quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

A paz exige que se volte ao espírito da Conferência de Helsínquia

 

Entre 1973 e 1975 os Estados Unidos da América (EUA), a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), os Estados europeus e o Canadá reuniram-se em Helsínquia (Finlândia) numa Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE). O resultado de curto prazo foi a confirmação do status quo do pós-Segunda Guerra Mundial na Europa. Porém, a longo prazo, o acordo final conduziu à dinâmica de liberalização na URSS e da unificação da Alemanha.

A ideia partiu da URSS, sendo proposta formulada, em 1954, por Vyacheslav Molotov, ministro dos Negócios Estrangeiros. O interesse no evento resultou do seu histórico sentimento de insegurança, que levou à tentativa de obter o reconhecimento de jure do status quo europeu do pós-guerra, o que não havia acontecido, sobretudo no atinente a Berlim. E o Kremlin viu nisto uma forma de destruir a unidade atlântica, nomeadamente a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), propondo, como alternativa, um sistema pan-europeu de segurança coletiva.

Após várias recusas dos ocidentais, cientes de que a sua segurança dependia da aliança com os EUA e não com a URSS, Moscovo apresentou, a 17 de março de 1969, nova proposta para a realização da conferência – que incluía, agora, a participação norte-americana – com o propósito explícito de melhoria das relações entre os dois blocos político-militares, de reconhecimento do mapa da Europa como inviolável e da confirmação inequívoca da divisão da Alemanha em dois Estados independentes e soberanos. Além destes interesses, os soviéticos eram motivados por um desenvolvimento sistémico primordial, ou seja, o conflito sino-soviético. E a iminência de nova frente de confronto a Oriente reforçou a necessidade de entendimento a Ocidente e flexibilizou a postura da URSS face às condições de realização da conferência.

Conscientes das motivações soviéticas, os EUA não mostraram vontade em viabilizar a CSCE, pois esta não servia os seus interesses fundamentais e podia pôr em risco a coesão da Aliança Atlântica, a sua hegemonia na Europa ocidental e, logo, o seu sistema de segurança. Por isso, Washington recorreu a vários expedientes para adiar ao máximo a realização da conferência, ligando-a ao universo dos problemas inscritos no relacionamento leste-oeste.

Porém, com as mudanças no sistema internacional na passagem da década de 1960 para 1970, a equação estratégica alterou-se, passando Helsínquia a dar vantagem aos EUA. Com efeito, podia ser apresentada como um ganho da política de détente, cada vez mais criticada no interior do país; na lógica da doutrina Linkage, de Richard Nixon e de Henry Kissinger, ou seja, da ligação dos vários problemas de forma a utilizar as zonas de possível cooperação para resolver as de conflito, a CSCE podia ser relacionada com cedências soviéticas em outras áreas de interesse dos EUA; era preciso enquadrar na estrutura mais vasta das relações leste-oeste a nova atitude diplomática da Europa ocidental, apostada em afirmar-se no contexto das superpotências, em especial a Ostpolitik de Willy Brandt, impedindo a RFA de ficar sozinha na abertura a leste; e os oeste-europeus estavam apostados na realização do evento e os decisores políticos de Washington tinham de evitar ações unilaterais dos aliados em relação a Moscovo, o que podia gerar, a prazo, a marginalização dos EUA dos assuntos do Velho Continente.

A CSCE era importante para a República Federal Alemã (RFA), para a França e para o Reino Unido, a afirmar a Europa no contexto das superpotências, sobretudo pelo fortalecimento do projeto da Comunidade Económica Europeia (CEE), enquanto forma de Bona, Paris e Londres ganharem nova capacidade de influência e de enquadrarem a Ostpoltik (que visava a melhoria das relações este-oeste). O ponto de viragem ocorreu em dezembro de 1969, na Cimeira de Haia, que definiu a nova orientação estratégica da CEE: completar, aprofundar, alargar. E, nesta linha, em 1973, assistiu-se à adesão do Reino Unido, da Irlanda e da Dinamarca. Assim, entre 1970 e 1972, foram assinados três tratados estruturantes da Ostpolitik: com a URSS (agosto de 1970), com a Polónia (novembro de 1970) e com a República Democrática Alemã RDA (dezembro de 1972).

A Ostpolitik foi também o fator primordial do interesse da França, do Reino Unido e da RFA na CSCE. A Conferência de Helsínquia, vista como um modo de enquadrar a reemergência da Alemanha na cena internacional num âmbito multilateral, permitia aos franceses e aos ingleses atingirem dois objetivos: para Paris, abria novas oportunidades ao velho desejo de uma Europa encarregue do seu próprio destino e liberta da hegemonia americana; para Londres, reforçava o papel de eixo central da relação entre os EUA e com a Europa ocidental e reduzia a dependência da relação espacial com Washington. E, para a RFA, era um meio de garantir a aceitação da política de abertura a leste pelos aliados ocidentais.

Os preparativos multilaterais para a CSCE iniciaram-se em Helsínquia, em novembro de 1972 e, em julho de 1973, reuniram-se os representantes diplomáticos de todos os Estados europeus (com a exceção da Albânia), do Canadá, dos EUA e da URSS, num total de 35 países participantes. Os trabalhos foram até julho de 1975, culminando na Ata Final da Conferência de Helsínquia, a 1 de agosto de 1975, de que saiu um texto dividido em três áreas vitais ou pacotes.

Do Pacote I, “Segurança na Europa”, resultou a “Declaração acerca dos Princípios para a Condução das Relações entre os Estados Participantes”. Dela constavam os seguintes princípios: respeito pela soberania; não recurso à força; inviolabilidade das fronteiras; integridade territorial; resolução pacífica das disputas; não intervenção em questões internas; e respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. E resultou, ainda, o “Documento acerca das Medidas de Confiança e Certos Aspetos de Segurança e Desarmamento”.

