sábado, 31 de dezembro de 2022

“O humilde trabalhador na vinha do Senhor”

 

 

O Papa emérito Bento XVI faleceu às 9,34 horas (hora de Roma), de 31 de dezembro de 2022, ficando as exéquias agendas para 5 de janeiro de 2023, às 9,30 horas locais, na Praça São Pedro, sob a presidência do Papa Francisco, após a permanência do corpo na Basílica de São Pedro, para a saudação dos fiéis, a partir da manhã de 2 de janeiro.

Em seu comunicado, o diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, Matteo Bruni referia:

“Com pesar, informo que o Papa Emérito Bento XVI faleceu hoje às 9,34 horas, no Mosteiro Mater Ecclesiae, no Vaticano. Assim que possível, serão enviadas novas informações.”

Desde 28 de dezembro, quando o Papa Francisco afirmou que seu o predecessor estava muito doente, os fiéis do mundo inteiro uniram-se em oração pela saúde do Papa emérito, de 95 anos, que vivia no Mosteiro Mater Ecclesiae desde a renúncia ao ministério petrino, em 2013.

De acordo com o diretor da Sala de Imprensa, Bento XVI recebeu a unção dos enfermos no dia 28, ao final da missa celebrada no Mosteiro, na presença das religiosas “Memores Domini”, que o vêm assistindo diariamente, há anos. 

Ao apresentar-se ao mundo como novo Pontífice, falou assim: “Depois do grande Papa João Paulo II, os Senhores Cardeais elegeram-me, simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor”.

Agora, que o Papa emérito Bento XVI, o grande, no dizer do cardeal Orani João Tempesta, se despediu e voltou para a casa do Pai, acompanhamo-lo com as orações para que esteja junto de Deus na glória e agradecemos a Deus pela sua missão entre nós. Permanecerão o seu exemplo, os seus escritos, o seu legado.

Na homilia na basílica de São João de Latrão, a 7 de maio de 2005, assinalou estar ao serviço da Palavra de Deus que é única, mas chega até nós por dois canais: a Escritura e a Tradição. Assim, o Papa é o guardião primeiro e zeloso do património da fé, não o dono. Afirmou ele: “O poder conferido por Cristo a Pedro e aos seus sucessores é, em sentido absoluto, um mandato para servir. O poder de ensinar, na Igreja, obriga a um compromisso ao serviço da obediência à fé. O Papa não é um soberano absoluto, cujo pensar e querer são leis. Ao invés: o ministério do Papa é garantia da obediência a Cristo e à sua Palavra. Ele não deve proclamar as próprias ideias, mas vincular-se constantemente a si e à Igreja à obediência à Palavra de Deus, tanto perante todas as tentativas de adaptação e de adulteração, como diante de qualquer oportunismo. [...] O Papa tem a consciência de que está, nas suas grandes decisões, ligado à grande comunidade da fé de todos os tempos, às interpretações vinculantes que cresceram ao longo do caminho peregrinante da Igreja. Assim, o seu poder não é superior, mas está ao serviço da Palavra de Deus, e sobre ele recai a responsabilidade de fazer com que esta Palavra continue presente na sua grandeza e a ressoar na sua pureza, de modo que não seja fragmentada pelas contínuas mudanças das modas.”

Na Missa inaugural do seu ministério petrino, Bento XVI vincava: “O meu verdadeiro programa de governo é não fazer a minha vontade, não perseguir ideias minhas, pondo-me, contudo, à escuta, com a Igreja inteira, da palavra e da vontade do Senhor e deixar-me guiar por Ele, de forma que seja Ele mesmo quem guia a Igreja nesta hora da nossa história.”

A escolha do nome evocava a admiração pelo Papa Bento XV (1914-1922) e o amor a São Bento de Nursia, patriarca dos monges do Ocidente, e demonstrava os rumos do seu pontificado. Foi o próprio Bento XVI que o explicou: “Neste primeiro encontro, gostaria de falar, antes de tudo, sobre o nome que escolhi ao tornar-me Bispo de Roma e Pastor universal da Igreja. Quis chamar-me Bento XVI, para me relacionar idealmente com o venerado Pontífice Bento XV, que guiou a Igreja num período atormentado devido ao primeiro conflito mundial. Foi um profeta corajoso e autêntico de paz e comprometeu-se com infatigável coragem, primeiro, para evitar o drama da guerra e, depois, para limitar as suas consequências nefastas. Nas suas pegadas, desejo colocar o meu ministério ao serviço da reconciliação e da harmonia entre os homens e os povos, convencido profundamente de que o grande bem da paz é, antes de tudo, dom de Deus, dom frágil e precioso que deve ser invocado, tutelado e construído, dia após dia, com o contributo de todos.”  

E prosseguiu: “O nome Bento recorda também a extraordinária figura do grande ‘Patriarca do monaquismo ocidental’, São Bento de Núrsia, copadroeiro da Europa, com os santos Cirilo e Metódio e as mulheres santas, Brígida da Suécia, Catarina de Sena e Edith Stein. A expansão progressiva da Ordem beneditina por ele fundada exerceu uma influência enorme na difusão do cristianismo em todo o Continente. Por isso, São Bento é muito venerado também na Alemanha e, em particular, na Baviera, a minha terra de origem; constitui ponto de referência fundamental para a unidade da Europa e forte chamada às irrenunciáveis raízes cristãs da sua cultura e da sua civilização. Deste Pai do Monaquismo Ocidental colhemos a recomendação aos monges na Regra: ‘Nada anteponhais absolutamente a Cristo’. No início do meu serviço como Sucessor de Pedro peço a São Bento que nos ajude a manter firme a centralidade de Cristo na nossa existência.”

No pontificado de Bento XVI surgiram quatro exortações apostólicas (Ecclesia in Medio Oriente, Africae munus, Verbum Domini e Sacramentum Caritatis), várias cartas apostólicas, várias constituições apostólicas e três encíclicas: Deus caritas est, Spe salvi e Caritas in veritate.

Na primeira encíclica, recorda: “Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele’ (1 Jo 4,16). Estas palavras da 1.ª Carta de João exprimem, com singular clareza, o centro da fé cristã: a imagem cristã de Deus e também a consequente imagem do homem e do seu caminho. Além disso, no mesmo versículo, João oferece-nos, por assim dizer, uma fórmula sintética da existência cristã: ‘Nós conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem’ [...]. Num mundo em que ao nome de Deus se associa, às vezes, a vingança ou mesmo o dever do ódio e da violência, esta é uma mensagem de grande atualidade e de significado muito concreto (n. 1).”

Na segunda lembra, com Rm 8,24, que fomos salvos na esperança: “A ‘redenção’, a salvação, segundo a fé cristã, não é um simples dado de facto. A redenção é-nos oferecida no sentido de que nos foi dada a esperança, uma esperança fidedigna, graças à qual podemos enfrentar o nosso tempo presente: o presente, ainda que custoso, pode ser vivido e aceite, se levar a uma meta e se pudermos estar seguros desta meta, se esta meta for tão grande que justifique a canseira do caminho (n. 1).”

E, na terceira e última, volta-se para a Doutrina Social da Igreja. Aí verifica, de modo oportuno: “A caridade é amor recebido e dado; é ‘graça’ (kháris). A sua nascente é o amor fontal do Pai pelo Filho no Espírito Santo. É amor que, pelo Filho, desce sobre nós. É amor criador, pelo qual existimos; amor redentor, pelo qual somos recriados. Amor revelado e vivido por Cristo (cf Jo 13,1) é ‘derramado em nossos corações pelo Espírito Santo’ (Rm 5,5). Destinatários do amor de Deus, os homens são constituídos sujeitos de caridade, chamados a fazerem-se eles mesmos instrumentos da graça, para difundir a caridade de Deus e tecer redes de caridade (n. 4).”

E continuou: “A esta dinâmica de caridade recebida e dada propõe-se dar resposta a doutrina social da Igreja. Tal doutrina é caritas in veritate in re sociali, isto é, proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade; é serviço da caridade, mas na verdade. [...] Esta preserva e exprime a força libertadora da caridade nas vicissitudes sempre novas da história. O desenvolvimento, o bem-estar social, uma solução adequada dos graves problemas socioeconómicos que afligem a humanidade precisam desta verdade. Mais ainda, necessitam de que tal verdade seja amada e testemunhada. Sem verdade, sem confiança e amor pelo que é verdadeiro, não há consciência e responsabilidade social, e a atividade social acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com efeitos desagregadores na sociedade, sobretudo numa sociedade em vias de globalização, que atravessa momentos difíceis como os atuais” (n. 5).

