de baixos rendimentos. Estima-se que só a exploração do trabalho poderá acabar com a vida de 8,9 milhões de crianças e adolescentes até ao final de 2022, mais da metade deles com menos de 11 anos de idade.

O 11.° Relatório do “Save the Children”, focado em crianças vítimas do tráfico, evidenciou que a crise da covid-19 as tornou menos visíveis e mais difíceis de rastreio à medida que as redes criminosas dirigiram a sua ação para dentro das casas e online. Aumentou o número de crianças vítimas da prostituição, do contrabando de drogas ou do trabalho forçado. A combinação de pobreza, fechamento de escolas e mais tempo online aumentaram o risco.

O relatório constatou que na Europa Ocidental e do Sul houve o maior número confirmado de casos de tráfico de crianças em todo o mundo, com 4.168 crianças vítimas. Mais de uma em cada 3 vítimas confirmadas do tráfico (34%) é criança, a maioria meninas – percentagem que mais do que triplicou nos últimos 15 anos. Em algumas regiões de baixos rendimentos, cerca da metade das vítimas são crianças. As meninas são principalmente traficadas para exploração sexual (72%), enquanto os meninos são em sua maioria traficados para trabalhar (66%).

O Relatório admite que os números sejam apenas a ponta do iceberg, pois mostram apenas casos registados, sendo que o mercado do tráfico pode ter mudando, mas não mostra sinais de diminuição. Segundo a Europol, a tecnologia ampliou a capacidade das redes criminosas, tanto nos países de origem como nos de trânsito e destino, já que, pela utilização de comunicações criptografadas, evitam a interação direta com as vítimas recrutadas e o contacto com a polícia e obtêm o acesso a aplicativos baseados em GPS. Segundo a “Save the Children”, que dirige vários programas para e com as vítimas do tráfico na Itália, até agora não tem havido suficiente comprometimento dos governos para monitorar, prevenir e combater o tráfico de crianças. Por conseguinte e ao invés do que se verifica, é vital fortalecer a colaboração entre todos os envolvidos, das forças policiais aos provedores de serviços online e ONGs, e responder adequadamente ao crescimento da exploração online.

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A rede ‘Talitha Kum’, que inclui mais de 3 000 religiosas católicas e leigas, lançou a campanha ‘#CareAgainstTrafficking’ para assinalar este Dia Mundial contra o Tráfico de Pessoas. E as responsáveis sustentam:

Declaramos que o cuidado e a prevenção são a força mais poderosa para a mudança e unimo-nos aos sobreviventes para promover o cuidado contra o tráfico humano”.

Este organismo internacional de Institutos de Vida Consagrada indica que a campanha “Cuidado contra o tráfico”, divulgada online e cujas prioridades vão da educação e das oportunidades de trabalho à assistência médica e à justiça, visa chamar a atenção para a necessidade de intervir em todas as fases, prestando assistência às pessoas em risco, às vítimas e às sobreviventes, e que esta abordagem exige um compromisso de várias instituições e a participação da sociedade, para “enfrentar as causas sistémicas do tráfico”.

As religiosas, que se reconhecem alimentadas pela força da espiritualidade”, afirmam terem vindo a ajudar dezenas de milhares de pessoas a escapar da violência do tráfico e encontrar um caminho para reconstruir vidas de liberdade e dignidade”. E denunciam situações de falsas propostas de emprego ou de escolarização, que levam crianças, jovens e mulheres a cair em redes de prostituição ou escravatura doméstica.

A irmã Gabriella Bottani, coordenadora internacional da ‘Talitha Kum’, sublinha que o Papa tem mediado uma mudança da “economia do tráfico em economia do cuidado”. E assinala:

Apoiamos sobreviventes, mesmo dentro da realidade da crise da pandemia, oferecendo-lhes ajuda material concreta, como pagar o aluguer ou comida. Cuidar significa promover uma educação de qualidade, para ser competitivo no mercado de trabalho.”.

A ação #CareAgainstTrafficking, que é parte da ação de incidência política da ‘Talitha Kum’, é realizada no contexto da iniciativa ‘Sisters Advocating Globally’ da UISG (União Internacional das Superioras Gerais) com o objetivo de “levantar a voz das religiosas católicas dentro da comunidade de desenvolvimento global”.

