De
acordo com Roland Barthes, in “O Prazer
do Texto”, se lemos com prazer uma história, texto, frase ou palavra, é
porque tal foi escrito no prazer. Porém, escrever no prazer não assegura ao
escritor o prazer do leitor. O escrevente, que procura o leitor sem saber onde
ele está, cria “um espaço de fruição”, lança a “possibilidade de uma dialética
do desejo, de uma imprevisão do desfrute”. E diz o sociólogo e semiólogo que “a
tagarelice do texto é apenas essa espuma de linguagem que se forma sob o efeito
de uma simples necessidade de escritura”, nunca da ótica da perversão, mas na linha
da procura. Com efeito, “escrevendo o seu texto, o escrevente adota uma
linguagem de criança de peito: imperativa, automática, sem afeto, pequena
debandada de cliques (esses fonemas lácteos que o jesuíta
maravilhoso, van Ginneken, colocava entre a escritura e a linguagem), que “são os movimentos de uma
sucção sem objeto, de uma oralidade indiferenciada, separada da que produz os
prazeres da gastrosofia e da linguagem”.
Como
o escritor, também o editor tem relevante papel na promoção do gosto da leitura
por parte do potencial leitor. Assim, Maria do Rosário Pedreira, num pequeno
artigo intitulado “O prazer de ler”,
refere que, se lhe perguntam na qualidade de editora, como frequentemente
sucede, “o que precisa de ter um livro para ser publicado ou o que é que um bom
livro tem que não se encontre num mau livro”, não tem resposta imediata para
nenhuma destas duas questões e não consegue avançar “apenas com o feeling de
que aquele autor vai acabar por vingar ou o simples faro, a intuição” de estar
perante “um livro que vai dar que falar”. Todavia, segundo diz, uma editora
australiana, a Text Publishing, “sem
oferecer definições ou propostas, apresenta uma formulação para o gesto de
publicar”: “Publicamos livros para dar
prazer, para mudar o tema da conversa e para pôr algo novo no mundo”. Assim
se conclui que, tal como o escrevente, o editor de grande fôlego gosta de que
os livros que publica gerem um espaço de prazer afetivo e efetivo para o leitor,
ou seja, “dar prazer acima de tudo”. Resta saber se os leitores também procuram
isso. Afigura-se que o maior problema esteja em que muita gente não associa a
leitura ao prazer, mas a um frete e a posse do livro a uma obrigação ou mostra
exibicionista de estatuto económico e social. Quantos livros são apenas adorno
nas prateleiras de estantes das bibliotecas particulares! Ler queima as
pestanas…
***
Ora,
os últimos 10 anos têm mostrado que os
alunos gostam menos de ler.
Leem menos livros de ficção,
revistas ou jornais por quererem. Como aponta a OCDE (Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), “os alunos leem mais para satisfazer necessidades práticas e leem
mais online na forma de chats,
notícias online ou sites com informações práticas”.
Tal como em
anos anteriores, o questionário contextual do PISA 2018 (Programme for
International Students Assessment 2018) perguntava
aos alunos de 15 anos (que participam nos testes do PISA) quanto tempo costumam passar a ler livros, revistas,
jornais, sites, blogues e emails para se divertirem.
Os dados mostram que, entre 2000 e 2009, o tempo
passado a ler por prazer diminuiu, mas aumentou o tempo de leitura, embora
lentamente, entre 2009 e 2018 – o que contrasta com a diminuição do prazer da
leitura, entre 2009 e 2018. Na Áustria, Hungria, Portugal, Sérvia e Tailândia –
bem como em média na OCDE – os alunos mostraram menos prazer a ler, mas mais
horas de leitura em 2018 por comparação a 2009. Para os autores do
relatório 21st-Century Readers: Developing Literacy
Skills in a Digital World, divulgado em junho passado, “esses
resultados sugerem que menos horas de leitura estão associadas a menos prazer,
ou nenhuma mudança, enquanto longas horas de leitura nem sempre se traduzem em
mais prazer”. E os alunos relataram ler menos por lazer e também ler menos
livros de ficção, revistas ou jornais porque quererem, por oposição a terem que
ler. Leem mais para satisfazer necessidades práticas e leem mais online na forma de chats,
notícias online ou sites com
informações práticas” – realidade “provavelmente associada a mais tempo gasto a
ler e à estagnação do prazer”.