E, quando, a 11 de fevereiro de 2013, renunciou ao múnus petrino, surgiram muitas especulações e era o ano da JMJ no Rio de Janeiro, sede que ele escolheu para esse grande evento. Sobre a renúncia, D. Rifan escreveu: “Um grande desapego do alto cargo e influente posição, declarando-se um humilde servidor, uma profunda humildade, não se julgando necessário e reconhecendo a própria fraqueza e incapacidade, de corpo e de espírito, para exercer adequadamente o ministério petrino e ao pedir perdão – peço perdão por todos os meus defeitos.”

Bento XVI, depois da renúncia, agiu na discrição e na obediência ao legítimo sucessor de Pedro, o Papa Francisco. Afirmou a quem o tentava: “O Papa é um só, Francisco.” E, da parte de Francisco, nunca faltou, nas visitas e nas palavras, carinho e respeito para com o Papa emérito por a sua última missão ser, a partir do mosteiro Mater Ecclesiae, uma voz orante que ajuda a sustentar a Igreja. Disse o Santo Padre, na Audiência Geral de 28 de dezembro, sob calorosos aplausos dos peregrinos: “Uma oração especial pelo Papa emérito Bento XVI, que, no silêncio, está a sustentar a Igreja. Recordemos que ele está muito doente e peçamos ao Senhor que o console e o sustente neste testemunho de amor à Igreja até ao fim”.

A notícia divulgada na manhã do último dia do ano de 2022 é uma oportunidade de um grande exame de consciência no ano que termina e da nossa disponibilidade para o novo ano que se inicia, agora com o olhar retrospetivo de um grande homem de Deus que partiu e que serviu a Igreja como “simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor”.

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Porque a comunicação social não foi sua amiga (foi o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé), tal como vários modeladores de opinião, apraz-me referir dois aspetos da sua intervenção:

Como teólogo jovem e estimado, Ratzinger acompanhou de perto a assembleia conciliar na qualidade de perito do cardeal Frings, de Colónia, da ala reformista e de entre os críticos dos esquemas preparatórios feitos pela Cúria Romana, mais tarde varridos por decisão dos bispos. Para Ratzinger, os textos “devem responder às perguntas mais urgentes e fazê-lo, na medida do possível, não julgando e condenando, mas usando uma linguagem maternal”. E Ratzinger elogiou a reforma litúrgica que estava a chegar e as razões da sua inevitabilidade providencial. Disse que, para redescobrir a verdadeira natureza da liturgia, era preciso “romper o muro do latim”.

Nos últimos anos, marcados pelo explosivo escândalo da pedofilia e pelo Vatileaks, segundo os documentos retirados da escrivaninha papal e publicados em livro, Bento XVI é determinado e duro em enfrentar o problema da “sujeira” dentro da Igreja; introduz regras muito rigorosas de combate ao abuso contra menores; pede à Cúria e aos bispos que mudem a mentalidade; e diz que a mais grave perseguição para a Igreja não vem dos inimigos externos, mas do pecado dentro dela. Quanto à importante reforma financeira, o Papa Ratzinger introduz a regulamentação contra a lavagem de dinheiro no Vaticano. E, face aos escândalos e ao carreirismo eclesiástico, fez apelos à conversão, à penitência e à humildade. Na sua última viagem à Alemanha, em setembro de 2011, pediu que a Igreja fosse menos mundana: “Exemplos históricos mostram que o testemunho missionário de uma Igreja ‘desmundanizada’ emerge mais claramente. Livre de fardos e privilégios materiais e políticos, a Igreja pode dedicar-se melhor e de forma verdadeiramente cristã ao mundo inteiro, pode estar verdadeiramente aberta ao mundo.”

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Por tudo, não é legítimo que o Pontificado de Bento XVI fique obnubilado pelas brumas do tempo, do oportunismo e da conveniência. Antes, na esteira das asserções do cardeal Tempesta, urge que permaneçam “o seu exemplo, os seus escritos, o seu legado”.

2022.12.31 – Louro de Carvalho

Ano findo: eventos que marcaram 2022 em Portugal

 

O ano de 2022 foi marcado pelas consequências da invasão da Ucrânia pela Rússia, a 24 de fevereiro, com galopante subida da inflação, que induziu o aumento do custo de vida, sobretudo no encarecimento dos bens essenciais e da energia, bem como na perda de salários reais; e pelas insuficientes medidas de compensação do Governo, que prefere aumentar a receita do Estado, para diminuir a dívida e o défice – austeridade por omissão que afeta principalmente os pensionistas e que, apesar das medidas de mitigação, se manterá enquanto durar a guerra.

No entanto, o ano também propiciou vários cenários, em que sobressai o lado político.

A nível político, destacam-se as eleições legislativas, de 30 de janeiro, em que o Partido Socialista (PS) atingiu a maioria absoluta (a segunda vez que a obtém). O Partido Socialdemocrata (PSD), o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP) tiveram perdas eleitorais graves. O Chega (CH) e a Iniciativa Liberal (IL) cresceram, obtendo grupos parlamentares próprios. O Partido do Centro Democrático Social (CDS) e o Partido Ecologista dos Verde (PEV) perderam, pela primeira vez, a representação parlamentar.

Entretanto, devido a anomalias nas operações de contagem dos votos que resultaram na anulação de 157 mil votos, o Tribunal Constitucional (TC) decidiu considerar nulo o apuramento dos votos do círculo eleitoral da Europa, determinando a repetição da votação nesse círculo, que se realizou a 12 e 13 de março, o que atrasou, em muito, o início da XV Legislatura e a posse do Governo.

A 23 de março, foi divulgada a orgânica do futuro XXIII Governo Constitucional e a comunicação social noticiou os nomes dos novos ministros, antes de o primeiro-ministro (PM) entregar, como estava previsto para o fim da tarde, a lista ao Presidente da República (PR), o qual, irritado com a fuga de informação para os jornalistas, cancelou a audiência com António Costa.

No dia em que se assinalavam os 60 anos da crise académica de 1962 (24 de março), coincidente com o dia em que o tempo de democracia excedeu o de ditadura (17499 dias), iniciaram-se as comemorações oficiais dos 50 anos da Revolução dos Cravos, que se estenderão até 2024.

A 28, o PM assumiu interinamente a pasta dos Negócios Estrangeiros, para o ministro Augusto Santos Silva, exercer o múnus de deputado na XV Legislatura e prosseguir a candidatura à Presidência da Assembleia da República (AR). No dia 29, realizou-se a primeira sessão plenária da XV Legislatura da III República e Santos Silva foi eleito Presidente da Assembleia da República (PAR). E, no dia 30, tomou posse o XXIII Governo Constitucional.

No dia 5 de setembro, o PM apresentou o plano “Famílias Primeiro”, um pacote de medidas de apoio ao rendimento das famílias no combate à inflação e à subida dos preços da energia e prometeu apoio às empresas, sob certas condições. Depois, em visita oficial a Moçambique, para a V Cimeira Luso-Moçambicana, após cerimónia no Centro Cultural Português de Maputo, a artista Janeth Mulapha surpreendeu-o ante as câmaras e, de martelo na mão, puxou-o para uma coreografia improvisada com grande componente de expressão corporal.

Jerónimo de Sousa, secretário-geral do Partido Comunista Português (PCP), foi submetido, no início de janeiro, a urgente intervenção cirúrgica, para correção de estenose da artéria carótida esquerda. As ações de campanha eleitoral mantiveram-se com João Ferreira e João Oliveira. E, em novembro, Paulo Raimundo a sucedeu-lhe como secretário-geral.

A 29 de junho, o ministro da Habitação e das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, anunciou nova solução aeroportuária para Lisboa com um despacho sobre o Plano de Ampliação da Capacidade Aeroportuária da Região de Lisboa: construção do Aeroporto do Montijo, para funcionar no final de 2026; e a de um segundo em Alcochete até 2035 para se encerrar o Aeroporto Humberto Delgado. Porém, o PM ordenou a revogação do despacho, vincando que a solução tem de ser negociada e consensualizada com a oposição e com informação prévia ao PR.