Para a Irmã Gabriella, a campanha nas redes sociais consiste em dar voz e visibilidade a “gestos de cuidados para combater o tráfico hoje no nosso mundo globalizado, mas também neste tempo de pandemia, não deixando que a crise seja a última palavra, mas o cuidar: cuidar da dignidade humana, cuidar da liberdade dos nossos irmãos e irmãs, cuidar de gestos quotidianos para que todos tenham vida em abundância”.

E a Cáritas Europa, “mobilizada pela dignidade das pessoas”, assinala a data, recordando que “trabalha há anos contra todas as formas de exploração e tráfico de seres humanos” e vincando:

Denunciamos políticas que aumentam a vulnerabilidade das pessoas e o risco de serem traficadas. Promovemos uma cultura de respeito por meio da consciencialização do público em geral e da preparação de quem está em contato com potenciais vítimas. (…) O tráfico de seres humanos continua a ser um grave problema em todo o mundo, assumindo a forma de exploração sexual, escravidão doméstica, trabalhos forçados, mendicância forçada, coerção para cometer crimes, casamentos forçados e até tráfico de órgãos.”.

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Por seu turno, o Papa Francisco pretende claramente a transformação da economia do tráfico numa economia do cuidado.

Com um tuíte, Francisco recorda o Dia Mundial Contra o Tráfico Humano, convocado pelas Nações Unidas em 2013 e, desde então, celebrado todos os dias 30 de julho, com a finalidade de combater a exploração das pessoas contra um fenómeno que praticamente atinge países de todos os continentes, entre nações que estão envolvidas na origem, trânsito e destino das vítimas.

Além do 30 de julho, a Igreja Católica dedicada outra jornada anual a este fenómeno: o dia 8 de fevereiro, o da memória litúrgica de Santa Josefina Bakhita, a sudanesa que foi vendida como escrava. A 1.ª edição do Dia Mundial de Oração e Reflexão Contra o Tráfico de Pessoas foi assinalada em 2015, a pedido do Papa, que encarregou, no ano anterior, a UISG/USG (União Internacional das Superioras e União dos Superiores Gerais) de promover o evento pelos 5 continentes.

Em ambas as circunstâncias, Francisco tem exprimido a sua preocupação e, principalmente, o seu apoio à “Talitha Kum”, organização formada sobretudo por religiosas.

De facto, como foi referido, esta rede internacional da Vida Consagrada está, com a ‘#Care Against Trafficking’, lançada uma semana antes, a mostrar que o cuidado pode fazer a diferença em todas as fases do percurso para combater o tráfico: cuidado para quem está em risco, para as vítimas e para quem sobrevive. Na verdade, segundo a Irmã a Gabriella Bottani, “como o Papa Francisco muitas vezes nos lembra, cuidar é importante para dar valor, dar força ao bem, enfrentando com a força do bem o mal”.

A “Talitha Kumcoordena o grupo de organizações parceiras desta jornada internacional: o Dicastério Para a Vida Consagrada, os Conselhos Pontifícios da Justiça e Paz e dos Migrantes e Povos Itinerantes, a Academia das Ciências, a Caritas Internationalis (CI), a União Internacional das Associações Femininas Católicas (WUCWO) e o grupo de trabalho contra o tráfico da Comissão Justiça e Paz da UISG/USG (ATWG).

Na sua mensagem no Twitter, Francisco destaca o papel da economia neste fenómeno, como já abordado a 8 de fevereiro, VII Dia Mundial de Oração e Reflexão contra o Tráfico de Pessoas:

Este ano o objetivo é trabalhar por uma economia que não favoreça, mesmo indiretamente, esse tráfico ignóbil, ou seja, uma economia que nunca faz do homem e da mulher uma mercadoria, um objeto, mas sempre o fim.

Em fevereiro, Francisco assinalou que uma economia sem tráfico é de “cuidado”, isto é, “cuidar das pessoas e da natureza”, oferecendo produtos e serviços para o crescimento do bem-comum, e essa economia que cuida do trabalho cria “oportunidades de emprego que não exploram o trabalhador para horários degradantes e exaustivos”.

