sábado, 31 de maio de 2014

Pela trinomia “liberdade, igualdade e fraternidade”

Trata-se da trinomia propalada pela Revolução Francesa, a que subjaz uma cadeia ideológica que se inspirou no liberalismo de Rousseau e demais pensadores coevos e que alguns dizem ser a face superior do iluminismo, embora nesta nos apareça não a fraternidade, mas o progresso.
Felizmente, a História das ideias permite a satisfação das diversas tendências que se formam no conspecto global da Humanidade. Reivindicam a causa desta trinomia cristãos, judeus e muçulmanos, os elementos conscientes das religiões mais orientais ou do interior profundo dos diversos continentes e das paragens insulares ou peninsulares. Reivindicam-na as organizações secretas que influenciam o devir da humanidade na era moderna e pós-moderna, como a estabeleceram como estilo de vida os inventores do discipulado na antiguidade em redor do respetivo mestre (alguns, como os pitagóricos, viviam em permanente comunidade). E muitas sociedades, associações, agremiações, congregações, irmandades e confrarias (religiosas, eclesiais ou seculares) se instituem hoje com base no reconhecimento da igualdade perante a lei, na liberdade de reunião e de expressão e na relação fraterna que implica os deveres do aperfeiçoamento pessoal, da aceitação da crítica fraterna e da reciprocidade de tratamento. Mais: a trinomia, feita trilogia ideológica, constitui a plataforma de base das declarações dos direitos do cidadão, originariamente redigidas nas revoluções setecentistas e seguintes, transpostas para as constituições dos modernos Estados de direito democrático, bem como o entendimento basilar que pautou a declaração universal dos direitos humanos, em 1948, que tantos subscreveram e tanto inobservam.
Mas a Revolução Francesa não pode arvorar-se em mestra originária ou dona das ideias da liberdade, igualdade e fraternidade. Apesar de nas fachadas dos edifícios oficiais em França se exibir o emblema “liberdade, igualdade, fraternidade”, Charles Péguy (1960. Euvres en prose. Paris: Gallimard, Pléiade IT) advogava que o lema republicano deveria ser reescrito pela ordem seguinte: fraternidade, liberdade, igualdade. A ideia não vingou porque os anticlericais da época revolucionária advertiram – e com razão – que a fraternidade era um conceito cristão.
Efetivamente, a linguagem bíblica remete-nos muitas vezes para o campo lexical da fraternidade. Dentro dos registos bíblicos, desde a criação, passando pelos livros históricos, pelos sapienciais e pelos proféticos, encontramos inúmeras recorrências que testificam que fraternidade e religião caminham de mãos dadas.
Citam-se, a título de exemplo, algumas passagens:
– “Quanto à coleta em prol dos santos, fazei vós também o que ordenei às Igrejas da Galácia. No primeiro dia da semana, cada um, em sua casa, ponha algo de lado, para que, quando eu chegar, não se tenha de fazer ainda a coleta. E, quando eu for aí, enviarei a Jerusalém os homens que vós escolherdes, para levarem a vossa dádiva. Porém, se convier que eu vá também, eles viajarão comigo.” (1Co 16,1-4). Paulo, face ao caos vivido então pelos judeus, mobiliza a Igreja que vivia em Corinto e Galácia, que responde em conformidade para corrigir as desigualdades, demonstrando o espírito de união fraterna. Um ano depois, Paulo refere a participação da Macedónia e da Acaia.
– “Cada um dê como resolveu em seu coração, sem tristeza nem sob compulsão, pois Deus ama o doador animado. Ademais, Deus faz abundar em vós toda a benignidade imerecida, para que, embora possuais plena autossuficiência, tenhais de sobra para toda boa obra”. (2Co 9,7-8). A fraternidade está, pois, patente na mútua solidariedade que deve existir em toda a comunidade, não por imposição, mas por atitude positiva em ajudar a pessoa humana. Deste modo, a ação de Paulo gera ainda mais a unidade dos homens, ensinando-os na prática do ideal da fraternidade, ou seja, da compaixão e assistência mútua como uma constante da doutrina do Evangelho, buscando uma sociedade igualitária.
A fraternidade já, no Antigo Testamento aparece estabelecida, renovada e mesmo como finalidade, como se pode ver, por exemplo, através das seguintes citações:
– “Decidimos renovar os laços de fraternidade e amizade convosco, para não nos tornarmos estranhos, pois já faz muito tempo que vós nos enviastes aquela embaixada” (1Mac 12,10).
– “Encarregámo-los de passarem junto de vós para vos saudarem e entregarem esta carta, cujo fim é renovar a nossa fraternidade.” (1Mac 12,17).
No entanto, é o Novo Testamento que estabelece a fraternidade como fulcro da relação interpessoal e intraeclesial em consonância com o dinamismo da oração que Jesus ensinou. Se o Pai de Jesus Cristo é o pai de todos, todos estamos necessariamente embarcados na fraternidade em Cristo (cf Mt 6,9-13):
– “Deveis empenhar-vos em unir à fé a virtude, à virtude o conhecimento, ao conhecimento a temperança, à temperança a paciência, à paciência a piedade, à piedade a fraternidade e à fraternidade a caridade.” (2Pe 1,5-7).
“Honrai a todos. Amai a fraternidade. Temei a Deus.” (1Pe 2,17).
A fraternidade gera e desenvolve um amor com as seguintes caraterísticas: de coração ou sincero e não de boca, exprimindo uma genuína preocupação com os irmãos (1Pe 1,22); ardente e intenso, como convém ao verdadeiro servo do Senhor (1,22; 4,8); paciente para com os pecados dos outros, embora não os minimize, mas levando ao arrependimento e à emenda (cf 1Pe 4,8; Tg 5,19-20); respeitador dos irmãos, que são tratados como amigos, sem vinganças e maledicências, mas com misericórdia, amor e humildade (cf Tg 3,8-11); hospitaleiro e dedicado no serviço aos outros (cf1Pe 4,9-10; Mt 20,28); e que leva a saudar a todos com o amor de quem vive na família de Deus (cf 1Pe 5,14).
Sobre a liberdade, há também recorrências bíblicas, como se pode aferir pelos lugares citados:
– “Se permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos. E conhecereis a verdade, e a verdade os libertará.” (Jo 8,31-32) .
– “Ora, o Senhor é o Espírito e, onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade.” (2Co 3,17).
– “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou […] Irmãos, vós fostes chamados para a liberdade. Mas não a useis para dar ocasião à vontade da carne; pelo contrário, sirvi-vos uns aos outros mediante o amor.” (Gl 5,1.13).
– “Deu-me ampla liberdade; livrou-me, pois me quer bem.” (2Sm, 22,20)
– “Andarei em verdadeira liberdade, pois tenho buscado os teus preceitos.” (Sl 119,45). 
Quanto à igualdade, há que dizer que também aparece bem incorporada na Bíblia, como se pode aferir, pois, segundo a Palavra do Senhor, não se pode fazer aceção de pessoas:
– “Não discriminareis as pessoas em juízo; ouvireis tanto o pequeno como o grande; não temereis a face de ninguém, porque o juízo é só de Deus.” (Dt 1,17).
– “Quanto menos àquele que não faz aceção de pessoas de príncipes nem estima o rico mais que o pobre: porque todos são obra das suas mãos.” (Jb 34,19).
– “E, abrindo a boca, Pedro disse: Reconheço por verdade que Deus não faz aceção de pessoas.” (At 10,34).
– “Mas, se fazeis aceção de pessoas, cometeis pecado e sois redarguidos pela lei como transgressores.” (Tg 2,9).
– “E, se invocais por Pai aquele que, sem aceção de pessoas, julga segundo a obra de cada um, andai com temor, durante o tempo da vossa peregrinação” (1Pe 1,17).
***
Porém, a memória bíblica de Caim-Abel leva-nos a inferir que a fraternidade não é espontânea. Está, entretanto, sempre à nossa frente como dever de construção quotidiana. Edgar Morin (Complexidade-e-Liberdade.pdf, ac. 30-05-14) dizia que a liberdade pode ser instituída e imposta, ao passo que a fraternidade não se fixa por lei nem por imposição estatal. Resulta, sim, da experiência pessoal de solidariedade e de responsabilidade. Per se, a liberdade matará a igualdade e a igualdade imposta como único princípio destrói a liberdade. Só a fraternidade garante a manutenção da lídima liberdade, mas com a luta para a supressão das desigualdades.
No passado, dois sistemas diziam encarnar a liberdade ou a igualdade. O liberalismo económico garantiria a todos o bem-estar e o socialismo promoveria a igualdade, atribuindo o primeiro ao Estado o papel de árbitro e o segundo, o da distribuição da riqueza. Recentemente, as crises financeiras, as doenças e a pobreza levaram à ilação da falta de base ética que garanta o sentido dos esforços de quem tem o múnus da organização da vida social e económica. E essa ética terá necessariamente a fraternidade como referência. Não raro, confunde-se fraternidade e solidariedade. Mas a solidariedade intenta corrigir as desigualdades e as injustiças, mas sem as discutir. Por seu turno, a fraternidade visa a sociedade genuinamente igualitária, numa igualdade não só de direito mas de facto, em nome da premente dignidade do homem. Na sociedade fraterna, o privilégio individual não existe e cada um cuida do outro; cada um é reconhecido a simul como diferente e igual. Somos irmãos enquanto integramos à mesma família humana.
A fraternidade endita a liberdade e a igualdade porque, ao contrário da liberdade meramente liberal, a liberdade fraterna sente-se responsável pela liberdade do outro.
São João Paulo II, na sua visita à França em 1980, reclamou a matriz cristã da trinomia “liberdade, igualdade e fraternidade”. E com razão, já que o cristianismo primitivo apresenta a Igreja como “comunidade de irmãos”. O termo “irmão” (grego, adelfos; latim, frater) designa os que pertencem ao grupo dos discípulos de Jesus, que Paulo, aos Romanos (8,29), designa como “o primogénito numa multidão de irmãos”. E a comunidade primeva usa o termo “fraternidade” (grego, adelphótes; latim, fraternitas) termo típico do vocabulário cristão: por exemplo, não se encontra em Platão ou Aristóteles, embora esses autores usem com frequência o vocábulo “irmãos”. Portanto, para os cristãos a fraternidade, mais do que virtude, reside no facto de serem irmãos, membros de um grupo, o grupo dos cristãos, batizados, unidos a Cristo através dos sacramentos da Ecclesia.
Também Bento XVI glosa a fraternidade na Caritas in Veritate, cujo cap. III é intitulado: “fraternidade, desenvolvimento económico e sociedade civil”. No cap. V, no âmbito da colaboração da família humana, a fraternidade é examinada do lado teológico: a SS.ma Trindade é a referência última da unidade da família humana (n. 54), inferindo o Papa que as diversas culturas e religiões, ao considerarem a exigência do amor e da verdade, dão inestimável contributo à reaproximação dos povos. Embora mantenha prudência e reserva quanto à colaboração das religiões na garantia da unidade do género humano, o Pontífice insiste na afirmação de que o contributo das religiões para o desenvolvimento requer, antes de mais, que Deus tenha o seu lugar explícito na esfera pública (n. 56). Neste contexto, o Papa evoca a relação entre fé e razão, que se purificam reciprocamente.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU em 1948, após as barbáries da segunda guerra mundial, estribou-se na fraternidade, como se verifica na releitura do art.º 1.º:
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.
Ora, tal enunciado significa que a fraternidade não é facultativa, mas imperativo ínsito nos valores mais sagrados, religiosos ou laicos. Não sendo espontânea nem imediata, deve ser aprendida através da educação e da formação, não só na escola, mas por toda a vida. Na escola, deverá ensinar as crianças a ajudarem-se reciprocamente, a respeitar as diferenças – itens em que as religiões têm papel decisivo. Isto, porque é possível conviver e conservar a própria identidade, porque somos membros de uma mesma família, e sob o olhar de Deus – para uns Criador, para outros Pai – devemos viver não só tolerando-nos, mas amando-nos como numa família. Assim, o diálogo inter-religioso torna-se fator charneira neste mundo pluricultural e plurirreligioso para a convivência pacífica e sobretudo para a edificação de um mundo novo. Os crentes são provocados ao confronto com o tríplice desafio: identidade, diferença e pluralismo. O desafio da identidade implica a aquisição da consciência do conteúdo da própria fé, porque não se pode dialogar na ambiguidade; o desafio da diferença postula a aceitação como amigo e irmão de quem pertence a outra religião ou cultura; e o desafio do pluralismo exige o reconhecimento de que Deus misteriosamente age em cada uma das suas criaturas. A vivência desta espiritualidade capacita os crentes para o combate de todas as causas de não-fraternidade: desemprego, desigualdades sociais, isolamento da doença e da pobreza, desatenção (e descarte) para com pessoas idosas, estrangeiros e migrantes. Os crentes podem prestar relevante serviço aos irmãos em humanidade, em busca do sentido da vida e da história. Paul Ricoeur, em artigo de 1966, publicado na revista Esprit, afirma que o homem moderno se confronta com quatro questões: autonomia, desejo, poder e insensatez. Encarando tais questões com moderação e sublimação, é de reconhecer que todos os crentes podem cooperar para o bem comum nas seguintes áreas: a cidade, o desporto e a música, a educação e a hospitalidade. Com muitos homens e mulheres os crentes devem compartilhar os grandes valores do património cristão: o respeito pela pessoa humana, nunca circunscrito à produtividade económica nem à posição social; a tutela das liberdades fundamentais da pessoa humana; a igualdade, que assenta na caridade. Todos se devem ajudar, no respeito das diferenças, a escolher entre o bem e o mal; e os responsáveis religiosos têm o dever de indicar o caminho a empreender para cada um a poder escolher, na liberdade e com responsabilidade, o reto caminho.
 (cf L’ Osservatore Romano, 07-08-10)

