segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Duas exposições assinalam o centenário do grande Lucian Freud

De acordo com a pormenorizada informação de Jorge Calado, na revista do Expresso, de 9 de dezembro, estão patentes duas exposições que evocam a obra do pintor: uma, em retrospetiva da obra, na National Gallery de Londres; e outra, sobre a família, no Museu Freud.
Filho de pais judeus (o arquiteto Ernst Ludwig Freud e Lucie Brasch), Lucian Michael Freud nasceu em Berlim, a 8 de dezembro de 1922, adquiriu a cidadania britânica em 1939 e faleceu, em Londres, a 20 julho de 2011, aos 88 anos. Era neto de Sigmund Freud, médico neurologista e psiquiatra austríaco, e irmão do escritor e político Clement Raphael e de Stephan Gabriel.
Em 1934, para escapar do antissemitismo nazista, Ernst levou a família para Londres, juntando-se-lhes, Sigmund Freud, em 1938, após o Anschluss (exclusão da Áustria do Reino da Prússia).
Lucian Freud estudou, durante breve tempo, na Central School of Art, em Londres, depois, com sucesso, na Cedric Morri’s East Anglian School of Painting and Drawing, em Dedham, e na Universidade londrina de Goldsmiths, de 1942 a 1943. Antes, em 1941, serviu como marinheiro mercante no comboio atlântico, até ser invalidado do serviço, em 1942. E foi professor visitante na Slade School of Fine Art, de 1949 a 1954, na Universidade de Londres.
Segundo o Sunday Telegraph, de 1 de setembro de 2022, teria cerca de 40 filhos, reconhecendo-os todos à medida que se tornavam adultos. Depois do romance com Lorna Garman, casou, em 1948, com a sua sobrinha Kitty (filha do escultor Jacob Epstein e da Lady Kathleen Garman), mas o casamento acabou quatro anos depois, quando iniciou romance com a escritora Lady Caroline Blackwood, tendo casado em 1957.
A sua primeira exibição a solo, na Lefevre Gallery, em 1944, apresentou o agora célebre The Painter's Room. No verão de 1946, viajou até Paris e, a seguir, foi para Itália, onde ficou durante vários meses. Por fim, passou a morar e a trabalhar em Londres.
Os seus primeiros trabalhos são associados ao surrealismo por apresentarem pessoas e plantas em justaposições incomuns. Foram produzidos com pintura bastante magra. Todavia, a partir da década de 1950, começou a pintar retratos, geralmente nus, com a quase completa exclusão de tudo o mais, usando um impasto mais espesso. Essa técnica impunha a limpeza do pincel a cada pincelada e as cores eram tipicamente emudecidas. Geralmente, os retratos apenas exibiam os modelos, às vezes, nus no chão ou na cama, mas o modelo, algumas vezes, é justaposto a algo mais, como em "Menina com um cão branco" e em "Homem nu com chapéu".  
Os temas são, geralmente, de pessoas nas suas vidas: amigos, família, amores, crianças. No dizer do artista, “o assunto do tema é autobiográfico, tudo sempre tem a ver com esperança e memória e sensualidade e envolvimento, mesmo.” “Eu pinto gente – diz Freud – não pela maneira que elas se parecem, não exatamente a despeito do que elas são, mas como elas por acaso se parecem.” Pintou muitos amigos artistas, incluindo Frank Auerbach e Henrietta Moraes, musa para muitos artistas do bairro londrino de Soho. E, no período de maio de 2000 a dezembro de 2001, pintou a rainha Isabel II, do Reino Unido. Como um dos mais conhecidos artistas britânicos que trabalhava com um estilo tradicional representativo, recebeu o Prémio Turner em 1989. A sua pintura "After Cezanne", notável pelas formas incomuns, foi comprada pela Galeria Nacional da Austrália por 7,4 milhões de dólares. Depois, a parte superior esquerda da pintura foi ‘grafitada’.
Apesar de internacionalmente conhecido como um dos mais importantes artistas do século XX, não há muitas oportunidades de ver as suas pinturas e gravuras na Grã-Bretanha. Em 1996, uma grande exibição de 27 obras e 13 gravuras na Abbot Hall Art Gallery, em Kendal, cobriu todos os períodos da sua obra. E, em 2002, foi exibido uma grande retrospetiva na Tate Britain.
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A partir de Londres, Jorge Calado anota em Freud a inspiração nos clássicos da Renascença, a figuração animal, as comparações com Paula Rego, a conjugação da popularidade com a controvérsia. E observa que “muita da melhor arte inglesa no século XX foi criada por imigrantes: o mais inglês dos fotógrafos ingleses, Bill Brandt, nasceu em Berlim, tal como Lucian Freud, neto favorito de Sigmund, o fundador da psicanálise”.
Lucian Freud afirmava que “ir à National Gallery é como pedir ajuda ao médico” e tinha um passe que lhe permitia visitar a National Gallery de dia ou de noite (sem público) e usava-o várias vezes por semana “para estudar ao vivo as obras dos grandes mestres”.
Segundo o colunista do Expresso, com a pintura de Freud, aprende-se “a valorizar a pele e a carne humanas como belas paisagens, com os seus vales e elevações ou o mato da pelugem”, pois “concreto e abstrato fundem-se no milagre evolucio­nista dos nossos corpos”. E Jorge Calado, vincando o facto de o Inglês ter duas palavras para ‘carne’: meat (implica morte, como em ‘carne de vaca’) e flesh (celebra a vida), observa que a pintura de Freud se deleita “na ternura flácida da carne humana, ao vivo e em pessoa”.
A exposição da National Gallery desenrola-se cronológica e tematicamente, focando a técnica (a pincelada) e o contexto. Freud foi utilizando vários pincéis, até que o amigo e colega Francis Bacon (1909-1992) lhe ofereceu um pincel áspero de pelos de porco, conducente a pincelada mais espontânea e direcional. Ao invés de Bacon, pintor de retratos a partir de fotografias, Freud enfrentava os modelos ao vivo. A partir do final dos anos 1950, pintava de pé, “o que lhe ampliou a profundidade do espaço”. A perspetiva angular assim obtida “favorecia o escorço, exagerando a anatomia dos corpos representados”. Em Londres (e a partir de fevereiro, em Madrid) estão patentes as sete décadas (1940-2010) de criatividade de Freud, dos primeiros autorretratos ao tratamento da intimidade física e à dialética do poder-morte, culminando na apoteose da carne. Se o retrato de “Sua Majestade, a Rainha” (2001) ronda os 20 centímetros, a pintura “E o Noivo” (1993), retrato duplo do performador Leigh Bowery e da mulher, Nicola Bateman, que o pintor considerava um dos seus melhores quadros, ultrapassa os dois metros.
Freud exigia dezenas ou centenas de horas de pose aos seus figurantes. Isabel II aguentou 20 sessões de duas horas cada, até o artista se dar por satisfeito. A pintura foi doada pelo artista à Coleção Real. Outros retratos, simples ou duplos, levavam a pintar seis a nove meses e até mais.
Intermédio de três irmãos, Lucian foi o menino mimado da mãe, Lucie, o que lhe marcou a vida e teve como resultado a rebeldia. Frequentou várias escolas e foi expulso de uma. Foi na Escola de Pintura e Desenho de Cedric Morris, em East Anglia, que desabrochou como artista. Foi encorajado pela mãe (que estudou História da Arte, em Munique), mas sentia o esforço materno de ajuda como sufoco humilhante. A reaproximação ocorreu após a morte do pai e originou uma série de cerca de 30 pinturas e desenhos em quase duas décadas. Retratar a mãe era uma forma de estar com ela. O último desenho (1989) apanhou-a morta no leito do hospital. O retrato, incluindo o do próprio, seria o veículo da sua arte.
Freud irrompeu na cena artística à rebours da moda. Em 1949, o filósofo Theodor Adorno proclamara que “escrever poesia depois do Holocausto é bárbaro”. E isso aplicou-se à pintura figurativa. Contra a corrente, Freud decidiu que a única coisa que valia a pena pintar era o corpo humano, não o de quem lhe pagasse, mas o de quem ele escolhesse, visto que “pintar era uma forma de convivência com quem lhe era próximo, família incluída”.