Observou que “o tráfico de pessoas encontra terreno fértil no cenário do capitalismo neoliberal, na desregulamentação dos mercados que visa maximizar lucros sem limites éticos, sem limites sociais, sem limites ambientais” e não faz as escolhas com base em critérios éticos, mas em função dos interesses dominantes, não raro habilmente vestidos de “aparência humanitária ou ecológica”. E advertiu que “as pessoas são números, também a serem explorados”.

O Pontífice frisou que “a pandemia de covid exacerbou e agravou as condições de exploração do trabalho” e que “a perda de empregos penalizou muitas vítimas do tráfico em processo de reabilitação e reinserção social”. E contrapôs que uma “economia do cuidado” trabalha por “uma solidez que combina com solidariedade”, explicando que também uma economia sem tráfico de pessoas “é uma economia com regras de mercado” que promovem a justiça “e não interesses especiais exclusivos”.

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Há muito a pensar, rezar, trabalhar e mudar. O tempo não espera e os explorados muito menos.

2021.07.30 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Marta, Maria e Lázaro, santos e irmãos

 

Pela primeira vez se faz, neste dia 29 de julho, a sua memória litúrgica com alguns textos próprios para missa e ofício, funcionando em regime supletivo os textos do Comum dos Santos.

Apesar de o Martirológio Romano prescrever que, a 29 de julho, se deve fazer a seguinte referência “Memória dos Santos Marta, Maria e Lázaro, irmãos, que, em espírito familiar, hospedaram o Senhor Jesus na sua casa de Betânia, abrindo os ouvidos e os corações à escuta das divinas palavras sobre o reino dos céus, acreditando n’ Ele, que venceu a morte com a ressurreição”, a dúvida tradicional na Igreja latina sobre a identidade das Marias de Magdala (Madalena), de Betânia e alegadamente de uma pecadora, fez com que o Calendário Romano Geral estabelecesse a celebração da Memória Litúrgica de Santa Maria Madalena, sem mais, para 22 de julho e a de Santa Marta para 29, ficando Lázaro a leste do calendário celebrativo.

Entretanto, os estudos mais recentes dissiparam a dúvida da identidade das Marias e revelaram a singularidade de Maria Madalena como testemunha da Ressurreição e no seu dinamismo e vigor apostólicos. Por conseguinte, a pedido do Papa Francisco, a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos emitiu o decreto de 3 de junho de 2016, relativo à celebração de Santa Maria Madalena, que, da categoria de memória obrigatória com que era celebrada na missa e no ofício, passou a ser celebrada com o grau de Festa no Calendário Romano Geral.

Tal decisão estriba-se no facto de a Igreja, tanto no Ocidente como no Oriente, haver tido sempre em grande consideração e louvor Maria Madalena, celebrando-a de diversos modos, pois ela foi a primeira testemunha evangelizadora da ressurreição do Senhor. Por outro lado, a Igreja sente-se estimulada a refletir aprofundadamente sobre a dignidade da mulher, a nova evangelização e a grandeza do mistério da misericórdia divina, pelo que o exemplo de Maria Madalena deve ser proposto aos fiéis do modo mais adequado. Na verdade, esta mulher, conhecida como a que amou tanto Cristo e que foi amada por Ele, que São Gregório Magno chamou de “testemunha da misericórdia” e São Tomas de Aquino de “apóstola dos apóstolos”, pode ser considerada pelos fiéis de hoje como modelo do ministério da mulher na Igreja.

Este ano de 2021, o decreto de 26 de janeiro da mesma Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos releva que, “na casa de Betânia, o Senhor Jesus experimentou o espírito de família e a amizade de Marta, de Maria e de Lázaro”, pelo que o Evangelho de João afirma que “Ele os amava”. Com efeito, “Marta ofereceu-Lhe generosamente hospitalidade, Maria ouviu atentamente as suas palavras e Lázaro saiu de imediato do sepulcro a convite d’Aquele que aniquilou a morte”. Paralelamente reconhece que “a tradicional dúvida na Igreja latina acerca da identidade de Maria”, a Madalena a quem Cristo apareceu após a ressurreição, a irmã de Marta, a pecadora a quem o Senhor perdoou os pecados, levou à inscrição, no Calendário Romano, “unicamente de Marta no dia 29 de julho”.

Porém, encontrou-se, em estudos de tempos recentes, a solução, como atesta o atual Martirológico Romano, que comemora naquele mesmo dia, também Maria e Lázaro, e como atestam alguns Calendários particulares, que celebram conjuntamente nesse dia os três irmãos.