Vamos mesmo enveredar pela revolução da liberdade, igualdade e fraternidade – cristã ou laica?

quinta-feira, 29 de maio de 2014

O fenómeno das migrações forçadas

A este fenómeno se referiu pertinentemente o Papa Francisco no discurso aos novos embaixadores da Suíça, Libéria, Etiópia, Sudão, Jamaica, África do Sul e Índia, por ocasião da apresentação das respetivas cartas credenciais, em 15 de maio.
O discurso pode dar azo a que nos interroguemos se acaso algum surto migratório será efetivamente voluntário. Não sei se àqueles que se transferem para outras paragens por mero espírito aventureiro ou por permuta de serviço se podem denominar de verdadeiros migrantes (emigrantes em relação ao país de origem e imigrantes em relação ao país de acolhimento, real ou presuntivo). Já aqueles que não encontram na sua terra meios de subsistência pessoal e familiar ou um exercício profissional condigno sentem-se obrigados a emigrar para outros sítios em que espreitam a sorte, o desafogo. Situação semelhante é vivida por muitos a quem a empresa cria desconforto no seu local de trabalho useiro e lhes acena em alternativa com melhores condições alhures. Isto, para não evocarmos aqueles que se sentem obrigados ao abandono da pátria por motivos políticos (exílio) ou como sanção por delito grave (degredo / deportação). Por isso, a História das migrações é feita de epopeias muitas vezes hiper-humanas onde, ao lado de façanhas motivantes de orgulho pessoal, grupal e étnico, jaz o monumento de suor, lágrimas e sangue. E o regresso é tantas e tantas vezes profundamente ansiado e, quando concretizado, é efusivamente saudado e celebrado.
Porém, o Papa Francisco aborda a problemática das migrações violentamente forçadas, as quais estão patentes ante os olhos de todos e constituem um clamoroso “desafio à paz” e constituem um fenómeno avassalador que “adquire em certas regiões e em certos momentos o caráter de uma verdadeira tragédia humana”. É a triste sorte daqueles e daquelas que se sentem escorraçados das suas terras de origem e rejeitados nos países que demandam e cujo fim termina tantas vezes no fundo dos mares e, se sobrevivos, ficam jazendo nas malhas da escravidão, do tráfico de estupefacientes e de pessoas. O pontífice foi, no ano transato, a Lampedusa. E lá – impressionado pelos títulos dos jornais que indicavam situação catastrófica, expressa em enunciados como “emigrantes mortos no mar, barcos que em vez de ser uma rota de esperança, foram uma rota de morte” – decidiu, “à luz da Palavra de Deus”, proclamada e escutada naquela manhã de 8 de julho, “propor algumas palavras que sejam sobretudo uma provocação à consciência de todos, que a todos incitem a refletir e mudar concretamente certas atitudes”. São os clamores de seres humanos que bradam aos céus, vítimas do lucro fácil e desalmado:
Estes nossos irmãos e irmãs procuravam sair de situações difíceis, para encontrarem um pouco de serenidade e de paz; procuravam um lugar melhor para si e suas famílias, mas encontraram a morte. Quantas vezes outros que procuram o mesmo não encontram compreensão, não encontram acolhimento, não encontram solidariedade! E as suas vozes sobem até Deus! […] Recentemente falei com um destes irmãos. Antes de chegar aqui, passaram pelas mãos dos traficantes, daqueles que exploram a pobreza dos outros, daquelas pessoas para quem a pobreza dos outros é uma fonte de lucro. Quanto sofreram! E alguns não conseguiram chegar.
É certo que, segundo as palavras do Papa aos mencionados novos embaixadores, se trata de “um fenómeno muito complexo”. E, embora se devam reconhecer os “esforços notáveis da parte das organizações internacionais, dos Estados, das forças sociais, assim como das comunidades religiosas e do voluntariado, para procurar responder de forma civil e organizada aos aspetos mais críticos, às emergências, às situações de maior necessidade” – diz Francisco – “damo-nos conta de que não podemos limitar-nos a resolver as emergências. O fenómeno reveste-se de tal gravidade e extensão que “já se manifestou em toda a sua amplitude e com o seu caráter, por assim dizer, epocal”. Por isso, chegou mesmo “a hora de o enfrentar com um olhar político sério e responsável, que envolva todos os níveis: global, continental, de macrorregião, de relações entre as Nações, até ao nível nacional e local”.
Não deixa o bispo de Roma, que não descarta o seu papel político, de situar o fenómeno no quadro global da História da emigração, com experiências inteiramente opostas entre si. Estas situações que são objeto de denúncia e reflexão papal
– seres humanos, nossos irmãos e irmãs, filhos de Deus que, impelidos também eles pela vontade de viver e trabalhar em paz, enfrentam viagens extenuantes e sofrem chantagens, torturas e injustiças de todos os tipos, acabando muitas vezes por morrer no deserto e no fundo do mar –
contrastam com ofertas espontâneas e estratégias historicamente organizadas maravilhosamente repletas “de humanidade, de encontro, de acolhimento”. Não se pode, pois, ignorar que houve e há “pessoas e famílias que conseguiram sair de realidades desumanas e reencontraram a dignidade, liberdade e segurança”.
Não podemos, por outro lado, passar ao lado dos motivos que levam a este massivo fluxo migratório. Não podemos ignorar a escalada de grupos políticos, que emergem cada vez com maior força, cuja senha é a xenofobia, a exclusão étnica, a gerontofobia, a pedofobia, a deficientofobia. Não podemos esquecer que o império financeiro desbragado, consciente e voluntariamente instalado da apropriação da riqueza por parte de uns “muito poucos”, secundado pela iníqua sensibilidade luxuriosa, cria o volume crescente dos milhões e milhões de explorados, sem vez, sem voz, sem dignidade. Cinicamente, a plutocracia oligárquica acena com a democracia política e até com laivos de culturofilia e filantropia. Ora como pode ser livre um ser faminto, doente, nu, sem-abrigo… descartado? Não é por acaso ou sem a razão da sabedoria da alma popular que os provérbios persas rezam: “A riqueza dos ricos agita incessantemente a língua dos pobres” e “Não é por amor de Deus que o gato às vezes parece sorrir” (cf Rosa Sha, Provérbios Persas, 2002: arteplural).
O Papa argentino situa “o fenómeno das migrações forçadas” na estreita ligação “aos conflitos e às guerras e, portanto, também ao problema da proliferação das armas”. São inúmeros os focos de emigrantes tidos como transitórios que ficam denominados de refugiados (as guerras coevas destroem a esmo, fazem inúmeras vítimas civis e arregimentam para o combate armado adolescentes e mesmo crianças) e que, em termos humanitários, a ONU tenta acompanhar e cujas mazelas tenta minorar. Os portugueses bem sabem como a ACNUR, liderada Guterres, e a AMI, com Fernando Nobre, têm desenvolvido um trabalho meritório em prol dos refugiados da guerra e das catástrofes naturais. No caso das catástrofes, não está em causa, à partida, o crime do homem como causa, a não ser no caso de negligência na segurança de habitações e infraestruturas ou no descuido na observância das regras do reto ordenamento do território – o que se tornará grave se a negligência for deliberada. A estas deficiências a montante juntam-se a jusante a caça oportunista aos despojos e o boicote ou açambarcamento em maré de ajuda humanitária espelhado em géneros.
E o Papa lamenta estas “feridas de um mundo que é o nosso mundo, no qual Deus nos colocou para viver hoje e nos chama a ser responsáveis dos nossos irmãos e irmãs, para que nenhum ser humano seja violado na sua dignidade”. E, chamando os bois pelos nomes, denuncia o absurdo e o cinismo que está por trás das atitudes de muitos dos dirigentes das nações:
Seria uma contradição absurda falar de paz, negociar a paz e, ao mesmo tempo, promover ou permitir o comércio de armas. Poderíamos também pensar que seria uma atitude, num certo sentido, cínica proclamar os direitos humanos e, ao mesmo tempo, ignorar ou não assumir a responsabilidade de homens e mulheres que, obrigados a deixar a sua terra, morrem na tentativa ou não são acolhidos pela solidariedade internacional.
Ademais, anote-se a clarividência da denúncia papal exarada quase no início da peça discursiva:
Todos falam de paz, todos declaram que a querem, mas infelizmente a proliferação de armamentos de todos os tipos conduz na direção oposta. O comércio das armas tem o efeito de complicar e afastar a solução dos conflitos, sobretudo porque se desenvolve e se realiza em grande medida fora da legalidade.
Mas não basta a denúncia se não for condimentada pelo compromisso. Assim:
Enquanto estamos reunidos nesta Sede Apostólica, que por sua natureza desempenha um serviço especial pela causa da paz, podemos unir as nossas vozes ao auspiciar que a comunidade internacional impulsione uma nova fase de esforço concertado e corajoso contra o crescimento dos armamentos e para a sua redução. […] Senhores Embaixadores, a Santa Sé declara hoje a vós e aos Governos dos vossos respetivos países a sua vontade firme de continuar a colaborar a fim de que avancem nestas frentes e em todos os caminhos que levam à justiça e à paz, com base nos direitos humanos universalmente reconhecidos.
Mais: Em Lampedusa, Francisco denunciava a indiferença campeante neste mundo de indiferença e de consumismo: “Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa!”. E perguntava-se se alguém tinha chorado a sorte da desgraça dos outros que perdem a esperança, a sorte, a vida – mercê da crueldade de muitos, alguns dos quais, “no anonimato, tomam decisões socioeconómicas que abrem a estrada aos dramas como este”.

