quarta-feira, 7 de julho de 2021

Joe Berardo e o seu advogado estão a contas com a justiça

 

 

Recentemente, o ainda comendador e o seu advogado foram detidos para, como arguidos, prestarem declarações no âmbito da investigação judicial à CGD (Caixa Geral de Depósitos), decorrente do apurado em CPI (Caixa Geral de Depósitos). Berardo saiu em liberdade mediante prestação de caução de 5 milhões de euros e o advogado sob caução de um milhão.

Em 2019, após a polémica audição do comendador na CPI à CGD, criou-se novo capítulo da investigação judicial iniciada em 2016, que passou a pente fino créditos de vulto em situação de incumprimento, designadamente o financiamento a sociedades ligadas a Berardo, como a Fundação Berardo e a Metalgest, e que visava o apuramento de eventuais crimes de gestão danosa no banco público desde 2000. Aquelas duas empresas deviam mais de 300 milhões de euros à CGD no final de 2015.

Já na sequência de processo intentado por um anónimo (mais tarde identificado como Augusto Joaquim Vieira de Sousa) contra a Associação Coleção Berardo (doravante, designo-a por Associação), em outubro de 2013 – com o objetivo declarar nula a alteração dos seus estatutos, efetuada em 2008, e em que se reconhecia o penhor a favor dos três bancos de 75% dos títulos de participação da Associação Coleção Berardo (mais tarde os bancos ficaram com 100% dos títulos) –, os procuradores pediram ao Tribunal da Comarca de Lisboa a peça central com que Berardo fundamentou a golpada à CGD, Novo Banco (NB) e BCP na Associação, dona das obras de arte, e que terá permitido ao comendador blindar a coleção de arte, avaliada em mais de 300 milhões. Na verdade, segundo os estatutos, detendo o penhor dos títulos, os bancos tinham os direitos de voto na assembleia geral da instituição, podendo determinar o rumo das obras de arte, o que lhes foi subtraído em reunião da assembleia geral convocada sem o conhecimento dos bancos.

Em março de 2016, foi dada razão ao predito cidadão anónimo pelo tribunal. E foi com base nesta sentença que Joe Berardo fundamentou, em outubro de 2016, a anulação da alteração dos estatutos da Associação que os bancos credores tinham efetuado para repor os direitos que tinham sido acordados no contrato de penhor de 2008. Na prática, os bancos deixaram de ter poder na associação com base na decisão do tribunal.

A história desenrola-se em torno da Associação com pormenores insólitos, o que explica o imbróglio jurídico na execução dos bancos junto do comendador. O referido anónimo tinha como advogado Gonçalo Moreira Rato, primo de André Luiz Gomes, o advogado de Berardo. A Associação, (que tem o comendador como presidente vitalício)efetuou aumento de capital emitindo mais títulos, que diluíram a posição dos bancos credores. Tudo sucedeu à revelia e sem o conhecimento destes, o que levou João Vieira de Almeida (nomeado para o cargo em 2008 por indicação dos três bancos) a demitir-se de presidente da assembleia geral da associação.

Estes desenvolvimentos foram expostos na audição de Berardo pela CPI, tendo levado a deputada do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua a acusar o empresário duma golpada à banca. A isto, o comendador, assistido pelo seu advogado, opôs um verdadeiro e prolongado episódio de gozo aos detentores do órgão de soberania mais representativo do povo.

A audição seguiu para o Ministério Público (MP), tendo ficado para memória futura as gargalhas de Berardo quando a deputada do CDS Cecília Meireles lhe perguntou se os bancos ficariam com as obras de arte se exercessem o penhor dos títulos de participação da associação. O Parlamento ficou de enviar ao MP (Ministério Público) a transcrição do depoimento de Berardo na CPI. Essa transcrição esteve algum tempo sem ser enviada, embora os procuradores tivessem na sua posse uma versão “não revista”. Mais documentos seguiram para o MP, que pediu as atas de todas as audições. No total foram 36 audições, algumas ao mesmo interveniente (por exemplo a Vítor Constâncio), realizadas no âmbito do inquérito parlamentar à Caixa, o que deu mais de 130 horas de gravações transcritas. E isto sem contar com as respostas dadas por carta por alguns responsáveis, como Sócrates, e cujos depoimentos escritos ficaram prontos para seguir para o MP. Para lá das atas das audições, a comissão de inquérito enviou toda a documentação que requereu durante os trabalhos – um enorme volume de informação relativa à vida do banco público desde 2000. A dificuldade neste momento é sobretudo prática. O Parlamento quis garantir que a informação (muita dela sensível) não se perderia no caminho até ao MP e pretendia assegurar procedimentos adequados para proceder à transferência dos documentos. Também seguiu para o MP queixa do Parlamento pelo facto de Berardo ter recusado enviar os documentos da vida da Associação requeridos pelos grupos parlamentares na CPI à CGD.

