segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

As grandes heresias dos primeiros séculos do cristianismo

 

Desde o princípio da Cristandade a Igreja tem-se confrontado com os falsos ensinamentos ou heresias. É natural, pois qualquer ideário ou projeto coletivo conhece tanto os seus agentes de aprofundamento, dilatação e divulgação como os detratores, que induzem contrafação e desvio.

No caso dos seguidores de Cristo, a previsão ficou plasmada no discurso escatológico de Cristo:

“Tomai cuidado, não vos deixeis enganar! Pois muitos virão em meu nome, dizendo: ‘Sou eu’ e ‘O tempo está próximo’. Não vades atrás deles. Quando ouvirdes falar de guerras e de rebeliões, não fiqueis aterrorizados; é necessário que estas coisas aconteçam primeiro, mas não será imediatamente o fim.” (Lc 21, 8-9) E o Apóstolo Paulo avisou o seu discípulo Timóteo: “Virão tempos em que o ensinamento salutar não será aceite, mas as pessoas acumularão mestres que lhes encham os ouvidos, de acordo com os próprios desejos. Desviarão os ouvidos da verdade e divagarão ao sabor das fábulas.” (2Tm 4,3-4).

Se olharmos os catálogos telefónicos, toparemos, em qualquer cidade, uma denominação religiosa que diz o que gostamos de ouvir. Ensinam que Jesus não é Deus ou que é a única pessoa da Trindade, que há muitos deuses (três dos quais são o Pai, o Filho e o Espírito Santo), que nos podemos tornar deuses, que uma pessoa, uma vez salva, jamais perderá a salvação, que não há inferno nem diabo, ou que o homossexualismo é uma expressão da sexualidade humana, portanto um estilo de vida aceitável para um cristão – para lá de qualquer outro tipo de ensinamento.

Antes de olhar as grandes heresias da História da Igreja, cumpre esclarecer a natureza da heresia, pois o termo em si carrega forte peso emocional e é, frequentemente, mal utilizado. Heresia não significa incredulidade, cisma, apostasia ou outra postura contra a fé. O Catecismo da Igreja Católica (CIC) explana: “A incredulidade é o desprezo da verdade revelada ou a recusa voluntária de lhe prestar assentimento. A heresia é a negação pertinaz, depois de recebido o Batismo, de alguma verdade que se deve crer com fé divina e católica ou, ainda, a dúvida pertinaz acerca da mesma; apostasia é o repúdio total da fé cristã; cisma é a recusa da sujeição ao Sumo Pontífice ou da comunhão com os membros da Igreja que lhe estão sujeitos.” (CIC 2089).

Para ser culpada de heresia, a pessoa deve estar obstinada (incorrigível) no erro. Quem está aberto à correção ou não tem consciência de que o que diz é contrário ao ensinamento da Igreja não pode ser considerado herege. Por outro lado, a dúvida ou negação envolvida na heresia deve ser pós-batismal. Para ser acusada de heresia, a pessoa deve ser, antes de tudo, um batizado. Isso significa que os movimentos que surgiram da divisão do Cristianismo ou que foram influenciados por ele, mas que não ministram o Batismo ou que não batizam validamente, não são heresias, mas religiões separadas (por exemplo, os Muçulmanos, que não possuem o Batismo, e as Testemunhas de Jeová, que não batizam validamente). E a dúvida ou negação envolvidas na heresia devem estar conexas com matéria que deve ser crida com fé católica e divina, ou seja, algo definido solenemente pela Igreja como verdade revelada, por exemplo, a Trindade, a Encarnação, a Presença Real de Cristo na Eucaristia, o Sacrifício da Missa, a Infalibilidade Papal, a Imaculada Conceição e a Assunção de Nossa Senhora. É importante distinguir heresia de cisma e apostasia. No cisma, a pessoa ou grupo separa-se da Igreja Católica sem repudiar doutrina definida. Já na apostasia, a pessoa repudia totalmente a fé cristã e não mais se considera cristã.

Vistas as diferenças, revisitam-se as grandes heresias da História da Igreja (até ao século VIII).

A judaização, no século I, resume-se no seguinte: “Alguns, que tinham descido da Judeia, ensinavam aos irmãos: ‘Se não vos circuncidardes de harmonia com o uso herdado de Moisés, não podereis ser salvos’.” (At 15,1) Muitos dos primeiros cristãos eram judeus e trouxeram para a fé cristã as práticas judaicas. Reconheciam em Jesus Cristo o Messias anunciado pelos profetas, mas, como a circuncisão era obrigatória no Antigo Testamento (AT) para a participação na Aliança com Deus, pensavam que também era necessária para a participação na Nova Aliança que Jesus inaugurou. Portanto, acreditavam que era necessário o homem ser circuncidado e guardar os preceitos mosaicos para se tornar um verdadeiro cristão.