O Pacote II, “Cooperação nos Campos da Economia, Ciência, Tecnologia e Ambiente”, regulou e integrou as relações comerciais, produtivas e científicas entre os Estados participantes.

O Pacote III, “Cooperação nos Campos Humanitário e outros”, estabeleceu provisões acerca das relações humanas, na interação com o Estado, no acesso à informação e à formação, visando incentivar o livre fluxo de pessoas, de ideias e de informação nos dois blocos europeus.

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Na sede da Embaixada da Itália junto à Santa Sé, a 14 de dezembro, o cardeal secretário de Estado, Pietro Parolin, olhou os dez meses da guerra na Ucrânia, iniciada com a agressão perpetrada pelo exército da Federação Russa, e olhou para o futuro, pedindo um envolvimento universal para que se realize uma grande conferência de paz para a Europa, na esteira da conferência de Helsínquia, terminada em 1975, que pôs um freio na Guerra Fria.

O cardeal falou de “Europa e guerra, do espírito de Helsínquia às perspetivas de paz”, no evento promovido pela Embaixada em colaboração com a revista geopolítica italiana Limes e os Media do Vaticano e que devia contar com a presença do presidente da República Italiana, Sergio Mattarella, que testou positivo à covid-19. O embaixador Francesco Di Nitto desejou ao Chefe de Estado rápida recuperação e abriu o evento. Estiveram presentes cardeais, embaixadores, políticos e jornalistas. E Andrea Tornielli, diretor editorial da Media do Vaticano, um dos promotores com Lucio Caracciolo, diretor da revista Limes, explicou a génese do encontro.

A ideia nasceu do diálogo diário e do confronto entre a revista e a Media da Santa Sé, que está empenhada, desde 24 de fevereiro, em “descrever a brutalidade da guerra”, contando as histórias das vítimas e dos refugiados, fazendo-se eco dos apelos do Papa e recebendo vozes fora do refrão.

A referência à Conferência de Helsínquia, em que a Santa Sé participou com uma delegação liderada pelo cardeal Agostino Casaroli, não é recente, mas foi proposta, nos últimos meses, por Mattarella e por Parolin e pelo próprio Papa. O objetivo não é analisar Helsínquia, mas discutir, “com criatividade e coragem”, as possibilidades de voltar à mesa de negociações, desejo que choca com a realidade, pois hoje não há condições para repetir o sucedido em Helsínquia.

Entretanto, devemos trabalhar para reavivar o seu espírito, enfrentando esta crise, esta guerra e as guerras esquecidas, com novas ferramentas, pois não se pode ler o presente e imaginar o futuro com base em velhos padrões, em alianças militares ou colonizações ideológicas e económicas.

O discurso de Parolin desdobrou-se entre o Magistério dos Papas, da Pacem in Terris à Fratelli tutti, e as crónicas que, desde fevereiro relatam imagens sangrentas: civis mortos, crianças sob os escombros, soldados mortos, pessoas deslocadas, cidades meio destruídas no escuro e no frio.

Face a esta dor, há o risco de “habituar-se”, vincou o purpurado, que enfatizou, as lágrimas do Papa aos pés da Imaculada Conceição, a 8 de dezembro, como “poderoso antídoto contra o risco do hábito e da indiferença”. E lembrou o apelo ao recurso a todos os instrumentos diplomáticos, para alcançar “uma paz justa”, que parece um objetivo distante, sobretudo nas últimas semanas, em que, embora tenha havido “alguns vislumbres de esperança” tem havido fechamentos e subido a escalada dos bombardeios. Além disso, volta-se a falar dos dispositivos nucleares e da guerra atómica, da aceleração da corrida pelo rearmamento, com enormes quantias de dinheiro que deviam ser usadas para alimentação, para empregos e para cuidados médicos.

Por isso, é premente o novo convite a todos os protagonistas da vida internacional, na esteira do Angelus do Papa, a 2 de outubro, para se “fazer todo o possível para pôr fim à guerra atual, sem se deixar arrastar por perigosas escaladas, e para promover e apoiar iniciativas de diálogo”.

Para tanto, Pietro Parolin, sugeriu a coragem de um maior envolvimento, organizado e pré-estabelecido, da sociedade civil europeia, dos movimentos de paz, dos grupos de reflexão e das organizações que trabalham para educar para a paz e para o diálogo, envolvimento que pode ajudar a atualizar e a rejuvenescer os conceitos de paz e de solidariedade.

Também foram profundos e ricos em ideias os discursos dos outros palestrantes. O professor Matteo Luigi Napolitano, da Universidade de Molise, enquadrou historicamente a Conferência de Helsínquia, como “farol da história diplomática”. A professora Monica Lugato, da Universidade de Lumsa, salientou que a única forma de respeitar a paz é respeitar o direito.

Por fim, Claudio Descalzi, CEO da ENI, focou a mudança do equilíbrio causado pela guerra na Ucrânia, que “nos pegou no momento mais fraco da Europa, com a Rússia a deslocar o eixo de interesse energético para a China”. E frisou que a Europa “não tem energia própria, tem uma situação competitiva internamente e com os EUA” e, entre sanções e aumentos de preços, está cada vez mais sozinha e com uma indústria a atrofiar. Vincou, por outro lado, que a África sofre de “graves problemas energéticos e alimentares”, devido à guerra, e tem uma situação cada vez pior, no quadro das guerras, que geram a fome, a destruição, o estropiamento e a morte.

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A paz não é um dado adquirido e postula que os povos encontrem mecanismos de entendimento.

2022.12.14 – Louro de Carvalho

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