Entretanto, em comunicado, o DCIAP revelava que o inquérito iniciado em 2016 investigava matérias relacionadas com financiamentos concedidos pela CGD e factos conexos, suscetíveis de configurar, no conjunto, entre outros, a prática de crimes de administração danosa, burla qualificada, fraude fiscal qualificada, branqueamento e, eventualmente, crimes cometidos no exercício de funções públicas. Dava, pois, a entender que também estava a avaliar a participação dos gestores do banco na concessão de crédito, mas até hoje não se conhece nenhuma ação judicial contra ex-gestores da CGD por causa desta investigação.

Entrementes, os três bancos a quem as empresas de Berardo devem dinheiro não ficaram parados e avançaram para os tribunais no sentido de recuperarem os cerca de mil milhões.

Na verdade, nenhum dos inquiridos na CPI soube explicar se a CGD chegará às obras de arte através do contrato de penhor negociado há 11 anos. Eduardo Paz Ferreira, que presidiu à comissão de auditoria da CGD, desejou boa sorte ao banco no que denominou de “operação Kamikaze” para executar as garantias dadas pelo comendador.

A ação de execução movida pelos três bancos conhecera um desenvolvimento relevante com a execução da penhora dos títulos da Associação, que alegava, no período de contestação, que os bancos, como sugeriu Berardo no Parlamento, têm a minoria das unidades de participação e pouco podem fazer.

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Berardo, sempre acolitado pelo seu advogado, usou 5 truques para escapar à banca: a golpada na associação; a transferência do apartamento em Lisboa para sociedade imobiliária; a garagem na Madeira; o aumento de capital na Associação; e a tentativa de vender obras em Londres.

O primeiro truque foi a já descrita “golpada” na Associação Coleção Berardo. Tratava-se de proteger os seus interesses em relação à CGD, BCP e NB, que tentam executar uma dívida de quase mil milhões de euros.

Joe Berardo vive num T5 na Avenida Infante Santo, em Lisboa – um imóvel avaliado em 2,5 milhões, que foi um dos ativos do empresário que a CGD tentou penhorar por causa das dívidas. Mas o banco público esbarrou no facto de o apartamento não estar no nome de Berardo, mas da Atram – Sociedade Imobiliária, empresa de que o madeirense era o presidente do conselho de administração (foi substituído pela esposa). O empresário comprou o apartamento em 1999, mas vendeu-o em 2008 (altura em que já tinha contraído dívidas à banca) à Atram, deixando o imóvel fora do seu património pessoal. Ainda assim, em junho de 2019, o tribunal determinou o arresto de dois apartamentos em Lisboa, o da Avenida Infante Santo e outro na Lapa, a pedido da CGD, com recurso a figura jurídica pouco utilizada pelos tribunais – desconsideração da personalidade jurídica coletiva – e que poderá permitir o arresto doutros bens do empresário.

Em nome de Berardo a Caixa só terá encontrado uma garagem localizada na Madeira, donde o empresário é originário. Porém, quando foi ao Parlamento, o madeirense explicou que deu ações da Quinta da Bacalhoa e da Empresa Madeirense de Tabacos ao BCP, prédios no Funchal ao BES (hoje Novo Banco) e que o banco ficou com 40% da Associação.

A alteração dos estatutos para afastar banca das obras faz parte da golpada de Berardo que visou afastar a banca da coleção de obras de arte e cujo esquema foi exposto na audição do empresário madeirense na comissão de inquérito à Caixa. E, além da questão dos estatutos, houve outra operação que enfraqueceu a banca na Associação: foi realizado um aumento de capital através da emissão de mais títulos o que terá diluído a posição dos bancos credores. Aparentemente, tudo foi feito à revelia e sem o conhecimento dos bancos, o que levou o advogado João Vieira de Almeida a demitir-se de presidente da assembleia geral da associação, como se disse já.

Já em 2018, Berardo tentou vender os 16 quadros mais valiosos da sua coleção em Londres. Se o negócio tivesse sido concretizado, a Associação teria arrecadado mais de 200 milhões. Foi o Ministro da Cultura de então quem travou a saída das obras de arte do país. Esta operação poderia representar uma forma de tentativa de dissipar património da associação, tendo sido um dos motivos que levaram os bancos credores a pedirem o arresto da coleção. Primeiro, puseram uma providência cautelar e, depois, no final do ano passado, veio a ação principal.

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Joe Berardo chegou a ser uma das figuras públicas mais prestigiadas do país e foi instrumental em lutas pelo poder. Coleciona derrotas desde que passou pela CPI à gestão da CGD, em 2019. Foi detido hoje pela PJ.

A frase de Joe Berardo “Pessoalmente, não tenho dívidas” na CPI em 2019 foi uma das marcas duma audição que chocou o país em medida idêntica à recente passagem de Nuno Vasconcellos pelo Parlamento, quando disse que “quem tem de pagar é a Ongoing” (pois não tem nada).

