Neste
dia 30 de julho, celebra-se o Dia Mundial
Contra o Tráfico Humano, um tema no coração do Papa Francisco e que remonta
ao ano de 2013, em que se assinalou pela primeira vez, uma vez que as Nações Unidas
o estabeleceram com o objetivo de aumentar a consciência sobre o tráfico e
ajudar as vítimas e o público em geral a informar-se sobre os seus direitos.
Da
magnitude do tema – um crime atroz que afeta todas as regiões do
mundo – falam os
números e os casos hediondos que vão acontecendo no mundo, ora clandestinamente,
ora à vista de todos, sob a assustadora indiferença de tantas entidades que
podiam e deviam intervir. Cerca de 72% das vítimas de tráfico humano
detetadas são mulheres e meninas e, de acordo com o Departamento das Nações
Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC),
a percentagem de crianças vítimas deste crime duplicou entre 2004 e
2016. A maior parte das vítimas é traficada para a exploração sexual,
seguindo-se o tráfico de pessoas para trabalho forçado, o recrutamento de
menores para servirem como crianças-soldados e outras formas de exploração e
abuso.
Udekwe Kennedy Obinna, sobrevivente, revela:
“Quem morre é atirado
dos camiões, sem funeral. Continuámos a viagem. Após uma semana e dois dias no
deserto, chegámos a uma cidade chamada Sabha, na Líbia, cidade conhecida pelo
tráfico de seres humanos e pelos raptos.”.
As vítimas
acabam frequentemente em bordéis ou a trabalhar como empregadas domésticas ou
trabalhadores explorados. Algumas pessoas são comercializadas em todo o mundo.
Josiah Emerole, Diretor da NAPTIP, relata:
“As pessoas são
recrutadas de vários locais e transportadas para locais onde são obrigadas a
acreditar que estão em dívida para com alguém. Fizeram-nas assinar um
compromisso de cerca de 70 mil dólares, 80 mil euros – e tudo isso para dizer
‘foi a quantia de dinheiro que utilizámos para vos transportar e até pagarem
tudo não podem ser livres’.”.
Os números
exatos dos traficados todos os anos não são claros, mas a Europa continua a ser
um dos destinos principais e muitas das vítimas acabam no comércio sexual.
Os
traficantes e os grupos terroristas exploram pessoas vulneráveis, confinadas à
guerra, que vivem na pobreza e sofrem de discriminação. Nádia Murad foi a
primeira vítima de tráfico humano a ser Embaixadora da Boa Vontade das Nações
Unidas e recebeu o Prémio Nobel da Paz em 2018 por catalisar a ação
internacional para acabar com o tráfico e a violência sexual em conflitos
armados.
Os
conflitos, as deslocações forçadas, as alterações climáticas, os desastres
naturais e a pobreza acentuam a vulnerabilidade e o desespero das vítimas e
constituem espaço para a perpetuação do crime atroz que é o tráfico humano. Os
migrantes estão, pois, no centro das atenções. Milhares de pessoas perderam a
vida nos mares, nos desertos, em centros de detenção nas mãos de traficantes
que exercem este monstruoso e impiedoso negócio. Assim, um dia de
indiferença ao abuso e à exploração corresponde a um dia que custa a vida a
muitas vítimas. São várias as empresas que beneficiam da miséria destas
pessoas, desde o setor da construção até ao da produção de alimentos ou bens de
consumo.
A cooperação
internacional, traduzida na ação multilateral, deu azo a progressos, sobretudo
com instrumentos como a “Convenção de
Palermo” com o “Protocolo para
Prevenir, Reprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente de Mulheres e
Crianças” e levou a um aumento das detenções de traficantes de pessoas nos
últimos anos, sendo que, para os ativistas, muito mais poderia ter sido feito. Na
maioria dos países há legislação para sancionar este crime e já houve
condenações por tráfico humano. Porém, ainda há muito por fazer para levar à
justiça as redes transnacionais de tráfico. Urge assegurar a deteção e
identificação das vítimas e possibilitar a sua proteção e o acesso aos serviços
de que precisam.
