sexta-feira, 30 de julho de 2021

Contra o Tráfico de Seres Humanos, uma economia do cuidado

 

Neste dia 30 de julho, celebra-se o Dia Mundial Contra o Tráfico Humano, um tema no coração do Papa Francisco e que remonta ao ano de 2013, em que se assinalou pela primeira vez, uma vez que as Nações Unidas o estabeleceram com o objetivo de aumentar a consciência sobre o tráfico e ajudar as vítimas e o público em geral a informar-se sobre os seus direitos.

Da magnitude do tema – um crime atroz que afeta todas as regiões do mundo – falam os números e os casos hediondos que vão acontecendo no mundo, ora clandestinamente, ora à vista de todos, sob a assustadora indiferença de tantas entidades que podiam e deviam intervir. Cerca de 72% das vítimas de tráfico humano detetadas são mulheres e meninas e, de acordo com o Departamento das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), a percentagem de crianças vítimas deste crime duplicou entre 2004 e 2016. A maior parte das vítimas é traficada para a exploração sexual, seguindo-se o tráfico de pessoas para trabalho forçado, o recrutamento de menores para servirem como crianças-soldados e outras formas de exploração e abuso.

Udekwe Kennedy Obinna, sobrevivente, revela:

Quem morre é atirado dos camiões, sem funeral. Continuámos a viagem. Após uma semana e dois dias no deserto, chegámos a uma cidade chamada Sabha, na Líbia, cidade conhecida pelo tráfico de seres humanos e pelos raptos.”.

As vítimas acabam frequentemente em bordéis ou a trabalhar como empregadas domésticas ou trabalhadores explorados. Algumas pessoas são comercializadas em todo o mundo.

Josiah Emerole, Diretor da NAPTIP, relata:

As pessoas são recrutadas de vários locais e transportadas para locais onde são obrigadas a acreditar que estão em dívida para com alguém. Fizeram-nas assinar um compromisso de cerca de 70 mil dólares, 80 mil euros – e tudo isso para dizer ‘foi a quantia de dinheiro que utilizámos para vos transportar e até pagarem tudo não podem ser livres’.”.

Os números exatos dos traficados todos os anos não são claros, mas a Europa continua a ser um dos destinos principais e muitas das vítimas acabam no comércio sexual.

Os traficantes e os grupos terroristas exploram pessoas vulneráveis, confinadas à guerra, que vivem na pobreza e sofrem de discriminação. Nádia Murad foi a primeira vítima de tráfico humano a ser Embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas e recebeu o Prémio Nobel da Paz em 2018 por catalisar a ação internacional para acabar com o tráfico e a violência sexual em conflitos armados.

Os conflitos, as deslocações forçadas, as alterações climáticas, os desastres naturais e a pobreza acentuam a vulnerabilidade e o desespero das vítimas e constituem espaço para a perpetuação do crime atroz que é o tráfico humano. Os migrantes estão, pois, no centro das atenções. Milhares de pessoas perderam a vida nos mares, nos desertos, em centros de detenção nas mãos de traficantes que exercem este monstruoso e impiedoso negócio. Assim, um dia de indiferença ao abuso e à exploração corresponde a um dia que custa a vida a muitas vítimas. São várias as empresas que beneficiam da miséria destas pessoas, desde o setor da construção até ao da produção de alimentos ou bens de consumo.

A cooperação internacional, traduzida na ação multilateral, deu azo a progressos, sobretudo com instrumentos como a “Convenção de Palermo” com o “Protocolo para Prevenir, Reprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente de Mulheres e Crianças” e levou a um aumento das detenções de traficantes de pessoas nos últimos anos, sendo que, para os ativistas, muito mais poderia ter sido feito. Na maioria dos países há legislação para sancionar este crime e já houve condenações por tráfico humano. Porém, ainda há muito por fazer para levar à justiça as redes transnacionais de tráfico. Urge assegurar a deteção e identificação das vítimas e possibilitar a sua proteção e o acesso aos serviços de que precisam.

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) incluem metas claras para prevenir o abuso e a exploração, eliminar todas as formas de violência contra mulheres e meninas e erradicar o trabalho forçado e a mão-de-obra infantil, o que é pouco se não houver a reafirmação e reforço do compromisso e empenho em impedir os criminosos de explorarem pessoas vulneráveis para benefício próprio e em ajudar as vítimas a reconstruir as suas vidas. Efetivamente os lucros dos traficantes são estimados em 29,4 mil milhões de euros por ano, em todo o mundo.

É de relevar que um levantamento da ONU alertou para os impactos duma “pandemia de tráfico humano”, tendo a pesquisa identificado um aumento no número de vítimas de tráfico humano durante a pandemia de covid-19, especialmente na exploração de crianças.

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Como refere o “Vatican News”, a Save the Children” publicou, em vésperas deste dia 30 de julho, o relatório “Little Invisible Slaves(pequenos escravos invisíveis), sobre a situação do Tráfico de Seres Humanos, em que afirma que com a pandemia as vítimas são menos visíveis e mais difíceis de serem rastreadas, pois as redes criminosas deslocaram o seu trabalho para dentro das casas e sobretudo online. E muitas pessoas continuam a estar nas mãos de traficantes sem escrúpulos, exploradas em trabalho humilhante ou exploradas sexualmente, sem qualquer esperança de resgate ou salvação. 

