Recentemente, o ainda comendador e o seu
advogado foram detidos para, como arguidos, prestarem declarações no âmbito da
investigação judicial à CGD (Caixa Geral de Depósitos), decorrente do apurado em CPI
(Caixa Geral de Depósitos). Berardo saiu em liberdade mediante prestação de caução de 5 milhões de
euros e o advogado sob caução de um milhão.
Em 2019, após a polémica audição do comendador na CPI
à CGD, criou-se novo capítulo da investigação judicial iniciada
em 2016, que passou a pente fino créditos de vulto em situação de
incumprimento, designadamente o financiamento a sociedades ligadas a Berardo,
como a Fundação Berardo e a Metalgest, e que
visava o apuramento de eventuais crimes de gestão danosa no banco público desde
2000. Aquelas duas
empresas deviam mais de 300 milhões de euros à CGD no final de 2015.
Já na sequência de processo intentado por um anónimo (mais tarde
identificado como Augusto Joaquim Vieira de Sousa) contra a Associação Coleção Berardo (doravante,
designo-a por Associação), em outubro
de 2013 – com o objetivo declarar nula a alteração dos seus estatutos, efetuada
em 2008, e em que se reconhecia o penhor a favor dos três bancos de 75% dos
títulos de participação da Associação Coleção Berardo (mais tarde
os bancos ficaram com 100% dos títulos) –, os procuradores pediram ao Tribunal da Comarca de Lisboa a peça
central com que Berardo fundamentou a golpada à CGD, Novo Banco (NB) e BCP na Associação, dona das obras de arte, e que terá permitido ao comendador blindar a
coleção de arte,
avaliada em mais de 300 milhões. Na verdade,
segundo os estatutos, detendo o penhor dos títulos, os bancos tinham os
direitos de voto na assembleia geral da instituição, podendo determinar o rumo
das obras de arte, o que lhes foi subtraído em reunião da assembleia geral
convocada sem o conhecimento dos bancos.
Em março de 2016, foi dada razão ao predito cidadão anónimo pelo tribunal.
E foi com base nesta sentença que Joe Berardo fundamentou, em outubro de 2016,
a anulação da alteração dos estatutos da Associação que os bancos credores
tinham efetuado para repor os direitos que tinham sido acordados no contrato de
penhor de 2008. Na prática, os bancos deixaram de ter poder na
associação com base na decisão do tribunal.
A história desenrola-se em torno da Associação com
pormenores insólitos, o que
explica o imbróglio jurídico na execução dos bancos junto do comendador. O
referido anónimo tinha como advogado Gonçalo Moreira Rato, primo de André Luiz
Gomes, o advogado de Berardo. A Associação, (que tem o comendador como
presidente vitalício), efetuou aumento de capital emitindo mais títulos, que diluíram a
posição dos bancos credores. Tudo sucedeu à revelia e sem o conhecimento
destes, o que levou João Vieira de Almeida (nomeado para o cargo em 2008 por
indicação dos três bancos) a demitir-se
de presidente da assembleia geral da associação.
Estes desenvolvimentos foram expostos na audição de Berardo pela CPI, tendo
levado a deputada do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua a acusar o empresário duma golpada à banca. A isto, o
comendador, assistido pelo seu advogado, opôs um verdadeiro e prolongado
episódio de gozo aos detentores do órgão de soberania mais representativo do
povo.
A audição seguiu para o Ministério Público (MP), tendo ficado para memória futura as gargalhas de Berardo quando a
deputada do CDS Cecília Meireles lhe perguntou se os bancos ficariam com as
obras de arte se exercessem o penhor dos títulos de participação da associação.
O Parlamento ficou
de enviar ao MP (Ministério Público) a transcrição do depoimento de Berardo
na CPI. Essa transcrição esteve algum tempo sem ser enviada, embora os
procuradores tivessem na sua posse uma versão “não revista”. Mais documentos
seguiram para o MP, que pediu as atas de todas as audições. No total foram 36
audições, algumas ao mesmo interveniente (por exemplo a Vítor
Constâncio),
realizadas no âmbito do inquérito parlamentar à Caixa, o que deu mais de 130
horas de gravações transcritas. E isto sem contar com as respostas dadas
por carta por alguns responsáveis, como Sócrates, e cujos depoimentos escritos
ficaram prontos para seguir para o MP. Para lá das atas das audições, a
comissão de inquérito enviou toda a documentação que requereu durante os
trabalhos – um enorme volume de informação relativa à vida do banco público
desde 2000. A dificuldade neste momento é sobretudo
prática. O Parlamento quis garantir que a informação (muita
dela sensível) não
se perderia no caminho até ao MP e pretendia assegurar procedimentos adequados
para proceder à transferência dos documentos. Também seguiu para o MP queixa do
Parlamento pelo facto de Berardo ter recusado enviar os documentos da vida da
Associação requeridos pelos grupos parlamentares na CPI à CGD.
