segunda-feira, 19 de julho de 2021

O amor e a solicitude de Deus pelas “ovelhas sem pastor”

 

Jeremias é a voz profética que abre a Liturgia da Palavras deste XVI domingo do Tempo Comum no Ano B, a denunciar os pastores indignos que usam o rebanho para satisfação dos seus projetos pessoais e a anunciar que Deus vai, Ele próprio, tomar conta do seu rebanho, assegurando-lhe a fecundidade e a vida em abundância, a paz, a tranquilidade e a salvação.

Nascido em Anatot por volta de 650 a.C., Jeremias profetizou desde 627/626 a.C. até depois da destruição de Jerusalém pelos Babilónios (586 a.C.), quase sempre no reino de Judá (sobretudo em Jerusalém). A primeira fase da sua pregação decorre no reinado de Josias, que intentava a defesa da identidade político-religiosa do Povo de Deus pelo banimento dos cultos aos deuses estrangeiros no país, vindo o profeta a apelar constantemente à conversão e à fidelidade a Javé e à aliança. Como, em 609 a.C., Josias foi morto em combate contra os egípcios, sucedeu-lhe Joaquim, o que deu lugar à segunda fase da profecia de Jeremias nesse tempo de desgraça e pecado para o Povo e, por conseguinte, de incompreensão e sofrimento para Jeremias, passando o profeta a criticar as injustiças sociais (algumas fomentadas pelo rei) e a infidelidade religiosa, traduzida, por exemplo, na busca de alianças políticas. Convicto de que Judá ultrapassou todas as marcas e que está iminente a invasão babilónica que punirá os pecados do Povo, Jeremias di-lo aos habitantes de Jerusalém, o que sucedeu em 597 a.C., com a invasão pelas tropas de Nabucodonosor e subsequente deportação duma parte da população para a Babilónia. E, ficando no trono Sedecias (597-586 a.C.), passa a desenrolar-se a terceira fase da missão de Jeremias.

Após alguns anos de submissão à Babilónia, Sedecias reexperimenta a política de alianças, o que leva o profeta a censurar que se confie mais em exércitos estrangeiros que em Javé. Porém, os decisores não lhe dão atenção, sendo que o amargo profeta da desgraça, Jeremias cria o vazio à sua volta. E, em 587 a.C., Nabucodonosor cerca Jerusalém, mas os egípcios socorrem Judá e os babilónios retiram-se. E, ante a euforia nacional, Jeremias anuncia o cerco e a destruição de Jerusalém. Acusado de traição, é encarcerado e corre perigo de vida. Entretanto, Nabucodonosor apodera-se da cidade, que destrói, e deporta a população para a Babilónia (586 a.C.).

O trecho assumido como 1.ª leitura (Jr 23,1-6) situa-nos nesse tempo de desnorte, em que Judá, sem líderes capazes, perde as suas referências e a esperança. Deus condena os pastores de Israel por terem dispersado as ovelhas.

A imagem do pastor aplicada aos líderes da nação é frequente no AT, havendo adquirido força especial na sequência de David, o pastor que Javé ungiu e que fez rei, encarregando-o de cuidar do rebanho do Povo de Deus.

O texto em apreço abre com a nota de culpa: os pastores, em vez de cuidarem das ovelhas, escorraçaram-nas, dispersaram-nas e perderam-nas. Ou seja, os líderes não serviram o Povo, fizeram-se donos dele e não procuraram servi-lo, que era o que Deus queria. Meteram-se em aventureirismos, zelaram os interesses pessoais e envolveram-se em jogadas políticas. Esta inconsciência das lideranças trouxe consequências maléficas ao Povo, ao rebanho de Deus. Mas o rebanho não é propriedade dos pastores, mas do Senhor, que os chamou à missão concreta do cuidado do seu rebanho. E eles, que se comprometeram com a missão, falharam redondamente.

Depois da nota de culpa, vem a decisão: Deus vai ocupar-se desses maus pastores: castiga-os, pede-lhes contas, pois não está disposto a tolerar abusos de confiança, nem pactua com quem explora o rebanho em benefício próprio. Na ótica de Deus, isso é inaceitável. E, além das contas com os maus pastores, o próprio Senhor vai intervir para salvar o rebanho, porque é o rebanho do Senhor e Ele tem responsabilidades para com as suas ovelhas.

A intervenção de Deus desenvolve-se em três momentos: devolução das ovelhas “às suas pastagens para que cresçam e se multipliquem”, ou seja, a repatriação dos exilados, ação para a qual Deus não conta com intermediários (Ele mesmo vai liderar esse processo); escolha de pastores exemplares, cuja missão será, simplesmente, apascentar, o que implica o cuidado, a solicitude, o amor, a ternura pelo rebanho, passando as ovelhas a aprender a confiar nestes pastores, que as amam, e não havendo mais lugar a medo ou a sobressalto; e a promessa da chegada futura dum “rebento justo” da dinastia de David, promessa messiânica criadora de esperança.