Antes da pandemia havia 50.000 vítimas confirmadas de tráfico humano em 2018 em todo o mundo, número que terá aumentado com a crise da covid-19 que levou mais 142 milhões de crianças e adolescentes para a pobreza. Na verdade, nas fases agudas da pandemia, as medidas de isolamento deixaram 1,6 bilhões de meninos e meninas fora da escola, expostos a forte aumento do abandono escolar e a maior risco de tráfico e exploração no trabalho ou sexual, a casamentos forçados ou a gravidez precoce, particularmente nos países de baixos rendimentos. Estima-se que só a exploração do trabalho poderá acabar com a vida de 8,9 milhões de crianças e adolescentes até ao final de 2022, mais da metade deles com menos de 11 anos de idade.

O 11.° Relatório do “Save the Children”, focado em crianças vítimas do tráfico, evidenciou que a crise da covid-19 as tornou menos visíveis e mais difíceis de rastreio à medida que as redes criminosas dirigiram a sua ação para dentro das casas e online. Aumentou o número de crianças vítimas da prostituição, do contrabando de drogas ou do trabalho forçado. A combinação de pobreza, fechamento de escolas e mais tempo online aumentaram o risco.

O relatório constatou que na Europa Ocidental e do Sul houve o maior número confirmado de casos de tráfico de crianças em todo o mundo, com 4.168 crianças vítimas. Mais de uma em cada 3 vítimas confirmadas do tráfico (34%) é criança, a maioria meninas – percentagem que mais do que triplicou nos últimos 15 anos. Em algumas regiões de baixos rendimentos, cerca da metade das vítimas são crianças. As meninas são principalmente traficadas para exploração sexual (72%), enquanto os meninos são em sua maioria traficados para trabalhar (66%).

O Relatório admite que os números sejam apenas a ponta do iceberg, pois mostram apenas casos registados, sendo que o mercado do tráfico pode ter mudando, mas não mostra sinais de diminuição. Segundo a Europol, a tecnologia ampliou a capacidade das redes criminosas, tanto nos países de origem como nos de trânsito e destino, já que, pela utilização de comunicações criptografadas, evitam a interação direta com as vítimas recrutadas e o contacto com a polícia e obtêm o acesso a aplicativos baseados em GPS. Segundo a “Save the Children”, que dirige vários programas para e com as vítimas do tráfico na Itália, até agora não tem havido suficiente comprometimento dos governos para monitorar, prevenir e combater o tráfico de crianças. Por conseguinte e ao invés do que se verifica, é vital fortalecer a colaboração entre todos os envolvidos, das forças policiais aos provedores de serviços online e ONGs, e responder adequadamente ao crescimento da exploração online.

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A rede ‘Talitha Kum’, que inclui mais de 3 000 religiosas católicas e leigas, lançou a campanha ‘#CareAgainstTrafficking’ para assinalar este Dia Mundial contra o Tráfico de Pessoas. E as responsáveis sustentam:

Declaramos que o cuidado e a prevenção são a força mais poderosa para a mudança e unimo-nos aos sobreviventes para promover o cuidado contra o tráfico humano”.

Este organismo internacional de Institutos de Vida Consagrada indica que a campanha “Cuidado contra o tráfico”, divulgada online e cujas prioridades vão da educação e das oportunidades de trabalho à assistência médica e à justiça, visa chamar a atenção para a necessidade de intervir em todas as fases, prestando assistência às pessoas em risco, às vítimas e às sobreviventes, e que esta abordagem exige um compromisso de várias instituições e a participação da sociedade, para “enfrentar as causas sistémicas do tráfico”.

As religiosas, que se reconhecem alimentadas pela força da espiritualidade”, afirmam terem vindo a ajudar dezenas de milhares de pessoas a escapar da violência do tráfico e encontrar um caminho para reconstruir vidas de liberdade e dignidade”. E denunciam situações de falsas propostas de emprego ou de escolarização, que levam crianças, jovens e mulheres a cair em redes de prostituição ou escravatura doméstica.

A irmã Gabriella Bottani, coordenadora internacional da ‘Talitha Kum’, sublinha que o Papa tem mediado uma mudança da “economia do tráfico em economia do cuidado”. E assinala:

Apoiamos sobreviventes, mesmo dentro da realidade da crise da pandemia, oferecendo-lhes ajuda material concreta, como pagar o aluguer ou comida. Cuidar significa promover uma educação de qualidade, para ser competitivo no mercado de trabalho.”.

A ação #CareAgainstTrafficking, que é parte da ação de incidência política da ‘Talitha Kum’, é realizada no contexto da iniciativa ‘Sisters Advocating Globally’ da UISG (União Internacional das Superioras Gerais) com o objetivo de “levantar a voz das religiosas católicas dentro da comunidade de desenvolvimento global”.