Os Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS) incluem metas claras para prevenir o abuso e a exploração, eliminar
todas as formas de violência contra mulheres e meninas e erradicar o trabalho forçado
e a mão-de-obra infantil, o que é pouco se não houver a reafirmação e reforço do compromisso e empenho em impedir os
criminosos de explorarem pessoas vulneráveis para benefício próprio e em ajudar
as vítimas a reconstruir as suas vidas. Efetivamente os lucros dos traficantes
são estimados em 29,4 mil milhões de euros por ano, em todo o mundo.
É de
relevar que um levantamento da ONU alertou para os impactos duma “pandemia de
tráfico humano”, tendo a pesquisa identificado um aumento no número de vítimas
de tráfico humano durante a pandemia de covid-19, especialmente na exploração
de crianças.
***
Como refere
o “Vatican News”, a “Save
the Children” publicou, em vésperas deste dia 30 de julho, o relatório “Little Invisible Slaves” (pequenos escravos invisíveis), sobre a situação do Tráfico de
Seres Humanos, em que afirma que com a pandemia as vítimas são menos visíveis e
mais difíceis de serem rastreadas, pois as redes criminosas deslocaram o seu
trabalho para dentro das casas e sobretudo online. E muitas pessoas continuam a
estar nas mãos de traficantes sem escrúpulos, exploradas em trabalho humilhante
ou exploradas sexualmente, sem qualquer esperança de resgate ou salvação.
Antes da pandemia havia 50.000
vítimas confirmadas de tráfico humano em 2018 em todo o mundo, número que terá
aumentado com a crise da covid-19 que levou mais 142 milhões de crianças e
adolescentes para a pobreza. Na verdade, nas fases agudas da pandemia, as
medidas de isolamento deixaram 1,6 bilhões de meninos e meninas fora da escola,
expostos a forte aumento do abandono escolar e a maior risco de tráfico e
exploração no trabalho ou sexual, a casamentos forçados ou a gravidez precoce,
particularmente nos países de baixos rendimentos. Estima-se que só a exploração
do trabalho poderá acabar com a vida de 8,9 milhões de crianças e adolescentes
até ao final de 2022, mais da metade deles com menos de 11 anos de idade.
O 11.° Relatório do “Save the Children”, focado em crianças
vítimas do tráfico, evidenciou que a crise da covid-19 as tornou menos visíveis
e mais difíceis de rastreio à medida que as redes criminosas dirigiram a sua
ação para dentro das casas e online. Aumentou o número de crianças vítimas da
prostituição, do contrabando de drogas ou do trabalho forçado. A combinação de
pobreza, fechamento de escolas e mais tempo online aumentaram o risco.
O relatório constatou que na Europa
Ocidental e do Sul houve o maior número confirmado de casos de tráfico de
crianças em todo o mundo, com 4.168 crianças vítimas. Mais de uma em cada 3
vítimas confirmadas do tráfico (34%) é criança, a
maioria meninas – percentagem que mais do que triplicou nos últimos 15 anos. Em
algumas regiões de baixos rendimentos, cerca da metade das vítimas são
crianças. As meninas são principalmente traficadas para exploração sexual (72%), enquanto os meninos são em sua maioria traficados
para trabalhar (66%).
O Relatório admite que os números sejam
apenas a ponta do iceberg, pois mostram apenas casos registados, sendo que o
mercado do tráfico pode ter mudando, mas não mostra sinais de diminuição.
Segundo a Europol, a tecnologia ampliou a capacidade das redes
criminosas, tanto nos países de origem como nos de trânsito e destino, já que,
pela utilização de comunicações criptografadas, evitam a interação direta com
as vítimas recrutadas e o contacto com a polícia e obtêm o acesso a aplicativos
baseados em GPS. Segundo a “Save the
Children”, que dirige vários programas para e com as vítimas do tráfico na
Itália, até agora não tem havido suficiente comprometimento dos governos para
monitorar, prevenir e combater o tráfico de crianças. Por conseguinte e ao
invés do que se verifica, é vital fortalecer a colaboração entre todos os
envolvidos, das forças policiais aos provedores de serviços online e ONGs, e
responder adequadamente ao crescimento da exploração online.