As respostas mostram que não só o prazer de ler, como
o formato de leitura (em papel ou em suporte digital) pode influenciar o gosto de ler. Porém, além destes,
há mais fatores, como “a experiência anterior de leitura e os ambientes de
aprendizagem em casa e na escola”, que “também afetam o prazer de leitura”. E
sabe-se que estão intimamente dependentes o envolvimento e desempenho na
leitura, como assegura a OCDE, que cita vários estudos que reforçam esta ideia.
Assim, os autores do relatório em causa afirmam que “os alunos que leem
regularmente para se divertirem têm mais oportunidades de melhorar as suas
competências de leitura por meio da prática”. Todavia, advertem que, se ler por
prazer melhora a leitura, “alunos com dificuldades sentem-se menos competentes
e ficam menos motivados a ler por prazer”.
No PISA 2018, um em cada 4 (28%) alunos “concordou” ou “concordou fortemente” que “ler
é um desperdício de tempo”. No entanto, “o índice de prazer de leitura
pode ser particularmente sensível a diferenças culturais no estilo de resposta”.
Portanto, “as comparações dentro dos países são mais aconselháveis do que a
comparação entre os países”.
Em todos os países e economias que participaram no
PISA em 2018, as raparigas relatam níveis muito mais elevados de prazer na
leitura que os rapazes. Todavia, o género, não é o único fator de diferenças no
índice de prazer de leitura dentro dos países. Outro fator é a origem
socioeconómica é: os alunos mais favorecidos leem mais por prazer.
Os alunos que leem com mais livros em papel que em
suporte digital têm melhor desempenho na leitura e passam mais tempo a ler
por prazer. Comparados com os alunos que raramente ou nunca leem livros, os
leitores de livros digitais nos países da OCDE leem por prazer cerca de 3 horas
a mais por semana. Os leitores de livros impressos leem cerca de quatro horas.
E os que equilibram os dois formatos cerca de 5 horas ou mais por semana. Os
dados foram obtidos depois de controladas as variáveis relativas ao contexto
socioeconómico e ao género.
Apenas 8,7% dos alunos nos países da OCDE conseguem
desempenhos elevados (níveis 5 ou 6) no teste de
leitura do PISA. Ou seja, compreendem textos extensos, lidam com conceitos
abstratos ou contraintuitivos e estabelecem distinções entre facto e opinião
com base em pistas implícitas no conteúdo ou relacionadas com a fonte da
informação. Cerca de 49% dos alunos “leem apenas se for necessário”. No PISA de
2000 eram 36%. Um em cada 3 alunos “raramente ou nunca” lê livros. Também um em
cada 3 lê com mais frequência em papel que em formato digital. Cerca de 15%
afirma o inverso: lê mais em dispositivos digitais. Leem nos dois formatos, de
forma igual, cerca de 13% dos alunos inquiridos.
Ora, comparados aos alunos que raramente ou nunca leem
livros, os alunos que leem com mais frequência livros em papel pontuam
mais 49 pontos nos testes de leitura; os alunos que leem com mais frequência
livros em dispositivos digitais pontuaram apenas 15 pontos a mais. E os alunos
que leem livros em dispositivos digitais com mais frequência têm o mais das
vezes origem imigrante e condição socioeconómica desfavorecida.
Assim acontece em 20% dos alunos imigrantes em comparação com 14% dos não
imigrantes e a 16% dos desfavorecidos, por comparação a 13% dos alunos
favorecidos. O formato digital também é mais usado entre rapazes (15%) do que entre raparigas (14%).