Entretanto, em comunicado, o DCIAP revelava que o inquérito iniciado em
2016 investigava matérias relacionadas com financiamentos concedidos pela CGD e
factos conexos, suscetíveis de configurar, no conjunto, entre outros, a prática
de crimes de administração danosa, burla qualificada, fraude fiscal
qualificada, branqueamento e, eventualmente, crimes cometidos no exercício
de funções públicas. Dava, pois, a entender que também estava a avaliar
a participação dos gestores do banco na concessão de crédito, mas até hoje não
se conhece nenhuma ação judicial contra ex-gestores da CGD por causa desta
investigação.
Entrementes, os três bancos a quem as empresas de Berardo devem dinheiro
não ficaram parados e avançaram para os tribunais no sentido de recuperarem os
cerca de mil milhões.
Na
verdade, nenhum dos inquiridos na CPI soube explicar se a CGD chegará às obras
de arte através do contrato de penhor negociado há 11 anos. Eduardo Paz
Ferreira, que presidiu à comissão de auditoria da CGD, desejou boa sorte ao
banco no que denominou de “operação Kamikaze” para executar as garantias dadas
pelo comendador.
A ação
de execução movida pelos três bancos conhecera um desenvolvimento relevante com
a execução da penhora dos títulos da Associação, que alegava, no período de
contestação, que os bancos, como sugeriu Berardo no Parlamento, têm a minoria
das unidades de participação e pouco podem fazer.
***
Berardo, sempre acolitado pelo seu advogado,
usou 5 truques para escapar à banca: a golpada na associação; a transferência do apartamento em Lisboa para
sociedade imobiliária; a garagem na Madeira; o aumento de capital na
Associação; e a tentativa de vender obras em Londres.
O primeiro truque foi a já descrita “golpada” na Associação Coleção Berardo.
Tratava-se de proteger os seus interesses em relação à CGD, BCP e NB, que tentam
executar uma dívida de quase mil milhões de euros.
Joe Berardo vive num T5 na Avenida Infante Santo,
em Lisboa – um imóvel avaliado em 2,5 milhões, que foi um dos ativos do
empresário que a CGD tentou penhorar por causa das dívidas. Mas o banco público
esbarrou no facto de o apartamento não estar no nome de Berardo,
mas da Atram – Sociedade Imobiliária, empresa de que o madeirense era o
presidente do conselho de administração (foi substituído pela esposa). O empresário comprou o apartamento em 1999, mas
vendeu-o em 2008 (altura em que já tinha contraído dívidas à banca) à Atram, deixando o imóvel fora do seu património
pessoal. Ainda assim, em junho de 2019, o tribunal determinou o arresto de dois
apartamentos em Lisboa, o da Avenida Infante Santo e outro na Lapa, a pedido da
CGD, com recurso a figura jurídica pouco utilizada pelos tribunais –
desconsideração da personalidade jurídica coletiva – e que poderá permitir o
arresto doutros bens do empresário.
Em nome de Berardo a Caixa só terá encontrado uma
garagem localizada na Madeira, donde o empresário é originário. Porém,
quando foi ao Parlamento, o madeirense explicou que deu ações da Quinta da Bacalhoa
e da Empresa Madeirense de Tabacos ao BCP, prédios no Funchal ao BES (hoje Novo
Banco) e que o banco ficou com 40% da
Associação.
A alteração dos estatutos para
afastar banca das obras faz parte da golpada de Berardo que visou
afastar a banca da coleção de obras de arte e cujo esquema foi exposto na
audição do empresário madeirense na comissão de inquérito à Caixa. E, além da
questão dos estatutos, houve outra operação que enfraqueceu a banca na
Associação: foi realizado um aumento de capital através da emissão de mais títulos o que terá diluído a
posição dos bancos credores. Aparentemente, tudo foi feito à
revelia e sem o conhecimento dos bancos, o que levou o advogado João Vieira de
Almeida a demitir-se de presidente da assembleia geral da associação, como se
disse já.
Já em 2018, Berardo tentou vender os 16 quadros mais
valiosos da sua coleção em Londres. Se o negócio tivesse sido
concretizado, a Associação teria arrecadado mais de 200 milhões. Foi o Ministro
da Cultura de então quem travou a saída das obras de arte do país. Esta
operação poderia representar uma forma de tentativa de
dissipar património da associação, tendo sido um dos motivos que levaram
os bancos credores a pedirem o arresto da coleção. Primeiro, puseram uma
providência cautelar e, depois, no final do ano passado, veio a ação principal.
***
Joe Berardo chegou a ser uma das figuras públicas mais
prestigiadas do país e foi instrumental em lutas pelo poder. Coleciona derrotas
desde que passou pela CPI à gestão da CGD, em 2019. Foi detido hoje pela PJ.
A frase de Joe Berardo “Pessoalmente, não tenho dívidas” na CPI em 2019 foi
uma das marcas duma audição que chocou o país em medida idêntica à
recente passagem de Nuno Vasconcellos pelo Parlamento, quando disse que
“quem tem de pagar é a Ongoing” (pois não tem nada).