***
A rede
‘Talitha Kum’, que inclui mais de 3 000
religiosas católicas e leigas, lançou a campanha ‘#CareAgainstTrafficking’ para
assinalar este Dia Mundial contra o Tráfico de Pessoas. E as responsáveis
sustentam:
“Declaramos
que o cuidado e a prevenção são a força mais poderosa para a mudança e
unimo-nos aos sobreviventes para promover o cuidado contra o tráfico humano”.
Este
organismo internacional de Institutos de Vida Consagrada indica que a campanha
“Cuidado contra o tráfico”, divulgada online
e cujas prioridades vão da educação e das oportunidades de trabalho à assistência
médica e à justiça, visa chamar a atenção para a necessidade de intervir em
todas as fases, prestando assistência às pessoas em risco, às vítimas e às
sobreviventes, e que esta abordagem exige um compromisso de várias instituições
e a participação da sociedade, para “enfrentar as causas sistémicas do
tráfico”.
As religiosas,
que se reconhecem “alimentadas pela
força da espiritualidade”, afirmam terem vindo a ajudar “dezenas
de milhares de pessoas a escapar da violência do tráfico e encontrar um caminho
para reconstruir vidas de liberdade e dignidade”. E denunciam
situações de falsas propostas de emprego ou de escolarização, que levam
crianças, jovens e mulheres a cair em redes de prostituição ou escravatura
doméstica.
A irmã
Gabriella Bottani, coordenadora internacional da ‘Talitha Kum’, sublinha que o Papa tem mediado uma mudança da
“economia do tráfico em economia do cuidado”. E assinala:
“Apoiamos
sobreviventes, mesmo dentro da realidade da crise da pandemia, oferecendo-lhes
ajuda material concreta, como pagar o aluguer ou comida. Cuidar significa
promover uma educação de qualidade, para ser competitivo no mercado de trabalho.”.
A ação
#CareAgainstTrafficking, que é parte da ação de incidência política da ‘Talitha Kum’, é realizada no contexto da
iniciativa ‘Sisters Advocating Globally’
da UISG (União Internacional
das Superioras Gerais)
com o objetivo de “levantar a voz das religiosas católicas dentro da comunidade
de desenvolvimento global”.
Para a Irmã Gabriella, a campanha nas
redes sociais consiste em dar voz e visibilidade a “gestos de cuidados para
combater o tráfico hoje no nosso mundo globalizado, mas também neste tempo de
pandemia, não deixando que a crise seja a última palavra, mas o cuidar: cuidar
da dignidade humana, cuidar da liberdade dos nossos irmãos e irmãs, cuidar de
gestos quotidianos para que todos tenham vida em abundância”.
E a
Cáritas Europa, “mobilizada pela dignidade das pessoas”, assinala a data, recordando
que “trabalha há anos contra todas as formas de exploração e tráfico de seres
humanos” e vincando:
“Denunciamos
políticas que aumentam a vulnerabilidade das pessoas e o risco de serem
traficadas. Promovemos uma cultura de respeito por meio da consciencialização
do público em geral e da preparação de quem está em contato com potenciais
vítimas. (…) O tráfico de seres humanos continua a ser um grave problema em
todo o mundo, assumindo a forma de exploração sexual, escravidão doméstica,
trabalhos forçados, mendicância forçada, coerção para cometer crimes,
casamentos forçados e até tráfico de órgãos.”.
***
Por seu turno, o Papa Francisco pretende claramente a
transformação da economia do tráfico numa economia do cuidado.