Por isso, tendo em conta o importante testemunho evangélico dos três irmãos que ofereceram ao Senhor Jesus a hospitalidade da sua casa, prestando-lhe uma atenção dedicada, e acreditaram que Ele é a ressurreição e a vida, o Sumo Pontífice, acolhendo a proposta deste competente Dicastério, decidiu que no dia 29 de julho seja inscrito no calendário Romano Geral a memória obrigatória dos Santos Marta, Maria e Lázaro. Isto implica variantes e acrescentos nos textos litúrgicos, que figuram em anexo ao decreto, que devem ser traduzidos, aprovados e, depois de confirmados por este Dicastério, publicados pela respetiva Conferência Episcopal.

A Missa é própria.

A antífona de entrada salienta a hospitalidade de Marta: “Jesus entrou numa aldeia e Marta recebeu-O em sua casa (Lc 10,38).

A oração coleta destaca a ressurreição de Lázaro, a hospitalidade de Marta e a meditação de Maria: “Senhor nosso Deus, cujo Filho chamou de novo Lázaro do sepulcro para a vida e aceitou a hospitalidade que Marta Lhe oferecia em sua casa, concedei-nos que, servindo a Cristo em cada um dos nossos irmãos, mereçamos ser alimentados com Maria na meditação da sua palavra”.

A oração sobre as oblatas evoca a generosidade hospitaleira dos santos irmãos: “Ao proclamar-Vos admirável nos vossos santos, humildemente Vos pedimos, Senhor, que aceiteis a oferta do nosso ministério, como aceitastes a sua generosa hospitalidade”.

A antífona da comunhão transcreve o momento da confissão de fé de Marta: “Marta disse a Jesus: Vós sois o Messias, o Filho de Deus vivo, que veio ao mundo (cf Jo 11,27).

E a oração depois da comunhão enaltece o exemplo destes três santos: “A sagrada comunhão do Corpo e Sangue do vosso Unigénito nos afaste de todas as coisas efémeras, Senhor, para que, a exemplo dos santos Marta, Maria e Lázaro, possamos progredir neste mundo em caridade sincera e rejubilar nos céus na visão eterna do vosso rosto”.

Por seu turno, a Liturgia da Palavra assume como 1.ª leitura uma passagem da 1.ª Epístola da São João (1Jo 4,7-16), em que sobressai o facto de Deus, que é amor e nos ama, ter enviado o seu Filho Unigénito ao mundo como vítima de expiação pelos nossos pecados. E, urgindo o amor fraterno, declara que, “Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós”.

O Salmo Responsorial é o Salmo 34 (33), 2-3.4-5.6-7.8-9.10-11 em torno do refrão: “Em todo o tempo e lugar bendirei o Senhor(v. 2) ou “Saboreai e vede como o Senhor é bom(9a).

O cântico do Aleluia emoldura o refrão: “Eu sou a luz do mundo, diz o Senhor: quem Me segue terá a luz da vida(Jo 8,2).

A nível do Evangelho, são de tomar, em alternativa, uma das seguintes duas passagens: Jo 11,19-27, em que sobressai o ato de fé de Marta “Acredito que Tu és o Messias, o Filho de Deus”; ou Lc 10,38-42, em que se evidencia a chamada de atenção de Jesus para a excessiva azáfama de Marta “Marta, Marta, andas inquieta e preocupada com muitas coisas”, em contraste com a contemplação de Maria, que “escolheu a melhor parte”.

No Evangelho de João, Marta passa das certezas de que o irmão Lázaro não teria morrido se Jesus ali estivesse, de que mesmo agora Deus concederia a Jesus tudo o que Ele Lhe pedisse e de que o irmão ressuscitará no último dia, à certeza da fé no Senhor que é a Ressurreição e a Vida, pelo que quem n’Ele acredita não morrerá jamais. E à interpelação de Jesus se ela acreditava nisto, respondeu com desassombro à boa maneira de Pedro em Cesareia de Filipe (cf Mt 16,16): “Acredito, Senhor, que Tu és o Messias, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo”.  