É de anotar que a imagem tirada do reino vegetal sugere fecundidade e vida abundante. O descendente de David assegurará “o direito e a justiça” e trará salvação e segurança ao Povo. O nome desse rei será “o Senhor é a nossa justiça”, pois é Deus que o legitima e Ele, garantindo a justiça, trará a harmonia, a paz, a salvação e a verdadeira vida – o que aponta para Jesus, o Bom e Belo Pastor, que sente compaixão pelas suas ovelhas, como se verá no Evangelho.

***

Se no Evangelho do XV domingo mostrava que Jesus enviou os discípulos, dois a dois, a pregar o arrependimento, expulsarem os demónios, ungirem e curarem os doentes (cf Mc 6,7-13) – o anúncio confiado aos discípulos é o anúncio que Jesus fazia, o Reino, e os gestos que os discípulos fazem são os que Jesus fez –, o Evangelho deste domingo (Mc 6,30-34) apresenta o regresso dos enviados de Jesus. Marcos, que agora lhes chama “hoi apóstoloi (os apóstolos, (enviados) (é a única vez que Marcos usa o termo), diz que a missão correu bem e eles estão cansados, mas entusiasmados.

Os discípulos, entusiasmados, contam a Jesus a forma como se desenrolou a missão que lhes fora confiada. A seguir, Jesus convida-os a irem com Ele para um lugar isolado e a descansarem um pouco. É Ele quem toma a iniciativa. Os discípulos foram com Jesus para um lugar deserto, mas as multidões descobriram para onde se eles dirigiam e chegaram primeiro. Ao desembarcar, Jesus viu as pessoas, teve compaixão delas, “porque eram como ovelhas que não têm pastor(“hóti êsan hôs ptóbata mê ékhonta poiména”: Mc 6,34), e pôs-se a ensinar-lhes muitas coisas (“autoùs pollá”). Um episódio banal em si, mas que Marcos aproveita para desenvolver a sua catequese sobre o discipulado. E fá-lo em torno dos seguintes itens:

Os apóstolos (“hoi apóstoloi) são chamados e enviados a continuar no mundo a missão de Jesus, cujo núcleo é o anúncio do Reino e para cuja concretização convidam as pessoas que escutam a mensagem à mudança de vida e a aceitação do projeto de Jesus. Os gestos dos discípulos “expulsavam muitos demónios e ungiam muitos doentes com óleo e curavam-nos” (“damónia pollà exéballon kaì êleiphon elaíô polloùs arrôstous kaì etherápeuon”: Mc 6,13) – anunciam o mundo novo de pessoas livres e o projeto de vida plena que Deus oferece a todos os homens e mulheres.

A marcação da necessidade de os apóstolos descansarem constitui o aviso contra o excesso de ativismo, que destrói as forças físicas e espirituais podendo levar a perder o sentido da missão.

Os apóstolos são convidados por Jesus a irem com Ele para um lugar isolado, não sendo o lugar geográfico o que mais interessa, mas, sim, que o descanso reconfortante aconteça junto de Jesus, pois é ao lado de Jesus, escutando-O, dialogando com Ele, fruindo da sua intimidade, que eles retemperam forças. E, se não confrontarem frequentemente com Jesus e a sua Palavra os projetos e procedimentos pastorais, a missão redundará em fracasso.

As multidões tinham seguido a pé Jesus e os discípulos, ou seja, deslocando-se à volta do Lago de Tiberíades, com o barco sempre à vista, em busca infatigável e impaciente que revela a ânsia de vida que as pessoas sentem. E Jesus, cheio de compaixão, compara a multidão a rebanho sem pastor. Não é nos líderes religiosos ou políticos que ela encontra segurança e esperança; não é nos ritos da religião tradicional que ela encontra paz e sentido para a vida. É na pessoa de Jesus que as pessoas encontram verdadeira vida e com Ele fazem, entre si, a comunidade. Na sequência, Marcos há de pôr em letra de forma a cena da multiplicação dos pães e dos peixes, com que Jesus saciará a fome de cinco mil homens.

É de recordar que os discípulos foram enviados dois a dois, pois não vão em nome próprio, mas como testemunhas d’Aquele que os enviou. E o testemunho, para ser válido, postula duas ou três testemunhas (cf Dt 19,15; Jo 8,17; Mt 18,16), neste caso, vinculadas a Jesus, vínculo bem presente no pensamento do Mestre que garantiu: “Onde estão dois ou três reunidos em meu nome, ali estou Eu no meio deles(“hoû gár eisin dýo ê treîs synêgménoi eis tò emòn ónoma, ekeî eimi mésô autôn”:Mt 18,20).