Ler com prazer é importante para ajudar os alunos a
desenvolver competências de leitura. Por isso, a OCDE está preocupada com a
diminuição significativa do índice de prazer da leitura registada entre 2009 e
2018 em 1/3 dos 70 países e economias participantes no PISA, pois “essa
queda na valorização da leitura pode afetar as competências de leitura e a
equidade, visto que o prazer da leitura medeia a relação entre contexto
socioeconómico e desempenho em leitura”. Ora, contrariar esta tendência passa
por dar às crianças e jovens o exemplo do que é ser leitor. E isto implica,
segundo relatório em causa não apenas os professores como também os
pais nesta tarefa, pois uns e outros são “modelos importantes para os
hábitos de leitura”.
Na verdade, os alunos cujos pais gostam de ler têm um
índice mais alto de gosto de leitura. Um aumento de uma unidade no índice de
prazer de leitura dos pais está associado, em média, a um aumento de 0,05 no
prazer de leitura dos rapazes e 0,11 das raparigas. Em média, nos países da OCDE,
os alunos que falam com os pais sobre o que leem ou vão com eles à livraria ou à
biblioteca pelo menos uma vez por semana têm um índice de prazer de leitura
mais alto em 0,13 e 0,10, respetivamente. Efetivamente lê-se no relatório:
“Os pais desempenham um papel crucial na transmissão de atitudes positivas
em relação à leitura em casa desde a infância. As atividades do dia a dia que
os pais realizam estão altamente correlacionadas com a aprendizagem inicial e o
desenvolvimento socioemocional das crianças”.
Exemplos de tais atividades são ler para as crianças
quase todos os dias e fornecer-lhes livros. E, segundo as evidências do PISA, “os
pais que são observados a ler ou que endossam a visão de que a leitura é
prazerosa estão associados às atividades de leitura das crianças em casa, à
motivação e ao desempenho da leitura”.
***
Rogério
Araújo, num artículo “O prazer de ler um bom livro”, admite que muita gente tem
aversão à leitura. E aventa a hipótese de a razão estar em não
ter aprendido a decifrar bem as letrinhas e ter má relação com a leitura, pois
não compreende pelo pouco vocabulário que tem.
Entretanto,
considera “um prazer inigualável”
gostar de “abrir um livro, passar suas páginas uma a uma e ler, envolvendo-se
com a história, viajando pela imaginação, reportando-se às personagens,
interagindo com elas”. Para tanto, há inúmeros géneros de texto e para todos os
gostos: poesia, conto, crónica, novela, romance e, para relativamente poucos, o
ensaio. Também o mix de
géneros, um dentro do outro, tem o seu valor e os seus admiradores.
Hoje há todo
o tipo de livro que se imagina. E sobressaem as biografias, com exemplos de
vidas contados para nosso crescimento; as memórias, enquanto mostra de prazer
em contar o que se supõe os outros não saberem ou, para alguns, como ajuste de
contas sobre comportamentos desconhecidos; a autoajuda, a dar a mão à vida das
pessoas e que vende milhões de exemplares como se resolvessem os problemas dos
leitores; ficção ou romance, para quem deseja viajar, sonhar, dar asas à
imaginação; e a dissertação, que leva o leitor à reflexão de temas relevantes e
que servem de alerta para a vida. Uns gostam dum determinado género que outros
odeiam. O que realmente importa é ler e de verdade, não apenas passar os olhos
nas palavras, folhear páginas, sem se dar conta do poder que tem entre mãos,
mas voar como águia rumo ao infinito. Muitos livros infantis, mesmo dirigidos a
crianças que já devem saber ler, anestesiam os pequenos leitores com muitas figuras,
desenhos, imagens, mas quase nada de leitura, como se não se soubesse do gosto
que a criança tem ao descobrir pela leitura a história que as imagens sugerem. Serão
pretensamente coisas da idade, mas que, segundo Araújo, podem e devem ser um
pouco substituídas por “imagens” na forma escrita que “transcendem as letras e
levam à fantasia, ao fazer a mente criar situações como se estivesse na
história”.