No 40.º Congresso Nacional do PSD, em julho, Luís Montenegro, sucedeu a Rui Rio como líder do partido e como líder da oposição. E o Chega apresentou na AR moção de censura ao Governo, rejeitada com votos contra do PS do PCP, do BE e dos dois deputados únicos do Partido da Pessoas, Animais e Natureza (PAN) e do Livre, as abstenções do PSD e da IL, obtendo apenas os votos favoráveis do proponente.

A 30 de agosto, a ministra da Saúde, Marta Temido, apresentou a demissão, “por entender que deixou de ter condições para se manter no cargo”, na sequência da morte de uma grávida durante a transferência do Hospital de Santa Maria para o Hospital de S. Francisco Xavier.

Em novembro, Miguel Alves, secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro, pediu a demissão, acusado pelo Ministério Público (MP) do crime de prevaricação, em adiantamento duvidoso de 300 mil euros feito enquanto era Presidente da Câmara de Caminha para um projecto que não saiu do papel. Antes, dois secretários de Estado foram demitidos por incompatibilidade com o Ministro da Economia e do Mar, António Costa e Silva.

No plano internacional, em fevereiro, no fim da visita oficial ao nosso país, o Presidente da Eslovénia, Borut Pahor, por atraso da comitiva, não embarcou no voo da TAP (não soube esperar) que o levaria a casa, mas contratou-se um voo privado que custou 40 mil euros ao erário público. E Oliver Antic, embaixador da Sérvia em Lisboa, morreu por afogamento na Boca do Inferno.

A 21 de fevereiro, em linha com a União Europeia (UE), no contexto da iminente escalada militar russa, o PM e, mais tarde, o PR condenaram, em declarações públicas, o reconhecimento russo da República Popular de Lugansk e da República Popular de Donetsk, duas regiões separatistas da Ucrânia, como violação dos Acordos de Minsk. E, a 21 de abril, o Presidente da Ucrânia, Volodymir Zelensky, discursou em sessão solene na AR, por videoconferência, sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia, discurso recebido com longa ovação de pé da parte de todos os partidos com assento parlamentar, com exceção do PCP, que não esteve presente.

A nível do crime, sobressaíram também os ciberataques: em janeiro, ao grupo Impresa, ficando indisponíveis os seus sítios eletrónicos e algumas das suas páginas nas redes sociais; em fevereiro, à Vodafone, gerando instabilidade nos serviços móveis e fixos, tendo a disrupção alastrado às comunicações de vários serviços e infraestruturas críticas, como o INEM, hospitais, bombeiros, serviços postais e bancários e a rede Multibanco; em abril, aos sistemas informáticos do Hospital Garcia de Orta, Almada, com os hackers a exigir um resgate financeiro em bitcoins, para devolverem o acesso aos dados da unidade hospitalar, registando-se graves constrangimentos à sua atividade assistencial; e, em vários momentos, houve ciberataques a outras empresas e a departamentos do Estado. A Polícia Judiciária (PJ) impediu, a 10 de fevereiro, uma ação terrorista  planeada para a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, tendo um estudante de engenharia informática, de 18 anos, ficado preso preventivamente, indiciado pelos crimes de terrorismo e de detenção de arma proibida. A 20 de junho, Jéssica Biscaia, de três anos, foi morta em Setúbal, após ter sido raptada e sujeita a violentas agressões, por uma mulher a quem a mãe encomendou bruxarias para resolver os problemas da sua relação com o padrasto. O caso comoveu a opinião pública, motivando reações do Governo, na pessoa da ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva e do PR. No dia 26, um incêndio no Centro Comercial Colombo, em Lisboa, com origem num posto de transformação no parque de estacionamento, levou à evacuação do edifício, tendo sido registados três feridos ligeiros, mas sem danos materiais.

A nível eclesial, D. José Ornelas passou de Bispo de Setúbal para Bispo de Leiria Fátima, sucedendo ao cardeal D. António Marto, que resignou por motivos de saúde; D. José Cordeiro tomou posse como Arcebispo de Braga e Primaz das Espanhas; e a Comissão Intendente revelou 424 casos de abuso sexual de menores por parte de clérigos, prevendo que o número seja maior.

No atinente à pandemia, a 18 de fevereiro, terminou a situação de calamidade que vigorava no território continental, devido à pandemia de covid 19, desde 1 de dezembro de 2021, passando-se à situação de alerta; a 17 de março, a situação de alerta, que terminaria a 22, foi prorrogada até 30 de março; e, a 27 de agosto, face à evolução favorável da pandemia de covid-19 e à tendência estável do número de casos, foi decretado o fim do uso obrigatório de máscaras nos transportes coletivos de passageiros e nas farmácias de venda ao público, mantendo-se em serviços de saúde e em estruturas residenciais ou de acolhimento de pessoas vulneráveis.

A nível cultural, em maio, foi inaugurada, em Santa Cruz da Trapa, São Pedro do Sul, a escultura de nove metros de altura, “A Foda dos Nus”, da autoria de Custódio Almeida, representando “dois corpos nus que contam histórias de intimidade”. Em junho, foi inaugurado o Museu do Tesouro Real realizou-se a 9.ª edição do Rock in Rio Lisboa. E, em setembro, teve lugar a 1.ª edição do festival Meo Kalorama, frequentado por mais de 112 mil pessoas.

No âmbito das alterações climáticas, de 27 de junho a 1 de julho, Lisboa acolheu, no Altice Arena, a 2.ª Conferência dos Oceanos das Nações Unidas, copresidida por Portugal e pelo Quénia, com participantes de cem países, organizações não-governamentais e cerca de 150 universidades.

O mês de julho foi assolado pela onda de calor que se abateu na Europa,  atingindo Portugal com maior intensidade, com significativo aumento do perigo de incêndio rural e por incêndios no concelho de Ourém, nas localidades de Cercal e de Cumeada que alastraram para Alvaiázere e Ferreira do Zêzere (ali ficou totalmente destruído o Moinho de Avecasta), numa zona florestal de Carrazeda de Ansiães, e no Pombal. O verão foi de seca severa e até extrema. E novembro ofereceu a Lisboa o tornado de Alcântara e a Benavente o de Santo Estevão. Ambos produziram danos significativos nas áreas afetadas, designadamente queda de árvores de grande porte, arrancamento e projeção de telhas, danos em viaturas, edifícios, moradias, etc. E, em dezembro, Portugal sentiu os efeitos da depressão do intenso comboio de tempestades que atingiu a Península Ibérica. A Grande Lisboa foi especialmente afetada, tendo caído em poucas horas, na noite de 7 para 8 de dezembro, 40 mm de precipitação, com várias ocorrências, ficando com vias de comunicação intransitáveis e extensos estragos materiais. Uma mulher de cerca de 55 anos morreu encurralada na cave da habitação. E, menos de uma semana depois, ocorreu novo agravamento meteorológico, com chuva intensa e persistente por todo o país, causando centenas de ocorrências entre inundações, quedas de árvores, e registo de vários desalojados.

No desporto, Portugal perdeu para a Argentina o Campeonato do Mundo de Hóquei em Patins; e foi eliminado por Marrocos nos quartos-de-final do Campeonato Mundial de Futebol 2022.

Por fim, a obscena indemnização da TAP a Alexandra Reis, de que ninguém sabia (como convém) acarretou a sua demissão de fugaz Secretária de Estado do Tesouro, acarretando, após uma série de casos, a queda do ministro da Habitação e das Infraestruturas e do secretário de Estado das Infraestruturas. Hipocrisia sobre o que se passa, há décadas na TAP, oportunidade de a oposição se mostrar e a emergência da luta interna no PS! Como a inflação e com a guerra – e, segundo o ministro das Finanças, com o crescimento de 6,8% – são fenómenos que transitam para 2023, com a remodelação do Governo e com as exéquias de Bento XVI, falecido no fim do Ano.      

2022.12.30 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

O imbróglio em torno da TAP sabe a hipocrisia e a luta política

 

Os políticos e a sociedade escandalizaram-se porque Alexandra Reis, que percebia um vencimento anual de 350 mil euros, saiu da administração da companhia aérea nacional, em fevereiro de 2022, com a indemnização de 500 mil euros. O secretário de Estado das Infraestruturas soube da indemnização, porque a empresa, maioritariamente pública, lho comunicou, não tendo o governante visto qualquer inconveniente.