Para a Irmã Gabriella, a campanha nas redes sociais consiste em dar voz e visibilidade a “gestos de cuidados para combater o tráfico hoje no nosso mundo globalizado, mas também neste tempo de pandemia, não deixando que a crise seja a última palavra, mas o cuidar: cuidar da dignidade humana, cuidar da liberdade dos nossos irmãos e irmãs, cuidar de gestos quotidianos para que todos tenham vida em abundância”.

E a Cáritas Europa, “mobilizada pela dignidade das pessoas”, assinala a data, recordando que “trabalha há anos contra todas as formas de exploração e tráfico de seres humanos” e vincando:

Denunciamos políticas que aumentam a vulnerabilidade das pessoas e o risco de serem traficadas. Promovemos uma cultura de respeito por meio da consciencialização do público em geral e da preparação de quem está em contato com potenciais vítimas. (…) O tráfico de seres humanos continua a ser um grave problema em todo o mundo, assumindo a forma de exploração sexual, escravidão doméstica, trabalhos forçados, mendicância forçada, coerção para cometer crimes, casamentos forçados e até tráfico de órgãos.”.

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Por seu turno, o Papa Francisco pretende claramente a transformação da economia do tráfico numa economia do cuidado.

Com um tuíte, Francisco recorda o Dia Mundial Contra o Tráfico Humano, convocado pelas Nações Unidas em 2013 e, desde então, celebrado todos os dias 30 de julho, com a finalidade de combater a exploração das pessoas contra um fenómeno que praticamente atinge países de todos os continentes, entre nações que estão envolvidas na origem, trânsito e destino das vítimas.

Além do 30 de julho, a Igreja Católica dedicada outra jornada anual a este fenómeno: o dia 8 de fevereiro, o da memória litúrgica de Santa Josefina Bakhita, a sudanesa que foi vendida como escrava. A 1.ª edição do Dia Mundial de Oração e Reflexão Contra o Tráfico de Pessoas foi assinalada em 2015, a pedido do Papa, que encarregou, no ano anterior, a UISG/USG (União Internacional das Superioras e União dos Superiores Gerais) de promover o evento pelos 5 continentes.

Em ambas as circunstâncias, Francisco tem exprimido a sua preocupação e, principalmente, o seu apoio à “Talitha Kum”, organização formada sobretudo por religiosas.

De facto, como foi referido, esta rede internacional da Vida Consagrada está, com a ‘#Care Against Trafficking’, lançada uma semana antes, a mostrar que o cuidado pode fazer a diferença em todas as fases do percurso para combater o tráfico: cuidado para quem está em risco, para as vítimas e para quem sobrevive. Na verdade, segundo a Irmã a Gabriella Bottani, “como o Papa Francisco muitas vezes nos lembra, cuidar é importante para dar valor, dar força ao bem, enfrentando com a força do bem o mal”.

A “Talitha Kumcoordena o grupo de organizações parceiras desta jornada internacional: o Dicastério Para a Vida Consagrada, os Conselhos Pontifícios da Justiça e Paz e dos Migrantes e Povos Itinerantes, a Academia das Ciências, a Caritas Internationalis (CI), a União Internacional das Associações Femininas Católicas (WUCWO) e o grupo de trabalho contra o tráfico da Comissão Justiça e Paz da UISG/USG (ATWG).

Na sua mensagem no Twitter, Francisco destaca o papel da economia neste fenómeno, como já abordado a 8 de fevereiro, VII Dia Mundial de Oração e Reflexão contra o Tráfico de Pessoas:

Este ano o objetivo é trabalhar por uma economia que não favoreça, mesmo indiretamente, esse tráfico ignóbil, ou seja, uma economia que nunca faz do homem e da mulher uma mercadoria, um objeto, mas sempre o fim.

Em fevereiro, Francisco assinalou que uma economia sem tráfico é de “cuidado”, isto é, “cuidar das pessoas e da natureza”, oferecendo produtos e serviços para o crescimento do bem-comum, e essa economia que cuida do trabalho cria “oportunidades de emprego que não exploram o trabalhador para horários degradantes e exaustivos”.

Observou que “o tráfico de pessoas encontra terreno fértil no cenário do capitalismo neoliberal, na desregulamentação dos mercados que visa maximizar lucros sem limites éticos, sem limites sociais, sem limites ambientais” e não faz as escolhas com base em critérios éticos, mas em função dos interesses dominantes, não raro habilmente vestidos de “aparência humanitária ou ecológica”. E advertiu que “as pessoas são números, também a serem explorados”.

O Pontífice frisou que “a pandemia de covid exacerbou e agravou as condições de exploração do trabalho” e que “a perda de empregos penalizou muitas vítimas do tráfico em processo de reabilitação e reinserção social”. E contrapôs que uma “economia do cuidado” trabalha por “uma solidez que combina com solidariedade”, explicando que também uma economia sem tráfico de pessoas “é uma economia com regras de mercado” que promovem a justiça “e não interesses especiais exclusivos”.

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Há muito a pensar, rezar, trabalhar e mudar. O tempo não espera e os explorados muito menos.

2021.07.30 – Louro de Carvalho

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