Foram ambos “patrocinados” com avultados empréstimos para comprar ações e
participar em disputas acionistas, Berardo no BCP e na Portugal Telecom,
Vasconcellos só nesta última. Ambos sofreram pesadas perdas com a
desvalorização brutal das ações deixando um buraco nas instituições financeiras
credoras, mas arranjaram forma de evitar que a sua fortuna respondesse pelas
dívidas. Apesar de tudo, a história de vida do empresário de arte é diferente,
Berardo nasceu a 4 de julho de 1944 no Funchal e emigrou para a África do
Sul aos 19 anos, onde fez fortuna com negócios na
extração mineira e de José passou a Joe. E aí se cruzou com o
empresário Horácio Roque, de quem foi sócio na hotelaria na Madeira. O
regresso a Portugal ocorreu na segunda metade dos anos 80, já como Comendador da Ordem do Infante D. Henrique, atribuída por
Ramalho Eanes. Destaca-se como investidor na bolsa de Lisboa,
então recheada de empresas, ganhando uma aura que o levava a ser seguido pelos
participantes mais pequenos do mercado. A sua imagem pública ascendia.
Ao sucesso nos investimentos bolsistas somava-se o prestígio como colecionador
de arte. Em 2007, nascia o Museu Coleção Berardo,
no Centro Cultural de Belém, com um acervo de 862 obras, uma das maiores
coleções de arte moderna e contemporânea da Europa. Lançou uma OPA sobre a SAD do Benfica, sem sucesso e entrou na guerra
pelo controlo do maior banco privado português, tendo protagonizado
uma campanha da American Express, que tinha, na altura, uma parceria com o
BCP.
Berardo desempenhou um papel central na luta entre
Paulo Teixeira Pinto e Jardim Gonçalves pelo poder no BCP, entrando
na disputa ao lado do primeiro, munido dum empréstimo de 350 milhões pela CGD, a
troco das ações do BCP, que lhe permitiu reforçar a posição no capital do
banco. Teixeira Pinto cedeu o lugar de CEO a Carlos Santos Ferreira, que estava
na Caixa quando foi concedido o financiamento, mas a crise
ocasionou enorme desvalorização das ações, o que fez rombo no banco do Estado.
Foi esta operação que o pôs nos holofotes, depois de a auditoria forense
revelar a enorme dívida ao banco público, levando-o a ser chamado à CPI. Ante
os deputados, com o advogado de longa data, André Luiz Gomes, ao lado, recusou ter participado num “assalto ao BCP” e disse que o
investimento no banco foi “o maior desastre” da sua vida. Disse que o
seu apartamento em Lisboa está em nome da Fundação Berardo. Riu-se face à possibilidade
de deixar de mandar na associação, depois de parte das quotas terem sido dadas
como garantia.
Talvez Berardo olhe agora para aquela audição como um desastre mais. Deteriorou a sua imagem pública e serviu para atiçar a ação dos credores
e a atenção das autoridades. A prestação no Parlamento levou à
abertura de processo que podia levar à retirada das comendas – em 2004
tinha recebido também a Grã-Cruz da Ordem do Infante, atribuída por Jorge
Sampaio – mas acabou por levar apenas uma repreensão. Pode vir a perdê-las
se for condenado.
NB, BCP e CGD – a que deve 962 mil milhões – uniram esforços para
conseguirem o arresto das obras de arte. Se houver sucesso, o empresário
terá de entregar o espólio. As primeiras decisões judiciais vão nesse
sentido. Em dezembro de 2019, perdeu os recursos contra o
arresto de dois prédios em Lisboa e uma quinta na Madeira, pedido pela
CGD. Há dois meses, deu entrada uma ação de execução do NB contra a
Metalgest e a IPSS. Já este ano, a Fundação Berardo perdeu o
estatuto de utilidade pública, depois de a Inspeção-Geral de Finanças
ter identificado irregularidades na gestão. A auditoria concluiu que a fundação
prosseguiu fins distintos dos estatutários e anotou forte degradação das contas.
Além da coleção, Berardo tem o negócio dos vinhos, onde entrou
em 1998, com a compra do controlo da Bacalhoa Vinhos e que detém as marcas
Aliança e Quinta do Carmo e o Buddha Eden no Bombarral. Chegou a ter 32% da
Sogrape, mas vendeu em 2012 à família Guedes, depois de anos de relação tensa
entre os acionistas.
Berardo continuou a
dar expressão à sua paixão pela arte com a abertura do Museu Berardo
Estremoz, dedicado ao Azulejo e do Berardo – Museu Arte Deco (B-MAD) em Lisboa.
Agora com e como ele, há mais 10 arguidos a contas com a justiça. E penso
que, não se podem pôr os ovos da culpa todos no mesmo cesto. Menciona-se
Sócrates e seus confrades esquecendo Matos Correia, sob quem, já em fase de
incumprimento, Berardo conseguiu um empréstimo de 3,6 milhões.
***
O incumprimento das leis e dos compromissos, as manobras de bastidores, a
arrogância e a subestimação dos outros não auguram nada de bom. É a ironia do
destino a abater-se sobre os que se julgam sempre ACIMA DOS OUTROS. Que dirá
agora o homem que se descreveu, em entrevista ao “Jornal de Negócios” em 2007, como o “portuguese dream”?
2021.07.07 – Louro de Carvalho
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