domingo, 4 de dezembro de 2022

Terá acabado a polícia da moralidade no Irão?

 

Após meses de protestos, com a morte de mais de 200 pessoas (a Amnistia Internacional regista 328), o procurador-geral do Irão anunciou a suspensão da polícia da moralidade, mas não é claro o que sucederá doravante. Com efeito, a 3 de dezembro, Mohammad Jafar Montazeri, procurador-geral do Irão, anunciou, como divulgado pela agência de notícias iraniana ISNA, no dia 4, a suspensão deste ramo das forças de segurança, justificando com o facto de esta força policial “em nada ter a ver com o poder judiciário”.

A polícia da moralidade, conhecida como Gasht-e-Ershad, foi criada nos primeiros anos do século XXI, com a principal função de patrulhar as ruas do Irão e de garantir o cumprimento dos preceitos e dos costumes da República Islâmica, evidenciando-se o foco na questão do vestuário, em particular nas mulheres e no adequado uso do véu islâmico, o hijab, cujo uso é obrigatório desde 1979, ano em que se pôs em marcha a Revolução Islâmica.

A obrigatoriedade de as mulheres cobrirem a cabeça foi uma das regras impostas pelo governo saído da Revolução Islâmica. Desde então, sentem as iranianas o assédio e a pressão para o uso do hijab. No entanto, só após a guerra com o Iraque é que a polícia da moralidade passou a ser uma força à parte e com poderes próprios. As primeiras patrulhas Gasht-e Ershad, começaram a ir para a rua em 2006, durante a presidência de Mahmoud Ahmadinejad, cujo objetivo era “disseminar a cultura da modéstia e o hijab”.

Até agora, os mais altos responsáveis políticos iranianos, incluindo o atual presidente, Ebrahim Raisi, recusaram reiteradamente os pedidos nacionais e internacionais de banimento desta polícia. As declarações tornadas públicas pelo procurador-geral sugerem que se trata de suspensão em resposta aos protestos dos últimos meses.

Recentemente, os Estados Unidos da América (EUA) e a União Europeia (UE) impuseram sanções a figuras destacadas da política iraniana e a entidades governamentais, incluindo a polícia da moralidade. Porém, não foi este o país o único a criar uma polícia com as funções da congénere iraniana. Também países como a Arábia Saudita, Sudão ou a Malásia têm forças policiais com o intuito de controlo da moralidade (criação insensata para os tempos atuais).

Se tiverem a demasiado justa, se o corpo estiver demasiado exposto, se as mangas estiverem arregaçadas ou se as calças estiverem rasgadas, a mulheres são levadas para um centro de detenção até que alguém lhes venha trazer as roupas adequadas. Também podem ser motivo de detenção o consumo de álcool ou o convívio entre homens e mulheres sem laços familiares.

É a indevida e excessiva interferência do poder público na vida pessoal. É o assédio e subjugação policial das mulheres, conseguidos através de constante e brutal demonstração de força.

Apesar do anúncio feito por Mohammad Jafar Montazeri, a informação conhecida é escassa e não é claro se esta suspensão significa mesmo o fim da polícia da moralidade. Vários meios de comunicação internacionais e analistas admitem que esta força pode vir a renascer com uma nova forma de organização e com outro nome (Em Portugal, com Marcelo Caetano tivemos a extinção da PIDE – Polícia Internacional de Defesa do Estado e a criação da DGS – Direção-Geral de Segurança, com os mesmos objetivos e métodos!).

Aliás, a 3 de dezembro, o procurador-geral exprimia a intenção do poder judiciário de continuar a “monitorizar os comportamentos da comunidade”, defendendo este modelo político com fundamentos religiosos.

Até agora, segundo a Al-Jazeera, não há indicação concreta de que esta polícia deixe de patrulhar as ruas ou de que seja alterada a lei que obriga todas as mulheres a usarem o véu islâmico (hijab). E deve ter-se em conta que as declarações de Montazeri, proferidas na noite do dia 3, durante um evento, não foram oficialmente confirmadas. O procurador-geral terá atribuído a responsabilidade da suspensão em causa à influência internacional, tendo a decisão sido tomada na sequência “da guerra híbrida durante os recentes protestos”.

Na verdade, o país tem sido palco de amplo movimento de protestos desde 16 de setembro, por causa da morte de Mahsa Amini, curda iraniana de 22 anos, que morreu após ter sido detida pela polícia da moralidade por não ter usado corretamente o hijab, mas, só a 3 de dezembro, é que as autoridades iranianas divulgaram o número oficial de mortos nestes protestos: mais de 200. Todavia, os números divulgados pelas organizações não governamentais são bastante mais altos.

A polícia recém-suspensa tem, na prática, enorme poder sobre as pessoas. Os seus operacionais deslocam-se em carrinhas verdes e brancas, enquanto patrulham as ruas. Muitas vezes, apenas abordam as pessoas; noutras, as consequências são bem mais graves.

Como referiu Hadi Ghaemi, diretor executivo da Human Rights in Iran, em entrevista ao canal norte-americano CNN, “as mulheres são tratadas como criminosas, presas, fotografadas e forçadas a participar em aulas sobre como usar um hijab de forma adequada e sobre a moralidade islâmica”. E, de acordo com Tara Sepehri Far, investigadora da Human Rights Watch no Médio Oriente e no Norte de África, será difícil encontrar uma mulher iraniana comum ou uma família média sem história de interação com a polícia da moralidade e com os centros de reeducação.