Pegar um
livro de ficção com mais de 500 páginas para ler, sendo um best seller é
algo raro, mas muito saboroso e realizador, pois a vida não pode ser feita só
de realidade, a invenção do real é necessária. Para os antigos, a ciência do inútil,
a perda de tempo, o ócio, o poder ter nada para fazer é, como deseja André Rosa
(vd “Evasões”, de 30 de julho), “um bem enorme para arejar a cabeça, esquecendo
momentaneamente dos problemas” e é “um lazer bem interessante”.
Ler por ler
não interessa. Quando alguém quer armar-se em intelectual, culto ou amigo de
ler, não cumpre o papel primordial do livro, que é “envolver o leitor e fazê-lo
pensar e assimilar o que ali está escrito”. E, em tempos de modernidade, sendo
o papel substituído por equipamentos como, entre outros, o tablet, o
ipad, o smartphones, o livro não fica “ameaçado” de acabar como muitos
predizem, tende, antes, a ser ampliado e existir em formatos diferentes, mas de
grande valia, como os e-books. Bill Gates, dono da Microsoft, que programou
alta tecnologia no computador que mudou o rumo do mundo, disse que os seus
filhos terão computadores, mas antes terão livros, pois “sem livros, sem
leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever – inclusive a sua própria
história”.
Se alguém quer
ler uma obra em edição digital ao invés de impressa, que leia. O que não pode é
ficar sem ler nada por preguiça e deixar de crescer e usufruir do prazer e ler
um bom livro.
Ler por
obrigação ou para dar conta do recado leva à leitura em diagonal e leitura de
resumos.
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O Plano
Nacional de Leitura 2027 (PLN
2027) referia, em
setembro de 2020, que “ler é um prazer”, mas só para alguns, ou seja, por
exemplo para quem cresceu entre livros, conquistou o gosto pela leitura e
descobriu que o livro guarda dentro de si outros mundos, pessoas, lugares, tempos,
memórias e outras formas de ser, de estar, de sentir, de comunicar, de rir... –
descoberta intimamente ligada à preservação da capacidade de espanto que carateriza
a infância e alimenta a vontade de continuar a ler por prazer, não por
obrigação.
É como sucede
com outras atividades do nosso quotidiano, por exemplo comer ou fazer exercício
físico. Comer é prazer para quem desde cedo aprendeu a distinguir o sabor dos
alimentos; fazer exercício físico é prazer para quem cresceu a fazer
cambalhotas e pinos, a jogar à bola e a correr atrás dos amigos. Estas
atividades, à partida naturais, implicam uma decisão e uma prática. Na leitura,
tal decisão e prática dependem muito de quem nos rodeia: família, amigos, professores...
Se quem nos rodeia tem a capacidade de nos contaminar com leituras que nos
alimentem a curiosidade e estimulem a imaginação, de certeza que cresceremos
leitores.
A isto vem o
PNL Plano Nacional de Leitura fornecer coordenadas para a leitura se tornar um
prazer, sugerindo livros capazes de entusiasmar não só os já leitores, mas
também os que ainda não o são. É um mapa, útil em qualquer viagem, mas sobretudo
por territórios desconhecidos, que pode ser usado para orientar leitores de todas
as gerações e dar pistas para que famílias e professores saibam o que partilhar
com os leitores mais novos e até entre si.
Essa orientação
– troca de experiência de leitura entre professores, famílias, alunos, amigos –
é essencial para formar leitores e para, no meio dos milhares de livros publicados
em Portugal, distinguir os melhores. A leitura implica essa prática e essa
conquista.
2021.07.31 – Louro de Carvalho