Já o ebionismo era a seita cristã que ensinava que Jesus era o Messias, um homem comum que se tornou divino na ocasião do Batismo. Os ebionitas insistiam na necessidade de seguir as leis e os ritos judaicos, que interpretavam à luz dos ensinamentos de Jesus, utilizando apenas o evangelho judaico-cristão e rejeitando as epístolas paulinas, cujo autor consideravam apóstata da Lei.

Parente do ebionismo era o adocionismo, também chamado monarquianismo dinâmico, que é uma visão não trinitária do cristianismo primitivo, que professa que Jesus nasceu apenas humano, tornando-se divino por ocasião do Batismo, quando foi adotado como filho de Deus.

Entretanto, surge o gnosticismo (séculos I e II) sob o lema “A matéria é má”, ideia tomada emprestada de alguns filósofos gregos, o que vai contra o ensinamento católico, pois contradiz Génesis 1,31 (“Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa”), bem como outras partes da Sagrada Escritura, e nega a própria Encarnação. Se a matéria fosse má, Jesus não poderia ser verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Porém, em Cristo não há nada que seja mau. Assim, muitos gnósticos negavam a Encarnação, alegando que Jesus Cristo apenas “parecia” como homem, mas essa sua humanidade era ilusória.

Alguns gnósticos, reconhecendo que o AT ensina que Deus criou a matéria, alegavam que o Deus dos Judeus era uma divindade maligna diferente do Deus de Jesus Cristo, do Novo Testamento. E sustentavam a crença em muitos seres divinos, conhecidos como “aiônes” que servem de mediadores entre o homem e um Deus inatingível. O mais baixo de todos esses “aiônes” que estava em contacto direto com os homens era Jesus Cristo.

Antecedente do gnosticismo e concomitante com ele é o docetismo (do Grego dokéô, pareço), que é doutrina considerada herética pela Igreja primitiva. Os docetas acreditavam que o corpo de Cristo era ilusão e que a sua crucificação fora apenas aparente. Não existiam “docetas” enquanto seita ou religião, mas como uma corrente de pensamento que atravessou diversos estratos da Igreja. O docetismo acreditava que Jesus Cristo era um espectro, pelo que, apesar de ter uma aparência humana, não possuía carne e nem sangue. Foi refutado com base no Evangelho de João, que afirma: “O Verbo Se fez carne.” (Jo 1,14) Autores cristãos, como Inácio de Antioquia e Ireneu de Lião deram os contributos teológicos mais importantes para a erradicação deste pensamento, em especial o último que, na obra Adversus Haereses, defendeu as principais ideias que contrariavam o docetismo, ou seja, a teologia do cristocentrismo, a recapitulação em Cristo do homem caído em pecado e a união entre a criação, o pecado e a redenção.

O docetismo é parente de correntes gnósticas para as quais o mundo material é mau e corrompido e que tentavam aliar, de forma racional, a Revelação disposta nas escrituras com a Filosofia grega. Esta doutrina foi condenada como heresia no Concílio Ecuménico de Calcedónia (ano 451).

No final do século II, surgiu o montanismo pela mão de Montanus, que iniciou a sua carreira pregando o retorno à penitência e ao fervor. Todavia, alegava que os seus ensinamentos estavam acima dos ensinamentos da Igreja, porque ele era diretamente inspirado pelo Espírito Santo. Na sua cidade natal na Frígia, começou a ensinar sobre uma eminente volta de Cristo. E o movimento enfatizava sobretudo a continuidade dos dons extraordinários como falar línguas e profetizar.

No início do século III, o sabelianismo ou modalismo ensinava que Jesus Cristo e Deus Pai não eram pessoas distintas, mas dois aspetos ou operações da única pessoa. Assim, as três pessoas da Trindade existem só em referência à relação de Deus com o homem, não como realidade objetiva.

O novacianismo, no século III, e o donatismo, no início do século IV, ensinavam que a Igreja não devia incluir os pecadores, mormente os que haviam negado a fé.

O século IV produziu o arianismo, uma das maiores heresias com que a Igreja se debateu. Arius ensinava que Cristo não era Deus, mas criatura de Deus. Disfarçando a heresia com terminologia ortodoxa ou semiortodoxa, semeou a confusão na Igreja, conquistando o apoio de muitos bispos e a rejeição de alguns. O arianismo foi solenemente condenado, no ano 325, pelo Concílio de Niceia I, que definiu a divindade de Cristo e, no ano 381, pelo Concílio de Constantinopla I, que definiu a divindade do Espírito Santo. Esses dois Concílios deram origem ao Credo Niceno-Constantinoplitano que os católicos recitam na missa dominical.

Também no século IV se difundiu o priscilianismo (dualista) pregado por Prisciliano, com base nos ideais de austeridade e pobreza. Derivado de doutrinas gnóstico-maniqueístas ensinadas por Marcus, um egípcio de Mênfis. Ensinava que de Deus emanaram seres espirituais, incluindo Cristo (que não tinha corpo) e que a matéria derivara do demónio e era fonte de pecado.

No século V, surge o pelagianismo pela mão de Pelagius, monge gaulês, que negava termos herdado o pecado de Adão e alegava que nos tornámos pessoalmente pecadores, só porque nascemos em solidariedade com uma comunidade pecadora que nos dá maus exemplos. Negava que herdámos a santidade ou justiça como resultado da morte de Cristo na cruz, dizendo que nos tornamos pessoalmente justos pela instrução e pela imitação da comunidade cristã, seguindo o exemplo de Cristo. E declarava que o homem nasce moralmente neutro, podendo chegar ao céu pelos próprios esforços. Assim, a graça de Deus não é necessária, só facilita a tarefa da santidade.

No século V, o nestorianismo, pela mão de Nestorius, bispo de Constantinopla, que negava a Maria o título de Theotókos (“Mãe de Deus”), aduzindo que Maria deu origem apenas à pessoa humana de Cristo em seu útero e chegou a propor como alternativa o título Khristotókos (“Mãe de Cristo”). Os teólogos católicos reconheceram que a teoria de Nestorius dividia Cristo em duas pessoas distintas (uma humana e outra divina, unidos por uma espécie de “elo perdido”), sendo que apenas uma estava no útero de Maria. A Igreja reagiu no ano 431 com o Concílio de Éfeso, definindo que Maria é Mãe de Deus, não como anterior a Deus ou, seja, como fonte de Deus, mas no sentido de que O que Ela trouxe no ventre é, de facto, o Deus Encarnado.

Em contraponto, surge o monofisismo. Os monofisistas, liderados por Eutyches, ficaram horrorizados pela implicação nestoriana de que Cristo era duas pessoas e duas naturezas (divina e humana). Então, partiram para o outro extremo, alegando que Cristo era uma pessoa com uma só natureza (fundindo elementos divinos e humanos). Eram conhecidos como monofisistas devido à alegação de que Cristo possuía apenas uma natureza (em Grego: móno = um; phýsis = natureza). Os teólogos católicos reconheceram que o monofisismo era tão pernicioso como o nestorianismo, porque esse negava tanto a completa humanidade como a completa divindade de Cristo. Ora, se Cristo não possuísse a natureza humana na plenitude, não poderia ser verdadeiro homem; e, se não possuía a natureza divina na plenitude, não era verdadeiro Deus.  

E os séculos VII e VIII foram fustigados pela iconoclastia, que irrompeu quando surgiu um grupo conhecido como “os iconoclastas” (literalmente, destruidores de ícones). Esses alegavam que era pecaminoso fazer estátuas ou pinturas de Cristo e dos Santos, apesar de exemplos bíblicos que provam que Deus mandou que se fizessem estátuas religiosas (por exemplo, Ex 25,18-20 e 1Cr 28,18-19), inclusive representações simbólicas de Cristo (Nm 21,8-9 e Jo 3,14).

É, ainda, de referir o milenarismo, doutrina muito difundida entre os primitivos cristãos, segundo a qual Cristo reinaria sobre a Terra durante mil anos, antes do dia do Juízo Final, mantida nos primeiros séculos do cristianismo, dizendo que o fim do mundo seria no ano 1000.

Obviamente não se esgota a lista, mas estas surgem como tais ou recauchutadas com formulação atualizada e até com outras designações, fazendo escola em seitas e em confissões cristãs, ao longo do tempo e hoje de forma subtil, de modo a responder às aspirações das pessoas, quando a Igreja institucional não se mostra capaz de o fazer.

Por outro lado, há atitudes que raiam a heresia: o excesso de angelismo, ou seja, virar as costas ao mundo, para evitar contágio, pois Deus salva os que merecem, desde que se cuidem espiritualmente; e o excesso de ação, confiando que a salvação depende do nossa Capacidade de planeamento e da nossa atividade, como se fôssemos insubstituíveis e como se Deus não quisesse agir ou não fosse capaz sem nós. Haja fé, esperança e equilíbrio!   

2022.12.03 – Louro de Carvalho

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