Sim, nem sempre os altamente poderosos
levam a melhor sobre os considerados mais fracos.
Vem a talho de foice para a reflexão
que me proponho, aqui e agora (muito me apraz esta expressão da filosofia escolástica),
a notícia que li no JN on line, que
refere:
Um avião da
TAP que descolou de Brasília ao fim da tarde de quarta-feira (07-05) com
destino a Lisboa, foi forçado a regressar ao aeroporto após um dos motores ter
sugado uma ave, informou, esta quinta-feira, a transportadora aérea portuguesa.
[…]. A sucção da ave por um dos motores provocou danos no avião, que foi
encaminhado para reparação. Um novo voo deverá sair de Brasília para Lisboa
ainda hoje, mas ainda não há previsão de horário, adiantou a TAP. Os
passageiros residentes em Brasília tiveram o transporte até casa pago pela
companhia e os restantes foram alojados num hotel.
É caso para questionar
como é que uma ave de longe mais pequena que a aeronave, ao embater contra o “passarão”,
apesar de sugada por um dos motores, causa estragos e impede o voo (Impediu-o. Mesmo que se diga que apenas por
razões de segurança, não são importantes?) e obrigou a que o aparelho
recolhesse a oficinas para reparação.
Bruno Morais Braga
Barreto e Eduardo Miguel Bard, em Perigo
Aviário, monografia apresentada à Universidade Tuiuti do Paraná para
conclusão do Curso de Graduação Tecnólogo
em Pilotagem Profissional, em 2008, tentam demonstrar o porquê de as aves
se dirigirem para as proximidades dos aeródromos e como evitar os riscos que as
aves possam vir a causar ao tráfego aéreo. Estribam a necessidade do estudo no
facto de que “muitos leigos no assunto
não se preocupam muito com as aves nas proximidades dos aeroportos, pois
acreditam que aves pequenas não possam causar danos imensuráveis às aeronaves”.
É usual neste mundo os
poderosos, por deterem um lugar de destaque na sociedade, na política ou na
empresa ou pelo facto de possuírem fortuna invejável, subestimarem os pobres,
os fracos e mesmo os subalternos. Mal eles sabem como, apesar de adulados, são
tantas vezes vaiados, insultados nas suas próprias costas; e, quando a
tenacidade e a união junta os oprimidos, os insofismavelmente intocáveis caem
dos seus pedestais e muitos acabam mal. Veja-se qual o fim normal dos tiranos
ao longo da História dos povos, quando o Golpe de Estado ou a Revolução vingam.
É certo que alguns conseguem escapar por entre as pingas grossas da chuva
política hostil, mas são raros os que não sofrem o vilipêndio da vindicta e
mais raros os que têm o desplante de se reapresentar ao povo que humilharam, oprimiram
e reprimiram.
O Padre António Vieira,
no seu Sermão de Santo António,
conhecido habitualmente como Sermão de Santo António aos Peixes, reconhece e
condena, no cap. IV, o vício de os peixes se comerem uns aos outros. Salienta o
facto avaro de os peixes grandes comerem os pequenos. Se fora ao contrário, os
peixes pequenos comerem dos grandes, seria mais tolerável: bastaria um só peixe
para alimentar muitos dos mais pequenos. Mas assim – verifica o orador – o peixe
grande pode comer e devorar muitos pequenos que nunca se farta. Porém, se o problema
fosse dos peixes… só que o problema é mesmo dos homens; e Vieira explica-o
magistralmente.
No entanto, não podemos olvidar
que a pena do escritor, como a língua do retórico orador (retórico porque domina a arte de dizer bem; orador, porque domina as
técnicas de discursar para qualquer auditório, a que se adapta com facilidade),
sublinha a capacidade dos pequenos frente aos grandes. E recolhe, no cap. III,
o exemplo de quatro dos peixes de virtude. Quero trazer à colação os casos do
torpedo e da rémora.
A rémora é um peixe
pequeno, mas que tem muita força:
“(...) se se pega ao leme de uma
nau da Índia (...) a prende e amarra mais que as mesmas âncoras, sem se poder
mover, nem ir por diante”.
E mais
adiante qualifica a virtude do peixinho com predicativos que remetem para a sua
força de travão e capacidade de orientação de rota:
“(...) a virtude da rémora, a
qual, pegada ao leme da nau, é freio da nau e leme do leme”.
Quanto
ao torpedo, António Vieira observa:
“Está o pescador com a cana na
mão, o anzol no fundo e a boia sobre a água, e em lhe picando na isca o
torpedo, começa a lhe tremer o braço. Pode haver maior, mais breve e mais
admirável efeito? De maneira que, num momento, passa a virtude do peixezinho,
da boca ao anzol, do anzol, à linha, da linha à cana e da cana ao braço do
pescador”.
Ao pensar
nas palavras de Vieira, que tentou puxar pelo dinamismo das medidas espirituais
que devem levar as pessoas à conversão, causando arrepios ao tentador predador
e ao desvio da nau de outrem das rotas de perdição; ao pensar na monografia dos
citados tecnólogos em pilotagem brasileiros, que eles querem aplicar em contexto
de aeropista – lembrei-me dos temores que invadem o ânimo dos portugueses e, em
especial dos trabalhadores, dos aposentados e dos reformados. São estes sempre
os mesmos sacrificados, a pagar o resgate da nação e da banca.
Sim, como
é que se aguenta o espezinhamento laboral e a sobreoneração no trabalho, os
cortes salariais e de pensões, o aumento brutal de impostos, o agravamento das contribuições
para a segurança social e/ou para os subsistemas de saúde e a desproporcionada subida
do custo de vida? É de explicação suficiente o temor da precariedade, da não consecução
ou da perda de emprego, da não progressão nas carreiras? Quanto mais o
trabalhador se sujeita, mais sujeitado será; quanto mais a população se
amoldar, mais amoldável se tornará.
Ao beber
o discurso da inevitabilidade, ao admitir a tese do determinismo de termos de pagar
a dívida soberana, não estaremos a pactuar, de ânimo leve, com aqueles que
injustamente contraíram endividamento excessivo, que viveram (eles, sim) acima
das nossas possibilidades e o transferiram, por força do seu poder de influência
para a responsabilidade do Estado? E estamos perante um Estado que negoceia com
as entidades externas tudo no quadro do estatuto da mais vergonhosa
mendicidade, fora de qualquer tipo de mutualidade. Veja-se, a propósito, a peça
jornalística publicada em O Diabo, do
passado dia 6 (pgs 2-3), para sabermos quem engrossou a dívida externa, e a do Público,
de ontem, quarta-feira (pgs 2-3), para vermos como o Estado se desenvencilhou
da crise, sempre à custa dos mesmos de sempre. Não venho dizer como antigamente
se gritava “os ricos que paguem a crise”, mas que a solução toque a todos
equitativamente, mas mais e sobretudo a quem geriu mal o seu e, em especial, o
que era dos outros, castigando quem roubou descarada ou sub-repticiamente. Se é
mesmo verdade que as autoridades nacionais, a exemplo das dos países da Europa do
Sul, seguiram as indicações consensualmente estabelecidas para enfrentar a
crise e foram levadas ao investimento público para não deixarem afundar a economia,
porque é que depois a afundaram por obediência servil às reivindicações dos
propalados credores externos?
Neste ambiente
de depressão nacional ou de espiral recessiva (expressões que não inventei),
trabalhadores e população em geral não funcionaram como o torpedo ou como a rémora,
peixes vieirinos, nem se deram conta de que “a união faz a força”. Antes, se
deixaram embalar no discurso nacional do determinismo da inevitabilidade
guindado à categoria de pensamento único e, apesar de algumas movimentações
significativas, parece que se deixaram invadir irreversivelmente pela vertente
do medo e sofreram a vitimização meio consciente da dialética intergeracional e
interprofissional, cavada habilmente por um Estado que nos devia “anuar”.
É conveniente
não esquecer que no meio de tudo isto também se albergaram com êxito no
retângulo nacional os peixes pegadores, os parasitas que se aproveitaram da onda
de crise para falir artificialmente ou para enriquecer à custa do mal dos
outros. E são estes que desacreditam, perante certos observadores, a situação
de crise grave.
Já o
pregador seiscentista escalpelizava este vício com o exemplo dos pegadores no
cap V do susodito sermão, definindo-os assim:
“Pegadores se
chamam estes de que agora falo, e com grande propriedade, porque sendo
pequenos, não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos
costados que jamais os desferram. De alguns animais de menos força e indústria
se conta que vão seguindo de longe aos leões na caça, para se sustentarem do
que a eles sobeja. O mesmo fazem estes pegadores, tão seguros ao perto como
aqueles ao longe; porque o peixe grande não pode dobrar a cabeça, nem voltar a
boca sobre os que traz às costas, e assim lhes sustenta o peso e mais a fome”.
Será que Vieira teria
razão, se pregasse neste século XXI, em relação ao destino dos pegadores, que
são por natureza incultos? Atentemos no desfecho mais que provável deles no
século XVII:
“Rodeia a nau o tubarão nas calmarias da
Linha com os seus pegadores às costas, tão cerzidos com a pele, que mais
parecem remendos ou manchas naturais, que os hóspedes ou companheiros.
Lançam-lhe um anzol de cadeia com a ração de quatro soldados, arremessa-se
furiosamente à presa, engole tudo de um bocado, e fica preso. Corre meia
companha a alá-lo acima, bate fortemente o convés com os últimos arrancos;
enfim, morre o tubarão, e morrem com ele os pegadores”.
Vieira
encontra uma solução para os pegadores que se afirmaram mais cultos:
“Os menos ignorantes, desenganados da
experiência, despegam-se e buscam a vida por outra via”.
Aceite-se a sugestão de António
Vieira para estes; clame-se pela intervenção do Estado para acabar com os negócios
subterrâneos ou, caso o Estado não o queira fazer, salte para a ribalta a força
dos bons, orientada por alguém de bom senso. De resto, contra a prepotência e/ou
tentativa de anestesiamento siga-se o exemplo do torpedo e da rémora.
Ou serve a convicção de que,
no quadro da UE ou do Euro, nunca se reúnem condições para a instauração da uma
ditadura? Talvez tenha sido pela crença benévola nos grandes ditos salvadores do
descalabro financeiro, do caos económico ou dos totalitarismos ideológicos (mas
por norma bem tímidos), inibidora do esforço da criação de estruturas populares
e da organização de base, é que as ditaduras se estabeleceram e alimentaram
durante anos e anos.
Sabemos que as ditaduras se instalaram pela via da aclamação
popular. Queremos que a porta de entrada dos ditadores na tribuna do poder
tenha sido definitivamente encerrada (cito de cor afirmações de Spínola no seu discurso
de posse presidencial em maio de 1974).
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