Para Freud, na pintura “tudo é autobiográfico e tudo é um retrato, mesmo uma cadeira”, o que remete para Van Gogh. Porém, o grande desafio para o pintor era retratar a pele humana com a pincelada. E, encontrado o pincel, era preciso escolher as tintas, em especial o branco Cremnitz, à base de sais de chumbo (carbonato e hidróxido) que dá brilho e luminosidade, enfim, vitalidade, à pintura. Para tanto, “a tinta tinha de funcionar como carne”: pregas e veias, borbulhas e rubores mereciam-lhe toda a atenção, pondo a realidade a vencer a idealidade, “o que distinguia o despido do nu”. O primeiro aponta para o sem roupa (naked); o segundo configura o nu artístico (nude). Porém, com as pessoas pode figurar o animal, pois “o corpo do bicho é um prolongamento do corpo humano”. A pele “era o grande tema da pintura” e “o nu impunha-se como objetivo último”.
Porém, a crítica feminista não o poupou, sobretudo quando passou a escolher mulheres anafadas, como a célebre “Supervisora de Benefícios a Descansar” (1994), um retrato de Sue Tilley despida, sob a acusação de exploração sexual por “um homem poderoso a pintar mulheres despidas em situação vulnerável”. Ao invés, Jorge Calado vê os nus de Lucian Freud, não como “eróticos ou voyeurísticos”, mas como “representações ternas da realidade íntima”. Às vezes, Freud pintava despido, para pôr os retratados à vontade. E, num dos autorretratos mais polémicos, “Pintor a Trabalhar. Reflexão” (1993), representou-se em nudez frontal, apenas calçando botas bambas, com pincel na mão esquerda (era esquerdino) e paleta na direita (as posições estão invertidas por ter usado um espelho para se autorretratar). É o tratamento da pele que atrai as atenções. O pincel parece lâmina afiada, talvez aludindo a São Bartolomeu, esfolado vivo. Em “Pintor e Modelo” (1986-87) inverteu a norma e pôs a mulher, Celia Paul (mãe do seu filho Frank), na posição de poder: de pé, esmagando a bisnaga de tinta no chão com o pé direito, a pintar o amigo Angus Cooke, despido e esparralhado na chaise longue. Para Jorge Calado, uma das caraterísticas mais notáveis dos quadros de Freud é o que chama “a presença da ausência”, pois, ao observá-los, sente-se a presença do artista ou o pintor a levar-nos a ver a cena como ele a viu.  
Com o apelido Freud e com uma obra claramente autobiográfica, a tentação era deitar o pintor no divã do avô, o que sucede com a exposição “Lucian Freud: O Pintor e a Sua Família”, no Museu Freud, a casa no bairro londrino de Hampstead que albergou o fundador da psicanálise e a mulher, Martha, e a filha mais nova, Anna, a pioneira da psicologia infantil.
É nesta casa que Lucian frequentou em criança que se encontram álbuns fotográficos de família, desenhos infantis, cartas, alguns seus livros seus e outros, que ilustrou, bem como o “Cavalo de Três Pernas”, a única escultura de Lucian que sobreviveu. E há pinturas como “A Família Pearce” (1998). A ideia era um retrato da filha, Rose Boyt, escritora. Mas recém-casada, Rose exigiu a presença do marido, Mark; como engravidou e o bebé Stella nasceu, foi acrescentado à pintura; depois, foi incluído o enteado Alex. Assim, o quadro final mostra os quatro, com Rose grávida do segundo filho, o Vincent. O amor paternal e filial fortalecia-se com a arte.
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É um dos grandes pintores coevos que desconhecia: excêntrico como tantos, mas que põe em quadro, com mão de mestre do pincel, o que vive, pensa, sente e visualiza. Porque não vêm as exposições da sua obra a Portugal? Escandalizará puritanos, mas satisfará os verdadeiros amantes e apreciadores da arte. Li o Expresso com a tristeza de quem não contempla esta poderosa obra.

2022.12.12 – Louro de Carvalho


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