Pelos vistos, ninguém comunicou tal facto ao então ministro das Finanças, João Leão, que tinha a tutela financeira da companhia aérea. Não se sabe se o ora demissionário ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, teve conhecimento do facto. Manda a presunção que se admita que não sabia. Não obstante, a TAP comunicou ao regulador, a Comissão dos Mercados Mobiliários (CMVM), que a ex-administradora saiu por iniciativa da empresa, no âmbito da reestruturação, ficando estipulado, para efeitos internos e externos, que Alexandra Reis renunciou. E, esgrimida a verdade, conclui-se que a presidente da comissão executiva (CEO) e a administradora em causa se incompatibilizaram. Porém, em vez de a CEO ter imposto a exoneração, terá solicitado que a dispensada assinasse a renúncia.

Se Alexandra Reis foi despedida sem justa causa (por exemplo, por capricho da administração), tinha direito a indemnização nos termos da lei ou do contrato, quer viesse para a inatividade, quer viesse para outra atividade privada ou pública, incluindo o exercício de funções governativas; se assinou a renúncia, a menos que se prove que houve coação, não tinha direito a qualquer indemnização. Qualquer cláusula contratual que ultrapassasse estes dados deveria ser considerada não escrita. Assim, tudo o que anda para aí é hipocrisia da pura e chicana política.

É óbvio que é criticável um pedido de cerca de um milhão e meio de euros, mas não sei se o montante fixado da indemnização está de acordo com o teor do contrato. Aduzir, em questões contratuais, decoro, estética ou ética é dar lições aos outros e arrecadar para si os benefícios.

Cabia aos serviços jurídicos da TAP (não se percebe porque a empresa recorreu a uma sociedade de advogados, em que a figura de proa é um irmão de Marcelo Rebelo de Sousa) orientar as conversações para a eventual indemnização.

É claro que, se a TAP mentiu à CMVM, é preciso tirar as consequências contra a própria TAP.

Os sinos tocaram a rebate perante o escândalo e a finados pelo governo “maioritário” de António Costa. O escândalo custou a demissão da secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis, do ministro da Habitação e das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, e do secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Santos Mendes.

Para a demissão de Pedro Nuno Santos e de Hugo Santos Mendes, na sequência da imposição de Fernando Medina a Alexandra Reis para que apresentasse o pedido de demissão, o que a então governante fez com prontidão, contribuiu a opinião pública, a oposição política e o próprio Presidente da República (PR). Este pressionou, em público, o Governo a avaliar se a saída de Alexandra Reis é suficiente para estancar o rombo na imagem do Executivo. “Se for necessário ir mudando, muda-se”, afirmou, enquanto aguardava esclarecimentos de Pedro Nuno Santos e de Fernando Medina, que tinham, entretanto, questionado a TAP sobre o processo. Enfim, o PR avisou que “a renovação (no Executivo) é [tanto] mais intensa quanto maior é o escrutínio” e abriu a porta a eventuais novas mexidas na equipa de António Costa.

Referindo que importa que o Governo se concentre no ano “muito importante” de 2023, em que é preciso executar com eficácia os fundos europeus, o chefe de Estado garantiu manter-se atento e fiscalizador (A fiscalização do Governo cabe ao Parlamento!). E rematou: “Se para isso for necessário ir mudando o Governo, muda-se. Se basta o que já se mudou, veremos se é suficiente.”

Entretanto, passado pouco tempo da saída de Alexandra Reis da companhia aérea nacional, Pedro Nuno Santos convidou-a para presidente da NAV Portugal (empresa estatal que controla o tráfego aéreo), também sob a tutela do ministro das Infraestruturas.

A oposição  insistia em ter respostas dos ministros envolvidos no caso e o Chega apontou ao ministro das Infraestruturas. Dificilmente Pedro Nuno Santos tem condições” para se manter no Governo, disse André Ventura, à saída de uma visita ao Hospital de S. Francisco Xavier, em Lisboa. O Partido do Centro Democrático Social (CDS) quer que o PR dissolva o Parlamento (mas a maioria parlamentar não se desfez, antes se mantém sólida); a Iniciativa Liberal anunciou que vai apresentar uma moção de censura parlamentar ao Governo; e Santana Lopes entende que o PR deve encarregar António Costa de formar novo governo (difícil, pois era preciso demonstrar que as instituições democráticas não funcionam).

No entanto, Pedro Nuno Santos pediu parecer à Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CReSAP) para Alexandra Reis ser presidente da NAV. E João Bilhim, ex-presidente da CReSAP, diz que, se tivesse ele conduzido o processo teria dado um “adequado condicionado”, por a gestora ter recebido uma indemnização (o que a CReSAP escamoteou). Uma posição pouco esclarecedora! É ridículo justificar, dizendo que era “para alertar a comunicação social e a opinião pública para dois aspetos: a passagem de um regulado [a TAP] para um regulador [a NAV] e a existência de uma indemnização”.

O pedido de parecer sobre o perfil da gestora entrou na CReSAP a 11 de abril de 2022 e o parecer foi emitido 15 dias depois, a 26 de abril. O contrato de Alexandra Reis com a TAP terminou a 28 de fevereiro, mas o acordo de renúncia, com a cláusula de indemnização, foi assinado a 4 de fevereiro, ou seja, 10 semanas antes de o nome ser apresentado à comissão que avalia os cargos dirigentes da função pública e os gestores públicos. A gestora iniciou o cargo na NAV em julho e cessou no início de dezembro de 2022, quando foi nomeada secretária de Estado do Tesouro.

O Partido Social Democrata (PSD) exigiu, não só o despacho de nomeação de Alexandra Reis, mas também o parecer da CReSAP.

O parecer considerou o perfil da gestora como “adequado” às funções, após a avaliação curricular, a avaliação de competências e a avaliação em entrevista. Porém, Bilhim, como aconteceria em entrevista para empresa privada, perguntaria “em que circunstâncias saiu a candidata da empresa anterior e se foi ou não por mútuo acordo”. A pergunta seguinte era “se tinha havido lugar a indemnização”, pois o lugar em causa é numa empresa pública e o anterior também.

O antigo responsável pela seleção dos altos quadros da administração pública recorda que, no passado, deu dois “adequados condicionados” a quadros da TAP que saíram para a NAV, pelo facto de passarem para o regulador do setor em que trabalhavam. Não tiveram parecer negativo só porque não há muita gente em Portugal que perceba de navegação aérea. Se a questão da indemnização não foi falada na entrevista, devia tê-lo sido e constar do parecer. Aí concordo.

Sem mencionar essas fragilidades, a CReSAP concluiu que, “ao nível comportamental e no que toca às competências de liderança, o teste realizado revela uma pessoa que tende a alcançar um maior desempenho em culturas organizacionais participativas, democráticas e estruturadas, mas que poderá ter dificuldade em assumir o controlo das situações e em tomar decisões se não tiver a certeza dos factos”. Se a democraticidade interna era uma referência implícita à TAP ou a uma má relação com a presidente do conselho de administração, isso não é esclarecido no parecer.

Segundo o documento, Alexandra Reis “comunica de forma eficiente, tanto ao nível verbal como escrito, e transmite uma boa impressão”. E o parecer anota que “existem evidências da presença de competências técnicas e comportamentais que sustentam uma apreciação positiva para o desempenho do cargo em causa”.

***

Demissões feitas, o Partido Socialista (PS) dá o caso por esclarecido e encerrado. E Ana Gomes, do PS, pensa que Pedro Nuno Santos, que deixa muita coisa por fazer no Executivo, tem agora tempo para se preparar para assumir, no futuro, a liderança partidária e reperspetivar o partido. Já os comentadores escalpelizam as fragilidades da atual maioria absoluta, assentes em argumentos de cansaço do primeiro-ministro e incapacidade de alguns governantes. Esquecem que as maiorias são objeto de forte ataques, de agitação social e de contestação organizada. Já se esquecem das dificuldades políticas por que passaram Cavaco Silva e José Sócrates (o primeiro, em ascensão até ao desgaste; o segundo, em declínio até à minoria e à derrota).

Contudo, a não ser o Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil (SPAC) – que pretende a demissão do Chairman e da CEO da TAP, por motivos de responsabilidade organizativa e funcional –, ninguém questiona o que se passa na transportadora aérea. Se Alexandra Reis percebia um vencimento bruto anual de 350 mil euros e recebeu uma indemnização de 500 mil euros, que indemnização receberia, se fosse exonerada, a CEO, que tem um vencimento bruto anual de 504 mil euros? E que dizer do Chairman e dos demais elementos do Conselho de Administração?