Foram ambos “patrocinados” com avultados empréstimos para comprar ações e participar em disputas acionistas, Berardo no BCP e na Portugal Telecom, Vasconcellos só nesta última. Ambos sofreram pesadas perdas com a desvalorização brutal das ações deixando um buraco nas instituições financeiras credoras, mas arranjaram forma de evitar que a sua fortuna respondesse pelas dívidas. Apesar de tudo, a história de vida do empresário de arte é diferente,

Berardo nasceu a 4 de julho de 1944 no Funchal e emigrou para a África do Sul aos 19 anos, onde fez fortuna com negócios na extração mineira e de José passou a Joe. E aí se cruzou com o empresário Horácio Roque, de quem foi sócio na hotelaria na Madeira. O regresso a Portugal ocorreu na segunda metade dos anos 80, já como Comendador da Ordem do Infante D. Henrique, atribuída por Ramalho Eanes. Destaca-se como investidor na bolsa de Lisboa, então recheada de empresas, ganhando uma aura que o levava a ser seguido pelos participantes mais pequenos do mercado. A sua imagem pública ascendia. Ao sucesso nos investimentos bolsistas somava-se o prestígio como colecionador de arte. Em 2007, nascia o Museu Coleção Berardo, no Centro Cultural de Belém, com um acervo de 862 obras, uma das maiores coleções de arte moderna e contemporânea da Europa. Lançou uma OPA sobre a SAD do Benfica, sem sucesso e entrou na guerra pelo controlo do maior banco privado português, tendo protagonizado uma campanha da American Express, que tinha, na altura, uma parceria com o BCP.

Berardo desempenhou um papel central na luta entre Paulo Teixeira Pinto e Jardim Gonçalves pelo poder no BCP, entrando na disputa ao lado do primeiro, munido dum empréstimo de 350 milhões pela CGD, a troco das ações do BCP, que lhe permitiu reforçar a posição no capital do banco. Teixeira Pinto cedeu o lugar de CEO a Carlos Santos Ferreira, que estava na Caixa quando foi concedido o financiamento, mas a crise ocasionou enorme desvalorização das ações, o que fez rombo no banco do Estado.

Foi esta operação que o pôs nos holofotes, depois de a auditoria forense revelar a enorme dívida ao banco público, levando-o a ser chamado à CPI. Ante os deputados, com o advogado de longa data, André Luiz Gomes, ao lado, recusou ter participado num “assalto ao BCP” e disse que o investimento no banco foi “o maior desastre” da sua vida. Disse que o seu apartamento em Lisboa está em nome da Fundação Berardo. Riu-se face à possibilidade de deixar de mandar na associação, depois de parte das quotas terem sido dadas como garantia.

Talvez Berardo olhe agora para aquela audição como um desastre mais. Deteriorou a sua imagem pública e serviu para atiçar a ação dos credores e a atenção das autoridades. A prestação no Parlamento levou à abertura de processo que podia levar à retirada das comendas – em 2004 tinha recebido também a Grã-Cruz da Ordem do Infante, atribuída por Jorge Sampaio – mas acabou por levar apenas uma repreensão. Pode vir a perdê-las se for condenado.

NB, BCP e CGD – a que deve 962 mil milhões – uniram esforços para conseguirem o arresto das obras de arte. Se houver sucesso, o empresário terá de entregar o espólio. As primeiras decisões judiciais vão nesse sentido. Em dezembro de 2019, perdeu os recursos contra o arresto de dois prédios em Lisboa e uma quinta na Madeira, pedido pela CGD. Há dois meses, deu entrada uma ação de execução do NB contra a Metalgest e a IPSS. Já este ano, a Fundação Berardo perdeu o estatuto de utilidade pública, depois de a Inspeção-Geral de Finanças ter identificado irregularidades na gestão. A auditoria concluiu que a fundação prosseguiu fins distintos dos estatutários e anotou forte degradação das contas.

Além da coleção, Berardo tem o negócio dos vinhos, onde entrou em 1998, com a compra do controlo da Bacalhoa Vinhos e que detém as marcas Aliança e Quinta do Carmo e o Buddha Eden no Bombarral. Chegou a ter 32% da Sogrape, mas vendeu em 2012 à família Guedes, depois de anos de relação tensa entre os acionistas.

Berardo continuou a dar expressão à sua paixão pela arte com a abertura do Museu Berardo Estremoz, dedicado ao Azulejo e do Berardo – Museu Arte Deco (B-MAD) em Lisboa.

Agora com e como ele, há mais 10 arguidos a contas com a justiça. E penso que, não se podem pôr os ovos da culpa todos no mesmo cesto. Menciona-se Sócrates e seus confrades esquecendo Matos Correia, sob quem, já em fase de incumprimento, Berardo conseguiu um empréstimo de 3,6 milhões.

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O incumprimento das leis e dos compromissos, as manobras de bastidores, a arrogância e a subestimação dos outros não auguram nada de bom. É a ironia do destino a abater-se sobre os que se julgam sempre ACIMA DOS OUTROS. Que dirá agora o homem que se descreveu, em entrevista ao “Jornal de Negócios” em 2007, como o “portuguese dream”?

2021.07.07 – Louro de Carvalho

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