A centralidade de Jesus na vida dos Doze e a consequente vinculação ao Mestre está espelhada no retorno: eles regressam e apresentam a relação exaustiva de tudo o que fizeram e ensinaram, tendo Jesus como única referência.

Referido o retorno dos discípulos a Jesus e mencionada a exaustiva prestação de contas da missão, os Doze são agora denominados “os Apóstolos” e, por iniciativa de Jesus (“Vinde”), fica intensificada a proximidade e comunhão com Ele, que os separa da multidão que os apertava (Mc 6,31), “e partiram no barco para um lugar deserto, à parte” (Mc 6,32).

Diga-se que, para Marcos, o barco (“tò ploîon) configura um espaço privilegiado que Jesus compartilha só com os discípulos. E deste barco ressalta, não o conteúdo da conversa, mas, sim, a estrita comunhão entre Jesus e os discípulos.

E, tendo saído no barco por causa da pressão da multidão, ao sair do barco, estão de novamente no meio da multidão, sendo que “Ele viu” (“eîden”: Mc 6,34). E este “ver” de Jesus abre para o olhar misericordioso de Jesus – compadeceu-Se (“esplagchnísthê”: Mc 6,34) –, igual ao do Pai, como se viu em Jeremias, que leva Jesus a reunir e abraçar aquela multidão de ovelhas sem pastor, e a ensiná-las demoradamente e a com quem repartirá o pão e o peixe, cumprindo em pleno a promessa: Deus apascentará a suas ovelhas e entregá-las-á ao rebento de David.

Em todo o caso, a prioridade e a precedência são do ensinamento demorado e paciente, ficando para depois, mas sendo necessária, a partilha da comida e da bebida. Como assinala Dom António Couto, “o grão do espírito precede o grão de trigo”.

E é este ensinamento demorado e paciente a que se segue necessariamente a partilha do pão e do vinho, feitos Corpo e Sangue do Senhor, que, segundo a passagem da Carta aos Efésios assumida para 2.ª leitura (Ef 2,13-18), faz dos seguidores de Jesus a verdadeira comunidade dos redimidos por Ele na cruz, dando a vida pelas suas ovelhas, que Ele conhece e chama pelo nome uma a uma (cf Jo 10,3). A Igreja, surgida da cruz como o novo Corpo de Cristo, está ao serviço do “mistério” ou desígnio salvador de Deus, definido desde toda a eternidade, escondido durante séculos aos homens, revelado e concretizado plenamente em Jesus, comunicado aos apóstolos, desfraldado e, nos últimos tempos, dado a conhecer ao mundo. É o mistério da reconciliação de todos com o Pai em Cristo ou a ação salvadora e unificadora de Jesus Cristo o que Paulo põe diante de nós todos, judeus e pagãos. Não há, pois, mais lugar a separações, cai o muro que, no Templo, separava o átrio dos gentios do átrio dos judeus. Jesus, aproximando-se de todos, aproximou-nos a todos, destruiu toda a espécie de barreiras e estabeleceu a Paz entre nós.

Nasceu, assim, um corpo que integra os mais diversos membros, provindos de todos os quadrantes da família humana. Todos quantos aceitaram integrar a família de Jesus, sem diferenças de etnias, raças, cor da pele, classes sociais ou culturais, pertencem à mesma família, a família de Deus. Esta é a origem e o respiro da fraternidade universal. Todos – judeus e pagãos – são, agora, membros da comunidade trinitária do Pai, dador da vida, do Filho, que vem ao encontro dos homens para lhes comunicar a vida do Pai, e do Espírito Santo, que mantém unidos os membros deste corpo entre si e com Deus.

O Evangelho, que é Cristo, une, reúne, enlaça, entrelaça, gera fraternidade.

Por tudo isto, entoamos o Salmo 23, proclamando que o Senhor é o nosso Belo e Bom Pastor e que nada nos há de faltar, pois Ele nos conduz pelos seus prados verdejantes, cheios de águas cristalinas, unge com óleo perfumado a nossa cabeça, estende no chão do seu céu a sua mesa, serve-nos vinhos generosos e abundantes, como em Caná. É a alegria da família reunida.

Assim, se tivermos razão de queixa sobre os pastores terrenos à guarda de quem nos colocou, resta-nos orar por eles, manifestar o nosso sentido de cooperação e, ao mesmo tempo, sentir que Deus nos apascenta e guia e nos entrega ao supremo e próximo cuidado de Jesus que o Pai constituiu nosso Senhor e genuíno Pastor. Nada nos faltará!.  

2021.07.18 – Louro de Carvalho

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