Por seu turno, a passagem de Lucas tem a função de uma parábola. Tentamo-nos ao encosto ao lado de Marta, classificando a atitude de Maria como egoísta por deixar a irmã sozinha no trabalho. Porém, Jesus mostra que aprecia a atitude de escuta da Palavra e adverte para o perigo do excesso de preocupações e inquietudes, que dificultam o cultivo e o fruto da Palavra de Deus, pelo que é complacente com a postura de Maria.

O Ofício é do Comum dos Santos. Todavia, dispõe de textos próprios nalguns segmentos.

Assim, a oração nas horas canónicas é da coleta da Missa; as antífonas do Benedictus (em Laudes) e do Magnificat (em Vésperas) são, respetivamente: “Levantando os olhos ao Céu, Jesus bradou com voz forte: Lázaro sai para fora” e “Jesus amava Marta e seus irmãos, Maria e Lázaro”.  

No Ofício de Leitura, a 2.ª Leitura é um excerto de um dos sermões de São Bernardo,

(Sermo 3 in Assumptione beatæ Mariæ Virginis, 4. 5: PL 183, 423. 424). Nele o santo Abade mostra querer que assumamos na nossa casa o ordenamento da caridade em três ministérios: a administração de Marta, a contemplação a Maria e a penitência a Lázaro. Nestes termos, olhando à especificidade de cada ministério, como Maria devemos pensar em Deus com piedosos e elevados sentimentos, como Marta devemos pensar no próximo com disposições de benevolência e de misericórdia e como Lázaro devemos pensar em nós mesmos mesmo com humildade e comiseração. Por isso, quem não recebeu uma ocupação ou cargo deve manter-se sentado “ou aos pés de Jesus com Maria ou no fundo do sepulcro com Lázaro”. Não obstante, quem é chamado a ocupação ou cargo em prol dos outros, além das tarefas inerentes ao cargo, deve saber que as atividades não podem ofuscar a fidelidade à missão, que postula, acima de tudo, a busca dos interesses de Jesus Cristo, a intenção pura e a realização da vontade de Deus.

O responsório replica Jo 12, 1-3:

R. Depois de Jesus ter ressuscitado Lázaro, ofereceram‑Lhe uma ceia em Betânia, * E Marta servia à mesa.

V. Maria tomou uma libra de perfume precioso e ungiu os pés de Jesus. * E Marta servia à mesa.

Por fim, dão-se a conhecer os dois hinos do próprio destes três irmãos santos:

 

Para o Ofício de Leitura e a Hora de Vésperas

Para a Hora de Laudes

 

Alegres te cantamos, Santa Marta,
A ti que mereceste receber
Com teus irmãos, a Cristo em tua casa
Assiduamente, com gosto e prazer.

Ao Hóspede divino de bom grado
Servias com cuidado diligente,
Solícita por bem O receber,
Estimulada por amor ardente.

Enquanto alimentavas o Senhor
Alegre, preparando-lhe comida,
D’Ele Maria e Lázaro hauriam
Da graça o alimento e a vida.

Quando já se previa a sua morte,
Tua irmã com perfume O quis ungir.
E, vigilante, tu lhe ofertaste
O derradeiro dom de O servir.

Felizes hospedeiros de Jesus,
Incendiai o nosso coração,
Para que seja sempre a sua casa,
Moradia de amor e gratidão.

À Trindade divina toda a glória,
E que Ela nos conceda habitar
Na celeste mansão, para convosco
Eternamente seu louvor cantar. Amen.

 

Os votos e os louvores que te damos
Nos tragam, Santa Marta, proteção;
Tu que te uniste a Cristo na amizade
De um fiel coração.

Da tua casa hóspede frequente,
Aí tomou repouso o bom Messias,
Que se alegrava com os teus cuidados,
Quando tu O servias.

Por te morrer o irmão, tu te queixaste,
Chorando com Maria deprimida,
Mas o Senhor com sua voz possante
Fê-lo voltar à vida.

Pois que acreditas que a ressurreição
É Cristo, o Filho único de Deus,
Alcança-nos a graça de irmos todos
Para o reino dos céus.

Louvor ao Pai, e ao Filho a fortaleza,
Poder ao Santo Espírito igualmente;
Que um dia nós cantemos sua glória
Indefetivelmente.

                                                                                                                    

Honra, pois aos Santos Lázaro, Maria e Marta. E glória a Deus!

2021.07.29 – Louro de Carvalho