Com um tuíte, Francisco recorda o Dia Mundial Contra o Tráfico Humano,
convocado pelas Nações Unidas em 2013 e, desde então, celebrado todos os dias
30 de julho, com a finalidade de combater a exploração das pessoas contra um
fenómeno que praticamente atinge países de todos os continentes, entre nações que
estão envolvidas na origem, trânsito e destino das vítimas.
Além
do 30 de julho, a Igreja Católica dedicada outra jornada anual a este fenómeno:
o dia 8 de fevereiro, o da memória litúrgica de Santa Josefina Bakhita, a
sudanesa que foi vendida como escrava. A 1.ª
edição do Dia Mundial de Oração e
Reflexão Contra o Tráfico de Pessoas foi assinalada em 2015, a pedido do
Papa, que encarregou, no ano anterior, a UISG/USG (União
Internacional das Superioras e União dos Superiores Gerais) de promover o evento pelos 5 continentes.
Em ambas as circunstâncias, Francisco
tem exprimido a sua preocupação e, principalmente, o seu apoio à “Talitha Kum”, organização formada
sobretudo por religiosas.
De facto, como foi referido, esta
rede internacional da Vida Consagrada está, com a ‘#Care Against Trafficking’,
lançada uma semana antes, a mostrar que o cuidado pode fazer a diferença em
todas as fases do percurso para combater o tráfico: cuidado para quem está em
risco, para as vítimas e para quem sobrevive. Na verdade, segundo a Irmã a Gabriella Bottani, “como
o Papa Francisco muitas vezes nos lembra, cuidar é importante para dar valor,
dar força ao bem, enfrentando com a força do bem o mal”.
A “Talitha Kum”coordena o grupo de organizações parceiras desta jornada internacional: o Dicastério
Para a Vida Consagrada, os Conselhos Pontifícios da Justiça e Paz e dos Migrantes
e Povos Itinerantes, a Academia das Ciências, a Caritas Internationalis (CI), a União Internacional das
Associações Femininas Católicas (WUCWO) e o grupo de trabalho contra o tráfico da Comissão
Justiça e Paz da UISG/USG (ATWG).
Na sua mensagem no Twitter, Francisco
destaca o papel da economia neste fenómeno, como já abordado a 8 de fevereiro,
VII Dia Mundial de Oração e Reflexão contra o Tráfico de Pessoas:
“Este ano o objetivo é trabalhar por uma
economia que não favoreça, mesmo indiretamente, esse tráfico ignóbil, ou seja,
uma economia que nunca faz do homem e da mulher uma mercadoria, um objeto, mas
sempre o fim”.
Em fevereiro, Francisco assinalou que uma economia sem tráfico é
de “cuidado”, isto é, “cuidar das pessoas e da natureza”, oferecendo produtos e
serviços para o crescimento do bem-comum, e essa economia que cuida do trabalho
cria “oportunidades de emprego que não exploram o trabalhador para horários
degradantes e exaustivos”.
Observou que “o tráfico de pessoas
encontra terreno fértil no cenário do capitalismo neoliberal, na desregulamentação
dos mercados que visa maximizar lucros sem limites éticos, sem limites sociais,
sem limites ambientais” e não faz as escolhas com base em critérios éticos, mas
em função dos interesses dominantes, não raro habilmente vestidos de “aparência
humanitária ou ecológica”. E advertiu que “as pessoas são números, também a
serem explorados”.
O Pontífice frisou que “a pandemia de covid
exacerbou e agravou as condições de exploração do trabalho” e que “a perda de
empregos penalizou muitas vítimas do tráfico em processo de reabilitação e
reinserção social”. E contrapôs que uma “economia do cuidado” trabalha por “uma
solidez que combina com solidariedade”, explicando que também uma economia sem
tráfico de pessoas “é uma economia com regras de mercado” que promovem a
justiça “e não interesses especiais exclusivos”.
***
Há muito a pensar, rezar, trabalhar e
mudar. O tempo não espera e os explorados muito menos.
2021.07.30 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário