Pôde ler-se no Notícias
de Aveiro on line, de 22 de maio, que “funcionário público, tudo indica,
dos quadros do Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF)”, está indiciado
por crime de peculato de uso. O predito periódico cita uma nota do Departamento de Investigação
Criminal (DIC) de Aveiro da PJ, que refere que o suspeito foi “detido em
flagrante”.
Trata-se, pelos vistos, conforme reza
o comunicado, de um técnico superior a quem tinha sido atribuído para “utilização
exclusiva no exercício de funções inspetivas” uma viatura do Estado que, no
entanto, “vinha fazendo uso a qualquer hora, para fins alheios àqueles a que a
mesma se destina, como se de um bem da sua propriedade se tratasse”. Mais se
informava que “o detido, de 59 anos de idade, que desempenha funções a partir
de Águeda, já terá sido presente às autoridades judiciárias, na comarca
do Baixo Vouga, para primeiro interrogatório e aplicação de medidas de coação
sobre as quais a PJ se escusou a dar informações”.
Aparentemente, a notícia vem em total
conformidade com aquilo que as competentes autoridades devem fazer em caso de grave
violação dos deveres do trabalhador da Administração Pública. Todavia, cumpre-me
questionar o porquê da exceção. Ou quererão as autoridades policiais e ou
judiciais fazer crer à opinião pública que os casos de utilização de viaturas,
outros bens e serviços não abundam (embora sem o direito de generalização) por
este território fundado por Dom Afonso Henriques? Quantos dirigentes, técnicos
superiores e funcionários não usam viaturas, aparelhos (sobretudo computadores),
bens consumíveis, gabinetes, telefone, tempo de serviço, outros funcionários,
etc. para fins a que não estão destinados? Incluem-se nesses fins serviços
pessoais, familiares, partidários e outros de natureza associativa. Não são
surpreendidos em flagrante ou acontece que, se o dono não vê, já não tem mal
nenhum, como dizem alguns adolescentes. E quem é o dono? O povo, que não pode
fazer justiça por si, mas apenas através de que o represente. E quem o
representa? Os agentes da autoridade, ou não?
A título de exemplo, recordo uma
campanha autárquica em que o presidente-recandidato era severamente censurado da
parte de candidaturas oponentes pelo facto de utilizar viatura do município
para deslocação domicílio-serviço-domicílio e mobilizar funcionários municipais
para a sua campanha. Porém, o novo eleito em breve lapso de tempo passou a proceder
de modo igual ou pior. Outro, alegando que, segundo o estatuto dos eleitos
locais, tinha direito a telefone, mandou instalar na própria residência uma
extensão do telefone da câmara para utilização em período noturno, fins de
semana e feriados.
Ora, ninguém duvida de que a alguns servidores
públicos sejam atribuídos equipamentos da coletividade para uso pessoal de
acesso ao local de trabalho. Contudo, serão demasiados os titulares de cargo
público merecedores dessas benesses e não é crível que esses equipamentos
possam servir para todo e qualquer tipo de serviço, em qualquer tempo e lugar. E
contam-se várias situações de uso abusivo que ninguém denuncia, ninguém
investiga e a que não se põe cobro. É óbvio que tão censurável como o que vem
sendo abordado será a atribuição de telemóveis, cartões de crédito (por vezes,
sem limite de gastos), secretárias pessoais e outras mordomias a altos
administradores públicos. Além da imagem, lamentam-se tarde e a más horas os
desperdícios e, depois, em tempo de aperto, cortam-se suplementos, subsídios,
salários, trabalhadores na administração pública, em nome do alegado despesismo
(também designado por gorduras do Estado) ou da suposta vivência acima das possibilidades!
Bem nos querem dizer que a justiça
funciona ou que as autoridades policiais desempenham acuradamente o seu papel,
mas nós temos mais que motivos para não o crer. Os casos que têm êxito na
Justiça, são poucos comparativamente com os casos de prevaricação; são
cirúrgicos (quanto casos municipais não há que se comparam ao de Isaltino, mas
só há um Isaltino, porquê?); e penalizam determinado tipo de pessoas (vários
casos houve de pedofilia e abuso sexual de menores: os condenados foram,
severamente, uns açorianos, um padre e um antigo catequista; e assim-assim, uns
arguidos da Casa Pia). Quantos casos não há de corrupção, de evasão e fraude
fiscais e de abuso do poder?!
Os governantes prometem contenção,
sustimento do despesismo, anulação dos desperdícios, abolição do regime de impunidade,
reformas estruturais, reformas e mais reformas do Estado. E que se faz?
Aumentam-se brutalmente os impostos, contribuições, taxas e tarifas; reduzem-se
salários e subsídios complementares dos salários; e surgem diversas maneiras de
despedimento de pessoal.
Deveríamos congratularmo-nos com o
combate a casos como aquele que que o Notícias
de Aveiro relata. Só não faremos por se tratar de uma pequena gota no mar
da prevaricação alastrante e provavelmente por se tratar de algum funcionário
que deixou de cair nas boas graças de quem manda. É que, a atermo-nos a
determinados chefes de serviço, nem precisaríamos de quem legislasse, regulamentasse
as leis ou julgassem. Eles fazem tudo. E a comunicação social dá uma ajuda. Mas
dizem todos que a justiça é com os tribunais. Até escondem as suas frases judicativas
por trás do publicamente conveniente, como “o arguido”, “o alegado assassino”, “o
suspeito”, “o presumível inocente”, etc. Por outro lado, há muitos bens e
serviços afetos legalmente (mas sem necessidade real) a gestores que não
precisariam em nada de tal afetação, a não ser para se convencerem de que têm
importância orgânica e social.
A nossa administração pública, tanto
a distante como a de proximidade, está assim cheia de lobos, aliás como muita
da comunicação social, que julgam e julgam arbitrariamente, segundo as
conveniências, de modo que até fazem crer que é moral mesmo aquilo que está
destituído de qualquer ética republicana.
Depois, há situações que não se
entendem. Por exemplo, Manuel “Palito” (autor de quatro crimes de homicídio:
dois na forma consumada e dois na forma tentada) andou 34 dias a monte e, quando
chega ao tribunal para interrogatório, muitos dos curiosos aplaudem-no como se
de herói se tratasse; as entidades policiais vêm dar conta de que tudo correu como
previsto, destacando a cooperação entre polícias, a proteção (?!) das populações
e a captura do homem “vivo”. Não salientam o fator sorte ou a inépcia do trânsfuga,
porquê?
Ainda não chegou a julgamento o caso
da cidadã que há três anos perdeu a vida em exercícios no âmbito do Dia da
Defesa Nacional. Será assim um caso tão complexo?!
O STJ pode declarar que não houve
crime de rapto no caso do “Rui Pedro”, mas apenas abuso sexual de menor na
forma tentada, que pode vir a estar prescrito.
A defesa de Maria de Lurdes Rodrigues
insurge-se contra o facto de que ela e demais arguidos tenham sido presentes a
tribunal penal quando alegadamente se trata de matéria do âmbito do direito
administrativo. Se efetivamente os há de competência específica, porque não se
tem em conta a sério a competência dos diversos tribunais? Será que a defesa destes
arguidos estará pura e simplesmente a fazer render o seu peixe?
Enfim, muito a memória e as leituras
poderiam fazer refletir, para retermos a verdade da ineficácia da justiça de hoje
em confronto com uma justiça dependente do poder executivo como era muita da
pré-abrilina, ainda pior!
A sugestão do título com que encimei
este arrazoado reflexivo remete para o título do romance de Aquilino Ribeiro Quando os lobos uivam, publicado em 1958
e cujo argumento é o seguinte:
A Serra dos Milhafres, nos finais dos anos 40, configura o cenário da
concretização da lei inovadora que o Estado Novo resolve impor aos beirões: Os
terrenos baldios que sempre tinham sido utilizados para bem comunitário, deles
retirando a comunidade parte vital do seu sustento, seriam agora “expropriados”
e utilizados para plantar pinheiros. Assim, sem mais nem menos, os agentes o
Estado chegam e dizem que, a partir daquele momento, acabou. Instala-se um
clima de medo nas gentes e é esse clima que Manuel Louvadeus, que havia
emigrado para o Brasil anos antes, vem encontrar quando regressa à aldeia.
Homem vivido e culto graças, segundo o próprio, aos muitos livros que por lá
havia lido, Manuel tem uma visão para os dois lados e um sentido de justiça que
rapidamente o fazem cair nas boas graças dos aldeãos. Toma então parte da sua
gente, homens honestos e humildes que trabalham de sol a sol mas que não deixam
de viver em condições miseráveis. A revolta acaba por suceder e, entre mortos e
feridos, tudo acaba numa caçada aos homens por parte da polícia, que leva
muitos homens à prisão acusados de serem instigadores e cérebros da revolta. O
Estado ditatorial mostra então todo o seu esplendoroso poder através da administração
da justiça em tribunal plenário, punindo severamente a saga dos beirões na
defesa dos seus terrenos baldios. (Da sinopse da edição
de 2011, com adaptações).
O romancista foi perseguido pelo
regime por causa do romance e o processo judicial só não chegou ao seu termo com
êxito para o Estado, mercê da onda que, sobretudo no Brasil, se criou em torno
do escritor, e de situação similar havida em França em que as autoridades não
levaram a melhor. No Brasil, os defensores de Aquilino, no âmbito do tribunal de
opinião, editaram um livrinho a que deram o título Quando os lobos julgam a justiça uiva, em que se compilam os
argumentos de acusação e de defesa. E acontece que “a justiça uiva”, porque “os
lobos julgam” sempre que se julga mal, se denega a justiça ou não se julga.
Pior será ainda quando passam para o cidadão comum as ideias de que não
funciona a justiça, há uma justiça para ricos e poderosos e outra para os pobres
e débeis, o crime compensa ou a corrupção alastra impunemente.
Se, como cantava Zeca Afonso, “A decisão do tribunal / É como a sombra do punhal
/Vamos matar o justo que ali jaz / Para quem julga tanto faz”, também é de inteira
racionalidade a enunciação veiculada na seguinte citação de Um Kadish por Portugal (2012):
Em países que partilham do modo de vida
ocidental europeu, onde a justiça é o fim último de um Estado, não podemos
considerar que existem várias justiças, mas apenas uma: a justa. Infelizmente,
sob o nome deste valor supremo encapotam-se muitas falsidades e manipulações.
Como no libelo contra Aquilino Ribeiro durante um processo instaurado pelo
Estado Novo contra a sua obra ‘Quando os lobos uivam’ e que proporcionou este
título admirável: ‘Quando os lobos julgam a Justiça uiva’.
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