Por isso, entende o Papa que os cristãos devem interiorizar estas perguntas do Deus bíblico: «Adão, onde estás?» «Onde está o sangue do teu irmão?».

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Exigência e rigor na "preparação do nosso futuro"

Um inquérito que foi lançado, sob a égide da Universidade de Évora, a milhares de estudantes e também a professores e dirigentes de escolas, agora mais propriamente agrupamentos de escolas, revela dados curiosos, mas que não sei se era necessário recorrer a tal auscultação de opinião para chegarmos ao conhecimento deles.
Todavia, merecem reflexão e desapontamento. A reflexão tem a ver com o reconhecimento de que algo vai mal no sistema, que não exatamente o que foi dito nem o porquê do que foi dito. Especificando, é certo que os programas escolares das diversas disciplinas do ensino secundário são notoriamente extensos; as disciplinas no 10.º ano e no 11.º são bastantes, o que não acontece no 12.º (e, pelo menos no que a comunicação social acentua, tal diferença não vem anotada), e o número de alunos por turma, em regra, é excessivo. Já não será verdade que os alunos não dispõem de tempo para estudo e outras ocupações também necessárias à vida e à educação.
Referem muitos dos inquiridos que não é suficiente a articulação do ensino básico com o secundário e querem que se instale uma lógica de maior e exigência e rigor na preparação do “nosso futuro”.
Este postulado considero-o abstruso – e daí o meu desapontamento – não porque não deva ser como o dizem agora. Mas pergunto-me com toda a indignação que me assiste, solidariamente com tudo aquilo que os professores sofrem na pele, na carne e no sangue: Onde estavam ou estão os agora opinantes quando os professores na escola querem contrariar a indisciplina, o desinteresse, a preguiça, a irresponsabilidade, a falta de autoridade do professor, a má educação de postura, atitudes e comportamentos, bem como às vezes, as ameaças e a violência? Onde estão ou estavam os pais, individualmente considerados e/ou em associação, quando deveriam estar ao lado dos professores mais do que ao lado dos alunos irrequietos e irresponsáveis, a alinhar no hipercriticismo, tantas vezes, demolidor? Onde estavam ou estão alguns dirigentes que dão sempre razão aos alunos e alguns professores que branqueiam situações bem “imbranquiáveis”? Se calhar agora foram todos lestos a dizer mal do sistema, a expor à opinião pública a miséria de algumas unidades escolares (que não sei quantificar, mas a Comunicação Social sabe fazê-lo e nem sempre o faz da melhor maneira) … Onde está a observância por parte de uma enorme franja de alunos do constitucional direito e dever de aprender, com que se relacionam o direito e dever de ensinar – que, aliás, muitos alunos o desejam, tantas vezes na discrição e no silêncio? Como é que é possível que o legítimo direito de aprender não se sobreponha à superficialidade e à balda? Surge mais tarde, quando já não se torna fácil apanhar o comboio do real sucesso, porquê, para quê?
É verdade que o excessivo número de alunos por turma é um obstáculo grande à gestão da sala de aula e ao sucesso. Todavia, não será o maior nem o único. A prova é que, em muitos casos em que o número de alunos é excecionalmente exíguo, os resultados não são bons e a gestão de aula nem sempre é a aceitável. O problema resulta do facto de tudo se exigir da escola, mesmo aquilo que a família e a sociedade deveriam dar, mas não o fazem porque não sabem, não podem ou não querem. Mas, se não podem ou não sabem, deveriam dar mais a mão à escola, em vez de se porem contra ela ou contra os professores, por vezes, invadindo a autonomia profissional e questionando a seleção de conteúdos programáticos e de metodologias de ensino.
Os programas das diversas disciplinas parecem extensos. E sê-lo-ão se os alunos tiverem de aprender quase tudo neste nível de ensino. Quantas horas não perdem os professores do ensino secundário a instruir sobre conteúdos que deveriam estar mais que assimilados e em parâmetros de exercício da cidadania que deveriam estar já incorporados (o saber estar em sala de aula, a assiduidade e pontualidade, o saber ouvir, o saber intervir, o saber cumprimentar, etc.)! E será verdade que esses aspetos foram descurados no ensino básico? É óbvio que não. Os módulos de formação cívica, em regime de disciplina autónoma ou nas abordagens nas diversas disciplinas, têm sido imperativo no ensino básico, aliás como muitos dos conteúdos, em justa consonância com os diversos níveis etários e de escolaridade.
Porém, há dois fatores de insucesso nesta matéria: enquanto uns fazem os marcos de percurso, outros os desfazem; por outro lado, os profissionais nem sempre têm a resiliência suficiente para avançar perante os obstáculos de toda a ordem. E, por trás destes fatores, há uma situação de base perversa: “o não se admitir que seria necessário assumir, em determinados momentos, o insucesso real e, a partir daí, refazer a caminhada rumo ao sucesso”. Ora, a partir do tempo de Roberto Carneiro, apesar da magna reforma educativa que ele pôs em marcha, presumiu-se o sucesso escolar e educativo (Quem não se lembra das cartas por si enviadas com o remetente “da escola do sucesso”?) e, nesse sentido, declarou-se o caráter excecional das retenções, que muitos apostam em levar ao pé da letra, e proibiu-se a retenção no termo do primeiro ano de escolaridade. É certo que na escola os professores são assiduamente chamados à atenção para a importância dos anos de início de ciclo. Implicam marcos específicos de socialização que deveriam ser encarados com cuidados também específicos. Ora, em vez da preocupação com eventuais traumas de infância, alegadamente provocáveis por determinadas medidas educativas, deveriam ter-se em conta as situações parcelares de insucesso. E, se além das medidas consensualmente espelhadas nos normativos legais, fosse necessário provocar uma pausa individualizada no avanço da escolaridade, as equipas interdisciplinares de orientação escolar deveriam entrar em ação de acompanhamento específico junto de quem dele necessitasse. Nem sempre terá sido boa conselheira a insistência quase tautológica em que os professores devem mudar de estratégias, ter em conta o percurso escolar e alargar a avaliação a elementos não estritamente cognitivos, como os valores, as atitudes e os comportamentos – como se fossem os principais responsáveis pelo insucesso. Tal não pode significar que os professores não devam fazer competentemente o seu trabalho pré-didático, didático e pós-didático, sempre na atenção aos contextos de escola e de comunidade (e às crises de infância e de adolescência), sempre na disposição de reavaliar, reformular e promover. Todavia, a escola tem de abandonar o “puericentrismo” como linha-força e a “matetolatria” como postura. É verdade que a escola se faz para os alunos e em torno dos alunos, mas não podem ser eles os condutores do processo de ensino-aprendizagem.
Voltando à extensão dos programas do ensino secundário, deve dizer-se que, além do necessário cumprimento das metas do ensino básico adequadas a cada nível de ensino, progressivas e cíclicas, deveria dar-se ao professor a capacidade da gestão dos programas de acordo com as circunstâncias de turma, constituindo os mesmos uma panóplia de possibilidades curriculares. É que a escola, mais do que do exame final, deveria cuidar da formação académica dos alunos. Diga-se que se torna desviante a insistência excessiva ministerial, editorial e escolar em prol da preparação de exame final. Este deveria surgir por acréscimo e aferição das aprendizagens, ou então modalidade de avaliação única para quem transbordou o sistema escolar. E o ingresso no ensino superior deveria ser reequacionado noutros parâmetros que não as médias do ensino secundário (quase em exclusivo, porquê?). Evitar-se-iam fabricações de notas, sobretudo em instituições do ensino privado, que dizem que preparam melhor para o ingresso no ensino superior que as escolas públicas, as quais, por sua vez, parece que preparam melhor para aguentar com o peso académico daquele patamar de ensino. Mas, se quisermos que os exames constituam modalidade de avaliação final universal, então a gestão dos programas que se faça como na disciplina de Literatura Portuguesa: núcleos fundamentais obrigatórios em todas as escolas; e núcleos a lecionar em regime alternativo. E o exame incidiria sobre os conteúdos obrigatórios e com várias hipóteses sobre os conteúdos lecionados em alternativa, respondendo cada aluno aos conteúdos lecionados na sua escola.
Quanto à insuficiente articulação entre ensino básico e secundário (multiplicam-se as reuniões e os relatórios!), penso que se deve ter em conta que a articulação não é fácil, sobretudo se desde o início (1.º ano de escolaridade) não se doseia o rigor com a flexibilidade, se as tendências pueris não são orientadas, se a prestação docente e discente não se torna cada vez menos lúdica e cada vez mais responsável. Não haverá um demasiado “tutuar” dos alunos em relação ao (à) professor (a), um excessivo cumprimento das vontades caprichosas das crianças? Não seria conveniente uma reorientação da postura parental em relação às crianças e à melhor e equilibrada relação com a escola? Não estará a ser progressivamente prejudicada a autonomia que se quer cada vez mais consolidada para os alunos? Ademais, os resultados das provas finais no fim dos diversos ciclos do ensino básico não são famosos, mas os alunos, regra geral, transitam para o ciclo seguinte. Mais: o regime de assiduidade é exigente, segundo o estatuto do aluno e ética escolar, mas o seu atropelo mais não é que a sobrecarga de trabalhos para os professores; idem para o regime disciplinar, em que tudo ou quase tudo se inobserva, mas nada acontece, a não ser mais trabalho de papelada para docentes e diretores de turma.
Finalmente, por não relevante, diga-se que não tem suporte real a afirmação de que os alunos não têm tempo para estudar. Regra geral, o tempo não falta. Será é mal aproveitado. Os alunos passam muito tempo fora de casa sem ocupação. Mas podem estudar na escola, não tendo de o fazer necessariamente em casa: até, sem falar de ludotecas e bibliotecas escolares, para matar o tempo, ainda dispõem de tempo para ginásio, academias, piscinas, passeios e farras. Podem não ter tempo eventualmente para os ditos testes. E aí algo vai mal: se a avaliação das aprendizagens resulta de várias modalidades, instrumentos e momentos, porquê um disciplinamento específico à volta dos testes? Se ela deve incidir no processo e nos resultados, porque não levar os alunos a estudar todos os dias? Porque é que os pais têm de ser informados em especial sobre testes e não sobre todo o processo escolar? Porquê a marcação antecipada, a obrigatoriedade do teste e a não prestação de dois testes no mesmo dia?

Enfim, só no termo da escolaridade é que nos damos conta de que se cedeu ao facilitismo ao longo da escolaridade? Só em inquérito anónimo é que temos a ousada coragem de sugerir a obrigação de maior exigência e rigor na preparação do nosso futuro? Esquecemo-nos de que a escola nos dá tantas vezes a palavra?

terça-feira, 27 de maio de 2014

O primeiro obstáculo sou eu!

A afirmação epigráfica é do Papa Francisco na ronda de questões lançadas pelos jornalistas aquando do regresso da Terra Santa. Ela encimou a resposta a uma pergunta em concreto sobre os obstáculos à reforma da Cúria Romana. Mesmo assim, ela dá-me azo a uma reflexão mais alargada, embora sem me afastar muito da temática daquele encontro com os jornalistas.
É óbvio que o Papa argentino, quando esclarece os jornalistas sobre o panorama político e social que contextualiza as eleições europeias, como aliás as grandes movimentações no mundo, tem como subjacente que o maior obstáculo às reformas é sempre o homem que se deixe dominar pelo “eu” eivado do egocentrismo, do egoísmo exacerbado, do egotismo.
Com a simplicidade já proverbial de Francisco, temos a resposta a uma pergunta sobre o crescimento do populismo manifestado nas recentes eleições europeias, estribada no facto de nos últimos dias ter tido tempo para rezar um pouco o Pai Nosso, mas não haver disposto de notícias. Mais: confessa que, ao ouvir falar de confiança ou desconfiança na e da Europa ou mesmo da saída do Euro, disto não entende nada. No entanto, não deixa de sublinhar aquilo que deve preocupar todas as pessoas, porque é extremamente grave – o desemprego, a palavra-chave do momento. E a sua grande causa explicita-se de forma muito simples: estamos num sistema económico múltiplo que se centra exclusivamente no dinheiro, quando o centro do verdadeiro sistema económico deve ser a pessoa humana – o homem e a mulher.
Ora, o grande obstáculo à centração do sistema económico no homem é o outro homem, aquele que pensa e diz coisa parecida com isto: o mundo sou eu, o Estado sou eu. Ah, pois, o grande obstáculo sou eu! Não haja a menor dúvida de que o enunciado hobbesiano do homem como lobo do homem tem plena atualidade no hoje do mundo. E os sinais não abrem para otimismos.
E o homem, enquanto obstáculo à humanização das estruturas e dos sistemas, à verdadeira reforma, para manter o status quo sistémico do “lucro pelo lucro”, ao mesmo tempo que faz o discurso da fala mansa da solidariedade e da repartição equânime dos sacrifícios, empreende várias medidas de descarte, que o Papa especifica: o descarte das crianças, como o indicam as taxas de natalidade na Europa; e o descarte dos idosos. E chega ao ponto de afirmar que, quando necessitam deles, remobilizam-nos para o trabalho, mesmo que estejam jubilados/reformados. Porém, na ancianidade, descartam-nos, recorrendo a situações de eutanásia, oculta em muitos países. E, ainda para mais, negoceia-se escandalosamente com lares de idosos, saúde e funeral.
Mas o descarte estende-se aos jovens, o que o Papa considera “gravíssimo”. E de cor lança dados sobre a desocupação juvenil: 40%, em Itália; 50%, em Espanha (mas, na Andaluzia e Sul de Espanha, 60%). E refere que este sistema económico desumano produz a geração jovem de nem-nem, isto é, de jovens que nem estudam nem trabalham. E assim se descarta toda uma geração.
Este é um quadro traçado por um Pontífice que diz não estar suficientemente informado, que mal teve tempo de rezar o Pai Nosso nos últimos dias e que não entende nada de confiança e desconfiança na e da Europa ou de vantagens e desvantagens da saída do Euro. Que diria se tivesse tempo, papéis e o conhecimento que talvez desejasse.
Mas a afirmação referenciada em epígrafe aplica-se a mais outros campos.
É o “eu” do homem pecador que impede a reforma diária da Igreja (como diziam os antigos Padres da Igreja, Ecclesia semprer reformanda est – a Igreja deve reformar-se sempre) e a sua purificação pertinente. E, como apostava Frei Bartolomeu dos Mártires, também os cardeais! Ficou célebre a sua sentença: eminemtissimi cardinales indigent eminentissima reformatione.
Por isso, em termos de reforma na postura, ao mesmo tempo que se faz uma opção de Igreja preferencial pelos pobres e se preconiza uma Igreja pobre e serva, surgem as contradições com a mensagem, destacando-se as que vieram para as pantalhas da comunicação social: a alegada festa opípara no dia das canonizações de João XXIII e João Paulo II e as questões económicas protagonizadas pelo cardeal Bertone, atualmente sob estudo. O Papa refere a advertência do Mestre sobre a inevitabilidade da existência dos escândalos. Todavia, evoca o trabalho levado a cabo na reformulação da missão e estratégia do IOR, acentuando que foram encerradas quase dois milhares de contas tituladas por pessoas e entidades que não tinham direito a elas, bem como o esforço de reordenamento das finanças vaticanas através da criação e entrada em funcionamento da Secretaria de Economia, que levará por diante as reformas aconselhadas pelas comissões de estudo das finanças. Mesmo assim, Francisco alerta para a necessidade de atenção à continuidade das reformas e à nossa condição de pecadores e de pessoas débeis.
Sobre a necessidade de purificação da Igreja, a dificuldade é a mesma – a condição de pecadores e de débeis dos homens da Igreja. Todavia, o fenómeno gravíssimo do abuso sexual de menores constitui por parte de clérigos, segundo o Papa, uma traição, que ele carateriza:
Atraiçoa o corpo do Senhor porque estes sacerdotes que devem conduzir este menino, esta menina, este rapaz, esta rapariga à santidade, e este menino e esta menina confiam. E estes sacerdotes, em vez de os encaminharem à santidade, abusam. E isto é gravíssimo. É como… Far-vos-ei uma comparação: é como uma missa negra, por exemplo: tu tens que levá-lo (ao menino) à santidade e leva-lo a um problema que vai durar toda a vida.
Assegura o Papa que, nestas coisas, não há “filhos de papá”. Todos têm de ser punidos – abusadores e encobridores – há, pois, vários casos sob investigação e deve prestar-se toda a colaboração às autoridades civis. Não deixa de sublinhar que se trata de um crime hediondo existente em muitos lugares, mas que lhe interessa sobremodo o que se passa em Igreja.
É também o homem manipulado pelo seu egotismo, pelos interesses, que se tem tornado o grande obstáculo à paz, à paz duradoura e também em Jerusalém. A isto, Francisco diz:
A Igreja Católica já estabeleceu a sua posição do ponto de vista religioso: a cidade da paz, das três religiões. Porém, as medidas concretas de paz devem resultar de negociação […] Creio que se deve negociar com honestidade, fraternidade e muita confiança. Necessita-se de valentia para isto e eu rezo muito para que estes dirigentes tenham a valentia de percorrer o caminho da paz.
Provavelmente será o ego histórico de homens que prefere a observância das regras burocráticas e rubricistas ou a multiplicação das comunidades sem a celebração eucarística a atender ao essencial e a, por exemplo, colocar com franqueza as cartas na mesa da discussão sobre a obrigatoriedade do celibato eclesiástico como condição de ingresso no sacerdócio na Igreja Latina. Se, como todos referem, se trata de questão disciplinar (e não dogmática), estude-se a sério e passem-se das palavras aos atos, evidentemente sem deixar de salientar as vantagens teológicas e espirituais da opção também por sacerdócio celibatário, tal como em Igreja há, tem havido e creio continuar a haver a abundância das pessoas (homens e mulheres) consagradas na observância dos valores evangélicos da pobreza, obediência e castidade

Evidentemente que o obstáculo à reforma contínua da Igreja e do Estado será sempre um ou mais “eus”.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Para onde vai a Europa? Que fazer em Portugal com estas eleições?

São conhecidos os resultados das eleições para o Parlamento Europeu e encontra-se já praticamente desenhada a distribuição de mandatos naquele areópago internacional. Nestes termos, verifica-se que as formações partidárias que se organizam em torno dos dois grandes grupos europeístas PPE (grupo do Partido Popular Europeu) e S&D (Grupo da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas) ainda são quem obteve o maior número de votos dos validamente expressos em toda a UE. No entanto, o PPE (213 mandatos, resultantes de 28,36% dos votos), que ganhou as eleições, não dispõe de maioria capaz de claramente puxar pelo projeto europeu, a não ser com opões concertadas com a segunda formação partidária, que se lhe segue em resultados, a S&D (190 mandatos, resultantes de 25,30% dos votos).
Esta situação da correlação das forças políticas, inquestionavelmente europeístas, resulta indubitavelmente do facto de terem mostrado um frágil interesse na corporização do desígnio da Europa dos cidadãos pautada pelo princípio da subsidiariedade e pelo valor da solidariedade. Com efeito, a união política, a governabilidade, a união económica e financeira – reguladas por uma efetiva união bancária, com uma moeda única a servir de instrumento gestionário e relacional – está longe de aparecer no horizonte. Depois, os grandes rasgos perspetivados na UE – circulação de pessoas e bens, acesso a emprego em qualquer dos Estados-membros, patamares mínimos comuns em educação, saúde e segurança social, combate eficaz ao terrorismo, medidas sérias anticorrupção, elevação equânime dos salários, responsabilidades comuns nas dívidas públicas, permeabilidade de serviços – são ainda valores distantes.
Não bastava esta distância dos valores e das raízes (cristãs, humanistas e iluministas) e eis que muitos partidos populistas, eurocéticos ou nacionalistas (alguns são mesmo antieuropeístas; e vão lá fazer o quê?) vão entrar no Parlamento Europeu. Em alguns países, não tanto quanto se temia. Contudo, “a França dá um sinal de alarme com a vitória da Frente Nacional”, afirmou o ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, o socialdemocrata Frank-Walter Steinmeier.
Bastará este susto, que faz do Parlamento a visível manta de retalhos, para levar a cabo a profecia do primeiro-ministro francês Manuel Valls, que se afirmou “convencido que a Europa pode ser reorientada para apoiar mais o crescimento e o emprego, o que não faz há anos”?
A fragmentação parlamentar verificada após as eleições europeias em que mais de metade dos eleitores se absteve (a participação cifra-se nos 43.09%), mostra à saciedade as fragilidades do desenvolvimento do projeto de uma Europa mais unida nos papéis que na prática. E, sobretudo, que mensagem de futuro dará aos cidadãos uma UE que não soube ou não quis responder a uma crise sistémica, a não ser pela austeridade sobre os países em dificuldade e resgate dos bancos de Alemanha e quiçá França? Que peso moral e político terá uma UE que perante conflitos regionais e mundiais tem apresentado uma posição débil, quase obediente aos ditames norte-americanos?
O facto de os grandes partidos pró-europeus, embora continuem largamente maioritários, terem perdido bastante poder em relação a 2009, dever-se-á muito ao descalabro do PS francês. O resultado global obtido por aqueles partidos só não terá sido pior mercê dos bons resultados do Partido Democrata do primeiro-ministro Matteo Renzi, em Itália. Os outros partidos pró-europeus também estão a cair, com os liberais a conseguirem menos lugares que em 2009 e os Verdes a perderem cinco. Porém, crescem os partidos radicais. A extrema-direita francesa de Marine Le Pen arrebatou o maior número de votos. A esquerda radical, que apresentou o grego Alexis Tsipras como candidato à presidência da Comissão, melhora a sua presença, sobretudo devido à vitória do Syriza na Grécia. E, sempre contrariante da possibilidade de o Parlamento escolher o próximo presidente da Comissão, o primeiro-ministro britânico David Cameron viu a sua posição reforçada pela vitória do Ukip.
E, colocando-se a questão estritamente política da escolha do presidente da Comissão, sabe-se que a novidade destas eleições poderia levar à escolha da presidência deste órgão com base necessária nos resultados eleitorais. Efetivamente, segundo os tratados mais recentemente aprovados, caberá ao Conselho Europeu propor o Presidente da Comissão, tendo em conta os resultados das eleições para o Parlamento, que este órgão coerentemente sancionaria pelo sistema de votação maioritária. Por isso, sugiram na ribalta das campanhas eleitorais candidatos a Presidente da Comissão: Jean-Claude Juncker, Martin Schulz, Tsipras, Guy Verhofstadt e a dupla Ska Keller/José Bové.
Segundo as expectativas criadas junto dos eleitores, os nomes da provável escolha seriam Jean-Claude Juncker, pelo PPE, ou Martin Schulz, pela S&D, no pressuposto de que a formação política de que emerge cada um deles obteria resultados que possibilitassem a escolha do seu candidato. Porém, ante os resultados escrutinados, a escolha do Presidente torna-se problemática. Ou os grandes partidos se entendem em torno de um destes seus candidatos ou terão de encontrar um terceiro nome. Entre os nomes que já circulam está a atual diretora do FMI, a francesa Christine Lagarde, e a primeira-ministra dinamarquesa, Helle Thorning-Schmidt.
E, se o luxemburguês Juncker, candidato do PPE à sucessão de Barroso e considerado demasiado “federalista” pelos britânicos, garante que não se vai ajoelhar diante de nenhum líder, porque “ganhou as eleições”, os dirigentes não têm essa certeza. Assim, a chanceler alemã Angela Merkel, mais do que nunca vista como a dona da União Europeia, nunca se mostrou entusiasta com a afirmação hegemónica do Parlamento e da Comissão em detrimento dos Estados (do seu Estado), podendo vir a aproveitar o impasse para impor o seu candidato. Mais: disse-se feliz com o “resultado sólido” dos conservadores alemães e preparada para discutir o novo presidente da Comissão Europeia. Por seu turno, na carta de convite aos dirigentes dos 28, o presidente do Conselho Europeu, Herman Van Rompuy, dizia ser “cedo demais” para falar em nome para a presidência da Comissão. Assim, em conformidade com a mencionada carta-convite, os chefes de Estado e de Governo dos 28 Estados membros reúnem-se no dia 27 à noite, em Bruxelas, para análise dos resultados das eleições, marcadas por uma clara rejeição das instituições europeias em vários países, a acompanhar o voto de protesto (ou o refúgio no não voto) em relação a muitas das políticas nacionais.
Ora, se a simples escolha do presidente de um órgão comunitário se torna tão problemática, como é que poderemos crer na capacidade da autoridade comunitária para afirmar e desenvolver o projeto europeu conforme ele se encontra perspetivado e definido? A Europa caminha para a consolidação de si mesma ou aproxima-se do abismo? Tudo depende dos homens, dos crentes na Europa!
***
No caso português, o comentador político de domingo da TVI estará bem frustrado por dois motivos: a sua coligação AP (Aliança Portugal) perdeu estrondosamente as eleições com o pior resultado de sempre (27,7%); o PPE ganhou, mas sem possibilidade de impor o seu candidato na presidência da Comissão, razão pela qual ele recomendara fervorosamente o voto na AP. Mas, deixando de lado esta ferroada de mau gosto, fixemo-nos em aspetos essenciais, mas não sem considerar os que também são importantes a nível sintomático. Entre estes, contam-se: a significativa perda de votos do Bloco de Esquerda (BE), com menos um mandato; a acentuada subida da CDU, com mais um mandato; a novidade do volume de votos no Movimento do partido da Terra (MPT), pelos vistos, com dois mandatos; e a obnubilação do Partido Livre, em que muitos diziam ter esperança.
Mas os aspetos essenciais prendem-se com o crescimento da abstenção, a subida aterradora da percentagem de votos nulos e brancos e a ambiguidade da vitória/derrota. Antes de mais, a abstenção cresceu, embora tal crescimento possa ter sido nominalmente potenciado pelo volume de emigrantes que mantêm o recenseamento em território nacional. E, se os partidos sabem que os portugueses estão tão divorciados da política, têm a obrigação grave de mudar de postura em relação ao Estado, de estratégia e de discurso e, paralelamente à campanha ideológica e de projeto, têm de mobilizar para o voto como dever e direito cívico de todos. E as entidades que detêm o múnus da formação em cidadania (escolas, partidos, associações, empresas, Igrejas…) têm de recentrar as metas e os objetivos da formação. No caso, das eleições europeias, havia que discutir a sério as grandes questões do projeto europeu, as propostas para melhorar a caminhada da UE e os temas e problemas nacionais na sua relação com a Europa (aspetos positivos, aspetos negativos, influências mútuas, servilismos, hegemonias, etc.). E isto não se fez. Perdeu-se imenso tempo com nomes, com aparições e com a manutenção de más escolhas. Assim, não admira que, desgraçadamente, ao protesto plasmado na abstenção crescente se tenha adicionado o protesto evidenciado pelo voto branco e pelo voto nulo (7% é muito e não pode decorrer da distração ou da inépcia do eleitor!) e, ainda, pelo não acesso de 12 mil eleitores ao voto por não funcionamento das respetivas mesas.
Quanto à ambiguidade da expressão de voto, registam-se dois fenómenos suplementares: a dispersão de votos pelos partidos. Foram identificados os partidos que obtiveram mandatos, embora não tenham direito a canto de vitória. Porém, muitos eleitores depositaram a sua confiança em muitos dos pequenos partidos. Mas o que dá que pensar é o duplo fenómeno da derrota estrondosa da AP, com menos de 30% dos votos do eleitorado votante; e a vitória tangencial do Partido Socialista, que sabe a pouco, no dizer de António Costa.
Como é possível que uma coligação que tanto mal fez aos serviços públicos e parapúblicos, às pequenas e médias empresas, ao povo trabalhador e aos aposentados/reformados perspetive uma vitória eleitoral nas próximas eleições legislativas? Mais: como é que têm os líderes a distinta coragem de prometer que, a partir do dia seguinte ao das eleições, devolveriam a esperança aos portugueses? Será que o eleitoralismo vai anular tudo o que está previsto no DEO, na carta de conforto ao FMI e no espectro de resoluções do TC desalinhadas das opções do governo?
E, com todo o respeito pelo eleitorado, pergunto-me: Será que não se pagam impostos, não há reformados, não se anularam SCUT e não se fecharam serviços públicos nos distritos de Aveiro, Braga, Bragança, Leiria, Viana do Castelo, Vila Real e Viseu? Porque não querem vir para cá morar os governantes, se aqui se vive tão bem com os benefícios da AP?

Porém, a vitória do PS (31,4%), pela diferença de uns magros quase 4%, não dá para cantar, cantar, cantar. Ao ouvir os socialistas, lembrei-me do cacarejar da galinha, depois de ela pôr um simples ovo, ou da euforia do meio bêbado, que faz trinta por uma linha. Terá este partido socialista a capacidade de governar de forma aceitável, no período pós-troika, um país verdadeiramente estilhaçado pela penúria resultante da austeridade sentida pelos mais frágeis e pela classe média verdadeiramente esgotada? Servir-lhe-á esta liderança invertebrada e inerme na postura e no discurso. Parece que há um país ansioso por sair do túnel e o braço seguro de que precisa não se revela nada seguro, mas garante que se sente bem seguro… E o país precisa de quem o lidere, sem se armar em Messias caído de para-quedas!

domingo, 25 de maio de 2014

A escola e a curadoria digital

Nota prévia
Nos últimos anos, tornou-se mais momentoso e cada vez mais rápido o acesso à informação, originando novos serviços, novas práticas e novas exigências. A acessibilidade aos objetos digitais e a preservação dos mesmos passaram a constituir uma forte preocupação e um premente desafio para as instituições culturais como bibliotecas, arquivos e museus, dando espaço ao estabelecimento da “curadoria digital”.
Se esta curadoria deve ser encarada no âmbito dos servidos acima referenciados, deve sê-o de forma peculiar no contexto da biblioteca escolar – o que, em termos de desafio, coloca algumas questões de reposicionamento do professor bibliotecário e da inventariação de um novo modelo de formação para estes profissionais. Nestes termos, aqui ficam algumas linhas de reflexão infobiblioteconómica: o âmbito da curadoria digital; o interesse e importância da curadoria digital; a dupla função da curadoria; as fases da curadoria digital; a aplicação ao estatuto do professor bibliotecário; e considerações futuras.
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O âmbito da curadoria digital
A “curadoria digital” abrange naturalmente um complexo de tarefas que passam pela pesquisa, crítica, seleção, preservação, manutenção, apresentação e arquivamento de ativos ou dados digitais, com vista à disponibilização aos usuários. Sendo assim, a curadoria fica associada ao processo de criação e desenvolvimento de repositório de dados para consultas atuais e futuras realizadas por simples curiosos, competentes pesquisadores, cientistas, historiadores e estudiosos de outros ramos do saber e/ou atividade.
Podem, assim, identificar-se as principais operações da curadoria: recolha de ativos; fornecimento de busca e recuperação de ativos; certificação de confiabilidade e integridade dos conteúdos; e continuidade e comparabilidade do conteúdos.

O interesse e importância da curadoria digital
Qualquer empresa e serviço público ou parapúblico que pretendam primar pela eficiência e pela eficácia (a que hoje se associa o binómio rigor / rapidez) utilizam a curadoria digital para melhorar a qualidade da informação e dos dados na construção da sua estratégia interna e externa e para otimização dos seus processos operacionais. No entanto, o seu papel sobressai em: instituições de pesquisa; cursos académicos; simpósios; jornais e outras publicações periódicas; estações de rádio e televisão; departamentos do Estado; arquivos e bibliotecas.
A curadoria responde às sucessivas e experimentadas situações de obsolescência e evolução do formato de armazenamento; à necessidade de aumento da taxa de criação de novos dados e conjuntos; ao fenómeno do amplo acesso e busca flexível e variada; à comparabilidade de definições sintáticas e semânticas dos diversos conjuntos de dados.
Além do volume de informação a recolher e a prestar, importa acautelar a qualidade – o que se consegue pela mobilização de técnicas cientificamente sustentadas, pela cultura de autoavaliação de processos e resultados e pelo recurso a solicitação de heteroavaliação, lançando de mão das diversas formas de interação facultadas pelo trabalho em rede.
A abundância de informação, com a pertinência de ter de se evitar a saturação e a congestão informativas, só se tornará útil se for acompanhada do conveniente controlo e se não perder de vista as exigências de um éthos estribado nos pressupostos de uma antropologia sã ou, se quisermos, pelos princípios axiológicos que devem reger as sadias relações interpessoais e intergrupais.

A dupla função da curadoria
A curadoria digital constitui-se como alternativa à tradicional organização de informações relevantes e como um filtro face ao crescimento exponencial de geração de dados. Asseguram os estudiosos que, há uns anos esta parte, a quantidade de dados produzidos pela sociedade em rede deixou de ser suportada pela capacidade de armazenamento disponível para o seu arquivamento. Hoje, as redes sociais, através dos diferentes servidores e das diferentes ferramentas (por exemplo: Twitter, informação em tempo real; Paper.li, jornal personalizado online agregador de conteúdos; Storify, mural de histórias de redes sociais; Pinterest, lista de interesses visual de produtos; Spotify, streaming de música através de listas personalizadas), e os aparelhos móveis são os principais artefactos utilizados para aumento do número de dados armazenados na rede digital a cada instante.
Mas a curadoria também se constitui em modalidade humana de administrar o fluxo de conteúdo digital em contraposição aos filtros automáticos gerados através de algoritmos. As redes sociais e os outros sistemas de informação que organizam os dados de acordo com o perfil dos respetivos usuários passam a exercer o controlo sobre o quinhão de informação que o usuário pode consumir apresentando apenas um tipo específico de conteúdo. Neste contexto, o consumidor passa a ter uma postura passiva e deixa de lado a postura ativa e aleatória de descoberta de conteúdo oferecido pela curadoria digital. É preciso ter em conta que este mecanismo de controlo, se for manipulado de forma “inética” pode compaginar uma perversa limitação e criar um sistema de dependência supina, o que não é desejável nem faz crescer o cibernauta, que deve dispor de um forte sentido crítico e de discernimento.

As fases da curadoria digital
Em consonância com as tarefas enunciadas acima e a dupla função da curadoria, podem estabelecer-se-lhe as seguintes fases e/ou modalidades da curadoria digital:
Conceptualização, que abarca a conceção e o planeamento da criação de conteúdo, incluindo a definição de métodos de recolha, seleção crítica e armazenamento;
Criação ou receção, que abrange: a produção de conteúdo atribuindo elementos de metainformação administrativos, descritivos, estruturais e técnicos, podendo também ser adicionados, nesta fase, elementos de metainformação de preservação; e a receção de conteúdo, de acordo com políticas de recolha, de criadores de conteúdo, outros arquivos, repositórios ou data centers e, se necessário, a atribuição de metadados apropriados;
Acesso e uso, que garanta fácil acesso a conteúdos públicos e privados pelos usuários;
Avaliação e seleção, que implica a avaliação e seleção de conteúdos digitais que requerem preservação atendendo a normas, processos e requisitos necessários para o procedimento;
Deposição, ou seja, disponibilidade para se desfazer de conteúdos não selecionados para preservação, atendendo a normas pré-estabelecidas autonomamente e/ou de acordo com as convenções firmadas com outrem;
Backup, ou seja, transferência de conteúdo digital para um arquivo confiável, no respeito pelas normas pré-estabelecidas autonomamente e/ou de acordo com as convenções firmadas com outrem;
Preservação, com as ações que garantam a preservação e identificação do conteúdo;
Reavaliação, ou seja, avaliação e seleção adicional para conteúdo já avaliado;
Armazenamento, com manutenção dos dados de forma segura dentro dos padrões pré-definidos;
Transformação, ou seja, criação de novo conteúdo a partir do original.

Sobre a aplicação ao estatuto do professor bibliotecário
Depois do que fica dito, pouco há a acrescentar aos desafios que se colocam à formação e à atividade de ação e coordenação deste professor especialista e seus colaboradores.
Basta que se tenha em conta a crescente dimensão da biblioteca escolar, dada a agregação administrativa e pedagógica de agrupamentos já constituídos ao abrigo do DL n.º 115-A/98, de 4 de maio, a que se seguiu: o DL n.º 75/2008, de 22 de abril, alterado e republicado pelo DL n.º 137/2012, de 2 de julho. Depois, sabemos que a biblioteca tem outras valências, como: sala de exposições, hemeroteca, sala de leitura, Internet, acesso a redes sociais (a que não se obvia com proibição, mas orientação, aquisição de nível etário e aumento de banda larga da Net escolar), mediateca, etc. – um complexo centro de recursos.
E também o professor bibliotecário sabe que os colaboradores devem ser sensibilizados e mobilizados para esta literacia / curadoria, até porque eles possuem uma formação muito desigual nesta área e encontram-se já demasiado sobrecarregados com trabalho burocrático e a atividade em sala de aula, por razões de ordem social e familiar, não se encontra nada facilitada.
No entanto, a escola, se quer preparar para a vida ativa e cidadã, não pode deixar de melhorar o seu desempenho tecnológico e colocá-lo ao serviço da educação, cultura, ciência e arte.

Considerações futuras
Face ao exposto, é preciso passar das palavras aos atos. Não basta que se reforce o investimento em educação. É igualmente necessário promover uma racional afetação de verbas e recursos. E a Biblioteca tem de ser encarada como um dos principais lugares de prestação de serviço educativo, com relevância similar da reconhecida à sala de aula e ao pavilhão desportivo.
Por isso, é de repensar o esforço de modernização da biblioteca e seus recursos, abrindo mais a mão das aquisições em equipamentos, unidades bibliográficas e similares e em recursos humanos (unidades disponíveis e formação adequada). Serão também de evitar as falhas, lacunas e ruturas dos serviços de internet e intranet escolares, para que nenhum dos serviços entre em colapso.

A biblioteca não pode ser um lugar de passatempo, castigo ou espaço de menoridade pedagógica. Deve, sim, integrar a missão holística da escola. Analogamente e na medida das suas dimensões, se deve apetrechar todos os centros de recolha e prestação de dados existentes na escola, que devem ser objeto da conveniente valorização.

A parábola do pai e dos dois filhos

O contexto da parábola
O Evangelho de Lucas, no seu capítulo 15, apresenta-nos as três parábolas da misericórdia divina (vd Lc 15,1-32). O Novum Testamentum, em grego e latim, com aparato crítico de Augustinus Meerk, S.I. (9.ª ed., de 1964) dá a este capítulo a designação genérica de parabolae misericordiae divinae, sem qualquer designação subtitular para cada uma das suas três parábolas.
Convém referir que estas parábolas vêm contextuadas pelos dois primeiros versículos do seguinte teor: “Ora aproximavam-se dele os publicanos e pecadores, todos para O ouvirem. E os fariseus e os escribas murmuravam entre si dizendo: este acolhe os pecadores e come com eles.” (Lc 5,1-2).
Como pode ver-se pelo início da perícopa, há dois grupos diferentes com atitudes opostas: os que se aproximavam para escuta do Mestre, os considerados fora da Lei e, consequentemente, da Salvação, os publicanos (telónai, funcionários públicos, cobradores de impostos) e os pecadores (amartolói, apontados a dedo por todos); mas os fariseus ou se aproximavam ou ficavam à distância, só para murmurarem ou, noutras circunstâncias, para O experimentarem ou tentarem (cf Mt 22,18.35).
Perante este cenário, Jesus desafia-os com a parábola que é consensualmente denominada da “ovelha perdida” e, em alternativa, com a parábola conhecida como da “dracma perdida”.
E, ao colocar palavras de exultação e convite à alegria na boca do pastor que encontra a sua ovelha e na da mulher que encontra a sua dracma, o Mestre dá asas à afirmação da misericórdia divina: “Digo-vos que assim haverá alegria no céu por um pecador que se arrepende, mais do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento” (Lc 15,7); e “Assim vos digo que há alegria diante dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende” (Lc 15,10). A alegria por um pecador que se converte é enorme no céu e, em especial, diante dos anjos de Deus.
Como se referiu, a susodita versão do Novo Testamento não subtitula cada uma das parábolas. As designações referidas são comuns a muitas traduções dos evangelhos, que contêm tais designações. A designação não consensual refere-se à terceira parábola, que muitos designam como do “filho pródigo”, alguns designam por “os dois filhos: filho pródigo e o filho fiel”, outros designam, por “os dois filhos” e outros, ainda, por “a parábola do homem que tinha dois filhos”.
Convém advertir que a denominação de “filho pródigo” ou a contraposição entre “filho pródigo” e “filho fiel” é conotativa de um pré-juízo valorativo de sentido negativo sobre um, e só um, dos filhos, o que é perverso numa boa leitura da Bíblia, sobretudo se não houver abertura de espírito para acolher a lição que o Mestre quis veicular com a parábola. Deixo, desde já, aqui a minha homenagem ao Padre José Paula que me abriu os ouvidos para a releitura desta parábola.
É outrossim de chamar a atenção para a não legitimidade, sugerida por algumas traduções, de se concluir que se trata de mero aditamento às outras duas parábolas. Assim, não podemos contentar-nos com um “disse ainda”, no sentido de acrescentar; teremos talvez, de considerar as anteriores parábolas, formuladas em termos de desafio, como propedêutica para a escuta da grande parábola da misericórdia. A versão grega na obra suso citada inicia-se por “eipen de” como se fora perícopa autónoma (ou seja, com uma mensagem específica, embora no contexto global da misericórdia) – o que é corroborado pela versão latina “ait autem” (porém, disse).
As primeiras parábolas surgem no esquema de pergunta-resposta-ensinamento. Porém, a terceira aparece como uma narrativa estruturada com narrador, espaços diversos e contrastantes, várias personagens (sendo uma delas estruturante da narrativa) e uma ação servida por ações prévias e ações subsequentes. Não há já perdida ovelha ou dracma (que foram finalmente reencontradas) mais valiosa que o filho perdido que se reencontrou, pelo que o ensinamento já não remeterá para o ambiente de céu futuro, mas para o agir do hoje, aqui e agora, já: “Mas nós tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto” (necrós én) – e não só perdido como a ovelha ou a dracma – “e voltou à vida; estava desaparecido” – neste aspeto, partilhava da situação da ovelha e da dracma, embora muito mais importante – “e foi encontrado”.


