terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Há corrupção em toda a Europa, não só em Portugal ou na Roménia

 

 

A Procuradora-Geral Europeia, a romena Laura Kövesi, que veio a Lisboa para se avistar com vários responsáveis portugueses da área da Justiça, no contexto da “Operação Admiral”, a maior investigação deste recém-criado organismo, revelou alguns pormenores desta ação de combate à fraude no imposto sobre o valor acrescentado (IVA), na Europa, num esquema de 2,2 mil milhões de euros, com cerca de 600 suspeitos e mais de 9 mil empresas envolvidas no esquema tentacular e milionário que se estendeu a 36 países e que começou por ser detetado em Portugal.

Em causa estão crimes de associação criminosa, fraude fiscal e branqueamento.

Como contou o português José Guerra, da Procuradoria Europeia (PE), que está em Portugal para acompanhar as buscas, foi em Coimbra que as autoridades detetaram um tentáculo de um polvo que cobriu, a princípio, 17 países da Europa e provocou um prejuízo de 2,2 mil milhões de euros em IVA, que terão ficado por pagar. A descoberta foi da Autoridade Tributária (AT) que estranhou o facto de empresas “de pequena dimensão apresentarem uma faturação invulgar”, que tanto a AT como a Polícia Judiciária (PJ) efetuaram em território nacional.

Assim, embora “a cabeça do polvo” esteja na Europa, o nó começou a ser desatado em Portugal, segundo o procurador, que sustenta que, na PE, “puderam fazer uma leitura mais abrangente dos factos” e “a ligação entre todas as empresas envolvidas”, de modo a chegar a tal resultado.

Em Portugal, a PJ fez 14 detenções em vários pontos do país, a partir de 100 buscas domiciliárias e não domiciliárias realizadas no Porto, em Matosinhos, Vila Nova de Gaia, Braga, Guimarães, Vila do Conde, Póvoa de Varzim, Coimbra, Figueira da Foz, Lisboa, Corroios, Vila Franca de Xira, Sintra e Funchal. Na Europa, as operações policiais estenderam-se a países como Alemanha, França, Itália, Espanha, Bélgica, Países-Baixos, Luxemburgo, República Checa, Hungria, Grécia, Roménia, Eslováquia, Grécia, Áustria, Lituânia e Chipre.

Em causa estavam, a princípio, “oito mil empresas” que faturavam serviços falsos em cadeia para evitar o pagamento de IVA aos Estados dos vários países, o que José Guerra denomina de “um carrossel do IVA clássico mas por toda a Europa”. As empresas vendiam sobretudo material tecnológico e informático (“objetos de pequena dimensão e grande valor”).

Segundo a PJ, a atividade criminosa assentava na “constituição sucessiva de uma complexa cadeia de empresas”, cujo objeto social, na maioria delas, era a venda de equipamento informático em plataformas online e que executavam os atos necessários (incluindo o emprego de documentos forjados e de declarações tributárias) para se locupletarem com as quantias de IVA recebidas da venda desses produtos a clientes finais, num esquema típico da Missing Trader Intra-Community (MTIC) Fraud”, lesivo os cofres da União Europeia (UE).

Os ditos milhões de euros passaram pela filial portuguesa do Deutsche Bank, com a cumplicidade do gerente, e pertencem a um grupo de cidadãos portugueses e de franceses a residir em Portugal. De acordo com um despacho da PE, da secção de processos do Porto, desde 2016 que o grupo é responsável pela referida “constituição sucessiva de uma cadeia de empresas. Até ao momento há 14 pessoas detidas por suspeitas de crimes de associação criminosa, fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais e falsificação de documentos.

Ainda, segundo o despacho da PE, os suspeitos, além de constituírem empresas, procedem à abertura de contas bancárias em nome das mesmas, “através das quais fazem transitar o dinheiro, assim obtido e que depois usam para vários fins, incluindo a compra de bens pessoais, de propriedades imobiliárias ou outros bens de elevado valor”.

Os investigadores suspeitam também que esta “identificada célula ou grupo português” se integra numa rede mais vasta de pessoas espalhadas por vários países da UE, para “realizarem transações intracomunitárias de bens por forma ilegítima e que lhes permite apoderarem-se do IVA devido, por tais transações, aos estados-membros da União Europeia”. O grupo “ou cria ou simplesmente mantém empresas” que realizam transações “fora do radar fiscal”, fazendo-as atuar como missing traders, escapando ao pagamento do IVA, com o recurso a declarações e a documentação falsa.

Os suspeitos, “quer os já identificados em Portugal, quer os que se encontram noutros países e virão a ser identificados”, usaram plataformas de venda online que permitem a abertura de contas comerciais para vendedores e para compradores; disponibilizam aos vendedores a distribuição e o transporte dos produtos aos compradores online, recebida a mercadoria nos seus armazéns logísticos, organizados geograficamente nos pontos de venda, funcionando como entidade financeira, “recebendo os valores dos clientes finais e enviando-os para as contas bancárias indicadas pelos vendedores”. Os lucros avultados com o esquema milionário permitiram aos envolvidos adquirirem bens, como imóveis, automóveis e relógios de luxo, em Portugal e noutros países como os Emirados Árabes Unidos.