Com estas demissões resolveu-se o pandemónio que vai na TAP de um país pobre? É óbvio que a exploração predadora continua. Os políticos demitem-se, mas os administradores ficam.

O PR, que não devia tomar partido, a menos que um segundo mandato o legitime, fica tranquilo com a autopunição do ministro, que sai, não a coberto da pior polémica, a da localização do aeroporto. Já esquecia: “uma coisa é o Presidente, outra é a família”. Para Pedro Nuno Santos, Ana Abrunhosa e Manuel Pizarro o critério não é válido. E parece que Alexandra Reis só foi “crucificada” por ter ido da TAP para o Governo: o caso da NAV só veio retocar o “poema”.

Paguem mal aos políticos, criem muitas incompatibilidades e impedimentos legais e éticos, que teremos governantes e deputados cada vez mais medíocres, importados dos aparelhos partidários!

2022.12.29 – Louro de Carvalho

Guerra na Ucrânia sem fim à vista e o povo continua a sofrer

 

Volodymyr Zelensky mostra-se convicto de que a Ucrânia ganhará a guerra, apesar dos cenários de morte e de destruição que o país apresenta. E Vladimir Putin contraria as asserções de quem aponta o desgaste político do Kremlin, a fragilidade do exército russo, a impreparação dos seus militares ou a condição obsoleta do seu equipamento bélico.  

Não bastando a resistência ucraniana de dez penosos meses, surpreendente para Moscovo, o presidente da Ucrânia foi a Washington, na sua primeira viagem ao estrangeiro desde 24 de fevereiro, agradecer o apoio financeiro e militar dos Estados Unidos da América (EUA) e receber as garantias diretas de Joe Biden do reforço na ajuda logística e bélica, nomeadamente pelo envio dos Patriot (sistema de mísseis projetado para detetar, almejar e atingir um míssil que pode ter não mais que seis metros de comprimento e voa até cinco vezes a velocidade do som), símbolo da vontade norte-americana de não desmobilizar na causa de Kiev.

A isto Vladimir Putin, para quem a visita de Zelensky aos EUA mostra despreocupação com a Rússia, respondeu com a ameaça do míssil balístico intercontinental com capacidade nuclear.

Apelidado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) de Satan II, o RS-28 Sarmat foi projetado para transportar até 15 ogivas nucleares, mais cinco do que o R-36M [Satan] da era soviética. É o mais rápido e enganador dos mísseis balísticos intercontinentais. Muito pesado e movido a combustível liquefeito, tem força para lançar várias ogivas dispostas no veículo. Um míssil destes, que atingirá até 15 alvos próximos, está equipado para transportar munições hipersónicas na ogiva e servir de plataforma a lançamento de mísseis de cruzeiro.

Harry Halem, analista militar que reside em Londres, não vê “prova real de que a Rússia esteja perto de produzir o Sarmat para quaisquer propósitos”. Aliás, a “única informação de que dispomos é o alegado teste de abril de 2022”. Porém, Dmitry Rogozin, ex-líder da Roscosmos (empresa estatal que supervisiona a construção do míssil), garantiu tratar-se de uma superarma, pois, testado em abril, atingiu alvos simulados a mais de 4800 km. Putin reagiu com entusiasmo, sustentando que o Sarmat supera todas as formas de defesa antimísseis e fará qualquer inimigo da Rússia pensar duas vezes. Há cerca de um mês, um centro de produção de mísseis russo (Makeyev) anunciou a sua produção em série. E o Kremlin diz que o projeto, com modificações, será um desafio para as defesas antiaéreas dos EUA, em caso de guerra nuclear.

“A Rússia é quase certamente incapaz de produzir Sarmats em larga escala, neste momento, até porque o país produz cerca de seis SRBMs Iskander (sistema móvel de mísseis balísticos de curto alcance) por mês”, diz Harry Halem. O Iskander tem só uma fração do tamanho do Sarmat (3800 kg, em comparação com mais de 200 toneladas). E Harry Halem duvida de que o Avangard, o veículo hipersónico que o Sarmat deveria carregar, esteja a ser fabricado de forma maciça. Mas, se tal se confirmar, o Sarmat será irrelevante para o equilíbrio militar na Ucrânia, pois é um míssil balístico intercontinental projetado para lançar ogivas nucleares por dezenas de milhares de quilómetros, ou seja, para ataque nuclear de longo alcance, sobretudo contra os EUA, não para a Ucrânia. Por isso, Shaan Shaikh, diretor do Missile Defense Project do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais [Center for Strategic & International Studies], em Washington, diz que o possível alvo se encontra longe da fronteira ucraniana.

Mick Mulroy, ex-subsecretário adjunto da Defesa norte-americano, ex-funcionário da CIA e fuzileiro naval dos EUA, defende que a frustração russa precipitou a ameaça, e o anúncio de Biden de envio do sistema antimísseis Patriot para a Ucrânia enraiveceu mais o Kremlin. “Ficou claro que a Rússia sabe que não pode vencer uma luta convencional contra os militares ucranianos. Por isso, voltou-se para o ataque direto a civis e à infraestrutura civil, como uma forma de terror. Acredito que foi por isso que nos sentimos compelidos a fornecer esses sistemas, e a ameaça russa faz parte de um esforço para conter os nossos movimentos” – sustentou.

Segundo Mark Cancian, ex-conselheiro do Departamento de Defesa norte-americano, os novos mísseis balísticos intercontinentais substituem mísseis russos mais antigos. O míssil foi anunciado em 2014, para arrancar em 2020. Problemas com os motores atrasaram os testes, segundo a agência de notícias russa Interfax. E o também analista do Center for Strategic & International Studies diz que o anúncio de Sergei Shoigu, ministro da Defesa russo, de investimento no armamento se compatibiliza com o programa de modernização nuclear em curso.

A ameaça não se dirige à Ucrânia, mas o “uso do Sarmat ou de mísseis balísticos intercontinentais russos semelhantes mudaria drasticamente a guerra”, admite Cedric Leighton, analista militar da CNN e antigo responsável dos serviços secretos da Força Aérea norte-americana. “O seu emprego representaria uma escalada sem paralelo e certamente provocaria uma resposta ocidental”, vincou.

Por todos os motivos, diz James A. Lewis, vice-presidente do Programa de Tecnologia e Políticas Públicas do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, em Washington, nada inverterá a tendência da guerra: “A Rússia perdeu, e Putin não pode admitir isso.” Será mesmo assim?

***

Os Patriot reabilitarão a capacidade ucraniana de reagir contra mísseis balísticos e aeronaves russas em grandes altitudes, mas uma bateria não virará o jogo. O significado simbólico – de que os EUA estão dispostos a enviar um sistema de defesa antiaérea de primeira linha para a Ucrânia – é mais importante do que a capacidade militar do sistema. E a Ucrânia dá um sinal de que construirá um Exército mais próximo dos ocidentais, esquecendo de vez o passado soviético.

Até ao inverno e dez meses após o início da guerra, Joe Biden não tinha equacionado enviar a Zelensky o sistema de defesa antiaérea mais capaz dos EUA. Os Patriot (da expressão Phased Array Tracking to Intercept On Target) são padrão de eficiência no abate de mísseis de cruzeiro, mísseis balísticos de curto alcance e aeronaves num teto mais alto do que o dos restantes sistemas de defesa antiaérea. Capazes de detetar e de apontar a seis alvos com grande precisão e altamente móveis, assegurando a capacidade de autossobrevivência, estes sistemas serão enviados para a Ucrânia, quando a necessidade começa a falar mais alto aos ouvidos de Joe Biden. E os EUA enviam-nos agora, quando os ataques russos às infraestruturas causam grande sofrimento ao povo ucraniano – e continuarão a fazê-lo – e porque os EUA e a NATO carecem de outros sistemas, por a maior parte da defesa antiaérea terrestre ter sido desativada no fim da Guerra Fria.