A análise da parábola
Um homem tinha dois filhos” (15,11) – e não só um ou mais – o que bem podia suceder. Poderiam ser mais, mas dois bastam para o ensinamento que a parábola transmite.
O mais novo disse ao pai: Pai, dá-me a parte da fortuna que me pertence. E ele repartiu por eles a fortuna” (15,12). Como, para que ou porque é que o filho mais novo se arrogou o direito de exigir os bens tendo lugar na casa paterna e com o pai ainda vivo? Porém, o pai não o questionou. Cedeu, mas dividiu a fortuna pelos dois filhos, embora só um o tenha exigido. Este pai é justo na sua liberalidade (não é liberalismo!) e distribui igualmente pelos dois sem inquirir o que vai cada um fazer com a fortuna. É um pai que respeita a liberdade dos filhos, mesmo que ela ostente o capricho de mocidade ou leve a correr riscos, confiando que os filhos são responsáveis na sua maioridade e maturidade.
E, poucos dias depois, o filho mais novo, ajuntando tudo, partiu para uma longínqua região, e ali desperdiçou os seus bens, vivendo dissolutamente” (15,13) – grego, asótos; latim, luxuriose). Esta partida foi à revelia do pai, ao “deus-dará”, e não concertada com ele (apedémesen, no grego, e peregre profectus est, no latim. Há um afastamento por rutura; e não simples partida, abiit). O narrador diz só o que refere o versículo e não mais. Veremos, adiante, de que será acusado o filho moço, por inveja.
E, havendo ele gastado tudo, houve naquela região uma grande fome, e ele começou a padecer necessidades. E foi, e chegou-se a um dos cidadãos daquela terra, o qual o mandou para os seus campos, a apascentar porcos. E desejava encher o seu estômago com as alfarrobas que os porcos comiam, e ninguém lhas dava” (15,14-16).
Não haja dúvidas de que a vida dissoluta conduz à falência total em menos tempo do que se imagina. E, na abundância, todos se fazem amigos e se acercam parasitariamente do perdulário, sugando-o até ao tutano. Ele não disse ao pai que iria malbaratar a fortuna ou inventar melhor forma de a rentabilizar. Uma vez caído em desgraça, o antigo rico, que, em vez de amealhar e continuar a trabalhar, de tudo se foi desfazendo, tornando-se agora um dos novos pobres e mesmo miseráveis, ninguém olha para ele. Se lhe dão trabalho, será do que mais ninguém quer fazer, como, por exemplo, guardar porcos. Mais: exige-se que nada falte aos animais, mesmo que à pessoa tudo falte. Os animais são quem tem os seus direitos; os dos homens não são absolutos, podem ceder em situação de necessidade. Se lhe dessem as alfarrobas, talvez se habituasse à situação de miséria. De resto, como é que se entenderia que as pessoas se tornem impenitentes e de coração empedernido?
Ora, isto não é o abstrato da parábola. Aconteceu outrora e continua a acontecer, como consequência do pecado pessoal, que leva à degradação da pessoa humana; e acontece como estrutura social e comunitária de pecado pelo abandono ostensivo (ou dissimulado) de quem precisa, pelo compromisso em posturas de opressão, repressão e escravização (pense-se na exploração laboral e na exploração sexual, no tráfico de pessoas e de órgãos, no falacioso aliciamento migratório para situações enganosas, alegadamente de trabalho bem pago).
Mas haja Deus. Porém, caindo em si, disse: Quantos jornaleiros de meu pai têm abundância de pão, e eu aqui morro de fome! Levantar-me-ei, e irei ter com meu pai, e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e perante ti. Já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus jornaleiros.” (15,17-19).
Teve atitude sensata: não se agarrou à lama da miséria; teve um baque de lucidez. Reconhecendo a vida misérrima (o que falta a muitos que pecam), reconhece o desafogo e até a liberdade com que os trabalhadores do pai vivem, apesar de não terem fortuna própria. Então, decide-se por uma postura correta, totalmente contrária à arrogância. Propõe-se partir e abeirar-se do pai, com a humildade de quem pecou. Não se esqueçam as duas dimensões do pecado – contra Deus (contra o céu) e contra as pessoas (contra ti). Mas o pecador, o prófugo, sabe que já não é digno da filiação em relação ao pai que abandonou e aceita que ele o possa vir a tratar como jornaleiro (porém, não como um jornaleiro qualquer, mas com pelo menos a dignidade de jornaleiro de seu pai), como veremos o pai não terá este entendimento da ética dos mínimos, aplicada ao filho.
E, levantando-se, foi ter com seu pai; e, quando ainda estava longe, seu pai viu-o, moveu-se de íntima compaixão e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço e beijou-o. E o filho disse-lhe: Pai, pequei contra o céu e perante ti, e já não sou digno de ser chamado teu filho. Mas o pai disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor roupa; e vesti-lha; ponde-lhe um anel na mão e calçado nos pés. Trazei o vitelo gordo, matai-o e comamos em festa. Porque este meu filho estava morto e voltou à vida; estava perdido e encontrou-se. E começaram a alegrar-se.” (15,20-24).
Foi consequente com o propósito tomado em boa hora: se bem o pensou, melhor o fez, tornando-se o modelo do regresso à casa paterna. Por seu turno, o pai não se limitou a esperá-lo no seu cadeirão ou, como fazem tantos hoje como dantes, a pensar no ajuste de contas, a exigir reparação pela ofensa ao nome do pai, à honra da casa paterna ou a trabalhar até pagar os prejuízos. Não inquiriu como gastou, com quem andou, o que fez, o que lhe fizeram. Não lhe devassou o passado recente! Compadecido correu ao seu encontro. E não teve pejo de o beijar, nem pesquisou se havia vestígios de contactos suspeitos ou doenças contagiosas. Mas deixou que o filho se reconhecesse pecador e como que sem direito a chamar-se seu filho. O pai não perdeu a lucidez com a comoção, tanto assim que não deixou que o filho completasse o discurso. Na casa deste pai, os filhos, mesmo que não o merecessem, nunca deixam de ser filhos. Quantos pais haverá com esta dotação de lucidez misericordiosa. É óbvio que este extraordinário pai não pode ser outro que não o nosso Deus, que não tem vergonha nem medo de mostrar a compaixão. Porém, pródigos há muitos, mas não como este: só o imitam na fuga e não na dinâmica do regresso, porque não querem humilde e lucidamente dar o braço a torcer. Não fizeram nada de mal (Não tenho pecados, não mato nem roubo…; eu tenho a consciência tranquila), não querem confessar a culpa ou não querem emendar-se.
O pai fez subitamente gravitar toda a casa em torno do filho regressado: roupa própria de filho, anel no dedo, matança do vitelo gordo, música e danças. E a festa começou de imediato, sem burocracias!
***
Mas o filho mais velho estava no campo. Quando, de regresso, ouviu música e sentiu as danças, chamou um dos moços e inquiriu sobre o acontecido. É que chegou o teu irmão – respondeu naturalmente – e teu pai matou o vitelo gordo, porque ele regressou com saúde. Ele ficou irritado e não queria entrar e alinhar na festa” (15,25-28a).
Esta é a lógica do filho mais velho, que se tem por fiel e dedicado, o invejoso que fica triste com as mercês feitas ao desgraçado do irmão, que, na ótica do zeloso, a nada tem direito, nem à saúde nem à vida. Por isso, face a um herege e pecador, a festa era ilegítima, ilegal ou desproporcionada. Não estava para alinhar com atos de injustiça e impiedade. Quanto maior distância melhor, não venha o pecador contaminar-nos com a lepra do seu pecado!
“Mas o pai, vindo cá fora, instava com ele. Mas ele, respondendo, disse ao pai: há tantos anos que te sirvo, nunca transgredi uma ordem tua, e tu nunca me deste um cabrito para me banquetear com os meus amigos; mas, depois que chegou esse teu filho, que desperdiçou os teus bens com as meretrizes, mataste-lhe o vitelo gordo.” (15,28b-30).
Notem-se as recorrentes adversativas “mas” ou equivalentes, conforme a tradução, a opor a atitude e discurso paternos à postura agora rebelde do filho mais velho, que se enaltece a si e acusa irmão e pai. Enaltece-se a si: serviu-o há tantos anos, como se não se tratasse de pai, mas de patrão. Nunca transgrediu uma ordem, como se a relação fosse a de déspota prepotente para com o súbdito timorato. Um autoenaltecimento desviante, portanto. Mentindo, acusa o pai (que lhe dá tudo, inclusive repartiu igualmente com ele a fortuna), que nunca lhe dera um cabrito para as farras a que tinha direito (porque este tinha todos os direitos e alegadamente foram-lhe sonegados). E exagera, por mal de inveja, os erros do irmão (que não trata por irmão, mas despicientemente por filho do pai, “esse teu filho”), que desbaratou “todos os teus bens” (os bens, na sua ótica de falso zelo eram do pai) com meretrizes (aqui inventou: o narrador novo fala em vida dissoluta, que não especifica; mas o irmão mais velho, talvez por experiência própria, sabe acusar, mas não sabe reconhecer seus erros nem sua inveja mentirosa e demolidora). E agora, por vontade, de legalidade duvidosa, do pai, teve direito ao vitelo gordo, que todos os da casa bem identificam e que o filho dito fiel também queria para si ou queria que não fosse para ninguém, na perspetiva egotista de que aquilo que não é para mim não pode ser para ninguém.
“Mas o pai, ele próprio lhe disse: Filho, tu sempre estás comigo, e todas as minhas coisas são tuas. Porém, era justo alegrarmo-nos e folgarmos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; tinha-se perdido, e achou-se. (15,31-32).
O pai não se deixou levar pelo ódio da inveja do “beato”, mas também não o esconjurou nem se irritou. E, com lídima lucidez e a constância da paciência de que um verdadeiro pai é dotado, explicou-se. Continuou a chamar-lhe “filho” e a assegurar que as coisas do pai são do filho, pelo que é importante sublinhar a excelência desta vida em comum de filho e pai. Mas tinha de haver festa, não pelo pecado do irmão. O pródigo, queira-o ou não o mais velho, continua a ser irmão, “este teu irmão”, este bem próximo. A festa, o anel, a roupa nova justificam-se e impõem-se não pelo abandono de há anos ou meses, semanas ou dias, mas como acolhimento inclusivo e mercê pelo regresso, reencontro, reinserção.

Considerações finais
Na parábola é de relevar em primeiro lugar, a magnanimidade e liberalidade equânimes deste pai excecional, que é Deus. Depois, vem a arrogância de quem se sente com direito a tudo, tudo exige e tudo desbarata irresponsavelmente. Vem, a seguir, a capacidade de lucidamente repensar a situação e a coragem de sair dela, reconhecendo erros e humildemente os declarando a quem deve essa declaração, na disposição de aceitar incondicionalmente as consequências.
Enfim, deve salientar-se a iniquidade da inveja excludente e acusatória de tudo e todos por parte dos “bons”.
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A sociedade e a Igreja estão cheias de pródigos a quem todos apontam o dedo. Porem, é provável que o número de “filhos mais velhos”, alegadamente carregados de zelo e de também experiência, iguale o número daqueles. E não podemos olvidar que a inveja das mercês que Deus faz a outrem é um pecado contra o Espírito Santo, tão nefasto como o da impenitência final. Por outro lado, à magnanimidade de Deus deve corresponder-se com a postura do acolhimento e da inclusão, da abertura de portas, da saída ao encontro de quem não comparece alapado no erro, miséria ou opressão. E não vale a pena fazer longe o exercício da pesquisa sobre onde estão o pródigo e o presumível fiel. Interessa saber refletir se cada um de nós é um ou outro ou em que medida cada um é falsamente fiel ou efetivamente pródigo.
E, sobretudo, pensemos no perfil magnânimo e equânime do “pai” da parábola e no seu discurso acolhedor, lúcido e paciente! Haja menos julgamento e mais reflexão/ação/reflexão…