***

Para a Procuradora-Geral Europeia, ouvida pelo Expresso, a 6 de dezembro, a “Operação Admiral” é a maior operação deste organismo contra a fraude no IVA até ao momento, quer pelo montante em causa (2,2 mil milhões de euros), quer pelos países envolvidos (36 países), bem como pela grande quantidade de suspeitos (cerca de 600) e pelas empresas envolvidas no esquema (mais de 9 mil). A operação dura há um ano e alguns meses, tendo o facto de o organismo funcionar em 22 Estados-membros da UE permitido melhores resultados do que se fossem as procuradorias a funcionar individualmente em cada país. Com a PE, criada há cerca de dois anos, é possível uma circulação mais fluida de informação entre todos os procuradores sobre o caso.

E Laura Kövesi enfatiza o “muito importante” papel de Portugal nesta operação: “Recebemos a informação sobre suspeitas de fraude por parte da Autoridade Tributária e Ministério Público [MP] português. Abrimos um inquérito baseado nesta denúncia no que parecia ser de início um pequeno caso. E, a partir de então, começámos a investigar a ligação destas empresas e suspeitos com outras empresas e suspeitos de outros Estados-membros.”

Disse que os danos estimados “são de 2,2 mil milhões de euros, mas podem ser ainda mais vastos” e referiu que a investigação ainda está em aberto, pois “ainda há atividades de investigação em alguns Estados-membros neste momento”, pelo que “isto é apenas o início para nós e o fim para alguns criminosos envolvidos nesta grande rede europeia”.

No atinente a investigações que tem a PE abertas em Portugal e ao montante de danos, apontou que, atualmente, o número de investigações é um pouco superior às nove em curso, em março, tal como o montante de danos é superior aos 158,2 milhões de euros. Deu conta de que em, toda a Europa, há 1200 investigações em aberto pela PE. Revelou que, num ano, se recuperaram 250 milhões de euros, cinco vez mais do que o orçamento do organismo que dirige. E desafiou: “Se meterem um euro na Procuradoria Europeia, iremos recuperar cinco euros.”

Declarando-se satisfeita com estes resultados, espera conseguir, no futuro, recuperar ainda mais dinheiro. E atira: “Considero que, neste momento, somos a melhor ferramenta, neste campo, para recuperar os danos relativos a fraudes com o IVA e outros crimes económicos.”

Considera difícil de dizer se os crimes de branqueamento de capitais, como a fraude com o IVA, são tão ou mais lucrativos do que os da droga, como refere a Europol, pois, todos os anos, em média, se têm verificado danos de 50 milhões de euros relativos a fraudes com o IVA e, apesar de grande parte destes crimes não ser detetada até há pouco tempo, sempre houve “grandes redes de grupos criminosos nesta área a atuar de modo muito eficaz, e difíceis de detetar”.

Quanto à dimensão deste negócio e ao dano para a economia europeia, sustenta que “50 milhões de euros são danos muito elevados” e que uma das razões por que veio a Portugal “foi falar com os responsáveis sobre a forma de aumentar os recursos da Procuradoria Europeia de modo a combater de forma mais eficaz estas redes”, apesar de se dizer que não há recursos suficientes.

Em Portugal, só há dois procuradores a trabalhar em Lisboa e dois no Porto. É pouco ou quase nada. Porém, eles não trabalham sozinhos e têm o apoio da AT e das polícias portuguesas.

Concorda com o propósito dos ministros da Justiça da França e da Alemanha de alargar a competência da PE para investigar as violações das medidas restritivas da UE contra a Rússia. Afirma a prontidão do organismo que dirige e observa que é “a melhor e a única ferramenta para investigar esse tipo de crimes”, só faltando a legislação decidir isso. E considera que este modelo da PE, organismo independente da UE para investigação de fraude e corrupção, não existe em mais lado nenhum no mundo, assegura que este é o bom caminho e garante maior eficiência, se puder dispor de mais recursos.

Interpelada se os MP dos países europeus já se habituaram ao papel da PE e não o veem como ingerência na sua própria autonomia, defende que se trabalha com os procuradores de cada país, não competindo com ninguém.

Confrontada com a situação na Roménia, país de onde é natural e onde lutou contra a corrupção, confessa: “A corrupção continua lá. Está em todo o lado. E não apenas na Roménia. Não é algo nacional.” E, comparando com Portugal e com os demais países da UE, explana: “Encontramos a mesma tipologia de corrupção em todos os Estados-membros. Não existem países bons e maus no que respeita à corrupção. A criminalidade está quase em todo o lado. A única diferença é o nível de deteção dessa corrupção e o envolvimento das autoridades de cada país na deteção e no combate a esse flagelo e no seu apoio à Procuradoria Europeia.”

***

A corrupção e crimes afins (difíceis de provar) instalaram-se por via da desonestidade das pessoas e pelo capricho do capitalismo financeiro sem rosto, demolidor do capital de empresa e dos erários públicos. É urgente o seu combate, mas, para tanto, é precisa legislação clara e liberta de pruridos constitucionalistas, fiscalização pronta e eficaz, justiça atempada e imparcial, educação para a honestidade e, sobretudo, vontade política. E parece que ninguém quer combater a corrupção.

2022.12.06 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário