quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Guerra na Ucrânia sem fim à vista e o povo continua a sofrer

 

Volodymyr Zelensky mostra-se convicto de que a Ucrânia ganhará a guerra, apesar dos cenários de morte e de destruição que o país apresenta. E Vladimir Putin contraria as asserções de quem aponta o desgaste político do Kremlin, a fragilidade do exército russo, a impreparação dos seus militares ou a condição obsoleta do seu equipamento bélico.  

Não bastando a resistência ucraniana de dez penosos meses, surpreendente para Moscovo, o presidente da Ucrânia foi a Washington, na sua primeira viagem ao estrangeiro desde 24 de fevereiro, agradecer o apoio financeiro e militar dos Estados Unidos da América (EUA) e receber as garantias diretas de Joe Biden do reforço na ajuda logística e bélica, nomeadamente pelo envio dos Patriot (sistema de mísseis projetado para detetar, almejar e atingir um míssil que pode ter não mais que seis metros de comprimento e voa até cinco vezes a velocidade do som), símbolo da vontade norte-americana de não desmobilizar na causa de Kiev.

A isto Vladimir Putin, para quem a visita de Zelensky aos EUA mostra despreocupação com a Rússia, respondeu com a ameaça do míssil balístico intercontinental com capacidade nuclear.

Apelidado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) de Satan II, o RS-28 Sarmat foi projetado para transportar até 15 ogivas nucleares, mais cinco do que o R-36M [Satan] da era soviética. É o mais rápido e enganador dos mísseis balísticos intercontinentais. Muito pesado e movido a combustível liquefeito, tem força para lançar várias ogivas dispostas no veículo. Um míssil destes, que atingirá até 15 alvos próximos, está equipado para transportar munições hipersónicas na ogiva e servir de plataforma a lançamento de mísseis de cruzeiro.

Harry Halem, analista militar que reside em Londres, não vê “prova real de que a Rússia esteja perto de produzir o Sarmat para quaisquer propósitos”. Aliás, a “única informação de que dispomos é o alegado teste de abril de 2022”. Porém, Dmitry Rogozin, ex-líder da Roscosmos (empresa estatal que supervisiona a construção do míssil), garantiu tratar-se de uma superarma, pois, testado em abril, atingiu alvos simulados a mais de 4800 km. Putin reagiu com entusiasmo, sustentando que o Sarmat supera todas as formas de defesa antimísseis e fará qualquer inimigo da Rússia pensar duas vezes. Há cerca de um mês, um centro de produção de mísseis russo (Makeyev) anunciou a sua produção em série. E o Kremlin diz que o projeto, com modificações, será um desafio para as defesas antiaéreas dos EUA, em caso de guerra nuclear.

“A Rússia é quase certamente incapaz de produzir Sarmats em larga escala, neste momento, até porque o país produz cerca de seis SRBMs Iskander (sistema móvel de mísseis balísticos de curto alcance) por mês”, diz Harry Halem. O Iskander tem só uma fração do tamanho do Sarmat (3800 kg, em comparação com mais de 200 toneladas). E Harry Halem duvida de que o Avangard, o veículo hipersónico que o Sarmat deveria carregar, esteja a ser fabricado de forma maciça. Mas, se tal se confirmar, o Sarmat será irrelevante para o equilíbrio militar na Ucrânia, pois é um míssil balístico intercontinental projetado para lançar ogivas nucleares por dezenas de milhares de quilómetros, ou seja, para ataque nuclear de longo alcance, sobretudo contra os EUA, não para a Ucrânia. Por isso, Shaan Shaikh, diretor do Missile Defense Project do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais [Center for Strategic & International Studies], em Washington, diz que o possível alvo se encontra longe da fronteira ucraniana.

Mick Mulroy, ex-subsecretário adjunto da Defesa norte-americano, ex-funcionário da CIA e fuzileiro naval dos EUA, defende que a frustração russa precipitou a ameaça, e o anúncio de Biden de envio do sistema antimísseis Patriot para a Ucrânia enraiveceu mais o Kremlin. “Ficou claro que a Rússia sabe que não pode vencer uma luta convencional contra os militares ucranianos. Por isso, voltou-se para o ataque direto a civis e à infraestrutura civil, como uma forma de terror. Acredito que foi por isso que nos sentimos compelidos a fornecer esses sistemas, e a ameaça russa faz parte de um esforço para conter os nossos movimentos” – sustentou.

Segundo Mark Cancian, ex-conselheiro do Departamento de Defesa norte-americano, os novos mísseis balísticos intercontinentais substituem mísseis russos mais antigos. O míssil foi anunciado em 2014, para arrancar em 2020. Problemas com os motores atrasaram os testes, segundo a agência de notícias russa Interfax. E o também analista do Center for Strategic & International Studies diz que o anúncio de Sergei Shoigu, ministro da Defesa russo, de investimento no armamento se compatibiliza com o programa de modernização nuclear em curso.

A ameaça não se dirige à Ucrânia, mas o “uso do Sarmat ou de mísseis balísticos intercontinentais russos semelhantes mudaria drasticamente a guerra”, admite Cedric Leighton, analista militar da CNN e antigo responsável dos serviços secretos da Força Aérea norte-americana. “O seu emprego representaria uma escalada sem paralelo e certamente provocaria uma resposta ocidental”, vincou.

Por todos os motivos, diz James A. Lewis, vice-presidente do Programa de Tecnologia e Políticas Públicas do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, em Washington, nada inverterá a tendência da guerra: “A Rússia perdeu, e Putin não pode admitir isso.” Será mesmo assim?

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Os Patriot reabilitarão a capacidade ucraniana de reagir contra mísseis balísticos e aeronaves russas em grandes altitudes, mas uma bateria não virará o jogo. O significado simbólico – de que os EUA estão dispostos a enviar um sistema de defesa antiaérea de primeira linha para a Ucrânia – é mais importante do que a capacidade militar do sistema. E a Ucrânia dá um sinal de que construirá um Exército mais próximo dos ocidentais, esquecendo de vez o passado soviético.

Até ao inverno e dez meses após o início da guerra, Joe Biden não tinha equacionado enviar a Zelensky o sistema de defesa antiaérea mais capaz dos EUA. Os Patriot (da expressão Phased Array Tracking to Intercept On Target) são padrão de eficiência no abate de mísseis de cruzeiro, mísseis balísticos de curto alcance e aeronaves num teto mais alto do que o dos restantes sistemas de defesa antiaérea. Capazes de detetar e de apontar a seis alvos com grande precisão e altamente móveis, assegurando a capacidade de autossobrevivência, estes sistemas serão enviados para a Ucrânia, quando a necessidade começa a falar mais alto aos ouvidos de Joe Biden. E os EUA enviam-nos agora, quando os ataques russos às infraestruturas causam grande sofrimento ao povo ucraniano – e continuarão a fazê-lo – e porque os EUA e a NATO carecem de outros sistemas, por a maior parte da defesa antiaérea terrestre ter sido desativada no fim da Guerra Fria.

A campanha beligerante da Rússia colocou numa situação operacional difícil a Ucrânia, que tem poucos sistemas antiaéreos e poucas aeronaves de asa fixa para obter superioridade aérea sobre a linha da frente numa ofensiva. O que a campanha de ataques estratégicos da Rússia às críticas infraestruturas da Ucrânia conseguiu foi dividir as defesas antiaéreas ucranianas entre a linha da frente e áreas civis e de centrais elétricas. Haverá uma bateria juntamente com dois NASAMS (sistema de defesa antiaérea baseado em terra de curto a médio alcance). E os Patriots, se usados ​​de forma eficaz, podem enfraquecer a campanha de ataque estratégico da Rússia.

Nos últimos dez meses, a Ucrânia desmitificou a superioridade aérea das forças russas, usando sistemas de defesa antiaérea e estratificando os efeitos de altitudes mais altas para mais baixas. O principal sistema usado para impedir que aeronaves russas voassem em altitudes mais altas é o míssil terra-ar S-300, da era soviética. E os países ocidentais tentaram obter mais lançadores e mísseis dos antigos países do Pacto de Varsóvia (aliança militar do bloco soviético, designada por Tratado de Amizade, Cooperação e Assistência Mútua).

Kelly Grieco, investigadora na área de Defesa e Segurança do ‘think tank’ norte-americano Atlantic Council diz tratar-se de uma possibilidade alarmante, porque negar superioridade aérea à Rússia “foi fundamental para o sucesso geral da Ucrânia nesta guerra”. Por isso, enviar o Patriot é o passo que se segue para garantir que a Ucrânia mantém defesas antiaéreas robustas.

O sistema antimísseis de primeira linha, projetado para operar a médio alcance, foi desenvolvido pela empresa norte-americana Raytheon. Israel, Alemanha, Espanha, Japão ou Taiwan já recorreram ao Patriot, cuja parte mais importante é o simbolismo. O Patriot é uma plataforma de armas icónica. Fez parte das plataformas de armas “Big Five”, que transformaram o Exército dos EUA na década de 1980, e que se estreou com sucesso na Primeira Guerra do Golfo.

Os EUA usaram baterias Patriot em vários conflitos. Em janeiro, as tropas americanas na Base Aérea de Dhafra, nos Emirados Árabes Unidos, dispararam mísseis Patriot para intercetar mísseis direcionados à base. O alcance, precisão e velocidade do sistema tornam-no excelente sistema de defesa, e os seus sensores e poder de computação são inigualáveis.

A garantia é dada por James A. Lewis, vice-presidente do Programa de Tecnologia e Políticas Públicas do Center for Strategic & International Studies. Porém, o Patriot não vira o jogo, pois não é capaz de criar um escudo impenetrável em torno da cidade de Kiev, muito menos de toda a Ucrânia. Para colocar isto em perspetiva, os EUA têm duas baterias Patriot a proteger o aeroporto polaco, que é o principal centro logístico para abastecimentos ocidentais à Ucrânia. Os sistemas de defesa aérea ocidentais não existem em número suficiente para oferecer o tipo de proteção que a Ucrânia procura, contra ataques aéreos e de mísseis russos. O Patriot é um dos sistemas de defesa antiaérea mais avançados do mundo, mas isso torna-o mais complexo de operar. Segundo os analistas, serão necessários entre 80 a 90 soldados para a tarefa, e o treino padrão requerido para trabalhar com os lançadores demora vários meses. O outro grande desafio logístico é a falta de mísseis de reposição. O sistema geralmente vem fornecido com oito mísseis, mas os ucranianos podem esgotar rapidamente essa quantidade.

Mark Cancian tem expectativas realistas quanto ao impacto dos Patriot na guerra. As dificuldades logísticas são um fator a não ignorar. O sistema só defende uma cidade. Todavia, Harry Halem contrapõe que os EUA e a NATO podem sustentar os Patriot com maior eficácia do que os equipamentos soviéticos antigos. A pegada logística dos PAC-3 Patriot não é proibitiva. Não se sabe para onde os EUA enviam PAC-2s ou PAC-3s, que serão eficazes.

O anúncio dos Patriot mostra a estreita relação entre os EUA e a Ucrânia e reafirma ao povo ucraniano que ambos os governos fazem os possíveis para protegê-lo de ataques aéreos, mas nenhum sistema de armas, exceto de armas nucleares, será o verdadeiro divisor de águas na guerra. Nada surgirá, para a Ucrânia, nem para a Rússia, como bala de prata. Segundo Kelly Grieco, há que ver além das capacidades do equipamento. Pensamos que a tecnologia virará o jogo, mas nenhuma tecnologia ou sistema de armas muda o rumo de uma guerra, exceto as armas atómicas. O fraco desempenho da Rússia não é reparável por uma bala tecnológica, que não é solução para comandantes fracos, treino insuficiente, logística problemática e baixa motivação.

Enfim, o Satan II poderá ser um perigo, caso os beligerantes enveredem pela guerra nuclear. Só os mísseis Patriot e os que se lhe oponham, como os mísseis Scud (mísseis balísticos móveis, de origem soviética, com curto alcance), não mudam o curso da guerra.

2022.12.28 – Louro de Carvalho

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