A campanha beligerante da Rússia colocou numa situação operacional difícil a Ucrânia, que tem poucos sistemas antiaéreos e poucas aeronaves de asa fixa para obter superioridade aérea sobre a linha da frente numa ofensiva. O que a campanha de ataques estratégicos da Rússia às críticas infraestruturas da Ucrânia conseguiu foi dividir as defesas antiaéreas ucranianas entre a linha da frente e áreas civis e de centrais elétricas. Haverá uma bateria juntamente com dois NASAMS (sistema de defesa antiaérea baseado em terra de curto a médio alcance). E os Patriots, se usados ​​de forma eficaz, podem enfraquecer a campanha de ataque estratégico da Rússia.

Nos últimos dez meses, a Ucrânia desmitificou a superioridade aérea das forças russas, usando sistemas de defesa antiaérea e estratificando os efeitos de altitudes mais altas para mais baixas. O principal sistema usado para impedir que aeronaves russas voassem em altitudes mais altas é o míssil terra-ar S-300, da era soviética. E os países ocidentais tentaram obter mais lançadores e mísseis dos antigos países do Pacto de Varsóvia (aliança militar do bloco soviético, designada por Tratado de Amizade, Cooperação e Assistência Mútua).

Kelly Grieco, investigadora na área de Defesa e Segurança do ‘think tank’ norte-americano Atlantic Council diz tratar-se de uma possibilidade alarmante, porque negar superioridade aérea à Rússia “foi fundamental para o sucesso geral da Ucrânia nesta guerra”. Por isso, enviar o Patriot é o passo que se segue para garantir que a Ucrânia mantém defesas antiaéreas robustas.

O sistema antimísseis de primeira linha, projetado para operar a médio alcance, foi desenvolvido pela empresa norte-americana Raytheon. Israel, Alemanha, Espanha, Japão ou Taiwan já recorreram ao Patriot, cuja parte mais importante é o simbolismo. O Patriot é uma plataforma de armas icónica. Fez parte das plataformas de armas “Big Five”, que transformaram o Exército dos EUA na década de 1980, e que se estreou com sucesso na Primeira Guerra do Golfo.

Os EUA usaram baterias Patriot em vários conflitos. Em janeiro, as tropas americanas na Base Aérea de Dhafra, nos Emirados Árabes Unidos, dispararam mísseis Patriot para intercetar mísseis direcionados à base. O alcance, precisão e velocidade do sistema tornam-no excelente sistema de defesa, e os seus sensores e poder de computação são inigualáveis.

A garantia é dada por James A. Lewis, vice-presidente do Programa de Tecnologia e Políticas Públicas do Center for Strategic & International Studies. Porém, o Patriot não vira o jogo, pois não é capaz de criar um escudo impenetrável em torno da cidade de Kiev, muito menos de toda a Ucrânia. Para colocar isto em perspetiva, os EUA têm duas baterias Patriot a proteger o aeroporto polaco, que é o principal centro logístico para abastecimentos ocidentais à Ucrânia. Os sistemas de defesa aérea ocidentais não existem em número suficiente para oferecer o tipo de proteção que a Ucrânia procura, contra ataques aéreos e de mísseis russos. O Patriot é um dos sistemas de defesa antiaérea mais avançados do mundo, mas isso torna-o mais complexo de operar. Segundo os analistas, serão necessários entre 80 a 90 soldados para a tarefa, e o treino padrão requerido para trabalhar com os lançadores demora vários meses. O outro grande desafio logístico é a falta de mísseis de reposição. O sistema geralmente vem fornecido com oito mísseis, mas os ucranianos podem esgotar rapidamente essa quantidade.

Mark Cancian tem expectativas realistas quanto ao impacto dos Patriot na guerra. As dificuldades logísticas são um fator a não ignorar. O sistema só defende uma cidade. Todavia, Harry Halem contrapõe que os EUA e a NATO podem sustentar os Patriot com maior eficácia do que os equipamentos soviéticos antigos. A pegada logística dos PAC-3 Patriot não é proibitiva. Não se sabe para onde os EUA enviam PAC-2s ou PAC-3s, que serão eficazes.

O anúncio dos Patriot mostra a estreita relação entre os EUA e a Ucrânia e reafirma ao povo ucraniano que ambos os governos fazem os possíveis para protegê-lo de ataques aéreos, mas nenhum sistema de armas, exceto de armas nucleares, será o verdadeiro divisor de águas na guerra. Nada surgirá, para a Ucrânia, nem para a Rússia, como bala de prata. Segundo Kelly Grieco, há que ver além das capacidades do equipamento. Pensamos que a tecnologia virará o jogo, mas nenhuma tecnologia ou sistema de armas muda o rumo de uma guerra, exceto as armas atómicas. O fraco desempenho da Rússia não é reparável por uma bala tecnológica, que não é solução para comandantes fracos, treino insuficiente, logística problemática e baixa motivação.

Enfim, o Satan II poderá ser um perigo, caso os beligerantes enveredem pela guerra nuclear. Só os mísseis Patriot e os que se lhe oponham, como os mísseis Scud (mísseis balísticos móveis, de origem soviética, com curto alcance), não mudam o curso da guerra.

2022.12.28 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

As sanções económicas são armas maléficas para os dois campos

 

Por decreto assinado a 27 de dezembro de 2022, para vigorar de 1 de fevereiro a 1 de julho de 2023, a Rússia vai proibir a venda do seu petróleo aos países que aplicarem o teto aos preços da commodity russa, estabelecido em 60 dólares por barril pela União Europeia (UE) pelo G7 e pela Austrália, no início de dezembro de 2022.

A este respeito, Vladimir Putin, presidente russo, assegurou que estará proibido “o abastecimento de petróleo e de produtos petroleiros russos a entidades jurídicas estrangeiras e a outros particulares”, se estas implementarem o teto aos preços. Não obstante, a proibição pode ser suspensa em casos concretos com base numa “decisão especial” do presidente.

Esta medida vem na sequência da entrada em vigor, a 5 de dezembro, do acordo sobre o preço máximo do seu petróleo, negociado a nível político entre o grupo G7 das democracias mais ricas e a UE, juntamente com um embargo da UE ao petróleo bruto da Rússia.

O embargo impedirá os embarques de petróleo russo por navios-tanque para a UE, que representam dois terços das importações, privando o cofre de guerra da Rússia de milhões de euros.

O G7 e a Austrália chegaram a um consenso sobre um preço máximo de 60 dólares americanos por barril para o petróleo bruto de origem russa transoceânico em linha com a UE. E o G7 disse que está a cumprir a promessa de “evitar que a Rússia lucre com a sua guerra de agressão contra a Ucrânia, apoiar a estabilidade nos mercados globais de energia e minimizar os efeitos económicos negativos da guerra de agressão da Rússia”. O limite de preço tem como objetivo tornar mais difícil para a Rússia contornar as sanções vendendo fora da UE.

A Casa Branca descreveu o acordo como “boa notícia”, dizendo que um teto de preço ajudará a limitar a capacidade de Putin de financiar a “máquina de guerra” do Kremlin.

Logo a 5 de dezembro, a Rússia advertiu que não reconhece um limite para o preço do seu petróleo e que está a preparar uma resposta à decisão da UE e do G7 de estabelecer o preço de 60 dólares por barril. “A resposta está a ser preparada. É evidente que uma coisa está clara: não vamos reconhecer limite algum”, disse, na sua conferência de imprensa diária por telefone, o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, acrescentando que tanto o limite de preço como o embargo europeu ao fornecimento de petróleo russo por navio mudarão o mercado. “É evidente e indiscutível que a adoção dessas decisões é um passo para a desestabilização do mercado energético mundial”, enfatizou a alertar todos os países para a iminência de novos aumentos de preços.

Peskov porfiou que essas restrições não afetarão a campanha militar russa na Ucrânia, já que a Rússia tem reservas suficientes para as combater. Com efeito, “a economia russa tem potencial suficiente para cobrir todas as necessidades da operação militar”, como a Rússia intitula a campanha de guerra na Ucrânia.

O porta-voz da presidência russa frisou que as sanções “não afetam criticamente” o país e que a economia se adaptou. E sublinhou: “Certos problemas surgem naturalmente devido às sanções […] Os especialistas veem perfeitamente o processo de adaptação da economia russa a essas condições, negar isso seria pouco profissional.”

Em suma, o Kremlin, que acusou o Ocidente de reformular, por sua própria conta e risco e de forma perigosa e ilegítima, os princípios do livre mercado, avisa que a Rússia está a preparar uma resposta à decisão da UE e do G7 de estabelecer o preço de 60 dólares por barril.

Também a 5 de dezembro, o vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, Dmitry Medvedev, advertiu o Ocidente de que “o inverno ainda agora começou”, depois de entrar em vigor o limite imposto ao preço do petróleo russo. “Isto não será bom para o consumidor. Por isso, abasteçam-se de água, fogo, cobertores e aquecedores”, disse Medvedev no Telegram.

Medvedev sustentou que as tentativas de regular os preços levam, não raro, ao desaparecimento do produto ou ao aumento do custo. “Ninguém anulou a lei dos preços. É assim que vai acontecer com o petróleo. Claro que não irá desaparecer, mas o inimaginável irá acontecer com os preços”, disse o antigo presidente russo, ironizando que a situação lhe lembra um “grupo de burgueses europeus bêbados” que decidem banhar-se em água gelada, razão pela qual alguns se afogam.

Há outra medida com que Moscovo poderá responder à decisão da UE, do G7 e da Austrália em adotar um limite de preço ao petróleo russo: a redução da produção diária de petróleo em 5 a 7%.

Na verdade, a 23 de dezembro, o vice-primeiro-ministro russo, Alexander Novak, afirmou que a Rússia poderá reduzir a produção de petróleo em 500.000 a 700.000 barris diários em 2023, como resposta à adoção do limite de preço aos seus combustíveis por parte dos países ocidentais.

Além do teto do preço do petróleo, as empresas são proibidas de fornecer os serviços que permitem o seu transporte. O objetivo desta medida dos países ocidentais é prejudicar a enorme receita que Moscovo obtém com a venda dos hidrocarbonetos e, assim, diminuir a sua capacidade de financiar a guerra na Ucrânia. Porém, Vladimir Putin, poucos dias após a introdução do limite de preço, classificou a medida como sendo uma “decisão estúpida” e ameaçava o Ocidente com a “redução da produção de petróleo, caso seja necessário”.

***

As sanções económicas à Rússia, embora possam prejudicar a economia daquele país, o que as suas autoridades negam ou minimizam, prejudicam a economia dos países da UE, os quais têm dificuldade em cortar a dependência dos produtos russos e parecem gostar da dependência dos Estados Unidos da América (EUA), como se essa fosse mais barata e sadia, ou de países em que os direitos humanos são puramente vilipendiados. Ao fim e ao cabo, as sanções comportam-se mais como fogo amigo do que de armas de ofensiva. 

Fez-me pensar, seriamente, um artigo do Público, de 24 de dezembro, intitulado “Sanções à Rússia: quo vadis Europa?”, da pena de José Jorge, José Pedro Teixeira Fernandes e Jorge Rodrigues, codiretores do programa Risco Geopolítico e Estratégia para Executivos da Porto Business School – em parceria com o Instituto da Defesa Nacional (IDN), a fim de promover a compreensão dos temas geopolíticos e riscos derivados, permitindo adquirir conhecimentos sólidos na relação com as organizações, bem como tendências, incertezas, acontecimentos e riscos globais que impactam localmente, criando ferramentas para definir uma estratégia resiliente e adaptativa e para transformar todos os fatores de risco em oportunidades sustentáveis .

Citando o livro mais recente Nicholas Mulder, The Economic Weapon: The Rise of Sanctions as a Tool on Modern War, os autores do artigo verificam que as sanções económicas dominam a política mundial. Inicialmente desenvolvidas para a defesa do internacionalismo liberal, baseiam-se nas “técnicas devastadoras” da guerra que dizem querer evitar. Pura hipocrisia interesseira!

O debate sobre as sanções centra-se no impacto na economia e na eficácia de limitar a máquina de guerra russa – processo iniciado em 2014, com a anexação da Crimeia, e que mostra o esforço ocidental de suposta solidariedade contra a invasão. Porém, é impensável resolver o conflito entre a Rússia e o Ocidente retirando Vladimir Putin do poder. E deve pensar-se que a crise se manterá para lá de um cessar-fogo na Ucrânia e que as sanções prolongarão as restrições a longo prazo.

Embora não sendo os promotores do conflito, os EUA estão entre os grandes ganhadores. Retiram múltiplos dividendos, que lhes permitem concentrar-se na competição global com a China – o competidor crescentemente capaz de reorganizar a ordem internacional a seu favor.

De facto, o objetivo de contrariar o controlo chinês sobre as indústrias mais importantes levou a Administração Biden à política protecionista expressa, por exemplo, no Inflation Reduction Act, programa que, entre proteções e apoios à descarbonização, incentiva as empresas europeias a deslocalizarem-se para os EUA – medida pouco amigável dos aliados no atual contexto.

À UE interessava que a primeira resposta à invasão da Ucrânia fosse rápida e firme. Também seria bom assegurar a “autonomia estratégica” que não a colocasse em posição sensível. Porém, todos os indicadores económicos – inflação, desemprego, fraco crescimento, quebra da confiança e sinais de recessão – são preocupantes e a questão energética centra as atenções (o custo do gás natural na Europa é quase o quádruplo do dos EUA e o da gasolina é sensivelmente o dobro). Nestes termos, as sanções (sobretudo a partir do 9.º pacote) agravaram a situação da economia europeia, mormente em setores mais expostos aos efeitos da guerra, e puseram os EUA, a China, a Índia e outros países em posição mais vantajosa.

Descuidando o risco geopolítico da Rússia, a UE ignorou os passos de “gestão de risco”: compreender, analisar, mitigar e responder. Preocupada com a recuperação pós-pandémica e com o decoupling das cadeias de abastecimento, enredou-se numa perigosa dependência energética da Rússia. A mitigação, que deveria ter sido preparada e estar em execução, deverá ser orientada com celeridade para riscos futuros acrescidos. Por outro lado, a UE deve manter a pressão, mas sem incorrer em desvantagem económica significativa. Com efeito, o risco de desindustrialização da Europa enfraquece-a e, não sendo do seu interesse, também não é do interesse dos próprios EUA, devido à competição com a China.

Por isso, a UE tem de encontrar o seu caminho no contexto mundial de inusitada turbulência, mantendo-se firme nos seus valores, mas identificando riscos geopolíticos e prosseguindo políticas que os mitiguem. Nestes termos, deverá empreender uma transformação ambiciosa e complexa na energia, substituindo as energias fósseis pelas renováveis e promovendo um mercado da energia aberto, que favoreça a sua afirmação internacional e a adaptação às mudanças geopolíticas. E, no curto prazo, deve promover ajustamentos no gás natural, através de processos negociais integrados e complementares, assegurando o acompanhamento e apoio à economia.

Por fim, ante os sinais de que as sanções causam impacto na capacidade militar da Rússia, a UE deverá, como sugerem os referidos peritos, “ter uma atitude pragmática eficaz, para não ser envolvida num turbilhão geopolítico e geoeconómico que a fragilize de forma irrecuperável”.

Importa que as sanções não sejam fogo amigo. E há que ter pena de quem morre do lado de lá.

2022.12.27 – Louro de Carvalho

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Em Fátima, intelectualização a mais e pouca atenção aos peregrinos (?)

 

A 22 de dezembro de 2022, o jornal digital 7Margens dava conta da forte crítica de Monsenhor Luciano Paulo Guerra, antigo reitor do Santuário de Fátima, aos atuais responsáveis pela pastoral fatimita, no que julga ser uma gestão cujo “fito primário mais explícito são os intelectuais”, não deixando espaço à “dedicação aos pobres”.

Ao mesmo tempo, em contraponto, explicita a reação dos criticados, que devolvem várias delas, aduzindo que resultam de “uma leitura pessoal” que traduz um “alheamento do que é hoje o Santuário […] que carece de fundamentação e revela um profundo desconhecimento da atual gestão […] e dos desafios com que se confronta”.

Efetivamente, Paulo Guerra, que foi reitor durante 35 anos (entre 1973 e 2008), em entrevista ao semanário Jornal de Leiria, diz que a sua prioridade eram “os peregrinos em geral”, que “podem considerar-se pobres, a classificação humana que mais convém aos filhos de Deus” e que hoje isso não acontece. Assim, sustenta que “prevalece a intelectualidade e a arte”, ficando “a grande massa de peregrinos, gente simples pobre e humilde” em plano secundário.

Recorde-se que a Luciano Paulo Guerra, sucedeu, em 2008, o Padre Virgílio Antunes, a quem sucedeu, em 2011, quando este foi nomeado bispo de Coimbra, o Padre Carlos Cabecinhas.

Monsenhor Paulo Guerra critica a “esplendorosa celebração do centenário”, em 2017, vincando: “Houve muita música e outras manifestações artísticas. Fazem-se ainda hoje exposições maravilhosas, mas que, a meu ver, ficam demasiado caras e, até por isso, de resultado pastoral menos evidente. O peregrino que vem a Fátima não precisa senão de um ambiente de oração.”

Segundo o comunicado divulgado pelo Santuário, as asserções do antigo reitor revelam “uma grande contradição entre aquela que foi a ousadia” de Monsenhor Luciano Guerra, que, “durante 35 anos, nunca deixou que o Santuário cristalizasse na sua ação pastoral e procurou que fosse sempre evoluindo, mas que agora manifesta total oposição a toda a evolução verificada desde 2008”. O mesmo se dirá da pretensa ‘intelectualização’ da pastoral do Santuário: “Luciano Guerra foi um homem de cultura, que convidou alguns dos mais reputados artistas nacionais, e até internacionais, a interpretar a mensagem e a materializá-la em obras de arte e iniciou os congressos internacionais que reuniram na Cova da Iria grande parte dos teólogos pensadores da contemporaneidade” – contributo precioso que o Santuário não esquece, antes valoriza.

Quanto a gastos, a resposta ao antigo reitor recorda que a sua gestão foi também objeto de muitos reparos, nomeadamente pela construção de estruturas como a Basílica da Santíssima Trindade. Com efeito, a sua política de investimentos “passou sobretudo pela construção de grandes espaços celebrativos” e consome agora “grande parte dos recursos orçamentais”, devido à necessidade de administrar, manter e conservar.

Na entrevista, o antigo reitor contesta ainda os salários altos no Santuário: “Um padre é um padre. “Não pode, de maneira nenhuma, comparar-se a um administrador de uma empresa, mesmo que os leigos que o sacerdote dirige recebam salário superior.” E, na mesma linha, acrescenta: “Houve trabalhadores que, praticamente, foram expulsos; a vários outros […] teve a instituição de pagar altas indemnizações; outros saíram e calaram-se, com receio de retaliações. Quase de rompante, foram admitidos mais de 130 novos funcionários, numa casa que tinha 210. Houve uma série de pessoas que foram empurradas para sair.”

A isto o Santuário responde que se requer uma “gestão profissional, adaptada às exigências de hoje, sempre comprometida com o bem comum e com a dimensão social” e que “nunca deixou de cumprir qualquer obrigação, desde logo com os seus funcionários”. Estão equilibradas as contas e os despedimentos não o foram, antes se tratou da adaptação do “quadro de pessoal às necessidades pastorais resultantes do novo contexto, que obrigou a redução muito significativa da atividade em 2020, que se prolongou no ano de 2021 e que, em 2022, começou a ser retomada.

Referindo-se às “situações ímpares, nunca antes vividas” e ao “ano mais difícil da história da instituição”, que foi 2020, o comunicado sublinha que, das 57 desvinculações registadas, 16 foram revogações de contrato por mútuo acordo, iniciativa do próprio trabalhador; 20 foram cessações de contrato no seu termo, dos quais nove eram estudantes; e, ainda, houve 17 rescisões por iniciativa do trabalhador e quatro aposentações por velhice.

Nas suas críticas, o antigo reitor considera que se impõe “um enorme esforço de purificação do Santuário, no sentido de o fazer voltar-se para o público de peregrinos, que pode ser considerado de pobres”. E os responsáveis contrapõem que o Santuário dá apoios sociais, “incrementando e intensificando o apoio material a quem dele mais precisava e à Igreja em geral”.

***

Lamento este despique de críticas, num espaço que deve ser de discussão no atinente à melhoria da organização e funcionamento pluriforme do Santuário, enquanto local de recolhimento e de peregrinação. Há um chorrilho de acusações mútuas que desdizem da boa saúde eclesial.

Não há dúvida de que foi Paulo Guerra, com o beneplácito do bispo Dom Alberto Cosme do Amaral, que reformulou toda a perspetiva pastoral do Santuário de Fátima: melhoria do acolhimento aos peregrinos, mormente os doentes e os que peregrinam a pé (serviço que era prestado desde o início das peregrinações eclesiasticamente enquadradas); modernização dos espaços (Capelinha das Aparições, com o confortável abrigo dos peregrinos, Recinto de Oração, as duas Casas de formação e de apoio aos serviços do Santuário); construção do Centro Pastoral Paulo VI; construção da Igreja da Santíssima Trindade (hoje, basílica); melhoria organizativa dos atos de culto e maior coerência nos atos litúrgicos; colocação de novas estátuas icónicas de Fátima; dotação da Livraria do Santuário de receio de alta qualidade, sem descurar a piedade popular; criação de vários parques de estacionamento; empenho em campanhas de solidariedade (o primeiro contributo de grande impacto foi o apoio material às vítimas do grande incêndio da Curraleira, Lisboa, em 1975); significativo reforço das ações temáticas a vários níveis, como seminários, congressos, simpósios; disponibilidade, por vezes remunerada de algumas instalações a entidades externas; e estabelecimento de parcerias. Mais: tentava auscultar a opinião dos peregrinos sobre o culto e sobre as obras, através da disponibilidade de cadernos de sugestões.

Tudo isto a reitoria reconhece como positivo e segue. Porém, não era oportuno atirar com o facto de a gestão de Monsenhor Guerra ter sido criticada ao tempo, a menos que houvesse razões para isso, o que não parece. De resto, só não é criticado quem nada faz. E é óbvio que os equipamentos, num lugar destes, nunca são excessivos, mas importa cuidar deles, conservá-los e rentabilizá-los.

É natural que o antigo reitor não tenha acompanhado, de forma ortodoxa, a evolução da gestão de Fátima e tenha cometido certa injustiça em relação à probidade dos atuais responsáveis, que não descuram a atenção e o serviço aos peregrinos e continuam, exemplarmente, a encher a agenda do Santuário de bons momentos artísticos e culturais, de iniciativas de reflexão e de debate, muitas delas de cunho espiritual, de escritos históricos e teológicos. E não descuram as obras necessárias, como o novo altar do Recinto de Oração. De resto, parece inclemente a crítica surgida após dois anos de pandemia, tão difíceis para todos, a fortiori, para um centro de atividades que dispunha de tanta gente e com tão pouco que lhe dar a fazer.  

Por mim, só me pergunto por que motivo tem estado inoperacional o grande auditório do Centro Pastoral Paulo VI e por que razão foi substituída a missa da vigília das peregrinações aniversárias por uma Celebração da Palavra. É óbvio que a comunidade cristã não tem de reunir só para a Eucaristia, mas haverá peregrinos que vão a Fátima e não ficarão para a Missa Internacional do dia 13. Aí, parece ter havido uma certa regressão.   

Há, no entanto, uma crítica de Monsenhor Guerra a ter em conta. A gestão profissional, invocada pela reitoria, não postula que o reitor se assuma como CEO de empresa. E este deu a entender que o era, em entrevista em que foi questionado sobre os alegados “despedimentos”. É possível que alguns leigos, enquanto assessores qualificados, percebam um vencimento fora do comum. Porém, os sacerdotes devem contentar-se com um salário justo e digno, mas não excessivo. Precisa-se de uma gestão profissionalizada, mas não vale tudo. O santuário não é uma empresa, nem um Estado. Vive dos contributos dos peregrinos e dos devotos e dispõe também duma panóplia de voluntários que trabalham por devoção.

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Por fim, são de recordar as missões do santuário, na linha da Carta Apostólica Sanctuarium in Ecclesia: incremento do papel evangelizador do santuário e incentivo da religiosidade popular; promoção de uma pastoral orgânica do Santuário como centro propulsor da nova evangelização; promoção de encontros nacionais e internacionais para favorecer uma obra comum de renovação da pastoral da piedade popular e da peregrinação rumo a lugares de devoção; promoção da formação específica dos seus agentes e do santuário como lugar de piedade e de devoção; zelo para se ofereça aos peregrinos, nos lugares de passagem, assistência espiritual e eclesial concreta que permita o maior fruto pessoal destas experiências; e valorização cultural e artística do santuário segundo a via pulchritudinis como modalidade peculiar da evangelização da Igreja.

2022.12.27 – Louro de Carvalho