No caso de Mahsa Amini, que fez eclodir os recentes protestos, a jovem foi abordada pela polícia por usar o hijab de forma inadequada. A jovem, de visita a Teerão, era natural de Saqez, pequena cidade na fronteira entre as províncias do Curdistão e do Azerbaijão Ocidental, a quase 600 quilómetros da capital. Foi levada para um centro de detenção e, quando foi libertada, horas mais tarde, teve de ser assistida no hospital devido a violentas agressões, ficou em coma e morreu.

Embora o relatório médico dê conta de que Amini morreu devido a condições de saúde pré-existentes, a família insiste que esta morreu devido a espancamento.

***

Em meados de setembro, o Irão revelava sintomas do desconforto que as regras apertadas da teocracia em vigor desde 1979 provocam numa fatia da população cada vez mais sonora. Em dezenas de cidades, milhares de pessoas começaram a sair às ruas em protesto contra a violência do regime, que acabara de ceifar mais uma vida, a de Mahsa Amini.

Protestar em público no Irão implica riscos acrescidos, dada a omnipresença de forças zelosas da Revolução Islâmica, que investem sobre os transeuntes ao mínimo indício de desobediência.

Nos 43 anos do regime dos ayatollahs, não é a primeira vez que os iranianos o questionam frontalmente. Porém, os observadores de jornadas de contestação anteriores – nomeadamente em 2009 (de cariz político) e 2019 (com reivindicações económicas) dizem que os protestos atuais diferem de todos os outros. São os protestos contínuos mais amplos e duradouros do período pós-revolucionário; são liderados por mulheres; e têm o objetivo de exigir o fim da República Islâmica, não apenas de pedir reformas. E o protagonismo das mulheres decorre do caso que incendiou as ruas e da forma como as iranianas se põem no lugar de Mahsa Amini. Na sequência da divulgação do facto, duas outras mulheres, jornalistas, foram levadas pelas forças do regime: Nilufar Hamedi, que investigou o caso no hospital onde Mahsa foi internada; e Elahe Mohammadi, que cobriu o seu funeral, na cidade de Saqqez, no Curdistão iraniano.

Estima-se que cerca de 15 mil pessoas tenham sido presas nos últimos dois meses. Segundo a organização Iran Human Rights, sediada em Oslo, na Noruega, a repressão aos protestos provocou, até 16 de novembro, pelo menos 326 mortos, incluindo 25 mulheres e 43 menores.

Para muitos detidos, acusados de moharebeh (luta contra Deus ou contra os direitos divinos), o futuro é sombrio, pois, embora diferentes países islâmicos interpretem moharebeh de forma diferente, no Irão, ataques terroristas, danos no património público, atividades armadas e roubos à mão armada, tráfico de estupefacientes e violação são classificados moharebeh, pelo que são punidos com pena de morte.

A 13 de novembro, as autoridades emitiram sentença de morte contra um indivíduo não identificado, acusado de incêndio de um edifício do Governo, de perturbação da ordem pública e de conluio para realizar crimes contra a segurança nacional, além de moharebeh e de “corrupção na Terra”. Foram 227, dos 290 deputados que, a 6 de novembro, apelaram ao sistema judiciário para acelerar processos em que estejam implicados “inimigos de Deus” e equacionar a possibilidade de execuções em massa, como forma de punir, intimidar e silenciar a oposição.

Um dos acusados de moharebeh é o rapper curdo Saman Yasin, intérprete de temas sobre pobreza, desigualdade, injustiça e, implicitamente, negligência das autoridades.

Neste contexto, o Irão enfrenta a frontal oposição de países que, há meses, queriam entabular diálogo e obter entendimento com Teerão. É o caso da França e da Alemanha, signatários do tratado internacional sobre o programa nuclear iraniano (JCPOA, na sigla inglesa).

Os protestos no Irão irromperam quando a diplomacia internacional investia para dar nova vida ao JCPOA, assinado em 2015 e ferido, três anos depois, quando Donald Trump desvinculou os EUA desse compromisso. O espaço para negociações tornou-se mais exíguo depois de as eleições legislativas de 1 de novembro em Israel ditarem o regresso ao poder de Benjamin Netanyahu. No início de 2018, o então primeiro-ministro revelou possuir “meia tonelada” de documentos sobre o programa nuclear iraniano, usurpados de forma clandestina por agentes da Mossad, o que prova a mentira da liderança iraniana no processo negocial que levou ao acordo internacional. E os países do JCPOA querem retomar a questão nuclear, a partir dos documentos de Netanyahu, e encontrar apoio para levar a questão nuclear do Irão ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. E o Irão tenta impedir que o assunto chegue ao Conselho de Segurança.

Para já, o importante seria a cessação definitiva da repressão dos iranianos, sobretudo feminina. Os direitos da pessoa passam pela liberdade de apresentação e de movimento e pela não molestação física ou psicológica, bem como pela independência do poder judicial.

2022.12.04 – Louro de Carvalho

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